Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | SANTOS CABRAL | ||
Descritores: | FALSIFICAÇÃO DOCUMENTO BEM JURÍDICO PROTEGIDO FOTOCÓPIA PREJUÍZO PATRIMONIAL CONCESSÃO DE CRÉDITO OMISSÃO DE PRONÚNCIA INFORMAÇÕES FALSAS | ||
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Nº do Documento: | SJ200612200036633 | ||
Data do Acordão: | 12/20/2006 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
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Sumário : | I - É uniforme o entendimento doutrinal no sentido de que o bem jurídico protegido no crime de falsificação de documentos é o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico, embora, como refere Helena Moniz (Código Penal Conimbricense, tomo II, pág. 607), não seja toda e qualquer segurança no tráfico jurídico que se pretende proteger, mas apenas a relacionada com os documentos. II - A noção de documento consubstanciada no art. 255.º do CP sofreu a influência de uma evolução e acaba por nos dar um conceito de documento com todas as características que permitem assegurar as funções de perpetuação; probatória e de garantia que são exigidas ao documento enquanto objecto material do crime de falsificação de documentos. Documento, para efeitos de direito penal, não é o material que corporiza a declaração, mas a própria declaração, independentemente do material em que está corporizada; é a declaração enquanto representação de um pensamento humano (função de perpetuação). III - Esta interpretação permite integrar na noção de documento não só o documento autêntico ou autenticado, que tem força probatória plena, mas qualquer outro - escrito, em disco, fita Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça Secções Criminais Número 108 - Dezembro de 2006 41 gravada ou qualquer outro meio técnico - que integre declaração idónea a provar um facto juridicamente relevante (quer tal destino lhe seja dado desde o início - documentos intencionais - quer posteriormente - documentos ocasionais). IV - Documento é, pois, a declaração de um pensamento humano que deverá ser corporizada num objecto que possa constituir meio de prova de facto juridicamente relevante. V - Uma vez que o documento para efeitos de direito penal é a declaração e não o objecto ou suporte material da declaração, a simples falsificação da fotocópia, do suporte do documento, não constitui falsificação de documentos, pois não se verifica uma falsificação de um documento enquanto declaração, já que a fotocópia, em si, constitui um suporte que não permite reconhecer o emitente da declaração, e em relação à qual (fotocópia) se encontram diluídos os interesses de credibilidade e segurança no tráfico jurídico. VI - Situação distinta é aquela em que o próprio acto de produção da fotocópia é, também, instrumento de manipulação do original fotocopiado, cujo conteúdo é alterado por essa forma. Tal alteração pode ser efectuada através da montagem do texto original, ou da sua digitalização, mas constitui sempre uma alteração do documento original que está a ser fotocopiado e, como tal, inscreve-se nos elementos constitutivos do crime de falsificação previsto no art. 256.º, n.º 1, al. a), do CP. VII - A concessão de crédito traduz-se na disponibilização de um valor presente mediante uma promessa de pagamento desse mesmo valor no futuro, que pressupõe a confiança na solvabilidade do devedor, isto é, de que o mesmo irá honrar os seus compromissos nas datas acordadas previamente. VIII - O risco de crédito é o risco de perda em que se incorre quando há incapacidade de uma contrapartida numa operação de concessão de crédito. IX - A prestação de informações incorrectas, dando conta de indícios de uma situação de estabilidade financeira que, na realidade, não existe permite, desde logo, concluir que a entidade cedente do crédito tomou uma decisão com base em pressupostos inexistentes que a levaram a ignorar um risco de crédito que na realidade existia. X - Tal circunstância tem uma dimensão financeira negativa na esfera patrimonial da empresa que é absolutamente indiferente ao facto de o contrato estar, ou não, a ser cumprido (não será assim se a cedente do crédito souber da real situação dos cessionários). XI - Tendo a decisão recorrida omitido apreciação sobre a existência de prejuízo patrimonial nesta dimensão, limitando-se à inferência de que o cumprimento do contrato de concessão de crédito (que se verifica) implica a ausência de tal prejuízo, omitiu pronúncia acerca de questão (existência de prejuízo patrimonial em função da decisão de concessão de crédito com base em informação inverídica) sobre a qual deveria ter-se debruçado, o que constitui uma nulidade relevante nos termos do art. 379.º do CPP. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam neste Supremo Tribunal de Justiça O Ministério Público na comarca de Lisboa vem interpor recurso do acórdão absolutório proferido nos presentes autos o qual absolveu os arguidos AA, BB e CC, da prática de quatro crimes de falsificação de documento, previstos e punidos pelo art. 256°, n° 1, alínea a), do Código Penal; e um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo art. 256°, nº 1, alínea a), e 3, do mesmo diploma legal. São as seguintes as razões de discordância expressas nas conclusões de recurso: 1-Não se questiona a decisão do Tribunal quanto à matéria de facto, limitando-se o recurso à questão de direito no sentido de apurar se aquela matéria de facto integra ou não o crime de falsificação de documento. 2. O Tribunal entendeu que no caso em apreço nos autos se verifica uma falsificação de fotocópias, posto que a partir de originais e mediante a sua digitalização e montagem de fotocópias, o arguido AA obteve fotocópias, alterando simultaneamente nesse processo os dados constantes dos documentos originais e depois remetendo à ..... apenas fotocópias, não as apresentando como originais mas antes como verdadeiras cópias ou cópias conformes com os originais. 3. Constituindo a falsificação de documentos uma falsificação da declaração incorporada no documento, impõe-se distinguir as diversas formas que o acto de falsificação pode assumir, a saber, falsificação material e falsificação ideológica. 4-Enquanto na falsificação material o documento não é genuíno, na falsificação ideológica e documento é inverídico; na falsificação material o documento é falsificado na sua essência material, na intelectual o documento é falsificado na sua substância. 5. Ora, entendemos que no caso dos autos estamos, ao menos, perante um caso de falsificação intelectual, uma vez que foram fabricados documentos novos, através do processo de montagem e digitalização de fotocópias, documentos esses que corporizam a final um documento novo, assim falsificado, e que desse modo incorporam uma nova declaração falsa, distinta da declaração constante dos documentos originais. 6. O facto de o novo documento assim fabricado consistir numa declaração falsa incorporada em suporte de fotocópia não afasta de todo a verificação, a nosso modesto ver, a verificação do crime de falsificação, uma vez que, é inegável estarmos perante uma declaração - obtida através de montagem - de facto falso juridicamente relevante. 7. Assim, também não restam dúvidas que ao agirem deste modo, os arguidos contribuíram para que tais dados e declarações falsas fossem apresentados como verdadeiros perante a ......, e desse modo, determinaram tal entidade à concessão dos empréstimos, obtendo para si e para os clientes visados um beneficio ilegítimo. 8. Ora, o direito penal não pretende proteger apenas certo tipo de documentos, mas todos os documentos cuja falsidade, ainda que da declaração dos mesmos constante, venha a colocar em risco a segurança e credibilidade do tráfico jurídico-probatório. 9. Ao absolver os arguidos, da prática dos crimes de falsificação de documentos, o Acórdão recorrido violou o disposto no art°256° e 255°, al. a) do C.P. 10. Nestes moldes, deve ser revogado o douto Acórdão recorrido, e ser substituído por outro em que, em consequência, seja os arguidos AA e BB condenados pela prática dos crimes de falsificação de documentos, p. e p. pelo art°256°, nº1 do C.P., em conformidade com a matéria de facto dada como provada. Foi produzida resposta e parecer no sentido constante dos autos. O processo teve os vistos legais. * Em sede de decisão recorrida encontra-se provada a seguinte factualidade: 1. Em data indeterminada do ano de 2002, mas que terá decorrido no decurso do mês de Março, as arguidas BB e CC acordaram colaborar com o arguido AA, que diligenciava pela concessão de financiamentos a particulares, através das instituições para tanto habilitadas; 2. Pelo que decidiram que, do financiamento a solicitar pelos interessados, 20% reverteria a favor do arguido, dos quais daria 6% às arguidas, que dividiriam entre si esta percentagem; 3. Mais ficou decidido que as arguidas tratariam de angariar os clientes, os quais encaminhariam de seguida para o arguido, que por sua vez trataria de todos as diligências tendentes à concretização dos empréstimos; 4. E assim, tendo em vista a obtenção do máximo de clientes possíveis e o sucesso de toda o empreendimento que se propunham desenvolver, em 30 de Abril de 2002, as arguidas arrendaram uma sala na rua Egas Moniz, em Lisboa, à empresa "DD", e sob a denominação de "................" (doravante ..........), passaram a agir, identificando a empresa que informalmente constituíram pelos seguintes dizeres, que mandaram imprimir em carimbo próprio e que utilizavam na sua correspondência: "Contribuinte nº .........., com escritórios na Rua Egas Moniz, .........-......, .....-...Lisboa, Tm ........... Fax ..........."; 7. Sendo certo que o n° de contribuinte em questão está atribuído à empresa "DD", à revelia de quem o utilizaram; 8. E o número de fax em questão pertencia ainda a esta "DD", mas que tinham autorização para utilizar em virtude do arrendamento referido em 4; 9. Passando então as arguidas a pub1icitar os serviços daquela firma, em jornais como o "Correio da Manhã"; 10. Encaminhando de seguida os candidatos ao arguido AA; 11. O qual forjaria as fotocópias dos documentos que acompanhassem os Contratos de Credito, quando tal se afigurasse necessário, e da forma que seguidamente se descreverá e sempre nos escritórios que possuía, na Rua Luciano Cordeiro, facto de que as arguidas tomaram conhecimento por volta de Julho de 2002; 12. Todos os arguidos sabiam que a "............................." (doravante ...........) é uma instituição financeira de crédito ao consumo, que como tal se apresenta ao público oferecendo a aquisição de bens serviços ou simplesmente empréstimos; 13. E que privilegia o contacto directo com os interessados, para o que basta uma simples chamada telefónica, a partir daqui desencadeando a instituição, todos os tramites necessários à concessão do pedido; 14-Assim, na sequência de um daqueles anúncios, em Maio de 2002, EE, doravante EE, fez um contacto telefónico, sendo atendida por uma das arguidas, que confirmou tratarem da concessão de empréstimos a particulares, para o que solicitou o envio de documentação vária, que aquela remeteu para a morada referida no anúncio; 15. Em 20 de Maio, EE recebeu das arguidas o contrato junto por cópia a fis. 10 e 11, e que aqui se dá integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais, em que aparece como representante da sociedade "........." arguida BB, contrato esse que aquela assinou e devolveu, conjuntamente com um cheque de trinta mil escudos (30.000$00) - € 150, a título de custo do processo, conforme solicitado pelas arguidas BB e CC; 16. E na sequência do contacto telefónico, no dia 20 de Junho de 2002, aquela EE dirigiu-se à Rua Luciano Cordeiro, n°...., Lisboa, onde foi atendida pelo arguido AA, o qual a informa que com os documentos que enviou - cópia do IRS e do recibo de vencimento - não conseguia qualquer credito; 17. Pelo que lhe apresenta a fotocópia da factura da "EDP" junta a fis. 72, de 29 de Abril de 2002, com um valor a pagar na quantia de €57, 92; a fotocópia do recibo de vencimento de fis. 73, em que aparece como colaboradora da empresa ".........", de acordo com a qual em Maio de 2002 auferira um vencimento líquido de € 1.178,67; 18. Fotocópias essas que o arguido forjara, através da montagem de fotocópias e digitalização de documentos, com posterior alteração de dados, em data não determinada, mas que terá decorrido entre 20 de Maio e 20 de Junho de 2002; 19. Pelo que, face a essa viciação, a EE se recusou assinar a proposta de crédito apresentada pelo arguido, junta a fis. 75 e que aqui se dá integralmente por reproduzida para todos os efeitos legais, a remeter à "Crédito .........", com os dados constantes dos documentos de fis. 72 e 73 acima citados; 20. Desistindo assim do pedido formulado; 21. Na sequência do anúncio que vem sendo referido, em data não determinada do mês de Agosto de 2002, FF, por si e em representação da sua mulher, GG, ligou para o número de contacto aí indicado, sendo atendido por uma das arguidas que confirmou intermediarem contratos de crédito, mediante uma comissão de 20% sobre o montante financiado, no que aquele concordou; logo telefonicamente forneceu às arguidas os seus dados identificativos e de quem, posteriormente, recebeu uma proposta de crédito para que fosse por si e pela sua mulher assinada; 23. Após o que se deveriam deslocar a uma outra morada, onde tratariam com o "Dr. AA", o arguido, de todo o processo; 24. Pelo que, em 6 de Setembro de 2002, FF deslocou-se ao escritório acima mencionado, na Rua Luciano Cordeiro, onde entregou ao AA a proposta de crédito (com a ".......'), que recebera e conjuntamente com a sua mulher assinara e assinou ainda o contrato de Mediação, junto por cópia a fis. 212, no qual a arguida BB figura em representação da "........"; 25. Tendo também entregue ao arguido o cheque junto por cópia a fis. 214, na quantia de quatrocentos euros (€ 400), relativo à comissão dos arguidos, que o arguido AA cobrou e recebeu; 26. O contrato de Credito, junto a fis. ...., foi então preenchido por pessoa cuja identidade se não logrou apurar mas segundo orientações do arguido AA, tendo em vista o empréstimo pretendido no valor de dois mil euros (€ 2000); 27. Nomeadamente aí se fazendo referência ao facto de FF ter nascido a 5.5.1941; 28. Contrato esse que o AA, em 9 de Setembro de 2002, remeteu à .......", conjuntamente com fotocópia do BI dos requerentes, nomeadamente do FF, junta a fis. 177 e a fotocópia da factura da EDP de fis. 178; 29. Fotocópias estas que, a partir do original do BI e de uma factura da EDP, e por meio de montagem de fotocópias e de digitalização de documentos efectuadas pelo arguido AA, entre os dias 6 e 9 de Setembro de 2002, continham dados alterados em relação aos originais, assim, no que respeita à data de nascimento, 5.5 .1941 (quando a verdadeira é 5.5.1935), quanto ao BI, e no que diz respeito à factura da "EDP", no que concerne ao montante a pagar, € 34,77, código de referência e identificação do cliente; 30. Tais fotocópias aparentavam ser efectivamente fotocópias dos originais e não os próprios originais, como resulta do teor de fis. 177 e 178 dos autos; 31. Em Setembro de 2002, HH, através de uma pessoa que não foi possível identificar, teve conhecimento de que os arguidos tratavam de empréstimos a particulares, pelo que, entregou às arguidas documentos vários e assinou, em branco, o Contrato de Credito junto a fls. 186, que, em data não determinada do mês de Setembro de 2002, entregou ao arguido; 32. O qual os preencheu com os dados ali constantes, nomeadamente os relativos ao vencimento que a HH auferiria; 33. Contrato esse que o arguido remeteu, nesses dia e mês, à "........", conjuntamente com a fotocópia do recibo de vencimento de fls. 188, de acordo com o qual a referida HH auferia um vencimento de € 912,48, como Coordenadora de Vendas, na "..........."; 34. Bem como remeteu fotocópia de uma factura da " EDP", junta a fls. ..., de acordo com a qual em 30.8.2002, tinha um débito para com esta empresa de €34; 35. Documentos esses forjados pelo arguido, da forma acima descrita e que aparentavam ser fotocópias dos originais; 36. Por fim, em Setembro de 2002, a arguida BB decidiu solicitar um financiamento, pelo que no dia 1 de Setembro de 2002, nos escritórios do arguido AA, preencheu o contrato de Credito junto a fls. 169, da qual fez constar ser "Auxiliar Técnica de Educação, na E.S Marquesa de Alorna", onde auferia um vencimento líquido de € 1.432,53, no que respeita ao mês de Julho de 2002 e de € 840, 52, no que concerne ao mês de Agosto de 2002; 37. Para o que logo então o remeteu à "........" conjuntamente com fotocópias dos recibos de vencimento de fls. ...., da factura da "EDP" de fls. ... e da Declaração de IRS" referente ao ano de 2001, com o carimbo da Repartição de Finanças de Santarém; onde supostamente foi entregue; 38. Estas fotocópias foram forjadas pelo arguido AA, no que concerne a todos os dados constantes dos recibos de vencimento, inclusive o seu cabeçalho - Ministério do Educação - Escola E.B.2, 3 Marquesa de Alorna -, o valor da factura da "EDP", ..,.. e número de referência a utilizar, bem como todos os dados constante da Declaração de IRS, o que o arguido AA fez do modo supra mencionado, ou seja, através da montagem de fotocópias e digitalização de documentos, com a posterior alteração de dados; 39. E em data não determinada, mas que terá decorrido igualmente no decurso daquele mês de Setembro de 2002; 40. Contrato este, constante de fls. 169 e que no mais se dá aqui integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais, que, como todos os anteriores, foi deferido pela "..........."; 41. Sabia o arguido intermediar a particulares os serviços disponibilizados pela "........" à revelia e sem o consentimento e conhecimento desta empresa, que privilegia, como sabia, o contacto directo com o cliente; 42. E que os dados que fazia constar dos Contratos de Créditos, bem como as fotocópias dos documentos que os acompanhavam - fotocópias de B1.s, de recibos de vencimento, de facturas da "EDP" e declarações de "IRS" - eram imprescindíveis para a empresa poder formular um juízo quanto à viabilidade do financiamento solicitado, por, nomeadamente, serem demonstrativos da situação económico-financeira dos requerentes; 43. Pelo que ao forjar e utilizar as supra mencionadas fotocópias de facturas da "EDP", recibos de vencimento, BI e declarações de IRS, sabia o arguido AA e a arguida BB que colaboravam na viciação da vontade da ....... que celebrava aqueles contratos no pressuposto errado quanto às condições económicas e pessoais dos particulares com quem os celebrava; 44. Nas circunstâncias descritas de 36 a 40, actuaram os arguidos AA e BB concertadamente e em conjugação de esforços, tendo em vista esta a obtenção do referido crédito e o arguido auxiliá-la nessa desiderato; 45. Agiram os arguidos AA e BB com a vontade livre e consciente; * A questão em apreço no caso vertente pressupõe uma concretização do bem jurídico protegido no crime de falsificação de documentos e uma interpretação do conceito de documento á luz daquela concretização No que concerne aquela primeira questão é uniforme o entendimento doutrinal no sentido de que o bem jurídico protegido no crime de falsificação de documentos é o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico. Confrontar Helena Moniz Crime de Falsificação de Documentos e Enrique Bacigalupo “Estudios sobre la Parte especial del Derecho Penal “ pag 416 É certo que, para alguns autores, aquele crime assumiria uma a natureza pluriofensiva com duplicação do bem protegido em que coexistiriam a confiança e a segurança das relações jurídicas e, numa outra perspectiva, os interesses específicos que encontram uma garantia na genuinidade e veracidade do documento como meio de prova da situação juridicamente relevante. Porém, importa precisar que as normas sobre a falsificação tutelam a fé pública como instrumental da garantia da situação jurídica compreendida no concreto uso do acto. Sobre este ponto de vista elevar a função documental a bem autónomo supra individual equivale a realizar uma tutela antecipada dos concretos interesses individuais ameaçados com o acto ilícito. Igualmente é exacto que, em consequência da centralização sobre a fé pública como bem nuclear e objecto de tutela penal directa e imediata, os interesses singulares lesados com o uso do documento falsificado são protegidos por via mediata como objecto último de tutela A tese da pluriofensividade colide, em última análise, com a objecção de que nem sempre é possível individualizar os concretos interesses garantidos pelo documento. Assumindo aquela segurança e credibilidade como bem jurídico a proteger dir-se-á, como refere Helena Moniz Código Penal Conimbricense Tomo II pag 607, que não é toda a segurança no tráfico jurídico que se pretende proteger mas apenas a relacionada com os documentos. Assim, acentua-se as duas funções que o documento pode ter:- função de perpetuação que todo o documento tem em relação a uma declaração humana e função de garantia, pois cada autor do documento tem a garantia de que as suas palavras não serão desvirtuadas e apresentar-se-ão tal qual como ele, num certo momento e local, as expôs. Por igual forme se pronunciam Munoz Conde Munoz Conde (Derecho Penal especial pag 625) e Enrique Bacigalupo (Documentos electronicos y delitos de falsedad documental) e Bacigalupo quando acentuam as três funções atribuíveis ao documento : a função de perpetuação referente á manutenção da declaração de vontade num suporte capaz de a fixar no tempo e torna-la cognoscível de pessoas distintas do emissor; a função probatória que permite demonstrar processualmente a existência de uma declaração de vontade do seu emissor e a função de garantia pela qual se garante a imputação do declarado ao autor da declaração. A noção de documento consubstanciada no artigo 255 do Código Penal sofreu a influência de uma evolução e acaba por nos dar um conceito de documento com todas as características que permitem assegurar as funções de perpetuação; probatória e de garantia que são exigidas ao documento enquanto objecto material do crime falsificação de documentos. Documento, para efeitos de direito penal, não é material que corporiza a declaração, mas a própria declaração independentemente do material em que está corporizada; e declaração enquanto representação de um pensamento humano (função de perpetuação). O que permite integrar na noção de documento não só o documento autêntico ou autenticado, direito civil, que têm força probatória plena, mas qualquer outro - escrito, isto em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico - que integre declaração idónea a provar um facto juridicamente relevante (quer tal destino lhe seja dado desde o início - documentos intencionais - quer posteriormente - documentos ocasionais). Trata-se de uma noção bastante mais ampla do que a inscrita no âmbito do direito civil, e que permite já considerar como documento as declarações inscritas através de qualquer novo meio técnico de gravação, ponto é que se trate de uma declaração idónea a provar facto juridicamente relevante (função probatória) e que permita reconhecer o emitente (função de garantia). Documento é, pois, a declaração de um pensamento humano que deverá ser corporizada num objecto que possa constituir meio de prova; só assim, compreendendo que o crime de falsificação de documentos proteja o espaço bem jurídico que é a segurança e credibilidade no tráfico jurídico-probatório. Não é relevante que se trate de um documento intencional- que abrange todos os documentos que são criados com o objectivo constituírem um meio de prova num processo - ou se trate de um documento ocasional - documentos que representam uma determinada declaração de vontade, mas que, no momento da sua produção ou elaboração não foram criados com intenção de servirem como meio de prova, embora tal destino lhes viesse a ser dado posteriormente (no âmbito dos documentos intencionais distingue-se entre documentos dispositivos - que contêm uma declaração de vontade, enquanto declaração contratual no sentido de formar, extinguir ou modificar alguma relação jurídica, sendo documentos constitutivos, modificativos ou extintivos de direitos - e documentos testemunhais- o seu conteúdo resume-se ao testemunho de algum facto pelo autor Helena Moniz obra citada pag 678. Trata-se de um conceito aberto e poroso o que permitirá absorver as sucessivas formas comunicacionais que o futuro irá trazer e, em relação aos quais se colocam as mesmas questões de necessidade em termos de tutela Com a crítica de Binding relativa á insegurança que se situa em torno do conceito de documento * Entramos assim no cerne da questão em apreço nos presentes autos e que se prende com a integração da fotocópia no conceito de documento á face do Código Penal. Para Enrique Bacigalupo Obra citada as fotocopias, no mesmo plano de cópias, não permitem conhecer a identidade do emissor, um elemento essencial do documento. Pelo contrário, quando a fotocopia foi certificada ou autenticada como cópia fiel de um documento, o conhecimento do emissor está assegurado e o carácter documental não gera problemas. O Supremo Tribunal Federal Alemão formulou esta tese de maneira precisa: “A fotocópia (…) reproduz unicamente (como imagem) uma declaração corporizada num escrito (…) mas não certifica o seu emissor. Como tal não é possível reconhecer (na fotocópia), sem mais a função de garantia da correcção do conteúdo que basicamente é própria de todo documento”. Para aquele Autor supracitado isso não significa que a fotocópia de um documento, ainda que não seja objecto da acção idónea de uma falsidade documental, não seja um instrumento idóneo para enganar e, de esta maneira, cometer um delito de burla. Mas acrescenta que não se deve esquecer que o delito de falsidade documental constitui, como tipo penal autónomo, uma autonomização da burla e, assim, alterar uma fotocópia não é alterar um documento, ainda que seja a criação de um meio para a comissão de uma burla. Do ponto de vista processual, acrescenta, de qualquer forma, a fotocópia de um documento constitui uma prova válida da existência do documento. Para tanto a fotocópia de um documento falsificado faz prova da falsificação do mesmo ou seja do documento falsificado ainda que constitua a criação de um meio para consumação de um crime de burla. Não totalmente coincidente é a posição de Helena Moniz quando, citando Cramer, refere que a falsificação de uma fotocópia é coisa distinta da falsificação do documento através da fotocópia. Neste segundo caso estamos a utilizar fotocópia como o meio técnico que nos permite a falsificação. O documento, em vez de ser falsificado através de impressão de um novo documento, é fotocopiado criando-se um documento distinto do original. Ou seja, a alteração do conteúdo de um documento, quer esta alteração se tenha verificado, porque o agente imprimiu um novo documento (com conteúdo distinto do documento original), ou porque o agente o fotocopiou, é irrelevante para efeitos penais - na verdade, em todos os casos trata-se de uma falsificação material do documento. Na verdade, a utilização da fotocópia é a utilização do documento falsificado e neste sentido deve ser subsumível ao crime de falsificação de documentos; sendo, no entanto, necessário que a fotocópia tenha sido produzida a partir do original e que tenha a aparência do original. Situação distinta é a falsificação da fotocópia. Aqui não foi o documento original falsificado foi sim a fotocópia. Uma vez que o documento para efeitos de direito penal é a declaração e não o objecto ou suporte material da declaração, a simples falsificação da fotocópia, do suporte do documento não constitui falsificação de documentos, pois não se verificou uma falsificação de um documento enquanto declaração. Estamos em crer que esta é a melhor doutrina. Porém, é certo que a mesma serve de substracto teórico á decisão em recurso sem que sejam devidamente aprofundadas todas as sua implicações. Na verdade, e aderindo á posição exposta, é evidente que a falsificação de uma fotocópia não pode integrar um crime de falsificação pois que consubstancia uma declaração corporizada num suporte que não permite reconhecer o seu emitente, e em relação á qual fotocópia se encontram diluídos os interesses de credibilidade e segurança no tráfico jurídico. Situação distinta é aquela em que o próprio acto de produção da fotocópia é, também, instrumento de manipulação do original fotocopiado cujo conteúdo é alterado por essa forma. Tal alteração pode ser efectuada através da montagem do texto original, ou da sua digitalização, mas constitui sempre uma alteração do documento original que está a ser fotocopiado e, como tal, inscreve-se nos elementos constitutivos do crime de falsificação previsto no artigo 256 nº1 alínea a) do Código Penal. Fundamentalmente, a falsificação produz-se no acto de fotocopiar ou digitalizar um documento e, através das alterações então produzidas, atingir as funções de garantia e prova do documento original que está a ser fotocopiado. De acordo com a decisão recorrida é essa a situação existente no caso vertente o que, nos termos descritos, faz incorrer a conduta dos arguidos no referido ilicito . * Concluindo pela forma como se concluiu não se encontra esgotada a matéria do presente recurso. Na verdade afirma-se na fundamentação constante da matéria de facto que “ E que os dados que fazia constar dos Contratos de Créditos, bem como as fotocópias dos documentos que os acompanhavam - fotocópias de B1.s, de recibos de vencimento, de facturas da "EDP" e declarações de "IRS" - eram imprescindíveis para a empresa poder formular um juízo quanto à viabilidade do financiamento solicitado, por, nomeadamente, serem demonstrativos da situação económico-financeira dos requerentes; Pelo que ao forjar e utilizar as supra mencionadas fotocópias de facturas da "EDP", recibos de vencimento, BI e declarações de IRS, sabia o arguido AA e a arguida BB que colaboravam na viciação da vontade da ...... que celebrava aqueles contratos no pressuposto errado quanto às condições económicas e pessoais dos particulares com quem os celebrava” Conclui depois a decisão recorrida que os arguidos não cometeram qualquer crime de burla porque não se provou que a sua conduta visasse a prática pela ....... de actos que lhe provocassem prejuízo patrimonial sendo certo que os contratos celebrados têm vindo a ser cumpridos. Pensamos, porém, que a lógica da decisão recorrida no que concerne a este segmento ignora realidades económicas que devem ser tomadas em atenção. Na verdade, estamos a falar de um contrato de concessão de crédito em relação ao qual o cumprimento ou incumprimento actual ou futuro é totalmente distinto da decisão da concessão de crédito. Esta é uma decisão de natureza económica que assenta em parâmetros próprios e nomeadamente na análise do risco de crédito. O risco de crédito é algo que está presente no quotidiano de qualquer empresa, seja uma empresa da área financeira, seja uma empresa de serviços, comercial ou industrial. No entanto, tendo em conta o negócio ou a área de actividade em que se inserem, as empresas procedem a análises mais ou menos cuidadas do risco de crédito dos seus clientes. Desde o estabelecimento comercial de venda ao público que habitualmente não procede a qualquer análise, até às instituições financeiras que procedem a análises bastante exaustivas, existe uma infinidade de casos. A concessão de crédito traduz-se na disponibilização de um valor presente mediante uma promessa de pagamento desse mesmo valor no futuro, que pressupõe a confiança na solvabilidade do devedor, isto é, de que o mesmo irá honrar os seus compromissos nas datas acordadas previamente. Por outras palavras, o risco de crédito é o risco de perda em que se incorre quando há incapacidade de uma contrapartida numa operação de concessão de crédito. Este risco está intimamente relacionado com factores internos e externos à empresa que podem prejudicar o pagamento do montante de crédito concedido, como iremos ver adiante. Para determinar o risco de crédito de um cliente com maior ou menor exactidão, pode proceder-se a avaliações do risco. Estas avaliações podem ser mais ou menos detalhadas e cuidadas de acordo com a actividade em questão e o peso do crédito concedido no total da facturação da empresa. O risco de crédito dos clientes varia, consoante o tipo de cliente, o tipo de produtos e serviços oferecidos, o montante em causa e o tipo de entidade que concede o crédito. A avaliação do risco de crédito é reflexo da multiplicidade, qualidade e origem das informações disponíveis para o analista do crédito. A análise e administração do risco baseiam-se no processamento das informações sobre o proponente de crédito. Ao prestar-se informações incorrectas informando sobre indícios de uma situação de estabilidade financeira que, na realidade, não existe a primeira conclusão que se impõe é de que a entidade cedente do crédito tomou uma decisão com base em pressupostos inexistentes que a levaram a ignorar um risco de rédito que na realidade existia. Tal circunstância tem uma dimensão financeira negativa na esfera patrimonial da empresa que é absolutamente indiferente ao facto de o contrato estar, ou não, a ser cumprido (não será assim se a cedente do crédito souber da real situação dos cessionários) A decisão recorrida omitiu apreciação sobre a existência de prejuízo patrimonial nesta dimensão limitando-se á inferência de que o cumprimento do contrato implica a existência de uma ausência de tal prejuízo. Porém, aquele segmento deveria ter sido apreciado na decisão recorrida e a sua omissão constitui uma nulidade relevante nos termos do artigo 379 do Código de Processo Penal. Tal nulidade é relativa á consideração sobre existência de prejuízo patrimonial em função da decisão de concessão de crédito com base em informação inveridica. Termos em que se decide ordenar a remessa dos autos ao tribunal recorrido para supressão daquela patologia. Sem custas. Lisboa, 20 de Dezembro de 2006 Santos Cabral (relator) Pires Salpico Oliveira Mendes |