Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | HENRIQUE ARAÚJO | ||
| Descritores: | CONTRATO DE EMPREITADA INTERESSE CONTRATUAL NEGATIVO PRINCÍPIO DO PEDIDO RECONVENÇÃO IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO CONCLUSÕES ÓNUS DE ALEGAÇÃO | ||
| Data do Acordão: | 09/07/2020 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | NEGADAS AS REVISTAS. | ||
| Indicações Eventuais: | TRANSITO EM JULGADO | ||
| Sumário : | I- Os concretos pontos de facto que se querem impugnar são de inscrição obrigatória nas conclusões do recurso de apelação. II- Se o empreiteiro fizer assentar o pedido reconvencional em factos de que apenas releve o interesse contratual negativo, deve ser somente ressarcido no valor equivalente aos trabalhos realizados em obra. | ||
| Decisão Texto Integral: |
PROC. N.º 2180/16.4T8CBR.C1.S1 6ª SECÇÃO (CÍVEL) REL. 136[1]
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
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I. RELATÓRIO
APÍCULA – INVESTIMENTOS, S.A., instaurou contra ISIDOVIAS, INVESTIMENTOS, LDA., acção declarativa, de condenação, com processo comum, pedindo que: - seja declarado o incumprimento do contrato celebrado inicialmente entre a sociedade Civilcentro S.A. e a ré; - seja a ré condenada a devolver à autora o valor da diferença entre a obra construída - € 191.891,13 - e o montante que a autora pagou à ré - € 225.000,00 – de € 33.108,87, acrescido de juros à taxa legal, desde a data em que foi efectuado (indevidamente) o pagamento à ré até ao integral pagamento (devolução) deste valor à autora, juros estes calculados à data da propositura da acção (18 de Março de 2016) no montante de € 3.877,18, sem prejuízo da computação ulterior de juros ainda vincendos; - seja a ré condenada a pagar à autora a quantia de € 43.934,47 relativa ao reforço de equipas de construção civil e pagamento de trabalho suplementar para correcção dos vícios na execução da obra de sua responsabilidade, acrescida de juros à taxa legal desde a denúncia do contrato de empreitada pela autora até à data da propositura da acção, computados no montante de € 3.088.89, sem prejuízo da computação ulterior dos juros vincendos; - seja a ré seja condenada a pagar à autora a quantia de € 24.005,16, a título de lucro cessante, pela impossibilidade de início da exploração do Hotel, por impossibilidade de obtenção do licenciamento da obra, face aos erros e vícios de que a ré é exclusivamente responsável, a que hão-de acrescer juros vincendos desde a data da propositura da acção até ao integral pagamento; - seja a ré condenada a indemnizar a autora em sede de execução de sentença nas quantias que vierem a ser apuradas pelos custos que a autora vier a suportar em consequência dos factos referidos no artigo 64.º da presente petição inicial. Alegou, em síntese: - Foram encetadas negociações entre a Civilcentro, Construções do Centro, S.A. e o Grupo Isidoro de ..., e, na sequência dessas negociações, foi celebrado um contrato entre a autora e a ré, com vista à construção do Hotel Ibn-Arrik, à pavimentação para o estacionamento da residência estudantil da Rua ... e à construção da estrada na Quinta ...; - Houve abandono da obra por parte da ré; - Verificam-se defeitos na obra do Hotel, do qual se destaca o erro de implantação de obra em termos de cota.
A ré contestou. Por exceção invocou a caducidade do direito da autora, por decurso do prazo previsto no artigo 1225.º, n.º 2, do Código Civil. Por impugnação disse que a construção da estrada na Quinta ... não está incluída no contrato, que não houve abandono da obra, mas, no máximo, suspensão dos trabalhos, tendo a autora optado por prosseguir a obra com terceiros, ainda antes da denúncia do contrato. Disse ainda que os defeitos invocados pela autora não se mostram devidamente explicitados. Pede, em consequência, a improcedência da acção. Em reconvenção, peticiona o pagamento da pavimentação para o estacionamento da residência estudantil na Rua ..., que se mostrou concluída em 20 de Novembro de 2014, no montante de € 33.499,78, e dos trabalhos executados no Hotel, cujo valor excedeu o adiantamento de € 225.000,00 em € 122.437,47, tudo acrescido de juros de mora vencidos no valor de € 15,934,44, no montante total de € 192.931,25.
Na réplica, a autora reiterou a inclusão da obra da Quinta ... no contrato em causa e referiu que a obra do Hotel não foi executada no prazo acordado por culpa da ré e acrescentou que foi respeitado o prazo de um ano para a denúncia. Afirmou ainda que o contrato foi denunciado também por violação da confiança subjacente à sua celebração, com a subcontratação de uma empresa desconhecida para a autora, pelas sucessivas interrupções e pelo abandono da obra. Garantiu, por fim, nada dever à ré.
O processo prosseguiu seus termos, e, depois de realizada a audiência de julgamento, foi proferida a sentença, na qual se julgou totalmente improcedente a acção e parcialmente procedente a reconvenção, condenando-se a autora a pagar à ré a quantia de € 100.049,93 (cem mil, quarenta e nove euros e noventa e três cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa devida para os juros comerciais, desde 22 de Abril de 2016 até integral e efectivo pagamento.
Inconformada recorreu a autora para o Tribunal da Relação de Coimbra, que, na parcial procedência da apelação, absolveu a autora do pedido reconvencional, mantendo a sentença quanto ao restante.
Desse acórdão recorrem, agora, a autora e a ré.
A autora finaliza as alegações da revista do seguinte modo: 1. O Tribunal da Relação de Coimbra, no instrumento decidido, concluiu com parcial provimento do recurso interposto “absolvendo a Autora, ora Recorrente, do pedido reconvencional da Ré, não mais mantendo a decisão recorrida” o que se traduz em não conceder provimento ao pedido da Autora, concretamente: - de devolução do valor da diferença entre o preço que antecipadamente pagou (€ 225.000,00) e o valor comprovado da obra executada (€ 191.891,13) - deduzido da importância de € 9.000,00, valor máximo comprovado para os trabalhos realizados pela Ré de betonagem do pavimento do estacionamento do edifício da Rua ... e acrescido da quantia também pedida de € 43.934,47 comprovada nas facturas pagas para a correcção dos vícios de obra na execução parcial da empreitada negociada; - bem como da importância de € 24.005,16 a título de lucro cessante pelo atraso do início da exploração do hotel Ibn-Arrik, em ..., por impossibilidade de obtenção da licença de utilização para fins turísticos, apenas emitido em 17/03/2017 em consequência da imposição das correcções das desconformidades da obra realizada com o projecto licenciado; - a tudo acrescendo os respectivos juros vencidos e vincendos; - mais sendo a Ré condenada a indemnizar a Autora em sede de execução de sentença nas quantias que vierem a ser apuradas pelos custos que suportou ou venha ainda a suportar em consequência do incumprimento do contrato pela Ré. 2. Fundamentou a sua decisão na liminar inadmissibilidade de apreciação “desta questão recursiva”, referindo-se à decisão de facto, por afirmada “falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que a Recorrente considera incorrectamente julgados”, conforme estipula o n.º 1 do artigo 640º do CPC, sendo que sem seu entender ao indicar nas conclusões “os factos que considera deverem ser provados e não provados, apenas cumpre a exigência da alínea c) do nº1”, sendo que relativamente às passagens de gravação dos depoimentos em que se fundamenta, apenas o fez no corpo alegatório (e apenas parcialmente) nada dizendo relativamente aos meios probatórios em que se estriba. “O mesmo acontecendo quanto aos concretos pontos de facto que considera incorrectamente provados”. 3. Pelo que se limitou apenas à alteração oficiosa de um facto, concretamente a data de efectivação da denúncia do contrato que a Recorrente alegou ter efectuado em 20/03/2015, o que se mostra provado pelo doc. 16 de fls. 61 dos autos. Entende assim, que ao ponto 46 do acervo factual, deve ser aditado o seguinte trecho: “... vimos pela presente denunciar o contrato … por incumprimento da Vossa parte das condições negociadas de que salientamos entre muitas outras, os sucessivos atrasos na obra, com interrupções contínuas, culminadas no definitivo abandono da obra ...” 4. O presente recurso justificou-se na discordância sobre o fundamento invocado pelo Tribunal da Relação de Coimbra a seu ver infringindo o n.º 1 do artigo 640º do CPC. 5. Repetindo a passagem transcrita pela própria decisão recorrida do recente Acórdão do STJ de 19/06/2019, consonante com a melhor Doutrina e Jurisprudência de resto referida na decisão recorrida: “a rejeição do recurso de apelação a respeito da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, apenas pode radicar atendendo-nos propriamente ao conteúdo das conclusões, na falta de especificação dos concretos pontos de facto que o Recorrente considera incorrectamente julgados. Todos os demais elementos legalmente mencionados em especial no artigo 640º do CPC – especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados, menção sobre o sentido da decisão pretendida e indicação exacta do sentido da gravação em que o recurso se funde – apenas se faz indispensavelmente mister que conste da motivação – corpo alegatório – de tal recurso”. 6. O que afirma a Superior Instância recorrida é que a Recorrente apenas indicou nas conclusões “os factos que considera deverem ser provados e não provados” o que pela simples leitura das conclusões, somos de imediato forçados à conclusão de que não é assertiva esta afirmação, porque refere apenas o que foi incluído na sua primeira parte como desiderato conclusivo da sua motivação que a Instância recorrida até considerou “prolixa”. 7. Por referência a dois importantíssimos documentos, concretamente o contrato assinado pelas partes integrado nos factos provados e o projecto licenciado pela Câmara Municipal de ... que a Ré se comprometeu a executar, e por cujo incumprimento sempre seria responsabilizada, não se consentindo desconformidades na execução da obra, que implicariam como aconteceu a não emissão da licença de utilização por parte da entidade licenciadora. Contradições com as cláusulas do contrato ou desconformidades com o projecto licenciado no acervo probatório, implicariam necessariamente a Douta Corrigenda porque se trata dos dois documentos fundamentais definidores da responsabilidade pelo eventual incumprimento do contrato. 8. Ciente do ónus que sobre si recaía rigorosamente cumprido da delimitação do recurso nas alegações, procedeu à indicação pontual exaustiva com relevo a negrito dos factos considerados julgados (ainda que incorrectamente), introduzindo em notas críticas (também pontualmente) os termos do contrato e o conteúdo do projecto licenciado (como meios de prova mobilizados) que a decisão recorrida tinha que obrigatoriamente que ter respeitado. Mais referindo pontual e criticamente a desconformidade racional em certos pontos decididos ou a desconsideração de regras elementares de lógica ou da experiência, suscitando a “reponderação” ou o “re-exame” do julgamento realizado na Instância antecedente. (Acórdão do STJ de 30/05/2018 também referido pela 1ª Instância recorrida). 9. Num corpo alegatório pelas objectivas razões atinentes ao clausulado contratual ou ao projecto licenciado, manteve os pontos de facto consonantes e introduziu uma redacção alternativa sempre que a correcção o consentia ou a supressão do facto ou a introdução de factos novos comprovados nesses documentos constantes dos autos quando esses meios probatórios convocados impunham decisão diversa da recorrida. 10. Porque as conclusões deixam de o ser se o Recorrente nela reproduzir o corpo alegatório, transcreveu o acervo probatório que deve ser considerado provado e não provado e de seguida ainda nas conclusões (páginas 131 e ss.) a sua discordância relativa aos pontos essenciais no seu entendimento erradamente decididos, como determinantes das correcções introduzidas, respeitando os critérios da proporcionalidade e da razoabilidade que integram a cooperação para a celeridade. 11. Vemos que os pontos de discordância com a decisão recorrida, considerados incorrectamente decididos, estão especificados nas conclusões, concretamente: a) os atrasos e abandonos temporários até ao abandono definitivo da obra e execução defeituosa da parte da obra realizada (incluindo o atraso da entrada em obra); b) desconsideração na decisão e não relevância na factualidade provada dos termos do contrato assinado pelas partes e considerado reproduzido nos factos provados; c) a divergência na determinação no âmbito da empreitada; d) o preço comprovado da obra realizada pela Ré; e) a divergência sobre o direito de subempreitar, admitido como o de intermediar a totalidade da obra; f) as pretendidas justificações nos atrasos da execução da obra (violação contratual das condições colocadas pela Ré para a retoma dos trabalhos); g) o pagamento tempestivo dos serviços executados pela Ré; h) os defeitos da obra realizada e a pretendida justificação pela 1ª Instância recorrida; e i) a realização defeituosa da obra e suas consequências 12. Não entendemos como possa a Superior Instância agora recorrida afirmar que não estão concretizados nas conclusões “os pontos de facto incorrectamente julgados”. Na verdade se merece algum reparo, muito ao contrário será por a Recorrente ter sido repetitiva, não se limitando a especificar os concretos pontos de facto da sua discordância, repetindo o que já estava enxuto no corpo alegatório referenciando a sua divergência aos meios probatórios que invocou, sempre insistindo no contrato não respeitado e no projecto licenciado, notando as contradições com a disciplina contratual mormente na definição da responsabilidade das partes, indicando até a decisão a proferir. 13. Com efeito, está inequivocamente determinada pelo contrato, a data em que a Ré deveria ter entrado em obra e comprovado que entrou 6 meses depois (após o fim das chuvas) por razões meteorológicas; que era à Ré que competia a direcção técnica da empreitada (nº 1 da cláusula 5ª do contrato); direcção a executar em conformidade com os termos contratados (nº 3 da cláusula 8ª); cumprindo as exigências do caderno de encargos (que a Ré nunca juntou) e do projecto licenciado (nº 1 da cláusula 11ª); garantindo a qualidade da obra executada (nº 2 da cláusula 11ª); podendo subempreitar trabalhos que não intermediar a totalidade da obra (nº 2 da cláusula 12ª); que quanto à capacidade de decisão da obra caberia por inteiro (nº 1 da cláusula 4ª) ao director da obra “com capacidade reconhecida pela Ré para a direcção de todos os trabalhos” (nº 4 da cláusula 12ª); cabendo à Autora apenas funções de fiscalização (sobretudo sobre a qualidade dos materiais utilizados. 14. São estes os termos do contrato definidores das respectivas responsabilidades que terão que ser considerados nos factos provados, emendando as frontais contradições com o conteúdo reproduzido nos factos provados. O que a Recorrente fez, confrontando os factos provados com o objectivamente contratualizado, notando as contradições e expurgando-as na redacção definitiva proposta. Não há nenhuma correcção de texto, supressão ou acrescentamento à prova que não esteja comprovada nos termos do próprio contrato integrado no acervo probatório ou que não afronte o conteúdo do projecto licenciado. Não se vislumbra em nenhuma das corrigendas propostas qualquer subjetivismo por parte da Recorrente. Pelo contrário, o que se entende que deve ser suprimido são precisamente juízos subjectivos de pretendida desresponsabilização da Ré em contradição evidente com os documentos referidos. 15. Propondo-se na corrigenda a sua substituição pelo clausulado próprio do contrato com o qual a prova produzida se encontra em ostensiva contradição, devidamente anotada na motivação. 16. Não se tratou seguramente de uma impugnação global da prova mas de inevitáveis correcções, supressões ou correcções harmonizando o acervo probatório, libertando-o dessas anotadas contradições e julgamentos errados. 17. Também se especificou a errada consideração do âmbito da empreitada, da qual a Instância recorrida excluiu a construção da estrada na Quinta ..., considerando as propostas A e B a que o contrato celebrado 6 dias decorridos não só não as anexa, como lhes não faz a mais pequena referência, justificando a Recorrente por evidência matemática o desacerto das contas da Instância recorrida por necessária dedução ao valor global acordado para a empreitada, o valor da obra efectivamente construída pela Ré que são factos provados pela própria Instância recorrida. 18. Tendo que ser rejeitada a justificação de que o valor absurdo pretendido pela Instância recorrida (para obra executada) até se compreende “razoavelmente” como resultado da relação de confiança da ora Recorrente na pessoa do Presidente do Grupo Isidoro (!!!). O que afronta o mais elementar senso comum. 19. O que tem que ser considerado provado é que o preço acordado para a empreitada global integra as duas obras manuscritas na “Proposta A” e a “Proposta B”. Sendo que na obra da construção da estrada, a Ré se limitou a vazar as terras removidas e o entulho proveniente das demolições. 20. Questão que é todavia absolutamente irrelevante à procedência do pedido em que o que há a considerar é o preço pago pela Autora, Recorrente, e o preço devido à Ré pelas obras que bem ou mal executou. 21. Em contas rigorosas, a Ré terá então que devolver à Autora, a quantia exacta de € 225.000,00 (valor por si entregue) - € 191.891,13 (preço comprovado da obra realizada no hotel) - € 9.000,00 (preço da betonagem da laje do estacionamento considerado na proposta B) = € 24.108,87 (vinte e quatro mil, cento e oito euros e oitenta e sete cêntimos). Números que estão inequivocamente provados não se entendendo que a 1ª Instância recorrida não os tenha considerado e que o Tribunal da Relação não tenha procedido à necessária corrigenda exigida pela sua evidência. 22. Não pode recusar-se a responsabilidade da Ré para os sucessivos atrasos e abandono definitivo da obra que a Meritíssima Juiz considera justificados na decisão dilatória do cumprimento do contrato. O que foi devidamente especificado e justificado nas conclusões como inequívoca violação do contrato. 23. A Instância recorrida justificou a Ré afirmando que a Autora não cumpriu a sua obrigação de pagar atempadamente o preço, o que consentiria à Ré esse procedimento de evidente incumprimento por apelo à referida excepção dilatória (exceptio non adimpleti contractus). O que os factos mostram inequivocamente ser injustificado. A Recorrente é que protelou o pagamento justificado na referida excepção, pagando de imediato logo que a Ré entrou em obra 6 meses decorridos sobre a data em que contratualmente o devia ter feito e pagou como se sabe € 225.000,00, preço superior ao que o contrato estabelecia que eram 30% do valor da empreitada (€ 425.000,00 x 30% = € 127.500,00). Não tem por isso qualquer justificação a pretendida injustificação da Ré perante as Instâncias recorridas. 24. Ao que acresce que após o ultimo abandono, introduziu a Ré condições para o seu regresso à obra, a saber: a) a estabilização ou demolição da fachada posterior do edifício, que sem conceder a Recorrente adjudicou à Guild, Lda. que realizou a obra conforme também se mostra provado (realizada entre Dezembro de 2014 e Janeiro de 2015) e afastada que foi essa condição posteriormente: b) a demolição do miolo do edifício 18/20. Afirmando peremptoriamente que a obra que lhe foi adjudicada “não contemplava demolições senão um pequeno corpo junto aos edifícios principais”, que a 1ª Instanciar recorrida considerou provado em frontal contradição com o contratado (capítulo II sobre o título “Demolições” contemplado na proposta A que se transcreve: “execução de todas as demolições necessárias à escavação, incluindo limpeza e transporte dos produtos a vazadouro, paredes interiores e exteriores, levantamento de pavimentos, peças sanitárias, portas e janelas, etc”. 25. Não obstante, e de novo sem conceder, a Autora (ora Recorrente) adjudicou esse trabalho à empresa Guild, Lda. que o executou. Apesar de cumpridas pela Recorrente as condições ilícitas colocadas, a Ré continuou a não regressar à obra, forçando a denúncia do contrato. 26. O Tribunal da Relação considerou e mandou acrescentar ao ponto 46 do acervo probatório “... vimos pelo presente denunciar o contrato … por incumprimento da Vossa parte nas condições negociadas de que salientamos entre muitas outras, os sucessivos atrasos na obra com interrupções contínuas culminando no definitivo abandono da obra...”. 27. Provada ficou uma evidente e efectiva violação do contrato por parte da Ré. 28. Posteriormente à denúncia – por desconhecimento destes factos – e adjudicada a obra a um novo empreiteiro, foram evidenciados vícios na obra executada de tal relevância que atrasaram um ano a emissão da licença de utilização (para fins turísticos) cuja exigência de correcção por parte da entidade licenciadora, foi adjudicada em parte à Guild. 29. As mais relevantes foram o erro na implantação do novo edifício, desrespeitando as cotas do projecto e a construção das paredes do edifício implantado desalinhadas e fora de esquadria (veja-se a acareação entre o projetista e o director da obra nomeado pela Ré). Tão grave foi o erro na implantação do edifício, mantido por mera teimosia do director da obra mesmo depois de avisado pelo projetista (o que também foi especificado nas conclusões). Desse gravíssimo erro resultou a necessidade de introdução de mais degraus na ligação entre os edifícios, dificultando as acessibilidades e a construção de uma rampa de acesso ao estacionamento situado na cave que a muito custo acabou por ser licenciado mas que ainda hoje impossibilita a entrada de determinadas viaturas. 30. A correcção de todos os vícios anotados importou em custos comprovados em facturas juntas aos autos de €43.934,47 que foi pago pela ora Recorrente. Não obstante os documentos juntos aos autos (facturas) em posição das correcções pela entidade licenciadora a Instância recorrida considerou não provados estes documentos, descredibilizado até o depoimento da contabilista por incredível, segundo afirmou. 31. Mais pediu a Recorrente a exígua quantia de € 24.005,16 a título de lucro cessante pelo atraso do início da laboração do Hotel Ibn-Arrik, absolutamente comprovado pelo retardamento de obtenção da licença de utilização apenas em 17/01/2017 após as rectificações exigidas pela entidade licenciadora. 32. Não cabendo à Revista a reapreciação da prova confirmada em 2ª Jurisdição, que não é o caso, sempre lhe cabe a comprovação das contradições por confronto com os documentos juntos aos autos e a corrigenda de julgamentos antecipados contidos no próprio acervo por se se tratar de questões de Direito essenciais à realização da Justiça. No caso concreto o Tribunal da Relação declarou-se – a nosso ver erradamente – impedido de apreciar os factos provados, indeferindo liminarmente, como afirma, “esta questão recursiva” não colhendo o argumento que invoca de que os pontos discordados pela Recorrente não estão referidos nas conclusões, como o impõe o artigo 640º do CPC. Como acabamos de ver na análise às conclusões do recurso interposto, não corresponde à verdade que as questões de que discorda não estejam devidamente especificadas.
Por seu turno, a ré conclui as alegações da revista da seguinte forma: 1. O preço do contrato de empreitada celebrado entre Autora e Ré foi de € 450.000,00. 2. Neste preço, está incluído o preço de € 33.499,77, relativo à construção da laje de estacionamento do imóvel sito na Rua .... 3. Deduzido o preço da obra da ... (€ 33.499,77) ao preço do contrato de empreitada, ficamos com o preço de € 416.500,23, para a obra do hotel na .... 4. A obra do hotel foi realizada em 70% do que estava contratado, sendo a Ré, substituída, por uma empresa terceira, que concluiu a obra, por vontade expressa da Autora. 5. O preço relativo a 70% da obra do Hotel na ... corresponde a quantia de € 291.550,161. 6. Somando o preço das duas obras (do Hotel na ... e da laje de estacionamento sito na Rua ...) teria a Autora de pagar à Ré, a quantia de € 325.049,931. 7. Uma vez que a Ré recebeu, em 2014, um adiantamento da Autora, na quantia de € 225.000,00, para recebimento do que lhe é devido, tendo em consideração as obras realizadas, tem ainda que perceber na Aª o remanescente do preço na quantia de € 100.049,93. 8. Foi estipulado contratualmente de que o pagamento do preço se efetuaria com a entrega de um adiantamento de 50% e que o remanescente do mesmo mediante a emissão de facturas que se venceriam 30 dias após a sua emissão. 9. Foram emitidas facturas pela Ré /Reconvinte a 30 de Junho de 2014 e 31 de Dezembro 2014, da quantia de € 21.062,56 e € 122.434,47, respectivamente, com vencimento a 30 dias. 10. Os danos sofridos pela Ré /Reconvinte na execução de 70% da empreitada realizada na Rua ..., cifram-se em € 100.049,93. 11. O preço de mercado da obra realizada no Hotel da Rua ..., quantificado em € 191. 891,13 não deve ser tomada em consideração uma vez que as partes, no exercício da liberdade negocial acordaram um preço superior ao do valor de mercado, tendo em consideração a especificidade da empreitada a executar. 12. Deve a sentença, que absolveu a Autora /Reconvinda do pedido reconvencional, alterada por outra que o julgue parcialmente procedente, condenando a Aª a pagar à Ré, a quantia de € 100.049,93, acrescidos juros de mora à taxa comercial desde o dia 22 de Abril de 2016, até integral e efectivo pagamento.
Houve respostas às alegações de recurso.
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Sendo o objecto dos recursos balizados pelas conclusões de cada uma das recorrentes, as questões a apreciar são: No recurso da autora: - Mostra-se violada pelo tribunal recorrido a norma do artigo 640º, n.º 1, do CPC? No recurso da ré: - Deve o pedido reconvencional proceder em parte?
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II. FUNDAMENTAÇÃO
Vêm provados os seguintes factos:
1. Na sequência de negociações entre a Civilcentro, Construções do Centro, S.A. e o grupo Isidoro, foi celebrado entre as partes, a 21 de Outubro de 2013, um acordo, designado de «contrato de empreitada», junto a fls. 125 a 130 dos autos, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
2. Nesse acordo, faz-se referência a uma «proposta anexa ao presente contrato», a qual corresponde aos orçamentos de fls. 31, verso, a 32, com as anotações manuscritas deles constantes.
3. O referido acordo visava a construção do Hotel Ibn-Arrik e a pavimentação para o estacionamento da residência estudantil na Rua ....
4. O referido acordo corresponde à versão final do contrato.
5. Nos termos da Cláusula Primeira, a ré «deverá também cumprir todas as legítimas instruções que lhe venham a ser dadas por um representante autorizado da» autora.
6. Da Cláusula Segunda do acordo consta que «Os trabalhos iniciar-se-ão, previsivelmente a 4 de Novembro de 2013 e deverão estar concluídos no prazo de 18 meses após o seu início, sem prejuízo das eventuais prorrogações que se mostrem necessárias em função do decorrer da empreitada».
7. De acordo com a Cláusula Terceira, o preço é de € 450.000,00.
8. Desses € 450.000,00, € 33.499,77 seriam devidos pela pavimentação para o estacionamento da residência estudantil na Rua ... e o remanescente para os trabalhos relativos ao Hotel.
9. Nos termos da Cláusula Quarta, a autora entregaria € 225.000,00 até 4 de Novembro de 2013, o que seria deduzido mensalmente em cada factura que viesse a ser emitida, na percentagem de 50%, sendo que, relativamente ao restante valor a pagar, seriam emitidas facturas com base em autos mensais, correspondentes aos trabalhos que fossem executados e que se venceriam 30 (trinta) dias após a sua data de emissão.
10. Nos termos da Cláusula Quinta, a todo o momento, a autora poderia fiscalizar o andamento dos trabalhos, com vista a aferir o cumprimento dos prazos aqui estipulados.
11. De acordo com a Cláusula Décima Primeira, os trabalhos a desenvolver pela ré deveriam cumprir as exigências estipuladas no Caderno de Encargos e Projecto, assim como a regulamentação e disposições legais que fossem aplicáveis aos trabalhos adjudicados.
12. Nos termos da Cláusula Décima Segunda, a ré poderia livremente adjudicar trabalhos a terceiros, desde que fosse cumprido o projecto e o caderno de encargos.
13. Segundo esta Cláusula, seriam realizadas, periodicamente, e em datas a fixar por acordo das outorgantes, reuniões de obra para análise e planeamento dos trabalhos.
14. A ré emitiu a primeira factura a 28 de Março de 2014, no valor de € 225.000,00, com vencimento a trinta dias, sendo que a autora a liquidou a 25 de Julho de 2014.
Do Hotel
15. O alvará de licença de construção relativo à obra do Hotel foi emitido pelo Município de ... a 7 de Março de 2014.
16. A ré, por acordo com a autora, entrou na obra relativa ao Hotel em Maio de 2014, através de uma subempreiteira.
17. A intervenção da ré relativa ao Hotel seria feita no edifício n.ºs 22 a 24 da Rua ... e no logradouro existente no local.
18. Os trabalhos a executar consistiam na montagem do estaleiro, execução das demolições necessárias à escavação no logradouro e respectiva escavação, escavação do solo no interior do edifício, após demolição do miolo feita pela autora, transporte e depósito dos materiais resultantes da escavação, fornecimento e aplicação de betão em ensoleiramento, pilares, vigas, muros e lajes, fornecimento e aplicação de pilares metálicos e estrutura de suporte para a fachada.
19. Quanto às demolições, consistiam em: a) Demolir na fachada anterior, somente o espaço estritamente necessário à passagem das máquinas, que iriam fazer a escavação no logradouro; b) Demolir uma estrutura constituída por casas de banho situada na parte posterior do edifício, zona em que a ré iria intervir fazendo as escavações. c) Demolir um anexo situado nas traseiras do logradouro.
20. As restantes demolições, dentro do edifício, não foram contempladas nos trabalhos da ré, tendo ficado acordado que seriam feitas pelo «pessoal» da autora.
21. Os trabalhos de escavação a cargo da ré pressupunham a demolição do interior do edifício, a cargo da autora.
22. Deveria ser feita uma estrutura de estabilização da fachada posterior do edifício, para conferir estabilidade a esta e também às fachadas contíguas, sob pena de se correr o risco de derrocada, sendo estes trabalhos da responsabilidade da autora.
23. A ré começou por dar início aos trabalhos de topografia (implantação) na parte posterior do prédio, local onde se começaria a escavação e remoção de terras.
24. Desde o primeiro momento, todas as inconformidades encontradas, quer entre as diversas peças do projecto, quer entre estas e as condições verificadas no local de obra, foram sempre abordadas pela ré com o fiscal da autora, engenheiro AA.
25. Na acta da 1ª reunião da obra, datada de 20 de Junho de 2014, a ré alertou a autora para a necessidade de pedir electricidade trifásica para a obra, fornecimento que era da responsabilidade da autora.
26. Por diversas vezes foi pedido à autora que solicitasse a colocação de energia na obra.
27. Depois de muitas insistências sem sucesso, ao longo de várias semanas, finalmente, a ré, de forma a poder avançar com os trabalhos, providenciou a colocação de um gerador na obra.
28. Detectou-se também em obra incoerências relativamente às cotas altimétricas de projecto, uma vez que não coincidiam com as cotas do edifício existente.
29. Verificando a ré que as cotas do projecto não se encontravam correctas, foi requerida a presença do engenheiro AA, responsável na obra da autora, e elaborado com este acta de reunião, datada de 20 de Junho de 2014, onde se estabeleceu que a cota do piso 0 era 77,52 e serviria de referência para os restantes pontos da obra, e que a cota do piso -1 era 73,53, o que foi o implementado no terreno pela ré.
30. De forma a ser possível avançar com os trabalhos, emitiu-se um documento, aprovado pelo fiscal da obra, com as novas cotas de projecto, já ajustadas à realidade.
31. A ré detectou irregularidades no projecto ao nível do alinhamento dos muros de betão que tiveram de ser corrigidas.
32.Foi dado conhecimento de um erro de esquadria pela ré à autora, no dia 12 de Junho de 2014.
33. Tendo sido encontrada uma solução por consenso, essa solução foi implementada na obra pela ré.
34. Foi por diversas vezes solicitada à autora informação em falta, relativamente aos projectos de estabilidade, e das restantes especialidades, nomeadamente abastecimento de água e drenagens, sendo que esta informação foi sendo enviada muito faseadamente, o que dificultou o planeamento e o aprovisionamento dos materiais necessários à execução das diversas actividades, com os consequentes atrasos na execução.
35. Foi emitida pela ré a factura n.º 1.2.2312, datada de 30 de Junho de 2014, no valor de € 21.062,56, que não foi liquidada pela autora.
36. A 2 de Dezembro de 2014, realizou-se na obra uma acção inspectiva da ACT, que verificou a existência de irregularidades ao nível da segurança e saúde no trabalho e a não existência de Livro de Obra no Local.
37. As falhas de segurança prendiam-se com os trabalhos de demolição que estavam a ser executados pelo «pessoal» da autora.
38. As condições climatéricas adversas condicionaram as obras, obrigando a algumas interrupções nos trabalhos.
39. Sempre que havia necessidade de suspender os trabalhos na obra, a ré motivou e justificou essas suspensões, promovendo reuniões e elaborando autos/correio electrónico sobre os acontecimentos em curso, autos estes assinados ou recepcionados pelo responsável perante a obra da autora.
40. A ré enviou para a autora a factura n.º 1.2.2320, datada de 31 de Dezembro de 2014, no valor de € 122.434,47, que não foi liquidada pela autora.
41. A 23 de Março de 2015, a autora autorizou e permitiu a entrada em obra de um terceiro, para terminar a obra.
42. Nessa altura, a obra encontrava-se suspensa, motivada pela necessidade de proceder à demolição do miolo do edifício com os n.ºs 22 a 24, sem a qual não seria possível concluir os trabalhos adjudicados à ré.
43. A parede posterior do imóvel deveria ter sido demolida pelo «pessoal» da autora, como inicialmente previsto.
44. No entanto, a autora decidiu manter a parede, motivo pelo qual deveria a mesma ser escorada, para que a parede não ruísse e para que em segurança pudessem ser removidas terras.
45. Aguardava a ré que a autora providenciasse as condições de segurança que permitissem a normal prossecução dos trabalhos.
46. A 20 de Março de 2015, a autora denunciou o contrato de empreitada celebrado com a ré, nos seguintes, nucleares, termos: «vimos pela presente denunciar o contrato … por incumprimento da vossa parte das condições negociadas de que salientamos, entre muitas outras, os sucessivos atrasos na obra, com interrupções contínuas, culminadas no definitivo abandono da obra…»
47. Na missiva, recepcionada a 24 de Março de 2015, na qual a autora comunicava a denúncia do contrato de empreitada, não são referidos quaisquer vícios da obra, apesar da presença constante do Fiscal da Obra do Dono da Obra, engenheiro AA.
48. Os trabalhos realizados pela ré, em obra, têm o valor, em termos de mercado, de € 191.891,13.
49. Os trabalhos da ré na obra do Hotel correspondem a cerca de 70% do total da obra.
50.A ré não construiu dois pilares no rés-do-chão do corpo edificado, o que não implicou atrasos na obra.
51. A ré teria construído esses dois pilares se a obra não tivesse sido continuada por um terceiro.
52. Os pilares foram construídos por esse terceiro.
53. A diferença de cota em relação ao projectado provocou: - a exigência de construção de degraus não previstos nem existentes no projecto de arquitectura e de uma rampa de acesso para pessoas com mobilidade reduzida da via pública para a zona de recepção do Hotel; - a alteração do projecto de arquitectura.
54. Procedeu-se à construção de paredes de tijolo justapostas à estrutura de betão para recuperação da esquadria das paredes do edifício novo.
55. A petição inicial deu entrada a 18 de Março de 2016.
Da Rua ...
56. Os trabalhos acordados entre a autora e a ré relativamente à obra na Rua ... foram integralmente executados e estavam concluídos a 20 de Novembro de 2014.
57. A ré foi citada para a presente acção por aviso de recepção assinado a 23 de Março de 2016.
58. A ré remeteu à autora a factura n.º FT 1.2/2376, datada de 22 de Abril de 2016, a pronto pagamento, no valor de € 33 499,78, que se encontra por liquidar pela autora.
59. A ré deduziu contestação com reconvenção a 30 de Abril de 2016.
O DIREITO
Preliminarmente, deve dizer-se que a acção interposta pela autora contra a ré foi julgada improcedente na 1ª instância e na Relação de Coimbra, verificando-se, portanto, uma situação de dupla conformidade decisória, em princípio obstativa da admissão da revista normal – cfr. artigo 671º, n.º 3, do CPC[2]. Todavia, como o acórdão da Relação de Coimbra decidiu rejeitar o recurso de apelação no tocante à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com fundamento no incumprimento dos ónus previstos no n.º 1 do artigo 640º, essa rejeição, constituindo matéria não abrangida pela ‘dupla conforme’, pode ser objecto do recurso de revista, cabendo apreciar se, no caso, esses ónus foram (ou não) suficientemente cumpridos.
A. Dos ónus de impugnação da decisão de facto (recurso da Autora) Prescreve o n.º 1 do artigo 640º que, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, (a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, (b) os concretos meios probatórios que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e (c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. No acórdão recorrido, após se terem feito algumas considerações sobre o modo como devem cumprir-se tais ónus, concluiu-se que, no caso, a autora os não cumpriu, tendo-se escrito o seguinte: “Vistas as alegações de recurso verifica-se que este caso é um daqueles, raríssimos aliás, em que a recorrente se insurge contra a globalidade da decisão sobre a matéria de facto. Pois que ela impugna todos – no atinente à essencialidade do teor da decisão e do objecto do recurso – ou quase todos – numa perspetiva meramente aritmética, porque aceita dois ou três – , os factos dados como provados e, inclusive, todos ou quase todos os dados como não provados. O caso é tanto mais frisante – e inadmissível – quanto é certo que não estamos perante uma decisão factual resumida a alguns, poucos, ou até, a uma ou duas dezenas de factos, mas antes perante uma plêiade de muitas dezenas, quais sejam 59 factos dados como provados e 30 dados como não provados. Estando a recorrente irresignada quanto a todos ou quase todos eles é caso para dizer que ela entende que a julgadora errou meridiana, crassa, totalmente, e em toda a linha, transparecendo que considera tal ter-se verificado porventura por falta dos requisitos, objectivos e/ou subjetivos supra aludidos. Tal grave imputação/desmerecimento dimana do teor das suas alegações na parte de impugnação da matéria de facto e da «questão prévia» inserta nas suas prolixas conclusões, nas quais refere mais ou menos explicitamente, ou dá a entender que, ainda antes de produzida a prova ou toda a prova, a julgadora estava já com a convicção formada em favor da tese da ré. É o que transparece da sua manifestação de «estranheza» para a prova de certos factos; de várias vezes apelidar tal prova de «complemento criativo» de afirmar, adrede, que a julgadora: «toma posição antecipada em favor da tese pretendida pela ré» - cfr. vg. fls. 506 a 508 -, e de expressar que «o principal suporte da convicção da Meritíssima Juiz – tão forte, que não precisou de mais do que seis dias para proferir a sentença – foram as declarações do representante legal da Ré…» - cfr. dita questão prévia. Mas tal labéu, porque infundado e não provado, não pode aceitar-se, ao menos por força da mencionada presunção, não ilidida. (…) Mas mesmo que assim não fosse ou não se entenda e se considere que inexiste uma impugnação de toda a decisão factual, então o recurso não poderia ser admitido por preterição de outros requisitos formais dimanantes do mencionada artº 640º. Certo é que o cumprimento destes deve ser avaliado em função de critérios de razoabilidade e proporcionalidade. Pelo que, presentemente, é entendimento maioritário dos tribunais de recurso – Relações e STJ – que o não cumprimento nas conclusões do requisito da al. a) do n.º 2 – indicação com exactidão das passagens da gravação dos depoimentos em que se estriba – não é motivo de indeferimento liminar se tal foi cumprido no corpo alegatório; e, mesmo que aqui não seja cumprido, há quem entenda que deve ser proferido despacho de aperfeiçoamento no sentido de tal cumprimento Porém, já é comummente defendido que os outros requisitos do n.º 1 – porque as alegações definem o objecto do recurso e por razões de cooperação para a celeridade – devem nestas constar. (…) E mesmo que se entenda que nem todos estes requisitos devem ser exigidos presentes, com rigor e perfeccionismo, nas conclusões, pelo menos um, qual seja o da al. a) – indicação dos concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados - deve nelas constar, adrede e inequivocamente. É esta, tanto quanto alcançamos, a posição jurisprudencial unânime, aliás no seguimento do entendimento da doutrina nesta matéria. (…) In casu, a recorrente, ao indicar, nas conclusões, os factos que considera deverem ser provados e não provados, apenas cumpre a exigência da al. c) do nº1. Já quanto aos demais nada nelas consta. Relativamente às indicações das passagens da gravação dos depoimentos em que se fundamenta, apenas o faz no corpo alegatório; e apenas parcialmente, pois que relativamente a alguns depoimentos limita-se a invocá-los sem qualquer indicação, específica ou genérica, de tal gravação – cfr. fls 502, 509 e 510. No atinente aos meios probatórios em que se estriba, nada diz. E, «last but not the least», passe o anglicismo, ou seja, por último mas não de somenos, quanto aos concretos pontos de facto que considera incorrectamente provados – e no entendimento, que não é o nosso, como se viu, de que inexistiu uma inadmissível impugnação global da decisão de facto, porque, matematicamente, alguns pontos não foram impugnados – disse: nada”. Temos por genericamente acertada esta análise. Foram 59 os factos que as instâncias consideraram provados, sendo em número de 30 os factos que se deram por não demonstrados. Desses 59 factos provados, só escaparam à crítica da recorrente, no corpo das alegações, os factos 1., 6., 9., 23., 48. e 49. (não devendo fazer parte da lista dos factos criticados os dos itens 55. e 57., em cujos pontos o tribunal se limitou a consignar, respectivamente, a data de entrada da petição inicial e a data em que a ré foi citada para a acção). Até o facto 59., onde singelamente se consignou que a ré deduziu contestação com reconvenção a 30 de Abril de 2016, mereceu reparo da recorrente, que propôs para esse ponto a seguinte redacção: “deduzindo contestação com reconvenção oito dias depois (30.04.2016)”. Também os 30 factos não provados foram maciçamente impugnados, podendo inclusivamente dizer-se que não houve um único que não tenha sido objecto de censura. Esta torrente impugnatória da recorrente tem, no entanto, um problema. É que, apesar das 185 páginas das alegações do recurso de apelação, a recorrente, porventura perdida no meio de pedidos de supressões, aditamentos, correcções, etc., falhou o essencial: a identificação concreta, nas conclusões, dos pontos de facto que, em sua opinião, foram incorrectamente julgados. Limitou-se a elencar a factualidade que, segundo o seu critério, devia ser julgada provada, estendendo-a por 60 pontos, alguns dos quais com várias alíneas por si aditadas. No total, um acervo de 100 factos, nem mais (!), todos ‘provados’. Evidentemente que as coisas não podem ser tratadas desta maneira. A impugnação da matéria de facto deve ser feita de forma séria e rigorosa, nomeadamente no que diz respeito ao ónus primário de identificação dos concretos pontos de facto que se pretendem impugnar. Só o escrupuloso cumprimento desse ónus, no lugar próprio (conclusões), possibilita à parte contrária visualizar os termos em que exercerá o contraditório e permite ao tribunal isolar o preciso objecto do recurso nesta matéria. Mas a recorrente não só não cumpriu esse ónus de especificação dos pontos de facto a impugnar [alínea a) do n.º 1 do artigo 640º), como também aligeirou o cumprimento do ónus de indicação dos meios probatórios relevantes [alínea b) do n.º 1 do artigo 640º]. Conquanto o tenha feito apenas nas alegações de recurso – o que, apesar de tudo, não constitui qualquer problema[3] – o modo como o fez mais não é do que um largo repositório de considerações genéricas e de subjetivas interpretações da prova documental junta aos autos (designadamente, do acordo denominado ‘contrato de empreitada’ e da proposta, referidos nos pontos 1 e 2 dos factos provados), com esparsas e curtas transcrições de dois ou três depoimentos. Decisivo, porém, para a rejeição da impugnação da matéria de facto é, conforme referido, o incumprimento do ónus previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 640º De tudo se conclui que a Relação de Coimbra não violou nem aplicou erradamente a norma do artigo 640º, n.º 1, do CPC, improcedendo, portanto, a revista da autora.
B. Do pedido reconvencional (recurso da ré) Embora não expressamente assumido, ambas as instâncias partem do pressuposto de que cessou o contrato de empreitada acordado entre a autora e a ré. Nesse contexto, a 1ª instância fez proceder parcialmente o pedido reconvencional da ré, com base na fundamentação que segue: “…nos termos do disposto nos artigos 406.º e 798.º do Código Civil, os contratos devem ser pontualmente cumpridos, pelo que o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelos prejuízos causados ao credor. Na situação em apreço, são devidos à ré os € 33 499,77, relativos ao preço da obra na Rua .... São ainda devidos € 291 550,161, correspondentes aos 70% do preço da obra do Hotel (€ 450 000,00 - € 33 499,77 = € 416 500,23 x 70 ÷100). Nesta parte, entende-se que não serão devidas as facturas relativas à obra do Hotel na sua totalidade, porquanto, pese embora a ré tenha sido afastada ilegitimamente da obra, crê-se que não poderá receber mais do que a percentagem dos trabalhos efectivamente prestados. Julga-se que um entendimento em contrário corresponderia a um enriquecimento sem causa da ré, que seria compensada por trabalhos não prestados, o que será de todo de evitar. Esta ideia não conflitua com a noção de «empreitada de preço global», que não é o caso dos autos. De facto, a «empreitada é por preço global (ou, como também se diz, por preço único e fixo, a corpo, a forfait ou per avisionem), quando o seu preço é previamente determinado para todos os trabalhos a executar; o preço é único, está logo fixado no momento da celebração do contrato, pelo que, para a sua fixação, não existem operações ulteriores, designadamente de cálculo ou medição» Na situação em apreço, ficou apurado que o remanescente do preço a liquidar assentaria em medições e corresponderia aos trabalhos que fossem executados. Não está, por conseguinte, aqui em causa uma empreitada de preço global, não se suscitando, por isso, qualquer dificuldade a este respeito. Do montante devido, no total de € 325 049,931 (€ 33 499,77 + € 291 550,161), já foram pagos pela autora à ré € 225 000,00. Fica, pois, por liquidar € 100 049,93”. Foi nesta quantia de € 100.049,93, acrescida de juros comerciais desde 22.04.2016 até integral pagamento, que a 1ª instância condenou a autora, assim reconhecendo parcial procedência ao pedido reconvencional deduzido pela ré. No entanto, a Relação de Coimbra revogou, nessa parte, a decisão da 1ªinstância, absolvendo a autora da totalidade do pedido reconvencional. Fê-lo do seguinte modo: “Como é consabido, tendo em conta os princípios da substanciação e do dispositivo, a causa tem de ser decidida em função do modo como as partes delineiam/alicerçam a acção, bem como em função dos factos apurados. Ora visto o pedido reconvencional, alcança-se que a ré estriba a sua pretensão indemnizatória, não no seu direito de, não fora a atuação ilícita da autora em acabar com o contrato, poder/dever ter continuado com a execução da obra e, assim, no seu direito de receber em função do(s) valor(es) para ela anuído(s) pelas partes, desde logo em função do preço inicial de 450 mil euros. Mas antes, e apenas, suporta tal pedido nos trabalhos que efectivamente realizou durante o tempo em que esteve na obra, e em função do valor/preço dos mesmos. E, por considerar que tais trabalhos excederam o adiantamento de 225.000,00 euros que recebeu da ré, impetra o remanescente – cfr. artºs 151º e sgs. – rectius 159º/160º - de fls. 121. Ou seja, e em termos mais jurídicos, a ré funda a sua pretensão não no seu interesse contratual positivo, ou seja, no seu interesse de cumprir o contrato e dele retirar os respectivos proveitos, tal como se na obra estivesse até final, mas no seu interesse contratual negativo, isto é, querendo apenas ser ressarcida pelos danos que não teria se não fosse a resolução infundada da autora. Nesta conformidade, a decisão não pode perspectivar e considerar o preço acordado para a empreitada de 450 mil euros. Antes se devendo perspectivar se o valor dos trabalhos invocados pela ré excederam o valor do adiantamento de 225 mil euros. E a resposta é negativa. Efetivamente, está provado que 48. Os trabalhos realizados pela ré, em obra, têm o valor, em termos de mercado, de € 191 891,13. E mesmo que esteja provado que 49. Os trabalhos da ré na obra do Hotel correspondem a cerca de 70% do total da obra, e, assim, este valor, mesmo incluindo o valor da obra da Rua ..., não atinja o valor de 450 mil euros, tal é irrelevante para a consideração deste. É que o preço de 450 mil euros pode até ter sido um óptimo negócio para a ré por se ter alcandorado a montantes acima dos valores médios de mercado. Mas, repete-se, o que conta e releva, para a realização da justiça do caso, são o teor das alegações das partes – máxime a causa petendi invocada - e os factos apurados. Ora provado que o valor total das obras realizadas pela ré ficou abaixo do montante por ela já anteriormente recebido, obviamente - e reitera-se, na economia da fundamentação por si aduzida para este seu pedido -, que lhe não assiste jus a receber mais; sob pena de locupletamento à custa da autora”. Também neste aspecto o acórdão recorrido decidiu bem. Na verdade, a sustentação do pedido reconvencional, como bem assinalado, assenta na alegação do valor dos trabalhos que a ré empreiteira realizou enquanto esteve na obra, na medida em que esses mesmos trabalhos excedam o valor do adiantamento de € 225.000,00. A atinente causa de pedir consta dos. artigos 151º e seguintes da contestação/reconvenção, sendo particularmente expressiva a alegação feita no artigo 159º: “ (…) os trabalhos executados pela ré avançaram bastante, de tal modo, que as quantidades executadas ultrapassaram em muito o valor do adiantamento”. Radica, portanto, o pedido reconvencional no interesse contratual negativo ou dano de confiança, e não no interesse contratual positivo, ou de cumprimento. Almeida Costa distingue-os assim[4]: “A indemnização pelo dano positivo destina- -se a colocar o lesado na situação em que se encontraria se o contrato fosse exactamente cumprido. Reconduz-se, assim, aos prejuízos que decorrem do não cumprimento definitivo do contrato ou do seu cumprimento tardio ou defeituoso. Ao passo que a indemnização do dano negativo tende a repor o lesado na situação em que estaria se não houvesse celebrado o contrato, ou mesmo iniciado as negociações com vista à respectiva conclusão”. O interesse contratual negativo corresponde, assim, à reposição do lesado no estado económico anterior à outorga do contrato cujo normal resultado se frustrou, numa perspectiva de tendencial igualdade das partes contratantes. Ora, de acordo com o que ficou provado, as partes convencionaram o valor de € 450.000,00 para a realização total da obra (edificação do hotel e pavimentação da rua) - cfr. pontos 3., 7. e 8., tendo a autora adiantado à ré € 225.000,00 (cfr. pontos 9. e 14.). Conforme ficou igualmente demonstrado, os trabalhos realizados pela ré, em obra, têm o valor de mercado de € 191.891,13 (cfr. ponto 48.), sendo, portanto, inferior ao montante de € 225.000,00, adiantado pela autora àquela. Por conseguinte, como o valor das obras realizadas pela ré ficou abaixo do montante já pago pela autora, nada mais tem a receber desta, assim improcedendo o recurso da reconvinte.
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III. DECISÃO
Em conformidade com o exposto, decide-se negar ambas as revistas.
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Custas das revistas por cada uma das recorrentes.
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LISBOA, 7 de Setembro de 2020 Henrique Araújo (Relator) Maria Olinda Garcia Ricardo Costa
Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC):
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