Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6670/21.9T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
OPÇÃO DE COMPRA
SIMULAÇÃO DE CONTRATO
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
OMISSÃO DE FORMALIDADES
CONVALIDAÇÃO
VALIDADE
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
PREÇO
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
Data do Acordão: 09/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. Estando demonstrado que o documento, apelidado de contrato de arrendamento com opção de compra, onde consta o contrato dissimulado o contrato promessa de compra e venda - está assinado por ambas as partes, e o contraente que promete transmitir ou constituir o direito pode invocar a omissão dos requisitos previstos no 3 do art.º 410º, quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte, não tendo a contestado, tem que haver-se por formalmente válido o contrato promessa de compra e venda.

II. Demonstrado o incumprimento do contrato promessa por parte da promitente vendedora, e que o preço se encontra integralmente pago, estão reunidas todas as condições que conferem à promitente compradora o direito à execução especifica do contrato promessa, isto é, de obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial da faltosa, nos termos do n.º 1 do art.º 830.º do Código Civil.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I. Relatório

1. AA, residente na Travessa ..., n.º 6, ...., ..., ... ..., intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra BB, residente na Rua da ... – Condomínio ..., ..., ... ..., peticionando que:

a) seja declarado transmitido a favor da A. o direito de propriedade da fracção autónoma designada pela letra “A”, correspondente ao rés-do-chão esquerdo do prédio urbano sito na Rua ..., nº. 16, em ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o artigo 664 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ....

b) Seja a Ré condenada a entregar à A. o montante que se encontrar em dívida do débito garantido pela hipoteca, registralmente averbada pela apresentação nº. 4162 de 20 de fevereiro de 2015, sobre a fração autónoma identificada em I, cujo capital inicial era de € 32.000,00, bem como o dos juros vencidos e vincendos, até integral pagamento.

2. Para tanto, alegou, em síntese, que celebrou com a Ré um contrato-promessa de compra e venda, sendo que perante o incumprimento do mesmo por parte desta pretende executar especificamente o mesmo.

3. Regular e pessoalmente citada para contestar, no prazo e sob a cominação legal, a Ré não apresentou contestação.

4. Seguidamente, o tribunal “a quo” proferiu sentença que terminou com a seguinte decisão:

“Nos termos e pelos fundamentos expostos, julgo a presente ação improcedente e, consequentemente, absolvo a BB do pedido.”

5. Não se conformando com o assim decidido interpôs a autora recurso de apelação sustentando que deve ser concedido provimento à apelação, sendo revogada a sentença recorrida e declarado transmitido a favor da apelante o direito de propriedade da fracção autónoma ajuizada e melhor identificada no art. 1º. da petição inicial, tendo para tanto apresentado as respectivas conclusões.

6. O Tribunal da Relação conheceu da apelação, tendo procedido à alteração da matéria de facto apurada e concedido provimento ao recurso, que culmina com o seguinte segmento decisório:

Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal em conceder provimento ao recurso e, revogando a sentença recorrida, julgam procedente, por provada, a presente ação e, consequentemente, nos termos do art.º 830º, nº 1, do Código Civil, declaram transmitida para a Apelante, o direito de propriedade da fração autónoma designada pela letra “A”, correspondente ao rés-do-chão esquerdo do prédio sito na Rua ..., nº. 16, em ..., atualmente inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o artigo 664 (anteriormente sob o artigo 302 da extinta freguesia do ...) e descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº. 133 da (extinta) freguesia do ..., pelo preço de € 140.000,00 (cento e quarenta mil euros), já integralmente pago.

Custas da ação e do recurso, pela Apelada. Notifique.”

7. Não se conformando com o acórdão dele veio apresentado recurso de revista pela Ré, admitido no Tribunal da Relação, com a prolação do despacho onde se diz:

Por ter legitimidade, estar em tempo e a decisão ser recorrível, admito o recurso de revista interposto pela Ré, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo, artigos 631.º, 638.º, 671/1, 674º/1, al a), 675º e 676º, todos do CPC.”

8. No recurso de revista a Ré, vencida, conclui nos seguintes termos (transcrição):

“A) A Recorrente é proprietária da fração autónoma designada pela letra “A”, correspondente ao rés-do-chão esquerdo do prédio sito na Rua ..., nº. 16, em ..., atualmente inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o artigo 664.

B) A fração autónoma identificada no número anterior é considerada objecto num contrato de arrendamento, com uma cláusula de opção de compra, celebrado entre a recorrente e a recorrida.

C) “Acordaram quanto ao preço, que findo o prazo dos 5 (cinco) anos, o INQUILINO irá proceder à opção de compra pelo valor de € 140.000,00 (cento e quarenta mil euros” (…).

D) Sob a égide da reapreciação da matéria de facto, o Tribunal ‘a quo’, ora recorrido, alterou a decisão da matéria de factos e, entendeu, por sua vez, que “Desta factualidade, não é possível, concluir que se tratou de um contrato de arrendamento com opção de compra, porquanto, dali não resulta que foi concedida ao arrendatário a possibilidade, dependente da sua vontade, de adquirir o local arrendado”, o que se discorda em virtude do, claramente, disposto no nº 3 da cláusula 8ª - “Fica expressamente acordado que este contrato tem a duração efetiva de 5 (cinco anos), com opção de compra, aceitado o Segundo Outorgante perder todos os valores entregues até essa data”.

E) Tal como se pode, comummente, retirar que ninguém, no seu perfeito juízo aceita celebrar um contrato de arrendamento com opção de compra onde aceite, sem qualquer segurança jurídica, perder o imóvel caso opte por não dar a opção de compra.

Mais,

F) Não se pode aceitar quando o Tribunal ‘a quo’ conclui que “As partes fizeram um negócio simulado – o contrato de arrendamento com opção de compra – que é nulo, art.º240º,nº2, do CC, e sob esse negócio fizeram um negócio dissimulado– o contrato promessa de compra e venda. Trata-se de um caso de simulação relativa, art.º 241º do CC, e o contrato dissimulado será válido desde que tenha sido observada a forma exigida por lei, cf. nº 2 do mesmo normativo” e depois, simplesmente não considerar a nulidade como consequência directa da inobservância da forma exigida por lei.

G) Não obstante, e considerando-se este contrato como contrato de arrendamento, ainda que com opção de compra, é essencial alcançar ao que ao momento e forma de aquisição da propriedade diz respeito, pois dispõe o artigo 1316º do CC que o “O direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei”, que o “O direito de propriedade adquire-se por contrato (…)” e, na mesma senda, o artigo 1317º, al. a) do mesmo diploma dispõe que, no caso de contrato, o momento da aquisição do direito de propriedade é o designado nos artigos 408º e 409º do CC.

H) E atentos ao teor do n.º 1 do artigo 408º do CC, não se pode ignorar que a lei pode sujeitar a validade de um contrato a determinada forma especial, como vai até mais longe ao sujeitar a escritura pública ou documento particular autenticado os contratos preparatórios de alienação de direitos sobre imóveis, se conjugarmos com o disposto no artigo 875º do mesmo diploma: “o contrato de compra e venda de bens imóveis só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado” - parece razoável conceber que qualquer contrato preliminar a este e que verse sobre um determinado bem imóvel, também ele esteja sujeito a igual exigência de forma.

I) Sendo que o desfecho da falta de forma legalmente exigida é a nulidade conforme dispõe o artigo 220º do CC ex vi artigo 219º do mesmo diploma.

J) E a natureza formal aqui opera pelo conteúdo e efeito do objecto do contrato que, in casu, seria a opção de compra de um imóvel, o que, atendendo-se ao disposto no artigo 364º do CC, sob a epígrafe “Exigência legal de documento escrito”, que vem reforçar que a regra é a de que o documento escrito, autêntico, autenticado ou particular, é exigido como forma ad substantiam.

K) Já refere Pedro Pais de Vasconcelos que “Para além das exigências legais de forma estatuídas a propósito de tipos contratuais, existem também na lei exigências de forma estatuídas a propósito do conteúdo e efeitos dos contratos e que se aplicam para além dos tipos contratuais. É o caso, por exemplo, do nº 1 do artº 80º do Código do Notariado, que determina a obrigatoriedade de escritura pública para todos e quaisquer contratos que importem reconhecimento, constituição, aquisição, modificação, divisão ou extinção dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou de servidão sobre coisas imóveis. (…) As exigências legais de forma, como estas, são aplicáveis a todos os contratos, sejam eles de que tipo forem e sejam eles típicos ou atípicos. Assim, devem ser celebrados por escritura pública todos os contratos atípicos com eficácia real que tenham por objeto imóveis.”

L) Face ao exposto, conclui-se que estamos perante um contrato insusceptível de ser executado especificamente, devendo o Acórdão proferido ser revogado e consequentemente, manter-se a subsistência da sentença proferida no Tribunal da 1ª instância.

9. A autora apresentou contra-alegações, onde se conclui (transcrição):

“a) A presente acção tem por objecto um contrato-promessa de compra e venda de fracção autónoma que foi dissimulado sob as vestes de um contrato de arrendamento com opção de compra, por a Ré estar sujeita a uma cláusula de inalienabilidade que apenas cessaria a sua vigência cinco anos depois;

b) Não podendo a Ré vender, de imediato (em 2015), a fracção autónoma em causa, mas querendo encaixar imediatamente uma parte do preço, a sua mãe dissimulou um contrato-promessa de compra e venda sob a forma de um contrato de arrendamento simulado, do qual constam todas as cláusulas essenciais do negócio efectivamente desejado por ambas as partes (preço, forma de pagamento e tempo de celebração do contrato prometido, com indicação da contraente sobre quem impendia o dever da marcação da escritura de compra e venda);

c) O preço, de € 140.000,00, deveria ser pago pela A. à Ré: (i) € 50.000,00 a título de sinal, até à assinatura do contrato-promessa; (ii) € 60.000,00, a título de reforço de sinal, em prestações mensais, de € 1.000,00 cada uma, entre Julho de 2015 e Junho de 2020 e (iii) € 30.000,00 no acto da outorga da escritura de compra e venda;

d) Por escrito de 9 de Junho de 2020 (autuado sob doc. nº. 33 da petição inicial), a A. notificou a Ré de que a escritura teria lugar no dia 30 desse mês, no Cartório Notarial da ...;

e) A Ré fez-se representar validamente pela sua mãe, mas recusou-se a assinar a escritura, por pretender receber € 80.000,00, em vez dos € 30.000,00 que faltavam pagar do preço, tendo essa recusa determinado a propositura da presente acção;

f) Ao longo da marcha do processo, a A. continuou a pagar € 1.000,00 mensais à Ré, num total de € 21.000,00, e procedeu ao depósito dos remanescentes € 9.000,00 através de DUC junto aos autos, pelo que, antes deles serem concluídos à Mma. Juiz da 1ª. Instância para que os julgasse, o preço se encontrava integralmente pago;

g) Regularmente citada, a Ré não contestou, pelo que foram declarados confessados os factos articulados pela A., nos termos do nº. 1 do art. 567º. do Código de Processo Civil;

h) A Mma. Juiz da 1ª. Instância não relevou na, aliás douta, sentença que proferiu em 4 de Novembro de 2022, todos os factos que importavam para a boa decisão da causa, o que a levou a julgar a acção improcedente;

i) No recurso de apelação interposto pela A., aqui recorrida, daquela, aliás douta, sentença, foi proferido pela Veneranda Relação de Lisboa o douto acórdão de 13 de Abril de 2023 (de que foi relator o Excelentíssimo Desembargador Senhor Dr. CC), o qual, modificando a matéria de facto, fazendo incluir nela 26 factos para além dos 10 dados como provados na 1ª. Instância, concedeu provimento à apelação, declarando transmitido a favor da A. o direito de propriedade da fracção autónoma ajuizada;

j) Na sua petição de revista, a Ré não questionou a correcção da aplicação do art. 662º. do Código de Processo Civil por parte do Venerando Tribunal a quo, pelo que apenas poderia estar em causa a aplicação do direito aos factos que se encontram estabilizados no douto acórdão recorrido;

k) Analisado o texto do contrato ajuizado sob doc. nº. 5 da petição inicial (por si só esclarecedor da real intenção das partes), em conjunto com os factos provados nºs. 15, 16 e 17, esclarecedores dos motivos que levaram à dissimulação do negócio verdadeiramente pretendido, é forçoso concluir que entre a A. e a Ré foi celebrado um contrato-promessa de compra e venda e não um arrendamento, improcedendo a conclusão B) da petição de revista da Ré;

l) Do cumprimento daquele contrato – e até do seu incumprimento – nunca poderia resultar a perda do imóvel por parte da Ré, não fazendo sentido o que esta fez escrever na conclusão E) das suas alegações;

m) Revestindo o contrato simulado a forma escrita que a lei (nos arts. 410º., nº. 2, do Código Civil, com referência ao art. 875º. do mesmo compêndio legal) prescreve para a validade do contrato dissimulado, é o mesmo válido, por força do que dispõe o art. 241º. do Código Civil, improcedendo a conclusão F) da petição de revista da recorrente;

n) O direito de propriedade da fracção autónoma ajuizada não se transmitiu por efeito do contrato-promessa de compra e venda, devendo o contrato que a transmitisse revestir a forma de escritura pública, nos termos convencionados pelas partes (cfr. doc. nº. 5 da petição inicial, cláusula 4ª., nº. 4), documento que não foi outorgado por a Ré se ter recusado a assiná-lo, vindo a sua declaração negocial a ser substituída pelo douto acórdão recorrido, ao abrigo do art. 830º. do Código Civil, sendo destituído de sentido o que a Ré fez escrever nas conclusões G), H), J) e K) das alegações sob resposta;

o) Constando a promessa de documento particular que contém os elementos essenciais do negócio e se mostra assinado pelas promitentes, verificado o incumprimento da Ré e encontrando-se o preço integralmente pago, pode a A. obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial da promitente-vendedora faltosa, improcedendo a pretensão expressa pela recorrente na conclusão L) da sua petição de revista.”

Colhidos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.

II. Fundamentação

10. De facto

10.1. Das instâncias vieram provados os seguintes factos (tendo sido acrescentados os factos desde o n.º11 até ao final, pelo Tribunal da Relação):

1. A é proprietária da fração autónoma designada pela letra “A”, correspondente ao rés-do-chão esquerdo do prédio sito na Rua ..., nº. 16, em ..., atualmente inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o artigo 664 (anteriormente sob o artigo 302 da extinta freguesia do ...) e descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº. 133 da (extinta) freguesia do ....

2. Por escrito particular datado de 01/07/2015, denominado de “Contrato de Arrendamento Urbano para Fim Habitacional com Prazo Certo”, a declarou ceder à Autora o gozo do prédio referido em 1. pelo prazo de 5 (cinco) anos, não sendo renovável e dando lugar a escritura de compra e venda, a ser efetuada mediante comunicação escrita enviada à outra parte, sob registo postal com aviso de receção, com antecedência mínima de dez dias, pelo Segundo Outorgante.

3. Acordaram quanto ao preço, que findo o prazo dos 5 (cinco) anos, o INQUILINO irá proceder à opção de compra pelo valor de 140.000,00 (cento e quarenta mil euros), sendo as rendas pagas até à data da escritura, no valor de 60.000,00 (sessenta mil euros) abatidas no valor a pagar pela compra do imóvel.

4. (…) A renda mensal é de 1.000,00 (mil euros). O valor de sinal a entregar no ato de reserva será de 5.000,00 (cinco mil euros), a deduzir no valor a pagar pela compra e venda do imóvel.

5. (…) Com a assinatura do contrato de arrendamento será ainda entregue um valor de 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros), a deduzir no valor a pagar pela compra e venda do imóvel.

6. A A pagou à 50.000,00 em junho e julho de 2015 e 60.000,00 em reforços mensais de 1.000,00, entre julho de 2015 e junho de 2020.

7. À fração referida em 1., encontra-se averbada uma hipoteca no montante, em capital, de 32.000,00, respondendo a fração autónoma, em razão dessa hipoteca, por um montante que poderia ascender a 46.720,00.

8. Em 9 de Junho de 2020, a A. notificou a para a outorga da escritura solicitou-lhe que se fizesse acompanhar do documento do distrate da hipoteca.

9. No dia e hora marcados pela A., a mãe da Ré, munida de procuração bastante, compareceu no cartório notarial da Senhora Dra. ... Tomé, na ....

10. A Ré, através da sua mãe, fez saber à senhora notária que assinaria a escritura se a A. lhe passasse, no ato, o montante de 80.000,00.

11. Em Abril de 2015, a A. encontrava-se a procurar casa onde instalasse a sua habitação, pois teria de deixar aquela, em ..., onde então residia.

12. A A. veio a tomar conhecimento de que, no próprio prédio onde o filho possui uma fracção autónoma, a Ré adquirira a correspondente ao rés-do-chão esquerdo, na qual, todavia, não habitava,

13. Tendo encarregado a sua mãe, Senhora D. DD de proceder à venda daquela fracção autónoma.

14. No dia 22 de Maio de 2015, a A. abordou a mãe da Ré, a quem deu conta do seu interesse na aquisição da fracção autónoma em causa.

15. Nessa conversa, a mãe da Ré pôs a A. ao corrente da situação jurídica da fracção autónoma de que a filha era (e é ainda) proprietária: adquirida em 20 de Fevereiro de 2015 ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, estava sujeita a um ónus de inalienabilidade por cinco anos,

16. Pelo que a compra e venda não poderia ser formalizada antes de 20 de Fevereiro de 2020 – cfr. doc. nº. 2.

17. A Ré tinha interesse em celebrar um negócio que lhe permitisse um encaixe financeiro imediato, bem como em receber pagamentos mensais por conta do preço, cujo remanescente seria pago no acto da compra e venda, a celebrar após o decurso do prazo de vigência do ónus de inalienabilidade,

18. Pelo que a mãe da Ré pediu à A. que lhe apresentasse uma proposta, por escrito, que acautelasse as circunstâncias em que o negócio poderia ser realizado.

19. Ainda no dia 22 de Maio de 2015, a A. endereçou à mãe da Ré a mensagem de correio electrónico cuja impressão se junta sob doc. nº. 3 e aqui se dá por integralmente reproduzida.

20. Nessa mensagem, a A. consignou, além do mais, o seguinte:

“No seu caso, quanto ao facto de agora só ser possível contrato de PCV e daqui a 4 anos a escritura, penso que isso é possível contornar.

Nessa condicionante poderíamos entregar no CPCV, 50% do valor da compra… Parece-lhe bem?” (doc. nº. 3)

21. Àquela mensagem da A., respondeu a mãe da Ré, pela mesma via, em 23 de Maio de 2015, ora se juntando a sua impressão, sob doc. nº. 4, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

22. No que diz respeito à proposta de preço da A., escreveu ali a mãe da Ré:

“A procura que temos realmente é muita e temos também várias propostas, mas o valor que nos propõe é realmente abaixo do que nos têm oferecido e do valor de estudo de mercado da zona.” (doc. nº. 4)

23. A ultrapassagem da cláusula de inalienabilidade foi assim configurada:

A situação realmente é a que lhe falei, um cpvc com a validade de 5 anos, um valor de entrada e um valor mensal até à escritura definitiva, em que todos esses valores serão descontados.” (doc. nº. 4)

24. No início de Junho de 2015, a A. e a mãe da Ré chegaram a um acordo para o negócio, que teria as seguintes cláusulas:

a) Preço – € 140.000,00;

b) Forma de pagamento:

(i) sinal de € 50.000,00, dos quais € 5.000,00 foram passados imediatamente, a título provisório de reserva e os remanescentes € 45.000,00 deveriam ser entregues no acto da assinatura do contrato-promessa;

(ii) reforços, mensais, de sinal, no valor unitário de € 1.000,00, entre Julho de 2015 e Junho de 2020, no total de € 60.000,00;

(iii) remanescente, de € 30.000,00, na outorga da prometida escritura de compra e venda.

25. Na data da escritura (prevista para 30 de Junho de 2020), a A. apenas teria a pagar à Ré, tal como combinado aquando do acerto das condições do contrato, € 30.000,00, remanescentes dos € 140.000,00 do preço ajustado, do qual foram pagos € 50.000,00 em Junho e Julho de 2015 e € 60.000,00 em reforços mensais de € 1.000,00, entre Julho de 2015 e Junho de 2020.

26. Para justificar a posse da casa, pela A., perante terceiros tais como o condomínio e entidades fornecedoras de serviços, com data de 1 de Julho de 2016, foi assinado um contrato de arrendamento entre a A. e a Ré, nos termos que constam da sua cópia que se junta sob doc. nº. 6 e aqui se dá por reproduzido.

27. Nesse documento fixou-se um prazo de vigência de 4 anos para o arrendamento, sendo assim mantido o exercício do direito potestativo de a A. adquirir a fracção autónoma ajuizada em Junho de 2020 – cfr. doc. nº. 6, cláusula 4ª., nº. 2.

28. Porque não interessava à Ré que fosse conhecido o verdadeiro negócio que ela celebrara com a A., no “contrato” de Junho de 2016 não é feita qualquer referência aos montantes entretanto entregues a título de sinal e seus reforços (€ 50.000,00 + € 13.000,00 pagos em duodécimos de € 1.000,00 entre 1 de Julho de 2015 e 1 de Julho de 2016),

29. Tendo sido fixada a exígua “renda” de € 50,00, para que a carga fiscal da Ré, como senhoria, fosse o mais aligeirada possível.

30. De Maio de 2018 em diante, a A. decidiu deixar de fazer os pagamentos dos reforços do sinal em numerário, tendo solicitado à Ré - através da sua mãe – a indicação de uma conta bancária para onde pudesse fazer as transferências mensais.

31. A conta que a Ré para o efeito indicou à A. – com o NIB .... .... .... .... .... 9 – está aberta em nome de EE, irmão uterino da ora demandada.

32. Enquanto diligenciava por chamar a mãe da Ré à razão, a A. manteve as transferências dos reforços de sinal, no montante de € 1.000,00 mensais, como decorre dos docs. que se juntam sob nºs. 36 a 44 e melhor identificados no quadro que se segue:

DOC. Nº. ANO MÊS DIA MONTANTE

2020

36 Julho 8 €1.000,00

37 Agosto 5 €1.000,00

38 Setembro 2 € 1.000,00

39 Outubro 8 € 1.000,00

40 Novembro 5 € 1.000,00

41 Dezembro 8 € 1.000,00

2021

42 Janeiro 6 € 1.000,00

43 Fevereiro 1 € 1.000,00

44 Março 5 € 1.000,00

TOTAL € 9.000,00

Consequentemente,

33. Por conta do preço, de € 140.000,00, a A. entregou à Ré (através da sua mãe e procuradora) os seguintes valores:

a) € 5.000,00, em numerário, em Junho de 2015 – cfr. doc. nº. 5

b) € 45.000,00, em numerário, no acto da outorga do contrato-promessa, em 1 de Julho de 2015 – cfr. doc. nº. 5

c) € 34.000,00, à razão mensal de € 1.000,00, em numerário, entre Julho de 2015 e Abril de 2018 –

d) € 35.000,00, por transferências bancárias para a conta aberta em nome do irmão uterino da Ré, entre Maio de 2018 e Março de 2021 – cfr. docs. nºs. 7 a 32 e 36 a 44.

34. Os beneficiários da hipoteca emitiram a competente declaração para distrate, em 7 de Julho de 2015 – cfr. doc. nº. 3.

35. Após a propositura da acção, a A., ora apelante, procedeu, ao pagamento de 12 reforços do sinal por conta do preço, no valor unitário de € 1.000,00.

36. A A., ora apelante, procedeu ao depósito dos € 9.000,00, remanescente do preço, através do DUC com a referência .............71, que juntou sob doc. nº. 16, acompanhado do comprovativo do seu pagamento – doc. nº. 17.

De Direito

11. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

Das conclusões do recurso da Ré resulta ser o seguinte o objecto do recurso:

i) qualificação do contrato e seu regime jurídico, no qual se questiona a simulação e o problema da forma do contrato e ainda a possibilidade de execução específica.

12. A recorrente não aceita a decisão do Tribunal da Relação, que veio fundada na alteração da matéria de facto e na reapreciação do direito aplicável em face dessa reapreciação.

Vejamos o raciocínio do Tribunal da Relação.

13. No quadro da apelação, o Tribunal da Relação procedeu à reapreciação da matéria de facto fixada pela primeira instância e aditou os factos desde o n.º11 ao 36.

A decisão que conduziu a esta conclusão não vem impugnada no recurso de revista.

É, por isso, questão que não gera controvérsia e com os factos fixados nos ditos termos é apenas de analisar de o Direito foi bem decidido.

14. Por comparação entre a decisão da 1ª instância – que julgou a acção improcedente – e a decisão do Tribunal da Relação – que decretou a execução específica do contrato promessa de compra e venda e se substituiu ao promitente faltoso na emissão de declaração de transmissão em favor da A. – o principal problema que foi analisado (e que volta a ser objecto deste recurso) prende-se com a qualificação do contrato que as partes (A. e R.) celebraram.

A A. diz que celebrou um contrato promessa de compra e venda; a Ré que apenas foi celebrado um contrato de arrendamento com opção de compra.

Analisando os factos provados o tribunal foi confrontado com uma situação especial – as partes afirmaram celebrar um contrato de arrendamento, mas a prova produzida veio permitir apurar que a vontade das partes não foi a de outorgarem um contrato de arrendamento, mas sim de um contrato promessa de compra e venda, promessa que não quiseram logo deixar explícita por motivos que se relacionavam com a situação da Ré.

Assim, o tribunal entendeu que:

“O declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, retiraria da leitura do contrato junto sob doc. nº. 5 da petição inicial que a Ré não pretendeu dar de arrendamento à A. a fração autónoma ajuizada, assim como esta não tencionou tomá-la de arrendamento.

Com efeito, pese embora aí se dizer que a Ré cede o gozo da coisa à A., por 5 anos que o INQUILINO irá proceder à opção de compra pelo valor de € 140.000,00 (cento e quarenta mil euros), sendo as rendas pagas até à data da escritura, no valor de € 60.000,00 (sessenta mil euros) abatidas no valor a pagar pela compra do imóvel, (…) A renda mensal é de € 1.000,00 (mil euros). O valor de sinal a entregar no ato de reserva será de € 5.000,00 (cinco mil euros), a deduzir no valor a pagar pela compra e venda do imóvel e (…) Com a assinatura do contrato de arrendamento será ainda entregue um valor de € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros), a deduzir no valor a pagar pela compra e venda do imóvel.

Desta factualidade, não é possível, concluir que se tratou de um contrato de arrendamento com opção de compra, porquanto, dali não resulta que foi concedida ao arrendatário a possibilidade, dependente da sua vontade, de adquirir o local arrendado.

Tal aquisição da fração autónoma discutida nos autos foi naquele documento declarada como certa, cf. resulta do nº 2 da cláusula 4ª do contrato – Findo o prazo de 5 (cinco) anos, o INQUILINO irá proceder à opção de compra pelo valor de 140.00,00 (cento e quarenta mil euros).

Ora, se se tratasse de um verdeiro contrato de arrendamento com opção de compra, as partes teriam redigido o nº 2 da referida cláusula noutros termos e em vez do futuro imperativo “irá proceder …” teriam seguramente escrito “poderá proceder …”.

Por outro lado, se se tratasse de um verdadeiro contrato de arrendamento com opção de compra que sentido teria o arrendatário ter entregue a título de sinal o valor de € 5.000,00 no ato de reserva e ainda o valor de € 45.000,00 na data da assinatura do contrato de arrendamento?

Num contrato de arrendamento com opção de compra não há sinal e, face ao valor da dita “opção” de compra, muito menos um sinal pelo valor de 50.000,00 euros, quando a “opção” apenas teria lugar passados cinco anos.

Tal escrito, (doc. nº. 5 da petição inicial), pese embora nele se falar em arrendamento e opção de compra conjugado com a restante factualidade que se deixou supra exposta conclui-se que as partes não quiseram celebrar um “contrato de arrendamento da fração autónoma em causa com opção de compra”, mas uma verdadeira promessa de compra e venda, dissimulada por um contrato de arrendamento simulado.

Com efeito, está provado (factos provados nº 11 a 24), que a A. pretendia comprar um apartamento no Bairro de ... e a Ré tinha uma fração autónoma para venda naquele Bairro, tendo cometido à sua mãe a tarefa de realizar o negócio, como a venda não poderia ser celebrada imediatamente, dada a existência do referido ónus de inalienabilidade, que vigoraria até 20 de Fevereiro de 2020

A ultrapassagem da cláusula de inalienabilidade foi assim configurada:

A situação realmente é a que lhe falei, um cpvc com a validade de 5 anos, um valor de entrada e um valor mensal até à escritura definitiva, em que todos esses valores serão descontados. (doc. nº. 4) e no início de Junho de 2015, a A. e a mãe da Ré chegaram a um acordo para o negócio, que teria as seguintes cláusulas:

a) Preço – € 140.000,00; b) Forma de pagamento:

(i) sinal de € 50.000,00, dos quais € 5.000,00 foram passados imediatamente, a título provisório de reserva e os remanescentes € 45.000,00 deveriam ser entregues no acto da assinatura do contrato-promessa;

(ii) reforços, mensais, de sinal, no valor unitário de € 1.000,00, entre Julho de 2015 e Junho de 2020, no total de € 60.000,00;

(iii) remanescente, de € 30.000,00, na outorga da prometida escritura de compra e venda.

Para a qualificação do contrato é ainda importante o estabelecido no nº 3 da cláusula 8ª - “Fica expressamente acordado que este contrato tem a duração efetiva de 5 (cinco anos), com opção de compra, aceitado o Segundo Outorgante perder todos os valores entregues até essa data.”

Desta cláusula resulta claramente que as partes se quiseram obrigar a algo, ou seja, celebrar o contrato de compra e venda da fração ajuizada.

Com efeito, as regras da experiência demonstram que ninguém, no seu perfeito juízo e no âmbito de um contrato de arrendamento em que tem a opção de comprar ou não, iria entregar € 50.000,00 aceitando perdê-los caso não opte pela compra.

Do que se deixou exposto, resulta claramente que entre as partes não foi negociado qualquer contrato de arrendamento (ainda que com opção de compra), mas sim um contrato-promessa de compra e venda e do qual constam todas as clausulas relevantes:

No final do prazo dos cinco anos, iria ser celebrada a escritura de compra e venda, a ser efetuada mediante comunicação escrita enviada à outra parte sob registo postal com aviso de receção, com a antecedência mínima de dez dias ao Segundo Outorgante, a forma de pagamento do preço - os € 140.000,00 - € 50.000,00 (€ 5.000,00 + € 45.000,00) com a assinatura do contrato, € 60.000,00 em prestações mensais de € 1.000,00 e os remanescentes € 30.000,00 na outorga do contrato prometido.

Em conclusão, o tal declaratário normal, art.º 236º, nº 1 do CC, concluiria da leitura do contrato junto sob doc. nº. 5 da petição inicial, ainda que sob a capa de contrato de arrendamento com opção de compra, que a Ré pretendeu prometer vender à a A. e esta prometeu comprar à Ré a fração autónoma ajuizada.

As partes fizeram um negócio simulado – o contrato de arrendamento com opção de compra – que é nulo, art.º 240º, nº 2, do CC, e sob esse negócio fizeram um negócio dissimulado – o contrato promessa de compra e venda.

Trata-se de um caso de simulação relativa, art.º 241º do CC, e o contrato dissimulado será válido desde que tenha sido observada a forma exigida por lei, cf. nº 2 do mesmo normativo”.

15. Que dizer?

A partir dos factos provados o entendimento do Tribunal da Relação - que identifica aqui uma vontade das partes - obtida a partir de elementos de facto e da regra jurídica relativa à interpretação das declarações das partes (art.º 236.º do CC) - obedece a uma lógica de normalidade das relações contratuais e sociais que se nos afigura não vem colocada em causa no presente recurso. Trata-se de uma conclusão lógica, formada a partir de elementos de facto que potenciam a referida conclusão e que são tão mais plausíveis do que o entendimento veiculado pela Ré.

E isso mesmo se encontra justificado pelo tribunal, com a utilização dos argumentos que se indicam (repetem):

- As partes declararam pretender um contrato de arrendamento com prazo certo, porque a Ré não podia alienar o imóvel antes de certo prazo – por existir um regime de inalienabilidade a que estava sujeita;

- As partes previram a constituição de um sinal e seus reforços;

- As partes previram o preço da alienação do bem;

- As partes pretendiam que a ré não tivesse encargos fiscais com o arrendamento que declarava ter realizado e pretendiam que a A. suportasse logo (antes da mudança da titularidade) as despesas e encargos habituais que sobre o proprietário recaem;

- A cláusula relativa à perda do sinal por não exercício da opção de compra pela A. é consonante com a promessa de compra e não com o arrendamento.

Com os factos apurados é claro que o entendimento do tribunal recorrido merece apoio – as partes declaram pretender um arrendamento, mas na verdade o que pretendiam era um contrato promessa de alienação do bem, aplicando-se à situação em causa o regime do negócio simulado.

Não pretendendo realizar nenhum arrendamento mas um contrato diverso, estamos perante uma simulação relativa ao objecto – o negócio dissimulado (contrato promessa de compra e venda).

Improcede a questão suscitada pela recorrente.

16. Vejamos agora se o contrato promessa de compra e venda é válido, do ponto de vista formal, e se pode ser objecto de execução específica.

Esta questão foi analisada pelo acórdão recorrido nos seguintes termos:

“Estabelece o art.º 410.º, do Código Civil

1 - À convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, exceptuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa.

2 - Porém, a promessa respeitante à celebração de contrato para o qual a lei exija documento, quer autêntico, quer particular, só vale se constar de documento assinado pela parte que se vincula ou por ambas, consoante o contrato-promessa seja unilateral ou bilateral.

3 - No caso de promessa respeitante à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, ou fracção autónoma dele, já construído, em construção ou a construir, o documento referido no número anterior deve conter o reconhecimento presencial das assinaturas do promitente ou promitentes e a certificação, pela entidade que realiza aquele reconhecimento, da existência da respectiva licença de utilização ou de construção; contudo, o contraente que promete transmitir ou constituir o direito só pode invocar a omissão destes requisitos quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte.

Tendo em conta o objeto do contrato promessa discutido nos autos, este é um negócio formal, devendo a declaração ser interpretada com um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, cf. art.º 238.º do CC.

Ora, o documento em que as partes formalizaram o contrato dissimulado – contrato promessa de compra e venda - reproduz as pretensões das partes, celebrar um contrato-promessa de compra e venda, com a validade de cinco anos (período durante o qual a ora apelada estava impedida de alienar a fração autónoma), um valor de entrada – que foi de € 50.000,00 – e um valor mensal – que foi de € 1.000,00 – até à escritura definitiva, sendo o remanescente do preço pago pela A. à Ré no momento da sua outorga.

Resulta da factualidade dada como provada que a vontade negocial da A. e da Ré tinha por objeto a futura compra e venda da fração autónoma ajuizada, que só não foi celebrada em 2015 (data da conclusão do negócio), em razão da existência de um ónus de inalienabilidade que vigoraria até 2020.

Estando demonstrado que o documento, apelidado de contrato de arrendamento com opção de compra, onde consta o contrato dissimulado – o contrato promessa de compra e venda - está assinado por ambas as partes, e o contraente que promete transmitir ou constituir o direito só pode invocar a omissão dos requisitos previstos no nº 3 do art.º 410º, quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte, não tendo a Ré contestado tem que haver-se por formalmente válido o contrato promessa de compra e venda.

d) - Da suscetibilidade da execução específica.

Prescreve art.º 830.º do Código Civil (Contrato-promessa)

1 - Se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida.

2 - Entende-se haver convenção em contrário, se existir sinal ou tiver sido fixada uma pena para o caso de não cumprimento da promessa.

3 - O direito à execução específica não pode ser afastado pelas partes nas promessas a que se refere o n.º 3 do artigo 410.º; a requerimento do faltoso, porém, a sentença que produza os efeitos da sua declaração negocial pode ordenar a modificação do contrato nos termos do artigo 437.º, ainda que a alteração das circunstâncias seja posterior à mora.

4 - Tratando-se de promessa relativa à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, ou fração autónoma dele, em que caiba ao adquirente, nos termos do artigo 721.º, a faculdade de expurgar hipoteca a que o mesmo se encontre sujeito, pode aquele, caso a extinção de tal garantia não preceda a mencionada transmissão ou constituição, ou não coincida com esta, requerer, para efeito da expurgação, que a sentença referida no n.º 1 condene também o promitente faltoso a entregar-lhe o montante do débito garantido, ou o valor nele correspondente à fração do edifício ou do direito objeto do contrato, e dos juros respetivos, vencidos e vincendos, até pagamento integral.

5 - No caso de contrato em que ao obrigado seja lícito invocar a exceção de não cumprimento, a ação improcede, se o requerente não consignar em depósito a sua prestação no prazo que lhe for fixado pelo tribunal.

Ora, da factualidade provada resulta que a Ré se obrigou a transmitir a favor da A. o direito de propriedade da fração autónoma ajuizada, tendo-se recusado a celebrar a escritura para o efeito marcada pela A., nos termos que constam da carta que lhe dirigiu em 9 de Junho de 2020, porquanto, no dia e hora marcados, a procuradora da Ré compareceu no notário designado pela A., mas recusou-se a assinar o contrato prometido, por pretender receber € 80.000,00 em vez dos € 30.000,00 que a ora apelante lhe devia nessa data e que pretendeu pagar-lhe através de cheque bancário emitido a seu favor, como tudo consta do “certificado de ocorrência”.

Mais resulta provado que na pendência destes autos a A. procedeu ao pagamento dos € 21.000,00 do preço que ainda não se encontravam passados aquando da sua instauração e procedeu ao depósito dos € 9.000,00, remanescente do preço, através do DUC com a referência .............71.

Está, pois, demonstrado o incumprimento do contrato promessa por parte da promitente vendedora, a Ré ora apelada, e que o preço se encontra integralmente pago, estão reunidas todas as condições que conferem à A., ora apelante, o direito à execução especifica do contrato promessa, isto é, de obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial da faltosa, nos termos do n.º 1 do art.º 830.º do Código Civil.”

A Ré discorda do entendimento do Tribunal, sem que consiga explicitar adequadamente as razões jurídicas dessa discordância através de uma argumentação adequada e juridicamente sustentada que contradite os argumentos do tribunal.

Introduz na sua argumentação questões deslocadas do problema central, como a relativa ao regime do art.º 408.º do CC, cuja aplicação não estava em causa, pelo menos no sentido que a recorrente indica.

Na verdade, o tribunal nunca disse que o contrato promessa opera a transmissão da titularidade, porque a ser assim não teria a A. de lançar mão da execução específica pedindo ao tribunal que emitisse a declaração de transmissão que a Ré se tinha obrigado a produzir e nunca o fez – é a sentença que produz os efeitos da declaração negocial da faltosa, nos termos do n.º 1 do art.º 830.º do Código Civil, pelo que só com a decisão do tribunal se opera a transmissão da titularidade.

Por outro lado, também não existem argumentos que contrariem a validade formal do contrato promessa dissimulado, como o tribunal recorrido teve oportunidade de explicitar – os elementos de forma exigidos foram observados e os que eventualmente estivessem em falta não podem ser invocados pela Ré, por se entender que a A. não deu, culposamente, causa à sua falta (inalegabilidade formal – art.º 410.º, n.º3 do CC).

Em suma, a posição adoptada pelo tribunal recorrido está correcta e deve ser mantida, sendo o contrato promessa de compra e venda válido formalmente em face da Ré e susceptível de execução específica, nos termos em que a mesma foi decidida, tendo sido igualmente acautelado o pagamento do remanescente do preço em falta pelo depósito efectuado no valor de 9.000 euros (DUC com a referência .............71).

Improcede a questão suscitada e o recurso no seu todo.

III. Decisão

Pelos fundamentos indicados é negada a revista e confirmado o acórdão recorrido.

Custas pela Ré, sem prejuízo do apoio judiciário.


Lisboa, 14 de Setembro de 2023


Relatora: Fátima Gomes

1º Adjunto: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

2º Adjunto: Conselheiro Nuno Ataíde das Neves