Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | HENRIQUES GASPAR | ||
Descritores: | SENTENÇA SENTENÇA PENAL DECISÃO CONDENATÓRIA REQUISITOS FUNDAMENTAÇÃO FUNDAMENTO DE DIREITO FUNDAMENTO DE FACTO MOTIVAÇÃO PROVAS MEIOS DE PROVA MATÉRIA DE DIREITO MATÉRIA DE FACTO PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | SJ200503160006623 | ||
Data do Acordão: | 03/16/2005 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
![]() | ![]() | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário : | 1. O artigo 374°, n° 2, do Código de Processo Penal (CPP), que dispõe sobre os "requisitos da sentença" (relatório - n° l; fundamentação - n° 2; e dispositivo ou decisão stricto sensu, indica no n° 2 os elementos que têm de integrar a fundamentação, da qual deve constar uma «exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal». 2. A fundamentação da sentença consiste na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão. 3. A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual) a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos para reapreciar uma decisão. 4. O tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico contido numa decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular o seu próprio juízo. 5. O ‘’exame crítico" das provas constitui uma noção com dimensão l normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular fundamentação em matéria de facto - mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência. 6. A noção de "exame crítico" apresenta-se como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito. 7. O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção. 8. A integração das noções de ‘’exame crítico" e de "fundamentação envolve a implicação, ponderação e aplicação de critérios de natureza prudencial que permitam avaliar e decidir se as razoes de uma decisão sobre os factos e o processo cognitivo de que se socorreu são compatíveis com as regras da experiência da vida e das coisas, e com a razoabilidade das congruências dos factos e dos comportamentos. 9. Os is critérios e elementos de ponderação necessários para avaliar se foi adequadamente efectuado o exame crítico das provas no âmbito das exigências da lei, retira o plano da decisão do espaço de intervenção dos juízos de eleição, interpretação e aplicação de um princípio ou norma legal, subtraindo-o, consequentemente do âmbito da matéria de direito. 10. Por isso, a decisão sobre a suficiência da fundamentação na referência í ao "exame crítico’’ das provas não integra os poderes de cognição do Supremo Tribunal, tal como definidos no artigo 434° do CPP, salvo quando tenha (deva) decidir sobre a verificação dos vícios do artigo 410°. n° 2 do CPP. | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça: 1. O Ministério Público deduziu acusação em processo comum com intervenção do tribunal colectivo contra A, casado, trolha, nascido em 05.10.1975, filho de B e de C, natural da freguesia de Mafamude, Vila Nova de Gaia, residente na Rua António Luís Gomes, n.c ...., traseiras, Vila Nova de Gaia, imputando-lhe a prática em concurso real de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131° e 132º, n.° l e 2 alíneas b), d) f), h) e i) do Código Penal, e de um crime de roubo, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22°, 23° e 210°, nºs l e 2,alínea b) , com referência ao artigo 204°, n.° l, alínea a), e 202°, alínea a), do mesmo diploma. Na audiência procedeu-se à alteração da qualificação jurídica dos factos respeitantes ao crime de roubo, considerando-se que poderiam, diversamente, configurar a prática de um crime de furto qualificado na forma tentada, p. e p., pelos artigos 22°, 23°, 204°, n° l, alíneas a) e e) e 2, alínea f) do Código Penal. Na sequência do julgamento, o arguido foi condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131° e 132°, n.° l e 2, alíneas b) e f), do Código Penal, na pena de dezoito anos de prisão; e por um crime de furto qualificado na forma tentada, p. e p., pelos artigos 22°, 23°, 204°, n.° l, alínea e) e 2, alínea f), do mesmo diploma, na pena de um ano e seis meses de prisão; em cúmulo jurídico, ao abrigo do artigo 77° do Código Penal, foi condenado na pena única de dezoito anos e seis meses de prisão. 2. Não se conformando, o arguido recorreu para o tribunal da Relação, o qual, todavia, considerando que versava apenas sobre matéria de direito, declarou-se incompetente e determinou o envio do recurso para o Supremo Tribunal. 3. O recorrente fundamenta o recurso, que dirigiu ao tribunal da Relação, nos termos da motivação que apresentou e que termina com a formulação das seguintes conclusões: 1ª. O tribunal a quo reincide nos erros apontados por esse Venerando Tribunal no acórdão de 28/04/2004. 2ª. Não explicita o tribunal a quo a valoração de cada um dos meios de prova e dos factos, um a um. 3ª. É o que acontece nos "Factos Provados" nos items 11, 14, 16, 30, 35, 36, 37, 38, 39 e 43. 4ª. E como chegou à conclusão de que umas testemunhas "estariam enganadas" e outras estariam certas - cf. fls. 20 na "Formação da Conv. do Tribunal". 5ª. O tribunal a quo, perante a dúvida razoável que se instalou, ante os depoimentos contraditórios das testemunhas, confrontado com um non liquet deveria ter valorado tal circunstância a favor do arguido - o que não fez. 6ª. O crime imputado ao arguido de furto qualificado sob a forma tentada não se mostra tipificado, face à prova produzida e aos "factos não provados". 7ª. Em razão do que deverá o arguido ser absolvido da prática em autoria do crime de furto qualificado sob a forma tentada. 8ª. Finalmente deverá o acórdão recorrido ser declarado ferido de nulidade, atento o disposto nos art°s. 379° n°. 1, alínea a), ex vi art°. 374° n°. 2, ambos do Código de Processo Penal. O magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu à motivação considerando que o recurso não merece provimento. 4. Neste Supremo Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se refere o artigo 416º do Código de Processo Penal, manifesta dúvidas sobre se «na motivação e nas conclusões o arguido/recorrente não verse questões de facto». Colhidos os vistos, o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir. 5. O artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal (CPP), que dispõe sobre os "requisitos da sentença" (relatório - nº1; fundamentação - nº 2; e dispositivo ou decisão stricto sensu), indica no nº 2 os elementos que têm de integrar a fundamentação, da qual deve constar uma «exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal». A fundamentação da sentença consiste, pois, na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão. As decisões judiciais, com efeito, não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz (Cfr. Germano Marques da Silva, "Curso de processo penal", III, pág. 289). A garantia de fundamentação é indispensável para que se assegure o real respeito pelo princípio da legalidade da decisão judicial; o dever de o juiz respeitar e aplicar correctamente a lei seria afectado se fosse deixado à consciência individual e insindicável do próprio juiz. A sua observância concorre para a garantia da imparcialidade da decisão; o juiz independente e imparcial só o é se a decisão resultar fundada num apuramento objectivo dos factos da causa e numa interpretação válida e imparcial da norma de direito (cfr. Michele Taruffo, "Note sulla garanzia costituzionale della motivazione", in BFDUC, ano 1979, Vol. LV, págs. 31-32). A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos para reapreciar uma decisão o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular o seu próprio juízo. Em matéria de facto, a fundamentação remete, como refere o segmento final do nº 2 do artigo 374º do CPP (acrescentado pela Reforma do processo penal com a Lei nº 58/98, de 25 de Agosto), para a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. A lei impõe, pois, como critério e base essencial da fundamentação da decisão em matéria de facto, o «exame crítico das provas», mas não define, nem expressa elementos sobre algum modelo de integração da noção. O "exame crítico" das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular - a fundamentação em matéria de facto - , mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de "exame crítico" apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito. Só assim não será quando se trate de decidir questões que têm a ver com a legalidade das provas ou de decisão sobre a nulidade, e consequente exclusão, de algum meio de prova. O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (cfr., v. g., acórdão do Supremo Tribunal de 30 de Janeiro de 2002, proc. 3063/01). O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte (acórdãos do Supremo Tribunal de 17 de Março de 2004, proc. 4026/03; de 7 de Fevereiro de 2002, proc. 3998/00 e de 12 de Abril de 2000, proc. 141/00). No que respeita à fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, a que se refere especificamente a exigência da parte final do artigo 374º, nº 2 do CPP, o exame crítico das provas permite (é a sua função processual) que o tribunal superior, fazendo intervir as indicações extraídas das regras da experiência e perante os critérios lógicos que constituem o fundo de racionalidade da decisão (o processo de decisão), reexamine a decisão para verificar da (in)existência dos vícios da matéria de facto a que se refere o artigo 410º, nº 2 do CPP; o n° 2 do artigo 374° impõe uma obrigação de fundamentação completa, permitindo a transparência do processo de decisão, sendo que a fundamentação da decisão do tribunal colectivo, no quadro integral das exigências que lhe são impostas por lei, há-de permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório (cfr., nesta perspectiva, o acórdão do Tribunal Constitucional, de 2 de Dezembro de 1998). A obrigatoriedade de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e do seu exame crítico, destina-se, pois, a garantir que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência. 6. A integração das noções de "exame crítico" e de "fundamentação" através dos elementos que lhes permitem dar sentido e funcionalidade intraprocessual conduz, porém, a que a dimensão a que se acolhem não se reduza à (ou sequer consista na) interpretação de princípios jurídicos ou de normas como operação prévia à respectiva aplicação a uma dada situação de facto preconstituída, mas. Em diverso, envolve a implicação, ponderação e aplicação de critérios de natureza prudencial que permitam avaliar e decidir se as razões de uma decisão sobre os factos e o processo cognitivo de que se socorreu são compatíveis com as regras da experiência da vida e das coisas, e com a razoabilidade das congruências dos factos e dos comportamentos. Mas, sendo assim, a vocação de tais critérios e elementos de ponderação para avaliar se foi adequadamente efectuado o exame crítico das provas no âmbito das exigências da lei, retira o plano da decisão do espaço de intervenção dos juízos de eleição, interpretação e aplicação de um princípio ou norma legal, subtraindo-o, consequentemente, do âmbito da matéria de direito. Se é certo que no momento final está em questão a aplicação de uma norma processual (integração de uma nulidade da sentença - artigo 379º, nº 1, alínea a), do CPP), tal questão tem como base e pressuposto, a montante, a verificação sobre a suficiência dos módulos da expressão do"exame crítico" para satisfazer as condições e exigências da categoria da lei, que se não acolhe a critérios normativos, mas antes a juízos próprios da ponderação prudencial que intercede através de elementos retirados da experiência da vida e das coisas, excluídos da noção e do conteúdo da matéria de direito. Deste modo, a decisão sobre a suficiência da fundamentação na referência ao "exame crítico" das provas não integra os poderes de cognição do Supremo Tribunal, tal como definidos no artigo 434º do CPP, salvo quando tenha (deva) decidir sobre a verificação dos vícios do artigo 410º, nº 2 do CPP. Esta conclusão, tirada em perspectiva e construção conceptual, é confirmada por outro modelo de compreensão, da ordem das necessárias congruências sistémicas. A exigência de exame crítico das provas, como momento essencial da fundamentação da decisão em matéria de facto (exigência específica introduzida, como se salientou, pela Reforma de 1998) tem como finalidade processual permitir, no âmbito do recurso em matéria de facto, a reponderação pelo tribunal de recurso dos critérios usados na decisão recorrida para formar a convicção sobre os factos, ou, mais directamente, decidir sobre a verificação dos vícios do artigo 410º,nº 2 do CPP, permitindo determinar se os procedimentos de apreciação das provas, tal como constam da decisão, encerram alguma incongruência que possa integrar os vícios em matéria de facto, nomeadamente o enunciado na alínea c) do nº 2 do artigo 410º do CPP. As questões ligadas ao exame crítico, e a base ou os elementos necessários à decisão sobre a existência dos vícios do artigo 410º, nº 2 do CPP identificam-se essencialmente, constituindo aquelas necessário antecedente para a decisão sobre estes; por isso, o tribunal de recurso que primeiramente deva conhecer dos referidos vícios tem também de conhecer da suficiência da respectiva base de decisão, mesmo quando tal questão apenas seja autonomamente submetida como objecto do recurso. O recurso que verse, ou verse também, matéria de facto, designadamente os vícios referidos no art. 410°, terá sempre que ser dirigido à Relação, em cujos poderes de cognição está incluída a apreciação da matéria de facto e da consequente matéria de direito (cfr. jurisprudência constante do Supremo Tribunal: v. g., entre muitos outros, o acórdão de 21 de Junho de 2001, proc. 1295/01). Se no caso de invocação expressa dos vícios da matéria de facto, o recurso de decisão do tribunal colectivo deve ser interposto para o tribunal da Relação (artigos 432º, alínea d), 434º e 427º do CPP), por igualdade de razão e coerência de sistema também tem de ser interposto para o tribunal da Relação o recurso de decisão do tribunal colectivo em que se suscite a suficiência do exame crítico das provas, dada a identidade da natureza dos juízos que estão pressupostos à decisão de um e outro. 7.Nestes termos, deve a Relação conhecer do recurso, que, aliás, lhe foi dirigido pelo recorrente. Não é devida taxa de justiça. Lisboa,16 de Março de 2005. Henriques Gaspar Antunes Grancho Políbio Flor. |