Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
97A119
Nº Convencional: JSTJ00031768
Relator: FERNANDES MAGALHÃES
Descritores: EXECUÇÃO HIPOTECÁRIA
EXPURGAÇÃO DE HIPOTECA
Nº do Documento: SJ199704220001191
Data do Acordão: 04/22/1997
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N466 ANO1997 PAG460
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 717/95
Data: 04/24/1996
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR CIV - DIR OBG. DIR PROC CIV - PROC ESP.
Legislação Nacional:
Jurisprudência Nacional:
Sumário : I - Existindo uma hipoteca voluntária sobre um terreno, que depois é edificado, constituindo-se sobre o mesmo uma situação de propriedade horizontal, não podem os proprietários das fracções autónomas, individualmente e sem o acordo do credor hipotecário, em processo executivo, expurgar a hipoteca mediante o pagamento da parcela garantida, que corresponda às permilagens garantidas.
II - Quando a hipoteca tenha sido constituída sobre o prédio global, antes de ele ter sido colocado em propriedade horizontal, a expurgação só pode ser levada a cabo por algum, ou alguns, dos condóminos quando seja satisfeita a totalidade do crédito hipotecário, ou quando eles ofereçam o próprio valor dos seus direitos, salvo acordo prévio ou superveniente em contrário.
III - Para além do seu apoio directo na lei e na ratio legis, esta solução deriva da prevalência dos direito reais, entre si, por antiguidade, e da inoponibilidade do título constitutivo da propriedade horizontal aos titulares de direitos reais anteriormente formados sobre a coisa.
IV - O título constitutivo da propriedade horizontal determina o valor relativo das fracções autónomas; o credor hipotecário não intervém nesse título; assim, a não ser a indivisibilidade, o credor hipotecário, numa eventual expurgação, ficaria sujeito a indicações de valor a ele estranhas, que podem não corresponder ao valor real relativo das fracções e que podem mesmo - em teoria - ter sido congeminados com o fito de defraudar o seu direito.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Na presente execução ordinária veio a Caixa Económica
Montepio Geral executar Sol e Sena - Gabinete Técnico
Imobiliário Internacional e Isaías do Nascimento
Marinho e mulher Ilda dos Reis Paixão Marinho e outro, para pagamento de empréstimos efectuados à 1. executada no valor total de 58000000 escudos e juros.
Prosseguiu tal execução seus termos vindo a ser ordenada (e efectuada) a penhora das fracções "O" e "P"
(e "AI" e "AO") construídas no terreno identificado no n. 3 da petição inicial hipotecado para garantia daquela dívida.
Do despacho que ordenou a penhora agravaram o Isaías e sua mulher Ilda, sem êxito, pelo que agravaram agora para este Supremo Tribunal.
Formulam eles nas suas alegações as seguintes conclusões: a) Os agravantes são proprietários das fracções "O" e
"P" do prédio urbano indicado nos autos descrito na 2.
Secção, Cons. Reg. Predial, de Cascais, 2., sob o n.
01033. b) A agravada por carta de 3 de Outubro de 1990 apresentou os seguintes valores de distrate: fracção
"O" - 6570000 escudos e fracção "P" 8220000 escudos. c) Em carta dirigida à 1. executada de 17 de Fevereiro de 1987 a agravada tinha informado que os valores do distrate das fracções eram: fracção "O" - 2900000 escudos e fracção "P" - 3600000 escudos. d) Através das ditas cartas a agravada manifesta inequivocamente a admissão da indivisibilidade da hipoteca que incide sobre o prédio. e) O prédio dos autos foi constituído em propriedade horizontal em 37 fracções autónomas por escritura registada na respectiva conservatória. f) A permilagem das referidas fracções "O" e "P" é, respectivamente 23 e 39, isto é, o total de 62
(sessenta e dois por mil). g) As agravantes pretendem fazer cessar a hipoteca sobre as suas fracções, pagando a dívida garantida pela hipoteca pelos valores de distrate avançados pela exequente. h) As agravantes pretendem fazer cessar a hipoteca assim, pelo que deve o despacho que ordenou a penhora, fixar a quantia exequenda pelas 37 fracções oneradas com as hipotecas registadas a favor da agravada, proporcionalmente à permilagem de cada fracção. i) O despacho recorrido violou os artigos 720 do Código
Civil e 916 do Código de Processo Civil. j) Termos em que deve ser provido o agravo, revogando-se o despacho que ordenou a penhora, e substituindo-o por outro que ordene a penhora das fracções dos agravantes com base nos valores de distrate avançados pela agravada, ou, em alternativa, com base no valor relativo que se obtém mediante a permilagem de 62/1000.
Houve contra alegação do recorrido, que defende o decidido no acórdão da Relação.
Corridos os vistos legais, cumpre agora proferir decisão.
Delimitado como está o objecto do recurso pelas conclusões das alegações dos recorrentes, começaremos por dizer que a questão fulcral e única a resolver é a de saber se existindo uma hipoteca voluntária sobre um terreno, que depois é edificado, constituindo sobre o mesmo uma situação de propriedade horizontal, podem os titulares das fracções autónomas, individualmente e sem o acordo do credor hipotecário, e em processo executivo, expurgar a hipoteca mediante o pagamento da parcela garantida, que corresponda às permilagens garantidas.
Ora entendemos que não, tal como foi decidido na 1. instância e no acórdão recorrido.
Com efeito, a hipoteca em causa foi constituída sobre um terreno, no qual se encontrava em construção um edifício, pelo que uma vez construído este e constituído o mesmo em propriedade horizontal, a hipoteca alargou-se àquele e a cada uma das suas fracções pela totalidade do crédito garantido visto que não se mostra dos autos ter havido convenção em contrário).
Assim se diz, no Acórdão deste Supremo Tribunal de 21 de Setembro de 1993, in C.J., Acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça, ano I, tomo III, página 15, que decidiu:
1 - "Constituída hipoteca sobre prédio, depois colocado em propriedade horizontal, os condóminos podem expurgá-las relativamente às fracções que lhes pertencem.
2 - Expurgadas uma ou mais fracções, a hipoteca mantém-se indivisível sobre as restantes.
3 - E se alguma destas vier a ser penhorada, o credor hipotecário pode reclamar, na execução, todo o crédito que ainda subsista".
Poder-se-á dizer, em linguagem técnica, que o problema que se põe equivale a perguntar pela vigência, pela extensão e pelas consequências, no Direito positivo português, do denominado "princípio da indivisibilidade da hipoteca, como o referem os Professores: Oliveira
Ascensão e Menezes Cordeiro, in Expurgação de Hipoteca,
C.J. ano XI, 1986, 5, páginas 36 e seguintes?.
Quanto a este princípio dispõe o artigo 696 do Código
Civil, que, salvo convenção em contrário a hipoteca é indivisível, subsistindo por inteiro sobre cada uma das coisas oneradas e sobre cada uma das partes que a constituam, ainda que a coisa ou o crédito seja dividido ou este se encontre parcialmente satisfeito.
Este preceito legal mostra que o dito princípio não é um imperativo da lei, podendo, assim, a indivisibilidade da garantia ser afastada por convenção das partes em contrário, coisa que não sucedeu no caso
"sub judice").
A regra da indivisibilidade (da hipoteca) desdobra-se num duplo aspecto:
- Por um lado, se a hipoteca recair sobre dois ou mais prédios, homogéneos, a garantia incide por inteiro sobre cada um deles e não apenas fragmentariamente, em proporção ao valor de cada um deles.
- Por outro lado, se o crédito garantido se fraccionar, por exemplo, através da sua cessão parcial a um ou mais cessionários, qualquer dos credores goza da faculdade de executar o seu crédito, por inteiro sobre o imóvel ou os imóveis que constituam objecto da garantia
(Professor A. Varela, Obrigações em Geral, volume II,
4. edição, 1990, páginas? 539 e 540).
O citado artigo 696 do Código Civil veio, assim, consagrar, em toda a sua extensão, a referida regra de indivisibilidade da hipoteca, em três planos diferentes:
- determinou a subsistência da hipoteca, sobre cada uma das coisas oneradas, quando, como é natural, ela se haja, "ab initio", constituído sobre um objecto múltiplo: é a hipoteca "solidária" do Direito alemão;
- determinou a subsistência da hipoteca, por inteiro, sobre cada uma das novas coisas resultantes da divisão de um bem inicial hipotecado ou sobre cada uma das partes de coisa autonomizadas a partir de um prédio, também anteriormente hipotecado: é a indivisibilidade romanística, firme no brocardo de Dumonlin;
- determinou a subsistência da hipoteca, por inteiro, em prol de cada um dos credores investidos, mercê da divisão de um crédito anterior.
E no que concerne à indivisibilidade da hipoteca no caso de divisão superveniente do bem hipotecado, por forma a resultarem novas coisas ou, simplesmente, partes de coisa autonomizadas - hipótese mais directamente em causa no caso "sub judice" - a solução legal revela-se de particular incisividade.
Aliás, desde sempre se teve por claro que, na divisão da coisa onerada, a hipoteca subsiste, por inteiro, sobre cada uma das parcelas autonomizadas: o credor hipotecário pode, pois, executar qualquer delas, pela totalidade do valor em dívida coberto pela garantia
(cfr. Professor Vaz Serra, B.M.J. 62 e 63).
Razões substanciais e razões práticas levam a tal caminho, sendo de salientar neste último aspecto que a não indivisibilidade prejudicaria o credor.
Com efeito, podendo ele à partida, prosseguir o seu direito com uma acção judicial, ele iria confrontar-se, quando a sua posição se cindisse ao sabor das suas circunstâncias (e no caso presente houve divisões e mutações várias...), com a necessidade de interpôr um número indeterminado de acções.
Para além disso, nem sempre na divisão de um bem o seu valor se mantém, isto é, nem sempre a soma das parcelas corresponde ao valor inicial, podendo ser superior ou inferior, havendo neste último caso um prejuízo para o credor.
Em suma, uma correcta distribuição de risco requer, portanto, a supra referida indivisibilidade de hipoteca.
E assim, e no que importa agora considerar para uma correcta solução do caso "sub judice", constituída com observância dos respectivos requisitos, entre os quais o registo, uma hipoteca sobre um prédio, ela mantém-se, nos termos gerais, quando tal prédio seja edificado. A edificação implica, em rigor, uma modificação no objecto, numa situação a que os diversos direitos reais, pela natureza das coisas, se adaptam, de imediato.
A hipoteca do terreno abarca, pois, o edifício.
Quando o edifício hipotecado passe a uma situação de propriedade horizontal, a hipoteca conserva-se, incidindo sobre os direitos dos diversos condóminos.
E isto porque, no fundo, a conservação da hipoteca em tais termos deriva do princípio basilar do respeito pelos direitos alheios, subjacentes ao brocardo "nemo plus juris in alium transferre potest quam ipse habet": o titular de prédio hipotecado, ao constituir a propriedade horizontal e ao alienar os novos direitos, nada mais pode fazer do que transmitir valores onerados.
Por outro lado, a presença na hipoteca de um registo constitutivo deste defende, da melhor maneira, os interesses dos adquirentes de fracções autónomas oneradas, nos termos acima apontados, como também salientam os Professores Oliveira Ascensão e Menezes
Cordeiro no parecer já citado.
Convém salientar de igual modo o aspecto da expurgação da hipoteca, que só pode ser feita pelo pagamento total da dívida que aquela garante, como se preceitua na alínea a) do artigo 721 do Código Civil, o que poderá constituir pretensão dos agravantes e dos proprietários das 37 fracções autónomas...
Mas isso sempre teria de ser feito pelo processo de expurgação de hipotecas referido nos artigos 998 e seguintes do Código de Processo Civil, em comarca diversa daquela em que correu o presente processo de execução - Cascais e não Lisboa - face ao preceituado nos artigos 73 n. 2 e 103 do Código de Processo Civil, como se salientou no acórdão recorrido.
Pagamento, pois, total para fazer cessar a execução, só podendo ser parcial para o efeito da redução da hipoteca, se o credor hipotecário o aceitar e feito directamente a este, mas nunca por depósito nestes autos, e muito menos fixado neste processo executivo pelo Juiz (cfr. o Acórdão deste Supremo Tribunal de
Justiça de 13 de Abril de 1994, B.M.J. 436/349, que decidiu que a redução da hipoteca, conforme o artigo
720 do Código Civil, só pode ter lugar nas hipotecas legais e judiciais uma vez que só nesta se verifica a indeterminação de bens sobre que incide, e tratando-se de hipoteca voluntária não é admitida em princípio, havendo que ter em conta o princípio consagrado no artigo 696 do Código Civil, ou seja, salvo convenção em contrário, a hipoteca é indivisível, subsistindo por inteiro, sobre cada uma das coisas oneradas e sobre cada uma das partes que as constituam, ainda que o crédito seja dividido ou se encontre parcialmente satisfeito).
Tudo isto significa com relação ao caso "sub judice" que improcedem totalmente as conclusões das alegações dos recorrentes.
Na verdade, não se mostram juntas aos autos as cartas que os recorrentes referem, pelo que as suas três primeiras conclusões são injustificadas.
Quanto às restantes já dissemos o suficiente, apenas sendo de dar a nota breve de que não se verificam, nem os recorrentes a elas se referiram, as excepções prevista no citado artigo 720 do Código Civil, por forma atempada.
Em conclusão resumida:
1 - Quando a hipoteca tenha sido constituída sobre o prédio global, antes de ele ter sido colocado em propriedade horizontal, a expurgação só pode ser levada a cabo por algum - ou alguns - dos condóminos quando seja satisfeita a totalidade do crédito hipotecário ou quando eles ofereçam o próprio valor dos seus direitos; fica ressalvada a hipótese de acordo, prévio ou superveniente em contrário.
2 - Para além do seu apoio directo na lei e na "ratio legis", esta solução deriva da prevalência dos direitos reais, entre si, por antiguidade, e da inoponibilidade do título constitutivo da propriedade horizontal aos titulares de direitos reais anteriormente formados sobre a coisa.
3 - Por fim, o título constitutivo da propriedade horizontal determina o valor relativo das fracções autónomas; o credor hipotecário não intervém nesse título; assim, a não ser a indivisibilidade, o credor hipotecário, numa eventual expurgação, ficaria sujeito a indicações de valor a ele estranhas, que podem não corresponder ao valor real relativo das fracções e que podem mesmo - em teoria - ter sido congeminados com o fito de defraudar o seu direito.
Decisão:
1 - Nega-se provimento ao agravo.
2 - Condenam-se os recorrentes nas custas.
Lisboa, 22 de Abril de 1997.
Fernandes Magalhães,
Tomé de Carvalho,
Silva Paixão.