Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B2263
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: DIOGO FERNANDES
Descritores: DOAÇÃO
MANDATO
PROCURAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ200210170022637
Data do Acordão: 10/17/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 1334/01
Data: 10/07/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - TEORIA GERAL / DIR CONTRAT.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 342 N1 ARTIGO 949 N1 ARTIGO 2182 N2.
Sumário : I - Não é permitido atribuir a outrem, por mandato, a faculdade de designar a pessoa do donatário ou determinar o objecto da doação.
II - Compete ao donatário alegar e provar estar-se face a caso excepcionado por lei.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I - Relatório:

1.º A e outros, - com os sinais dos autos, recorreram para este Supremo, Tribunal do Acordo do Tribunal da Relação do Porto, de 19-11-01, (fls. 242 e sgs) que julgou improcedente o recurso para ele interposto da decisão proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Monção (em 24-04-01), a qual havia julgado parcialmente procedente a acção por eles intentada contra os Réus - B e mulher, também com os sinais dos autos.
Oportunamente produziram alegações e formularam as seguintes conclusões:

a) A procuração outorgada por C é formal e materialmente válida, pois obedece aos requisitos impostos pelo art. 949 n. 1 e n. 2 do art. 1159 do Cod. Civil;

b) A lei somente exige que esteja determinado o objecto e não a amplitude desse objecto e ainda se identifiquem os beneficiários;

c) Aliás, foi esse o entendimento dos Cartórios Notariais de Valença e de Melgaço;

d) As instâncias ao darem como nula a escritura de doação por vicio de forma da procuração, violaram o disposto no art.º 949 n. 1 e 1159 n. 2 do Cod. Civil;

e) Por outro lado não houve abuso de representação e muito menos
simulação;

f) A matéria contida nos quesitos 8 e 9, únicos em que se baseiam as instâncias para darem a acção por improcedente, contem somente material de direito e além disso puramente conclusiva;

g) O tribunal dá como provado que AA, e mandatária sabiam..., mas não se baseia em nenhuns factos ou circunstâncias mesmo indiciárias que indiquem qual a razão de ciência que levou a tal conclusão;

h) No caso dos autos, não se aponta um único facto nem sequer manifestação de vontade quer da mandante, quer da mandatária quer dos beneficiários que possam levar ou justificar a conclusão referida nos quesitos 8 e 9;

i) Pelo acabado de expor não resta outra alternativa que não seja dar as respostas e tais requisitos como não escritas.
Nestes termos deve revogar-se o presente Acórdão e, em consequência, julgar a acção provada e precedente, ordenando-se a entrega do imóvel aos apelantes com as legais consequências.

2.º Os RR não contra-alegaram.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:

II - os factos:

As instâncias declararam provados os seguintes factos:

1. Por escritura lavrada em 19/02/96 no Cartório Notarial de Valença, C declarou constituir sua bastante procuradora D, conforme documento n. 2 junto com a contestação e cujo teor aqui se dá por reproduzido - alínea A) dos factos assentes no saneador .
2. Por escritura lavrada no Cartório Notarial de Melgaço, D, em representação de C, declarou doar aos AA. o prédio misto composto de casa de morada com dois pavimentos e rossios com a área coberta de 98 m2 e descoberta de 200 m2 , sito no, lugar da Lavandeira, da freguesia de Monção, a confrontar do Nascente com a estrada nacional, Sul com E; Nascente com estrada municipal e Poente com caminho público, descrito na C.R.P. sob o n. 00368/080796 e inscrito na matriz respectiva sob o art.º 1271° urbano e 48 rústico, o qual corresponde ao art.º 7470 da anterior matriz rústica - alínea B) dos mesmos factos.
3. O dito prédio encontra-se registado na C.R.P. de Monção a favor dos AA., através da inscrição privativa G - 1 - alínea C) dos mesmos factos.
4. O referido imóvel é composto por uma parte urbana (casa) e uma parte rústica (terreno de pastagem e monte), sendo certo que originariamente se tratou de um prédio somente rústico - alíneas D) e E) dos mesmos factos.
5. Por escritura celebrada em 13/08/99 no Cartório Notarial de Monção, F e esposa declararam vender a C, o prédio referido em B) - alínea F) dos mesmos factos.
6. C, mandou construir a suas expensas o prédio urbano, tendo tratado do projecto e respectivo licenciamento municipal e pagando os respectivos materiais e mão de obra - alínea G) dos mesmos factos.
7. Os RR. viviam em casa da C e aí casaram, dormiam juntamente com a filha do casal - alínea H) dos mesmos factos.
8. O R. marido, com processo disciplinar prévio foi despedido em 16/11/96, e esse despedimento foi objecto de apreciação judicial, tendo terminado por transacção, conforme doc. de fls. 125 e seg. cujo teor se dá por reproduzido - alínea 1) dos mesmos factos.
9. Há cerca de 04 meses, os RR., sem autorização dos AA , ocuparam o prédio descrito em B), onde passaram a dormir e a confeccionar as suas refeições, passando também a semear hortaliças e outros produtos para o seu consumo no terreno do quintal adjacente do referido prédio - alínea J) dos mesmos factos.
10. Em 13/11/85, no Cartório Notarial de Monção, C declarou legar aos RR. o prédio referido em e), conforme documento n. 3 junto com a contestação e cujo teor aqui se dá por reproduzido - alínea L) dos mesmos factos.
11. Em 16/07/95, no Cartório Notarial de Monção, C alterou o testamento referido em L), conforme documento n. 3 cujo teor se dá por reproduzido - alínea M) dos mesmos factos.
12. C, faleceu em 06/01/97- alínea N) dos mesmos factos.
13. Há cerca de três anos a esta parte, os RR. pediram a C para lhes facultar a casa para aí colocarem as suas pertenças pessoais - resposta ao quesito 1° da base instrutória.
14. Em Setembro de 1996 os RR. foram viver para a casa da Quinta da Caldeira, nesta vila, que tinha pertencido a C, a qual nasceu no dia 17/07/1911 e se encontrava então doente - resposta ao quesito 3.º.
15. Os RR. durante mais de 25 anos foram empregados de C resposta ao quesito 4.
16. Na casa da Quinta da Caldeira existia um fogão a gás com duas bocas, duas garrafas de gás, uma cómoda em madeira com tampo de mármore, antigo e em bom estado e uma cama de casal, artigos que então pertenciam a C, sendo certo que esta cama de casal era de ferro liso - resposta ao quesito 6.º.
17. Os RR. retiraram tais artigos da casa da Quinta da Caldeira e levaram-nos consigo resposta ao quesito 7.º.
18. A autora da declaração de doação constante da escritura referida sabia, quando a fez, que a mandante, não pretendia fazer doação aos filhos dela e sobrinhos desta, ora AA., do prédio identificado no art. 1.º da petição - resposta ao quesito 8.º.
19. Também os AA. sabiam que a sua tia, C não queria, nem quis nunca fazer-lhes doação de tal prédio - resposta ao quesito 9.º.
20. O R. marido foi criado e educado, desde tenra idade, pela C, sempre há mais de 30 anos - resposta ao quesito 10.º.
21. O R. marido, e, após casamento, também a R. mulher, cuidava dos terrenos da C quer dos lavradios, quer do mais, agricultando-os e cuidando-os, criando e tratando animais e superintendendo em todas as actividades agrícolas - resposta ao quesito 11.º.
22. D, como procuradora com poderes de administração, exigia aos RR. que saíssem da casa da Quinta dos Capuchos, tendo-lhes facultado a casa da Quinta da Caldeira, casas essas e quintas que tinham pertencido a C - resposta ao quesito 12.º.
23. Os RR. foram viver para casa que sabiam ser-lhes destinada por C, identificada nas alíneas e) a G) da especificarão, casa esta, onde, desde há anos os RR. haviam colocado móveis e utensílios necessários ao seu aproveitamento habitacional resposta aos quesitos 13.º e 14.º.
24. Só lá não viviam quotidianamente porque C, sempre insistiu para que os RR. com ela vivessem na mesma casa, como real e efectivamente viviam - resposta ao quesito 15.º.
25. A R. mulher recebia uma pensão da Segurança Social e simultaneamente C pagava-lhe um ordenado - resposta 80 quesito 17.º.
26. Em 26/06/96 C sofreu uma queda dentro de casa e padeceu então de uma fractura óssea e várias escoriações - resposta ao quesito 19.º.
27. Em 30/07/96 o médico assistente de C, subscreveu declaração onde se lê: "Por determinação médica não recebo visitas a não ser de pessoa de família" - resposta ao quesito 21.º.
28. Nos últimos tempos de vida de C, a G e os seus filhos exerceram tarefas de cuidados da C, confeccionando-lhe as refeições, administrando-lhe medicamentos e vivendo a primeira junto da cunhada, a redita C - resposta aos quesitos 23.º e 24.º .
29. A residência precisava de obras - resposta ao quesito 25.º.
30. Os RR. Viveram na casa da Quinta da Caldeira entre 07/09/96 e meados de Janeiro de 1997 - resposta ao quesito 26.º.
31. Nessa data por sua livre vontade deixaram a casa da Caldeira e foram ocupar a casa existente na Lavandeira - resposta ao quesito 28.º.
32. Os RR. só foram ocupar a dita casa após 06 de Janeiro de 1997 resposta ao requisito 28.º.

III - o direito:

Como é sabido, são as conclusões das alegações que delimitam o objecto do recurso.
No caso, os recorrentes limitam-se no essencial, a reproduzir na revista, quer as alegações, quer as conclusões produzidas perante a Relação do Porto.
Cabe, porém, referir desde já, que, sendo este um Tribunal de revista, com competência praticamente limitada à matéria de direito (ver art.ºs 26 da Lei n.º 3/99 de 13/Janeiro e 722 n.º 2 e 729 n.ºs 1 e 2 do C. P. Civ.) lhe está vedado alterar a matéria de facto fixada pelo Tribunal da Relação ou censurar o juízo de facto sobre ela produzido, salvo nos casos excepcionais a que alude o citado art.º 722 n.º 2, o que não é o caso, motivo pelo qual não pode conhecer do constante nas alíneas f) a i) das conclusões das alegações.
Como tal, há apenas que apreciar uma única questão, a saber -:
Apurar se deve considerar-se nula a escritura de doação constante dos
autos.
Como deles ressalta, foi essa a posição tomada pelas instâncias, enquanto, os recorrentes defendem solução contrária.

Que dizer?
Que falece razão aos recorrentes.
Com efeito, como ressalta dos autos, a escritura em apreciação é datada de 14-06-96 e nela outorga a interveniente D, em representação da doadora - C, mercê da procuração datada de 19-02-96.
Ora, preceitua o n. 1 do art. 949 do C. Civil que - "não é permitido atribuir a outrem, por mandato, a faculdade de designar a pessoa do donatário ou determinar o objecto da doação, salvo nos casos previstos no n. 2 do art.º 2182"
Preceitua, por sua vez, a alínea a) do n. 2 do art. 2182 do mesmo Diploma que - o testador pode, todavia, cometer a terceiro - « - a repartição da herança ou do legado, quando institua ou nomeie uma generalidade de pessoas».
Das disposições citadas ressalta com segurança que o citado art.º 949 apenas permite as excepções contempladas no n.º 2 do art.º 2182 do mesmo Diploma.
Todavia a forma como está redigida a alínea a) do citado n. 2, doseia a possível intervenção do terceiro, destinada a auxiliar a execução da vontade do disponente, com o carácter pessoalíssimo do testamento, de molde a que, a exigência da iniciativa da instituição ou nomeação do beneficiário tenha de partir do testador e na permissão de que essa instituição ou nomeação, em vez de recair necessariamente sobre pessoas certas e determinadas, como geralmente acontece, abranja uma generalidade de pessoas (vide os Profs. Dias Lima e A. Varela, in Cód. Civil Anotado, Vol. VI, pág. 292/4).
No caso, a nomeação recaiu sobre pessoas determinadas e não sobre uma generalidade de pessoas, motivo pelo qual não é abrangida pelos ditas excepções.
Todavia, ainda que outro fosse o entendimento, sempre seria necessário demonstrar que a mandante - C - tinha querido permitir doar o prédio referido nos autos, nos termos constantes da escritura em apreciação, apesar de, por testamento de 13-Nov-85 e de 16-06-95, o ter legado aos Réus, ora recorridos.
Acontece que os AA. não conseguiram fazer tal demonstração, como ressalta das respostas dadas aos quesitos ns. 8 e 9 que eles pretendem que sejam consideradas como não escritas.
De resto, a procuração constante dos autos, - base da escritura referida refere apenas... "fazer doações de quaisquer bens imóveis a ela pertencentes.." e não fazer doações de todos os imóveis a ela pertencentes.
E, se a mandante não referiu a totalidade dos imóveis, é porque algo a inibiu de o fazer ou dizer, já que a expressão - "quaisquer bens imóveis" é mais limitativa do que a expressão - todos os bens imóveis.
Como tal, para se ter entendimento diferente, era necessário que os AA., ora recorrentes, o tivessem demonstrado, como o impõe o art. 342 n. 1 do Cód. Civil, o que, como se disse, não conseguiram.
Improcedem, assim, desta forma e modo, as conclusões das alegações dos recorrentes.

IV- Decisão:
Face ao exposto, acorda-se em negar revista.
Custas pelos recorrentes

Lisboa, 17 de Outubro de 2002
Diogo Fernandes,
Miranda Gusmão,
Sousa Inês.