Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | 1ª SECÇÃO | ||
Relator: | URBANO DIAS | ||
Descritores: | ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO CONTRATO-PROMESSA COM TRADITIO USUCAPIÃO VENDA DE BENS ALHEIOS NULIDADE DO NEGÓCIO NULIDADE DO REGISTO | ||
![]() | ![]() | ||
Data do Acordão: | 09/14/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Referência de Publicação: | CJASTJ, ANO XVIII, TOMO III/2010, P. 81 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário : | I – A simples ocupação de um prédio, por virtude da celebração de um contrato-promessa não é, de per se, suficiente para se possa falar numa situação de verdadeira posse, a menos que, entretanto, tenha havido inversão do título de posse, facto que acarreta, a favor do promitente-comprador, o início da contagem do prazo necessário para a verificação da usucapião. II – Para que se possa falar, com legitimidade, em inversão do título de posse, há-de o detentor tornar directamente conhecida, junto da pessoa em cujo nome possui, a sua intenção de actuar como titular do direito. III – Ilidida a presunção do registo de aquisição inscrito a favor da promitente-vendedora, por prova dos requisitos legais conducentes a usucapião, a parte promitente compradora torna-se efectiva proprietária da fracção reivindicada, com efeitos retroactivos, podendo, assim, inscrevê-la no registo. IV – Tendo a parte promitente-vendedora, mau grado o decurso do prazo da usucapião a favor da parte promitente-compradora, vendido a terceiros o prédio em causa, não pode deixar de se considerar tal negócio como uma venda de bem alheio e, como tal, nula, à luz do preceituado no artigo 892º do Código Civil. V – Tal nulidade, porém, é atípica: terceiros carecem de legitimidade para a invocarem e, por outro lado, não pode ser apreciada oficiosamente. VI – A venda da fracção ajuizada, feita pela promitente-vendedora a terceiros, é ineficaz em relação aos AA., seus promitentes-compradores. VII – A ineficácia de tal venda a terceiros, em relação aos AA., torna irrelevante a invocação do disposto no artigo 291º do Código Civil e no artigo 17º, nº 2, do Código de Registo Predial. VIII – A invocação da usucapião sobrepõe-se sempre à eficácia presuntiva de qualquer registo: é que ela não presume o direito real, antes o atribui, ultrapassando todos os demais títulos aquisitivos, tornando-os, de todo, ineficazes. | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I. Relatório: AA, BB, CC e DD, intentaram, no Tribunal Judicial da Comarca de Loulé, a presente acção ordinária contra EE, FF e mulher, GG, e HH, com vista a obterem o reconhecimento da qualidade de proprietários da fracção “DS”, do prédio constituído em propriedade horizontal, designado por “Edifício Portugal”, na freguesia de Quarteira, Loulé, e bem assim dos móveis que a integram, com a consequente condenação na obrigação de restituição e anulação dos negócios jurídicos constantes do registo, por configurarem vendas de coisa alheia, e, ainda, a anulação dos registos prediais efectuados desde 1983. Em síntese, invocaram a sua qualidade de herdeiros de II e de JJ, sendo que aquela primeira prometeu comprar a EE a referida fracção, em 3 de Agosto de 1982, tendo, inclusive, pago a totalidade do preço, passando a ocupá-la, desde tal data, como verdadeira dona, tendo, assim, já decorrido o prazo de usucapião. Sucedeu, porém, que a 1ª R., promitente-vendedora, não tendo cumprido o prometido, acabou por vender a dita fracção aos 2º e 3º RR. que, posteriormente, a venderam ao 4º R.. Este último R. contestou, defendendo, a impropriedade do meio (a acção proposta, segundo ele, era de restituição de posse), razão pela qual, não tendo conhecimento do esbulho, defendeu a sua própria ilegitimidade e, ainda, impugnado parte da factualidade vertida na petição, acabando por pedir a improcedência da acção. Os 2º e 3º RR. contestaram, de igual modo, a acção, defendendo que não se mostravam preenchidos todos os pressupostos da usucapião, salientando que a posse exercida pelos AA. foi interrompida aquando da venda feita pela R. EE. Mais salientaram que registaram, desde logo, a sua aquisição, pelo que beneficiam da presunção do registo. Impugnaram, outrossim, parte da factualidade alegada pelos AA., terminando, também, por pedir a improcedência da acção. Por sua vez, a R. EE, apesar de pessoal e regularmente citada, não contestou nem constituiu mandatário judicial. Os AA. replicaram, a contrariar a defesa excepcional apresentada pelos RR. contestantes. Após o saneamento e a condensação, o processo seguiu a sua tramitação normal até julgamento, após o que foi proferida sentença a julgar a acção improcedente. Irresignados, apelaram os AA. para o Tribunal da Relação de Évora que, revogando o julgado, deu inteira razão aos AA., declarando-os proprietários da fracção reivindicada e condenando os RR. na respectiva restituição, e, por fim, declarando nulos os negócios jurídicos aquisitivos da 1ª R. a favor dos 2º e 3º RR. e destes a favor do 4º R. “por consubstanciarem venda de bens alheios, com o cancelamento dos respectivos registos”. Foi, então, a vez de os 2º, 3º e 4º RR. mostrarem o seu inconformismo, pedindo revista do acórdão prolatado, tendo, para o efeito, apresentado as respectivas minutas que fecharam com as seguintes conclusões: 1º Dos RR./Recorrentes FF e GG: – O acórdão ora recorrido é nulo por contradição entre os fundamentos e a decisão. – O acórdão recorrido julgou improcedente, na fundamentação, o recurso acerca da matéria de facto; o pedido de rectificação de erros materiais da sentença de primeira instância e a arguição da nulidade da sentença. – A decisão é omissa quanto às improcedências vertidas na fundamentação e simplesmente julga procedente a apelação e, por isso, encontra-se ferida de nulidade. – A fixação das custas deve ser feita em função do decaimento de cada uma das partes, atenta a matéria vertida na fundamentação do acórdão. – Decorre também que, na decisão quanto às custas, o acórdão de fls. é nulo. – Devem ser fixadas custas na proporção de % para os AA. apelantes e de % para os RR apelados. – A decisão quanto ao recurso de direito não colhe. – Ao considerar que a usucapião do direito de propriedade ultrapassa qualquer tipo de aquisição por terceiro de boa fé, está a violar quer a tutela das legítimas expectativas do terceiro de boa fé e a colocar em causa toda a segurança do negócio jurídico. – No raciocínio do acórdão, a tutela do terceiro de boa fé e a segurança do negócio jurídico ficam assim suspensas nos primeiros 3 anos de aquisição. – Caso assim fosse, o registo de qualquer aquisição deveria ficar provisório por dúvidas durante três anos e não passar a definitivo. – É manifesto que a Lei não quer a indeterminação das aquisições por três anos. – Aliás, o registo provisório por dúvidas torna-se definitivo ao fim de uns meros seis meses. – Não procede a tese do acórdão de fls. – O artigo 291° do Código Civil cede a sua aplicação e eficácia ante a verificação das condicionantes do artigo 17° do Código do Registo Predial. – A decisão recorrida violou assim o disposto no artigo 668°, nº 1, al. c) do Código de Processo Civil, e 17º, nº 2, do Código do Registo Predial. 2º Do R./Recorrente HH: – Dos factos que resultaram como provados, na presente acção, II (e os Recorridos por sucessão) na qualidade de promitente-compradora, passou a ocupar a fracção autónoma em causa, por força de um contrato-promessa de compra e venda, em que, adicionalmente, foi convencionado um contrato de traditio. – O contrato de traditio conferiu a II (e os Recorridos por sucessão) uma posse precária sobre a fracção autónoma, nos termos do disposto no artigo 1263º do Código Civil. – Ou seja, trata-se de uma posse em nome de outrem, em que o detentor tem o corpus, mas falta-lhe o animus. – Para que um possuidor precário adquira uma posse com corpus e animus (cfr. artigo 1251º do Código Civil) tem que, nos termos da alínea d) do artigo 1263º do Código Civil, inverter o título da posse. – Ou seja, o possuidor precário (cfr. artigo 1265º do Código Civil) tem que praticar um acto de oposição directa contra aquele em cujo nome possuía. – Não foi alegado pelos Recorridos (logo não poderia resultar provado) qualquer facto que consubstanciasse esse acto de oposição directa da promitente- compradora face à promitente-vendedora. – Os factos que resultaram como provados preenchem os requisitos do corpus, mas são praticados perante terceiros e são actos que qualquer possuidor precário pode realizar, e que, normalmente, são praticados por estes. – Ao ter sido dado como provado que os Recorridos, em 2003, notificaram a primeira R. para a celebração da escritura pública de aquisição do imóvel (contrato prometido), dissiparam-se quaisquer dúvidas sobre o tipo de posse que os Recorridos consideravam ter. – Ou seja, com esta notificação, os Recorridos reconhecem que nunca inverteram o título da posse, e que se mantém como possuidores precários. – Até porque, na tese dos Recorridos, em 2003, já teria decorrido o período de tempo necessário para que adquirissem o direito de propriedade por usucapião, logo, a primeira R. já não era detentora do direito de propriedade, pelo que não tinha legitimidade para celebrar a escritura pública. – É pacífico, quer na Doutrina quer na Jurisprudência, que o possuidor precário para adquirir uma posse (com animus e corpus) tem que inverter o título da posse, ou seja, ao possuidor precário estão vedadas as possibilidades de aquisição da posse previstas nas alíneas a) a c) do artigo 1263º do Código Civil. – Daí que, enquanto se mantiver a posse precária, este só pode adquirir a posse através da inversão do título da posse. – Exige a lei que aquele que possui em nome de outrem, para que possa possuir em nome próprio tenha que confrontar, directamente, aquele em nome de quem possuía, da alteração da situação, a fim de que este possa reagir a essa alteração da situação jurídica. – Daí que, nos termos do disposto no artigo 1290º do Código Civil, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título. – É este mesmo preceito legal que esclarece que os detentores ou possuidores precários não podem adquirir, para si, por usucapião, o direito possuído, excepto achando-se invertido o título da posse. – Conforme já explicado, em nenhum momento foi alegado, sequer, qualquer facto que suportasse a inversão do título da posse, pelo que, sem que essa inversão do título da posse tenha ocorrido, nunca os Recorridos tiveram a posse, pelo que nunca começou a correr prazo para a usucapião. – Logo, a pretensão dos Recorridos carece de qualquer fundamento. – Se assim não se entender, o que por mero dever de patrocínio se concede, sem aceitar, passemos à outra questão. – A decisão recorrida revogou a decisão da primeira instância, considerando que não era aplicável ao caso em apreço, o disposto no artigo 17º, nº 2, conjugado com o artigo 5º, nº 4, todos do Código do Registo Predial. – O Recorrente não se conforma com este entendimento, considerando, que a razão sobre esta questão está com a decisão proferida em primeira instância, com os argumentos naquela alegados. – Ou seja, no caso vertente aplica-se o disposto no artigo 17º, nº 2, do Código do Registo Predial, porquanto o Recorrente, terceiro de boa fé, registou a aquisição do respectivo direito de propriedade antes da propositura da presente acção, logo beneficia da presunção do registo, não lhe podendo ser oposta a, suposta, aquisição tabular. Responderam os Recorridos, pugnando pela confirmação do acórdão impugnado. II. As instâncias deram como provada a seguinte factualidade: 1 – Encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial de Loulé, sob o número 5.839/270194, a fracção autónoma designada pelas letras “DS”, porta 1109, composta por habitação, com vestíbulo, sala com kitchenette, casa de banho e terraço, com 46,70 m2, e arrecadação na cave, porta nº 103, com a área de 1,91 m2, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, designado por “Edifício Portugal”, na freguesia de Quarteira e concelho de Loulé, inscrita na matriz predial, sob o artigo 3.456º. 2 – Constam na acima referida descrição predial, as seguintes inscrições: – Pela apresentação nº 13/191182, aquisição a favor de EE , casada com C...A...E...G...E..., em separação de bens, por compra à Lusotur. – Pela apresentação nº 39/16102003, aquisição a favor de FF, casado com GG, em comunhão de adquiridos, por compra a EE. – Pela apresentação nº 07/16122003, aquisição a favor de HH, solteiro, por compra. – Pela apresentação nº 41/14102004, a inscrição no registo da presente acção. 3 – No dia 3 do Agosto de 1982, a 1ª R. e II, acordaram entre si, que a primeira prometia vender à segunda e esta prometia comprar, a fracção autónoma supra referida, e o mobiliário e equipamento que nela se encontrava. 4 – E estipularam o preço de 3.000.000$00, sendo 2.400.000$00 respeitantes à fracção e 600.000$00 respeitantes aos bens móveis. 5 – E que esse preço seria pago em duas prestações, sendo a primeira no valor de 1.500.000$00, paga com a assinatura do contrato-promessa. 6 – E a segunda, em igual valor de 1.500.000$00, paga na data da celebração da escritura. 7 – E acordaram que a escritura pública seria outorgada até três meses após a data da celebração do contrato-promessa. 8 – Tudo o acima referido ficou a constar no escrito denominado contrato-promessa de compra e venda, com data de 3 de Agosto de 1982, e assinado por ambas as outorgantes, com reconhecimento notarial das assinaturas. 9 – II entregou à 1ª R., nesse dia 3 de Agosto de 1982, e na sequência do acordado, a importância de 1.500.000$00. 10 – Em 17 de Janeiro de 1983, em aditamento ao anteriormente acordado, a 1ª R. e II, estipularam que a escritura pública seria efectuada em qualquer data a marcar pela promitente-compradora, com a antecedência mínima de dez dias, comunicando aquela a referida data à promitente-vendedora, por carta registada com aviso de recepção, a endereçar para a morada daquela, constante do contrato promessa. 11 – Mais acordaram que a 1ª R. receberia de imediato, por banda da II, o remanescente do preço, ou seja, 1.500.000$00. 12 – Tendo então a 1ª R. dado quitação do preço global da venda. 13 – E que II se obrigava a celebrar, nos precisos termos acordados, o contrato de compra e venda definitivo com a promitente-compradora ou com quem esta viesse a indicar. 14 – Tudo o acima referido ficou a constar no escrito denominado aditamento ao contrato-promessa de compra e venda celebrado em 3/08/1982, com data de 17 de Janeiro de 1983, e assinado por ambas as outorgantes. 15 – Na sequência desse acordo, II, ocupou, de imediato, a fracção supra referida. 16 – Bem como o recheio da mesma, composto por mobiliário, louças, roupas e equipamentos diversos, melhor descriminados a fls. 204 e 205 do apenso A. 17 – II faleceu, no dia 21 de Janeiro de 1989. 18 – Por escritura pública de habilitação de herdeiros, outorgada a 20 de Fevereiro de 1989, no 9º Cartório Notarial de Lisboa, consta que a II deixou testamento instituindo vários legados e que lhe sucederam como herdeiros legitimários os filhos, JJ, AA e BB. 19 – No dia 29 de Março de 1996, faleceu JJ. 20 – Por escritura pública de habilitação de herdeiros, outorgada em 7 de Maio de 1996, no 4º Cartório Notarial de Lisboa, consta que JJ, faleceu sem deixar testamento ou outra disposição de última vontade, e que lhe sucederam o cônjuge sobrevivo, CC e a filha de ambos, DD. 21 – O 1º A., AA é o cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de II. 22 – Através de carta datada de 9 de Outubro de 2003, o A. AA, comunicou à 1ª R. o dia, hora e local de realização da escritura pública de compra e venda. 23 – A carta acima referida foi enviada para a morada da 1 ª R. que constava do contrato-promessa, e foi devolvida com a indicação de “endereço desconhecido”. 24 – Tendo sido enviada nova carta para Avenida Santos Matos, ..., 4º esquerdo, 2700 Amadora, tendo o respectivo aviso de recepção sido devolvido com a indicação de correspondência “não reclamada”. 25 – Mas sabendo já a 1.ª R. da intenção dos AA. procederem à sua interpelação para celebrarem a escritura pública. 26 – Em 25 de Maio de 2003, a 1ª R. enviou uma carta ao A. AA, exigindo ser ressarcida como condição para a celebração da escritura pública. 27 – Após, o que o A. AA enviou nova carta à 1ª R., comunicando-lhe para comparecer no dia 21 de Outubro de 2003, bem como a hora e respectivo local, para a celebração da escritura. 28 – Todavia, sabendo da data, hora e local, a 1ª R. não compareceu. 29 – Por escritura pública de compra e venda, outorgada em 14 de Outubro de 2003 no 17º Cartório Notarial de Lisboa, a 1ª R. declarou vender ao 2º R., que declarou comprar, pelo preço de 55.000 euros, já recebido, a fracção autónoma supra referida, tendo ainda declarado que não celebraram qualquer contrato-promessa referente ao imóvel ora transaccionado. 30 – Na sequência da celebração da escritura pública referida em 29, os 2º e 3º RR. passaram a ocupar a fracção autónoma supra referida. 31 – Por volta de finais de Outubro, início de Novembro de 2003, quando o 2.º A. se preparava, junto com a sua família, para passar uns dias na fracção supra referida, veio a tomar conhecimento, que a 1ª R. vendera a fracção a FF. 32 – Facto que logo transmitiu aos restantes AA.. 33 – Sabendo depois os AA. que a respectiva escritura de compra e venda, celebrada entre a 1ª R. e o 2º e 3ª RR., tinha sido outorgada, a 14 de Outubro de 2003, no 17º Cartório Notarial de Lisboa. 34 – E que o preço da aquisição fora de € 55.000,00. 35 – E não fora celebrado contrato-promessa desse contrato definitivo. 36 – Tendo a 1ª R. outorgado essa escritura sabendo da intenção dos AA. em formalizarem o negócio. 37 – Após a celebração da escritura pública referida em 29, os 2º e 3º RR. deslocaram-se ao prédio onde se localiza a fracção supra referida. 38 – O 2º R. retirou a fechadura que se encontrava na porta da fracção e colocou uma nova. 39 – Quando o 2º A., se deslocou ao Algarve, por volta de finais de Outubro, início de Novembro de 2003, para passar uma temporada na fracção referida, foi confrontado com o facto de naquela não poder entrar, pois a chave que sempre fora utilizada para aquele efeito “não servia” na fechadura. 40 – Por escritura pública de compra e venda, outorgada em 12 de Dezembro de 2003, no 17º Cartório Notarial de Lisboa, os 2º e 3º RR. declararam vender ao 4º R., que declarou comprar, pelo preço de € 55.865, já recebido, a fracção autónoma referida, tendo ainda declarado que não celebraram qualquer contrato-promessa referente ao imóvel ora transaccionado. 41 – Na sequência da celebração da escritura pública referida em 40, o 4º R. passou a ocupar a fracção autónoma referida. 42 – Posteriormente, os AA. tomaram conhecimento da venda referida em 40. 43 – Não foi celebrado contrato-promessa do contrato definitivo referido em 4. 44 – Tendo sido comunicado ao 4º R. que a fracção pertencia à família P.... 45 – Para além do recheio existente na fracção à data da sua ocupação pela II, os AA. adquiriram outros bens que passaram a equipar também a fracção referida. 46 – Com a ocupação que os 2º e 3º RR., primeiro, e o 4º R., depois, fizeram da fracção autónoma, os AA. ficaram privados do recheio da mesma, incluindo os objectos acima referidos. 47 – Desde há mais de vinte anos que a II, esta até à sua morte, e os AA. vêm ocupando a fracção referida. 48 – Utilizando-a, quer em período de férias, quer aos fins-de-semana, e ainda em muitos outros dias, sempre que tal se proporcionava. 49 – O que faziam sem a oposição de quem quer que fosse. 50 – À vista de todas as pessoas. 51 – Incluindo os porteiros e responsáveis pela manutenção do prédio. 52 – E de forma continuada. 53 – Considerando-se os AA., e antes a II, proprietárias da fracção. 54 – E assim sendo considerados. 55 – Sendo a II e depois o A. AA, como cabeça-de-casal, quem pagava as quotas do condomínio relativas à fracção referida. 56 – E o fornecimento de gás. 57 – E de electricidade. 58 – E o imposto da contribuição autárquica, e antes o antigo imposto extraordinário sobre rendimentos prediais. 59 – Os RR. privaram os AA., contra a vontade destes, de usar e fruir da fracção referida. 60 – O 4º R. não conhecia os AA. ou a 1ª R.. 61 – Tendo os 2º e 3º RR. verificado que o direito de propriedade relativo à fracção referida se encontrava inscrito a favor da 1ª R.. 62 – Os 2º e 3º RR. adquiriram a fracção referida conjuntamente com o mobiliário que aí se encontrava. 63 – Sendo habitual as casa de veraneio serem vendidas já mobiladas. III. Quid iuris? Das conclusões com que os Recorrentes remataram as respectivas minutas de recurso resulta que à nossa consideração são colocadas questões de natureza puramente formal e questões directamente relacionadas com o fundo do litígio. Forçosamente, teremos de começar a nossa apreciação crítica pelas primeiras, colocadas apenas pelos Recorrentes João Francisco e GG. Dentro deste capítulo, defendem estes Recorrentes a nulidade do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora e com um duplo fundamento: por um lado, arguindo a nulidade prevista na alínea c) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil – contradição entre os fundamentos e a decisão – e, por outro, invocando uma inominada nulidade derivada (inominada na medida em que é aqui aplicável o artigo 668º daquele diploma legal, antes da alteração introduzida pelo Decreto-Lei nº 34/2008, de 2 de Fevereiro, acrescentando-lhe uma alínea f) e respeitante à omissão quanto à fixação da responsabilidade por custas, alteração que, como sabido, apenas entrou em vigor em 20 de Abril de 2009 e apenas para os processos iniciados a partir desta mesma data, atento os termos do nº 1 do seu artigo 27º). Verifica-se a nulidade prevista na alínea c) supra referida quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão. Ou seja, quando a construção da decisão seja viciosa, na medida em que os fundamentos invocados pelo julgador conduziriam logicamente, não ao resultado expresso, mas a resultado oposto. No fundo, como assinala Artur Anselmo de Castro, a verificar-se uma situação destas, estamos perante uma decisão que carece de fundamento (Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, página 142). Analisando o acórdão proferido, vemos nele uma linha lógica de pensamento a combinar em perfeito com o decidido. Com efeito, a Relação de Évora, depois de ter reconhecido, como, aliás, o fez a 1ª instância, a verificação, a favor dos AA./Apelantes, do instituto da usucapião, acabou por lhe dar todo o ênfase, esvaziando, por completo, a argumentação do Juiz da 1ª instância no que tange à aplicação, ao caso sub iudice, do preceituado no artigo 17º, nº 2, do Código de Registo Predial. E, dentro de tal encadeamento lógico, não podia deixar de dar provimento ao recurso interposto pelos AA., o que vale por dizer que não se entrevê a apontada, mas não justificada, nulidade. Lê-se, na parte final do acórdão: “custas pelos RR., apelados”. Face ao ora referido, torna-se perfeitamente inexplicável a crítica dirigida ao aresto em apreciação. Em boa verdade, se foi decidido que as custas seriam suportadas (apenas) pelos apelados é porque foram estes que decaíram e na totalidade. Se algum erro houvesse, e não há, deveriam, então, os ora Recorrentes lançar mão do incidente de reforma, previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 669º do Código de Processo Civil. Nulidade é que, seguramente, não existe no aresto censurado, por via da condenação em custas, tal como foi decretado pela Relação de Évora. Para além destas duas nulidades (?), os Recorrentes entenderam por bem, nas conclusões 2º e 3ª, invocar uma série de omissões (“improcedências vertidas na fundamentação e simplesmente julga procedente a apelação e por isso encontra-se ferida de nulidade” – consta da última conclusão apontada), mas daí não retiram (se é que o poderiam fazer) qualquer tipo de consequências. Daí que nada mais haja a dizer do que assinalar tal facto, não haja, mais tarde, a tentação de arguição de omissão de pronúncia! Passemos, pois, à apreciação do fundo. E a primeira nota que salta à vista é, excepção feita à posição do Recorrente HH, a de concordância com as posições das instâncias, no que tange à verificação dos requisitos para a aquisição da fracção, por parte dos Recorridos, por via da usucapião. A posição do Recorrente HH, de oposição ao julgado, consubstancia-se no seguinte: para que se possa falar, com propriedade, em usucapião, necessário se torna a alegação e subsequente prova da inversão do título de posse, juntando, a partir de então, à mera detenção o animus possidendi, facto que, in casu, não ocorreu, sendo disso prova máxima o teor da carta enviada pelo A. AA à R. EE a notificá-la para a realização do contrato definitivo. A posição deste Recorrente assenta, no fim de contas, no seguinte: se o A. AA enviou tal carta à R. EE, promitente-vendedora da fracção, é porque não se considerava um verdadeiro possuidor, mas apenas um mero detentor precário. Colocadas na mesa da discussão as posições das Partes Recorrentes, eis-nos, desde logo, confrontados com a questão de saber se, em boa verdade, estão provados os requisitos conducentes à aquisição da propriedade da fracção aqui em causa, por parte dos Recorridos. Só depois da resposta que vier a ser dada a esta vexata quaestio, é que estaremos em condições de aquilatar da bondade da demais argumentação apresentada pelos Recorrentes. A primeira questão a considerar é, pois, esta: face à factualidade dada como provada, é possível concluir pela aquisição, por parte dos Recorridos, da fracção, via usucapião? Na solução que encontramos não pode ser olvidada a relevância que o Recorrente HH pretende tirar da aludida carta enviada pelo A. AA à R. EE, no sentido de ser marcada a escritura definitiva. É bem sabido que a simples utilização da coisa prometida vender, por parte do promitente-comprador, nunca poderá originar uma situação possessória, na justa medida em que ele é um simples detentor em nome alheio e não um possuidor causal ou real, ou, dito de outra forma, os poderes que passa a exercer sobre a coisa estão directamente relacionados com o seu direito de crédito (visão esta que encontra pleno conforto com a Reforma de 1980). Mas esta conclusão não pode ser automática. Quantas e quantas vezes, nos dias de hoje, o promitente-comprador assume, logo após a outorga do contrato-promessa, a posição de verdadeiro proprietário, passando a comportar-se como se a coisa prometida vender, fosse, desde logo, sua propriedade. Antunes Varela e Pires de Lima indicam-nos casos em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche os requisitos de verdadeira posse: assim, os casos em que já houve pagamento de sisa e da totalidade do preço ou nos casos em que as partes não têm o propósito de realizar o contrato definitivo e a coisa é entregue ao promitente-comprador como se já fosse sua. De acordo com os doutrinadores citados, o promitente-comprador actua nos casos referidos uti dominus, “não havendo, por conseguinte, razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela possessória” (Código Civil Anotado, Volume III, 2ª edição, página 6 e seguintes). Nestes casos citados, o promitente-comprador passa a comportar-se em relação à coisa objecto do contrato-promessa como se fosse sua. A posição de Antunes Varela pode parecer hesitante quando, comentando o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de Novembro de 1982, relativamente a uma situação de detenção da coisa por virtude da celebração de um contrato-promessa, não tomou posição concreta sobre a sua qualificação, acabando por dizer que “seja qual for a exacta qualificação (como detenção ou verdadeira posse) da situação em que o promitente-comprador se encontrava em relação ao andar por ele ocupado, certo é que essa situação só se mantém com legitimidade enquanto o contrato-promessa não for resolvido por causa que lhe seja imputável” (Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 119º, página 220). Mas a sua posição é por demais clara quando, em anotação ao aresto deste Supremo, de 25 de Fevereiro de 1986, escreveu na Revista Decana o seguinte: “…a tradição da coisa, móvel ou imóvel, realizada a favor do promitente-comprador, no caso da promessa de compra e venda sinalizada, não investe o accipiens na qualidade de possuidor da coisa. E se a entrega não confere a posse dela ao promitente-comprador, nenhum sentido fará crismar a situação com o nome de posse legítima em oposição à chamada posse precária. … E os poderes que o promitente-comprador exerce de facto sobre a coisa, sabendo que ela ainda não foi comprada, não são os correspondentes ao direito do proprietário adquirente, mas os correspondentes ao direito de crédito do promitente-adquirente perante o promitente-alienante ou transmitente” (Ano 124º, páginas 345 e 346). No fundo, a posição defendida por A. Varela acaba por aceitar a chamada teoria da causa, de que fala Manuel Rodrigues, que se traduz no facto de na aquisição bilateral da posse o animus resultar da natureza do acto jurídico por que se transmitiu o direito susceptível de posse. Assim, se a tradição se realizou em consequência de um acto de alienação da propriedade, a intenção que tem o adquirente é a de exercer o direito de propriedade, sendo que “contra a vontade que da causa deriva não é permitido alegar uma vontade concreta do detentor, salvo se este houver invertido o título” (A Posse, Estudo do Direito Civil Português, 3ª edição, página 222). A este propósito, também Vaz Serra se pronunciou, dizendo que “o promitente-comprador, que toma conta do prédio e nele pratica actos correspondentes ao exercício do direito de propriedade, sem que o faça por mera tolerância do promitente-vendedor, não procede com intenção de agir em nome promitente-vendedor, mas com a de agir em seu próprio nome, … passando a conduzir-se como se a coisa fosse sua, …julga-se já proprietário da coisa, embora não a tenha comprado, pois considera segura a futura conclusão do contrato de compra e venda prometido, donde resulta que, ao praticar na coisa, actos possessórios, o faz com animus de exercer em seu nome o direito de propriedade”. (Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 109º, páginas 347 e 348). João Calvão da Silva, com a sua clareza habitual, defende, de igual modo, que, a priori, não é possível qualificar “de posse ou de mera detenção o poder de facto exercido pelo promitente-comprador sobre a coisa objecto do contrato prometido entregue antecipadamente. Tudo dependerá do animus que acompanhe esse corpus. Se o promitente-comprador tiver animus possidendi – o que não é de excluir a priori – será possuidor, o que pode acontecer derivadamente, nos termos da alínea b) do art. 1263º (…), ou originariamente, nos termos da alínea a) do art. 1263º, conjugado com o art. 1267º, nº 1, alínea d) e o art. 1265º” (Sinal E Contrato Promessa, 11ª edição, Revista e Aumentada, página 231, nota 55). No mesmo sentido, da possibilidade de o contrato-promessa servir de “passaporte” para uma situação de posse, em primeiro lugar, e, depois, de propriedade, através da usucapião, invocando numerosa jurisprudência, se pronuncia Fernando de Gravato Morais (Contrato-Promessa em Geral, Contratos-Promessa em Especial, páginas 245 a 251). Todas estas considerações servem, a nosso ver, para podermos concluir que o simples facto de ter havido um contrato-promessa com tratidio não é suficiente para, fazendo disso uma teoria geral, se concluir que a detenção por parte do promitente-comprador é simplesmente precária. Não. Casos haverá em que o promitente-comprador não passa de um detentor legítimo, mas apenas detentor, possuidor interdictal, e já não um verdadeiro possuidor (a posse civil confere a plenitude dos efeitos sucessórios, ao passo que a posse interdical apenas faculta as defesas possessórias, sem nunca ter a virtualidade de conduzir a usucapião – Meneses Cordeiro, A Posse, 2ª edição, página 86, e Luís Manuel Teles de Meneses Leitão, Direitos Reais, página 132) e isto sem embargo de haver situações em que, por efeito da inversão do título de posse (a inversão dá-se nos casos em que se verifica a previsão do artigo 1265º do Código Civil) aquele passa a ser um verdadeiro possuidor: sucederá sempre que a ocupação (corpus) não seja acompanhada da intenção da intenção de agir como proprietário (animus). Assim sucederá na situação do arrendatário que passou a ocupar o locado por força da celebração do contrato de arrendamento e sem qualquer intenção de se declarar proprietário do mesmo, a menos que … haja inversão do título de posse. José Carlos Brandão Proença, depois de referir que, parte da jurisprudência, depois da publicação do diploma de 80 e da inovação representada pelo nº 3 do artigo 442, passou a considerar que a traditio cria para o promitente-comprador uma situação de «posse legítima» e não meramente precária, e de uma breve referência às posições doutrinais mais relevantes na matéria, acaba por concluir que “é duvidoso que o legislador de 80 (e o de 86) tenha querido convolar uma situação de detenção precária numa posse legítima ou tenha, sequer, pensado nessa questão”. Defende este A. que “este sinal de reforço irreversível da situação do promitente-comprador, ligado, sem dúvida, à garantia do crédito indemnizatório pelo valor e excluindo a ilicitude do incumprimento do dever de restituição consequente à resolução, permite que se vá mais longe nessa tutela, sem falarmos de qualquer «posse imperfeita». E que tendo em conta a redacção dada à alínea f) do nº 1 do artigo 755º – permitindo a extensão dessa garantia à hipótese de mera devolução do sinal em dobro, mas já não ao «crédito» da execução específica –, razão pela qual “enquanto o contrato se mantiver e paralelamente o «acordo de tradição», a manutenção do promitente-comprador no uso e fruição da coisa justificar-se-á apenas com esse fundamento” (Do Incumprimento do Contrato-Promessa Bilateral, pág. 158 e 163). Feito este pequeno excurso doutrinal, cujo mérito único é o de demonstrar a impossibilidade de fazer teoria geral, impondo, pelo contrário, o dever de atentar na especificidade do caso concreto, prius metodológico da nossa acção cogente e decisória, para usarmos as palavras sábias de Castanheira Neves. Em 3 de Agosto de 1982, por mor da feitura do contrato-promessa com a proprietária, EE, II, que sofreu, depois, vários aditamentos, mudou-se, com armas e bagagens, para o apartamento designado por “DS”, depois de ter pago a totalidade do preço. Na sequência do aditamento de Janeiro de 1983, ficou estipulado que a promitente-compradora poderia, em qualquer data, com a antecedência mínima de dez dias, marcar a escritura do contrato definitivo. A partir de então, a referida II e, depois do seu falecimento, os seus herdeiros, passaram a ocupar a fracção (ponto nº 47), utilizando-a, quer nos períodos de férias, quer nos fins-de-semana e, ainda, em muitos outros dias, sempre que tal se proporcionava (ponto nº 48), sem oposição de quem quer que fosse (ponto nº 49), à vista de todas as pessoas, incluindo os porteiros e os responsáveis pela manutenção do prédio (pontos 50 e 51), de forma continuada (ponto nº 52), considerando-se como proprietários da fracção e sendo assim considerados (pontos 53 e 54), de tal forma que pagam as quotas do condomínio, o gás, a electricidade, os impostos (pontos nºs 55 a 58). A presente acção foi proposta em 2004. Desde a data da celebração do contrato-promessa até à data da entrada em juízo da presente acção decorreram já mais de vinte anos. O único ponto controvertido, a respeito da verificação da usucapião, como forma de aquisição originária da fracção ajuizada, por parte do Recorrido HH, tem a ver com a intenção com que estes a ocuparam, se como verdadeiros possuidores ou como meros detentores. Este Recorrente, em argumento encontrado à última hora, veio aqui defender que não houve, por parte da falecida II e dos seus herdeiros, os aqui AA., inversão do título de posse, facto que, a confirmar-se, afasta, automaticamente, a verificação do instituto da usucapião. Será que a razão lhe assiste? Vejamos. A posse adquire-se, inter alia, pela inversão do título de posse, ut alínea d) do artigo 1263º do Código Civil. De acordo com o artigo 1265º deste mesmo diploma legal, “a inversão do título de posse pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse”. Como observam Pires de Lima e Antunes Varela, “a inversão do título de posse (a chamada interversio possessionis) supõe a substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse em nome próprio”. Como resulta deste último normativo, a inversão do título de posse pode dar-se por dois meios: por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possui, ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse. De acordo com aqueles Mestres, “torna-se necessário um acto de oposição contra a pessoa em cujo nome possuía”, mantendo-se a regra nemo sibi causam possessionis mutare potest, certo que “o detentor há-de tornar directamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía (…) a sua intenção de actuar como titular do direito” (obra citada, página 30, nota 3). António Meneses Cordeiro faz-nos notar que não basta o mero controlo da coisa pelo interessado para que se possa falar de inversão do título, pois “temos de presenciar uma actuação efectiva contra o possuidor – … – de tal modo que, com a publicidade, que também aqui será exigida – seja cognoscível, pelos interessados, a verdadeira posse do próprio” (obra citada, página 106). Ora bem. Que aconteceu no caso sub iudice? A falecida II, celebrando com a R. EE o contrato referido e, logo de seguida, como referido, mudando-se para a fracção objecto daquele contrato, ocupando-o como se fosse seu, tendo pago o respectivo preço, por inteiro, realizou, em substância, um verdadeiro contrato de compra e venda. Daí se explica que ela, primeiro, e os herdeiros, depois, se considerassem, ab initio, como verdadeiros donos, pagando as despesas inerentes ao seu uso. E fizeram isso à vista de toda a gente, incluindo os porteiros e os responsáveis pelo prédio e sendo, de igual modo, considerados como verdadeiros proprietários. Ou seja, passaram-se a comportar como verdadeiros donos desde o preciso momento em que houve a traditio e, com ela, o pagamento do preço. Não é a verificação cumulativa destas duas circunstâncias que nos permite dizer que houve, da parte dos AA. (primeiro através da falecida II e, depois, pela actuação dos seus legítimos herdeiros), uma inversão do título de posse. O que legitima tal conclusão é toda a factualidade sublinhada, considerada na sua globalidade, perante a passividade da promitente-vendedora. Eles, AA., com o pagamento de todos os encargos referidos (despesas do condomínio e pagamento de impostos) não agiram como meros detentores, antes se passaram a comportar como verdadeiros donos da fracção. Deram, por isso, sinais para o exterior, incluindo para a própria R. EE, da sua atitude perante a coisa, objecto futuro do contrato prometido. Ou seja, usando as palavras de Luís Carvalho Fernandes, o comportamento exterior dos detentores significou a alteração do título, por parte de quem passou a praticar actos de exercício do direito (Lições de Direitos Reais, 3ª edição, página 295). Está aqui, ainda que em termos sinópticos, explicada a falta de razão do Recorrente HH, quando defende que não houve inversão do título de posse. Houve, sim senhor, e, como dito, inversão do título de posse e desde o início, por parte da falecida II, começando, desde então, a correr o prazo para a aquisição por usucapião, atento os termos constantes da parte final do artigo 1290º do Código Civil. Esta foi aliás, a visão da 1ª instância, considerando verificados todos os pressupostos da usucapião: “decorridos que foram quinze anos sobre o início da posse, o que sucedeu no ano de 1989, (…) deu-se a usucapião”. Decisão que, neste ponto concreto, mereceu inteira concordância, por parte da Relação de Évora. E qual o significado da carta do A. AA dirigida à R. EE? A 1ª instância, após ter constatado a verificação dos pressupostos da usucapião, viu na carta escrita pelo A. AA dirigida à R. EE, após a solidificação daquele instituto, uma forma de afirmar “que os Autores diligenciavam com vista a obter o necessário título que facilmente lhes permitisse inscrever o seu direito o registo predial”. E explicou-se, dizendo que ou os AA., com vista a regularizarem a situação do prédio, instauravam a competente acção judicial, ou, então, “conseguiriam o concurso da promitente-vendedora para a celebração da escritura pública, via inegavelmente mais simples e muito mais célere”. A questão da relevância da carta não foi, como é evidente, colocada à Relação de Évora que, deste modo, não foi obrigada a pronunciar-se sobre a verdadeira interpretação que a mesma merece. A interpretação dos factos é, como sabido, tarefa das instâncias, cabendo ao Supremo, como tribunal de revista, apenas averiguar da conformidade dos resultados obtidos com as regras positivadas e atinentes ao caso. É simplesmente nesta perspectiva que nos cumpre emitir pronúncia a este respeito. Passando todo aquele infindável tempo – mais de vinte anos passados –, tendo ficado estabelecido que a promitente-compradora poderia, a qualquer momento, desde que avisasse a promitente-vendedora com dez dias de antecedência (ponto 10º), era perfeitamente natural que os herdeiros da falecida II quisessem, ver, definitivamente, formalizado o contrato que, em substância, como referido, nada mais era do que uma compra e venda. Ou se quisermos, vistas as cousas de outro ângulo, que se solidificasse, do ponto de vista formal, o contrato outorgado, permitindo a legalização da situação do ponto de vista registral e, quiçá, fiscal. É que com a outorga do contrato definitivo poderiam os AA. fazer o chamado trato sucessivo, registando em seu nome a fracção que, em substância, lhes pertencia. E não podemos deixar de passar em claro – reprovando a atitude da A. EE – que não deu qualquer conhecimento da venda efectiva da fracção aos herdeiros da falecida II, antes tendo declarado, falsamente, ao Tabelião, que não tinham celebrado qualquer contrato-promessa referente ao imóvel transaccionado (ponto 29º). Estes, aliás, só souberam da venda da fracção aos 2º e 3º RR. perante os factos consumados (pontos 31º e 39º). De igual modo, só souberam da venda destes ao 4º R. posteriormente. Está aqui a explicação última não só do pedido (reivindicação), como, ainda, da “anulação” das vendas. A dita carta, vista isoladamente, poderia ter efeitos. É perfeitamente compreensível a tese (arguta) do Recorrente HH, em abstracto: quem se apresenta com um contrato-promessa de compra e venda a exigir a realização da escritura do contrato prometido pode, na realidade, traduzir uma situação de mero detentor (caso tenha havido apenas traditio) ou nem isso (caso aquela não se verifique). Mas, julgar não é teorizar, antes, pelo contrário, é analisar a factualidade trazida a pretório e aplicar ao caso os ditames legais que a mesma reclama. Olhando a factualidade, toda ela, na sua globalidade, não podemos, sob pena de subverter a realidade, deixar de considerar os AA. (seja a primitiva II, sejam os seus naturais e legítimos herdeiros) como verdadeiros possuidores da fracção. A dita carta não teve, aqui, qualquer efeito prático, do ponto de vista da ponderação da intenção dos AA. como sendo ou não sendo possuidores. Nada disso: como bem sublinhou a 1ª instância, estes optaram pela via mais simples na ânsia de almejarem (finalmente) a “legalização” da coisa sua. Daí que nenhuma censura merece, da nossa parte, a interpretação dada à aludida carta, antes, pelo contrário, a temos como perfeitamente certa. Como já dito, decorreram, entretanto, vinte anos, desde a feitura do contrato-promessa até à instauração da acção, passando-se os AA., desde então, a comportar como verdadeiros donos da fracção. Caídos na previsão do artigo 1296º do Código Civil (falta de registo da posse e presunção de má fé, derivada da falta de título), podemos, sem hesitação, dizer que os AA. adquiriram a fracção de forma originária, por usucapião (artigo 1287º do Código Civil). E aqui, no ponto concreto do tempo de duração da posse, não podemos deixar de notar a nossa (pequena) discordância em relação ao que as instâncias consideraram. Temos para nós que a posse dos AA. é caracterizada como sendo não titulada, porquanto, como sabido, o contrato-promessa não é um modo legítimo de adquirir (“diz-se titulada a posse fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico” – nº 1 do artigo 1259º do Código Civil). Ora, a posse dos AA. não pode ser considerada titulada, atenta a exigência do preceito acabado de citar, razão pela qual, nos termos do nº 2 do artigo 1260º do Código Civil se terá de presumir de má fé. Dos factos provados não resulta que esta presunção possa ser ilidida, pelo que, fatalmente, terá de ser considerada como sendo de má fé a posse dos AA.. Facto este que acarreta, para que a usucapião se consolide, uma duração de posse de vinte anos (artigo 1296º do Código Civil). Esta rectificação, contudo, em nada altera o já referido, porquanto a usucapião verificou-se, como forma de aquisição dos AA., com o decurso do prazo de vinte anos, nada havendo nos autos que permita concluir pela sua interrupção (artigos 1292º e 323º, do Código Civil). São, pois, os AA. os proprietários da fracção. E proprietários terão de ser considerados desde o início: “invocada a usucapião, os seus efeitos retrotraem-se à data da posse” – artigo 1288º do Código Civil. Como está bom de ver, esta regra da retroactividade, colocando os AA. como donos da fracção desde o início em que passaram a exercer sobre a mesma os actos caracterizadores da posse (através da inversão do título de posse, inversão essa que se deu no preciso momento em que a promitetente-compradora passou a comportar-se como dona, não só pagando o seu preço total, mas praticando toda a série de actos já aludidos), tem implicações directas sobre as alienações que foram sendo feitas, primeiro pela R. EE aos 2º e 3º RR. e, depois, por estes ao R. HH. Ao cabo e ao resto, tais negócios consubstanciam vendas de bens alheios, nulos por força do estatuído no artigo 892º do Código Civil. Ressalvadas as excepções consagradas na 2ª parte deste normativo (inoponibilidade do vendedor ao comprador de boa fé e inoponibilidade do comprador ao vendedor doloso), tal nulidade pode ser invocada a todo tempo, por qualquer interessado e declarada oficiosamente Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, Volume II, 3ª edição, página 190). O regime especial consagrado naquele referido artigo 892º institui, pois, uma categoria de nulidade sujeita a um regime especial que, como observa Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, se afasta das regras gerais, não só quanto à legitimidade para a sua arguição (artigo 286º), mas também quanto ao regime da obrigação de restituir (artigo 289º). No que ao primeiro aspecto diz respeito, este consagrado civilista afasta-se mesmo da posição daqueles Mestres de Coimbra, ao defender que a nulidade não pode ser apreciada oficiosamente pelo tribunal. Também terceiros carecem de legitimidade para invocar este tipo de nulidade, instituída apenas no interesse das partes, pelo que o verdadeiro proprietário não terá legitimidade para a invocar, “já que em relação a ele o contrato será sempre ineficaz (art. 406º, nº 2), pelo que ele será sempre admitido a exercer a reivindicação” (Direito das Obrigações, Volume III, Contratos em Especial, 3ª edição, página 98). Posição igual assume Manuel A. Carneiro da Frada ao defender que a nulidade prevista no artigo 892º é “uma sanção que apenas se refere à relação entre vendedor e comprador”, sendo que “no que respeita ao verdadeiro titular do bem, a venda é ineficaz, verdadeira res inter alios” (Perturbações Típicas do Contrato de Compra e Venda, Direito das Obrigações, 3º Volume, Contratos em Especial, sob a coordenação de António Menezes Cordeiro, página 53). Outrossim, Pedro Romano Martinez considera esta nulidade do artigo 892º do Código Civil como uma nulidade atípica, desde logo pelas razões já avançadas, tendo, no entanto dúvidas, sobre a possibilidade de ser conhecida ex officio, mas, ainda, pela possibilidade de ser sanada, caso se verifique a hipótese contemplada no artigo 895º (Direito das Obrigações, Parte Especial, Contratos, Compra e Venda, Locação e Empreitada, 2ª edição, páginas 110 a 116). Respeitando posição adversa, temos para nós que a nulidade prevista no artigo 892º do Código Civil é uma nulidade atípica: não pode ser invocada por qualquer interessado, nem pode ser decretada ex officio pelo tribunal e pode ainda ser sanada, caso se verifique a previsão do artigo 895º do Código Civil. Ilidida, como vimos, a presunção do registo da aquisição inscrito a favor da R. EE, promitente-vendedora, eis que a falecida II se torna, proprietária da fracção que prometeu comprar, por obra e graça dos efeitos retroactivos da usucapião. Está, assim, aberto o caminho para que os AA., reconhecidos como verdadeiros donos, possam inscrever a fracção no registo, em seu nome. Os negócios entre a R. EE (promitente-vendedora) e os 2º e 3º RR. e entre estes e o 4º R. são ineficazes em relação aos AA.: salta aqui à tona uma das razões referidas para se considerar a nulidade do artigo 892º do Código Civil como atípica – estes não a podem (podiam) invocar. A presente acção de reivindicação, para ter êxito, sempre teria de ser dirigida (também) contra os RR. compradores, titulares dos registos de aquisição e, por isso mesmo, com interesse directo em contradizer o pedido. Com o seu registo, nos termos do artigo 3º, nº 1, do Código de Registo Predial, evitaram os AA. a sua repetição contra novos adquirentes, atento o teor do nº 3 do artigo 271º do Código de Processo Civil. Isso mesmo faz notar Jorge de Seabra de Magalhães, ao dizer que “são estes os visados pelo registo da acção; é quanto a eles que o autor se acautela, inscrevendo-a, e assim evitando ter de repeti-la contra os adquirentes do prédio” (Estudos de Registo Predial, página 38). A constatação de ineficácia, em relação aos AA., das vendas, entretanto, feitas pela R. EE aos 2º e 3º RR. e por estes ao 4º R., tornam irrelevante e deslocada a invocação do regime previsto no artigo 291º do Código Civil. Esta disposição legal serviu para Antunes Varela acentuar “a falta de valor constitutivo (autónomo) do registo, na medida em que os três anos posteriores à conclusão de qualquer contrato não defende o titular do direito formalmente inscrito nos livros do registo predial contra os efeitos da nulidade ou da anulação do contrato que tenha servido de pressuposto à sua aquisição” (Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 118º, página 310). Acontece, porém, que, mesmo que se tentasse defender a tese da aplicação do regime do artigo 291º ao caso, esbarrar-se-ia sempre com a dificuldade (inultrapassável) de os factos o não permitirem. Desde logo, por a presente acção ter sido proposta e registada (14 de Outubro de 2004) antes de decorridos os três anos sobre os registos de aquisição a favor de qualquer um dos RR.. Acresce, ainda, que para a aplicação do preceito legal em causa, verdadeira excepção à regra do “nemo plus iuris”, tivesse lugar, admitindo, por mera hipótese, que, em causa, estávamos em presença de nulidade típica ou até anulabilidade, imperioso se tornava, ainda, a prova de que o terceiro adquirente, no momento da aquisição, desconhecia sem culpa o vício. Ora, como salienta Pedro Pais de Vasconcelos, “não é suficiente, …, que o terceiro desconheça que o negócio era nulo ou anulável, mas tem ainda de ser demonstrado que esse desconhecimento não é culposo”, acrescentando, logo de seguida, que “pode ser problemática e controvertida a determinação do grau de zelo exigível no conhecimento” (Teoria Geral do Direito Civil, 5ª edição, página 748). A respeito deste requisito da “boa fé”, os autos não fornecem o mínimo indício, o que reforça o juízo já feito. Conclusão esta a que também chegou o julgador da 1ª instância. Acertadamente. Onde o juiz de 1ª instância “esbarrou”, para não conceder provimento à pretensão dos AA., foi na interpretação que deu ao nº 2 do artigo 17º do Código de Registo Predial. Para ele, este normativo legal “consagra uma solução equilibrada, onde, sob determinadas circunstâncias, é protegido quem age na fé pública que emana do registo predial”. E, partindo deste postulado, censurou a posição dos AA. que “bem poderiam ter acautelado os seus interesses em momento anterior, ora por via da acção judicial, peticionando a execução específica do contrato-promessa, ou acção pedindo o reconhecimento do direito de propriedade por usucapião, …, tudo em momento em que ainda não tinham ocorrido as vendas aos Réus; ao invés de aguardarem por tantos anos, sempre com o direito de propriedade inscrito no registo predial a favor da primeira Ré”, para concluir que, por isso mesmo, “não deverão ser reconhecidos os Autores como titulares do direito de propriedade”. Está, pois, aqui perfeitamente espelhada a verdadeira razão de os AA. não terem, logo em 1ª instância, sido reconhecidos como verdadeiros proprietários da fracção em causa, apesar do reconhecimento explícito da verificação dos pressupostos da usucapião. A Relação de Évora, contudo, desmontou esta tese, argumentando que “a declaração de nulidade do registo a que se refere o art. 17º do Código de Registo Predial tem por fundamento qualquer das causas enunciadas nas alíneas a) a e) do art.16º. … O art. 17, nº 2 do Cód. Reg. Predial pressupõe uma desconformidade que foi criada pelo próprio registo. Não abrange desconformidades substantivas, pois estas só podem sanar-se nos termos do art. 291º”. Assim, afastou a aplicação ao caso do preceituado no nº 2 do artigo 17º do Código de Registo Predial, único e último obstáculo que, como referido, impediu a 1ª instância de dar total provimento às pretensões dos AA.. Não é fácil a concatenação do preceituado nos artigos 291º do Código Civil e 17º, nº 2, do Código de Registo Predial. Admitindo como certa a posição de Isabel Pereira Mendes (obras citadas), à qual aderem Carlos Ferreira de Almeida (Publicidade e Teoria dos Registos, página 311), José de Oliveira Ascensão (Direitos Reais, página 407) estes em comentário ao antigo artigo 83º do Código de Registo Predial (correspondente ao actual 17º), Luís A. Carvalho Fernandes (obra citada, página 137 a 144) que o artigo 17º se aplica tanto aos casos de nulidade registral, como aos casos de nulidade substantiva, tudo dependendo da verificação da existência de um registo inválido anterior ao transmitente, a verdade é esta: para que se possa falar, com legitimidade, em nulidade de registo é imperioso que judicialmente tenha sido declarado, e com trânsito em julgado, como cristalinamente resulta do nº 1 do citado artigo 17º. Não tendo nós notícia alguma, através da factualidade dada como provada, da declaração judicial de nulidade de qualquer registo de aquisição, queda sem qualquer sentido a convocação do preceito em favor das teses dos Recorrentes. Mas, há mais algo a dizer e deveras importante. Mesmo que estivéssemos perante um registo nulo, a merecer a tutela do artigo 17º, nº 2, do Código de Registo Predial, como conjugar a mesma com a situação dos AA., adquirentes originários da fracção, por mor da verificação do instituto da usucapio? Interrogação esta que, com toda a propriedade é feita, em termos eloquentes, por José Oliveira Ascensão, quando nos obriga a questionar se, a aceitar-se a tese da prevalência do registo (diga-se regime previsto no artigo 17º, nº 2), isso “não poderia significar uma homenagem cega ao tráfico imobiliário, em que avultam as considerações capitalísticas, em detrimento da titularidade substantiva, que corresponde em geral aos aspectos mais pessoais e profundos da propriedade”. Mas, este consagrado civilista, logo de seguida, sossega o nosso espírito, ao dizer que a anomalia é só aparente, sendo “preciso não esquecer que a base de toda a nossa ordem imobiliária não está no registo, mas na usucapião”. E, em jeito de remate, conclui: “No conflito entre direitos incompatíveis sobre a coisa, valem as regras substantivas; mas se alguém, a título oneroso e de boa fé, praticou um acto de aquisição porque se fiou na situação registral, passa a ter um direito que derrota o do verdadeiro titular. Nada pode porém contra a usucapião, ultima ratio na solução dos conflitos entre adquirentes de direitos reais, que o titular verdadeiro pode aqui invocar em termos gerais” (obra citada, páginas 397 a 415). Ideia esta, da prevalência da usucapio, também sublinhada por Pedro Romano Martinez quando defende que “os efeitos da nulidade da compra e venda de bens alheios não são tidos em conta sempre que estiverem em causa as regras de registo dos arts. 5º e 17º, nº 2, do Código de Registo Predial, …. Assim, se o comprador de bem alheio o vende a terceiro de boa fé, e este tiver registado a sua aquisição como titular do direito sobre um bem sujeito a registo, nos termos do art. 5º e, em especial, do art. 17º, nº 2, do Código de Registo Predial, o direito deste último será inatacável, a não ser que alguém invoque sobre o bem uma posse susceptível de lhe conferir a titularidade do direito por via da usucapião” (obra citada, página 114). Era, precisamente, a este último ponto que queríamos chegar, enfatizando o seguinte: os AA. ao invocarem, com êxito, a usucapião, como forma originária de aquisição da fracção ajuizada, afastaram, definitivamente, a aplicação ao caso do regime previsto no artigo 17º, nº 2, do Código de Registo Predial, mesmo que, previamente, tivesse havido a tal decisão judicial, transitada em julgado, a que alude o nº 1 deste mesmo preceito. Compreende-se, agora, que tenha sido esta a via correcta que foi escolhida pelos AA., com vista a fazer os seus direitos de propriedade sobre a fracção. Afirmando, através da prova produzida, a aquisição originária da mesma, por usucapião, registando a acção, como não podia deixar de ser, têm, agora, o caminho aberto para estabelecer o trato sucessivo, a partir da inscrição da R. EE, caindo, obrigatoriamente, todos os demais registos feitos, tendo por objecto negocial a fracção prometida vender por aquela à falecida II. Podemos, pois, concluir, dizendo que, perante a inequívoca prova da usucapio a favorecer os AA., a presunção derivada do registo de aquisição a favor da R. EE automaticamente cede, o que implica que as demais inscrições percam o seu efeito. Mas, mesmo que assim não fosse entendido, sempre seria inaplicável ao caso presente o regime do artigo 291º do Código Civil. Outrossim e pelas razões deixadas expressas, não tem cabimento na solução do caso o preceituado no artigo 17º, nº 2, do Código de Registo Predial. É tempo de concluir a apreciação das posições apresentadas pelos Recorrentes. Fizemos todo este excurso na ânsia de explicar às Partes, ponto por ponto, que a solução encontrada teria, necessariamente, ser a que ficou definida: prevalência da posição dos AA., atenta a prova da usucapio. A verdade, porém, é que, apurada esta realidade, por aí poderíamos ter ficado, sem necessidade de qualquer outra consideração. Chegaria, para tanto, chamar à colação o preceituado no artigo 5º do Código de Registo Predial, que no seu nº 1 prescreve que “os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo”, para, logo de seguida, dissipando dúvidas, exceptuar de tal regime, na alínea a) do seu nº 2, a aquisição fundada na usucapião. Perante a prova da usucapião, ilidida a presunção do registo de aquisição inscrita a favor da promitente-vendedora, automaticamente, a nova realidade prevalece sobre todo e qualquer registo, posterior ou anterior, à mesma. Daí que, com toda a razão e pertinência, Paulo Sobral Soares do Nascimento, tenha proclamado que “se há usucapião, ela sobrepõe-se sempre à eficácia presuntiva do registo predial – sempre independentemente da data desse registo: logo, sempre e sem excepções, mesmo nos casos em que há um registo anterior ao início da posse. A usucapião não presume o direito real, mas sim atribui-o. Ela (a usucapião) ultrapassa – “esmaga” – todos os demais títulos aquisitivos, tornando-os, de todo, ineficazes” (Cadernos de Direito Privado, nº 16, página 40, em anotação a um acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, datado de 12 de Janeiro de 2006). Esta realidade iniludível deveria ter sido considerada na mui douta sentença do Juiz da 1ª instância e realçada no não menos douto acórdão impugnado. Demonstrado este postulado, tudo o mais alegado, como vimos (seja a pretexto do artigo 291º do Código Civil, seja a respeito do nº 2 do artigo 17º do Código de Registo Predial), perderia sentido, por irrelevante, como cremos ter demonstrado. Em suma, não fora a diversidade de interpretações dadas ao artigo 17º, nº 2, do Código de Registo Predial (a 1ª instância afirmando a sua aplicação, a Relação dizendo o contrário) bem poderíamos dizer que não houve aqui grande discrepância entre os diversos julgadores. Mui embora não comungando em absoluto da posição assumida pela Relação de Évora, o certo é que não vislumbramos razão alguma para as críticas que os Recorrentes lhe dirigiram. O acórdão impugnado merece, pois, ser conformado. IV. Decisão: Ex positis, decide-se negar as revistas pedidas, mantendo a decisão da Relação, o que traduz a procedência total da acção, e colocar o pagamento das respectivas custas a cargo do recurso a cargo dos Recorrentes (artigo 446º, nº 1, do Código de Processo Civil e 27º, nº 3 do Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de Fevereiro). §§§ S.T.J., 14 de Setembro de 2010 Urbano Dias (Relator) Paulo Sá Mário Cruz |