Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1.ª SECÇÃO | ||
Relator: | PEDRO DE LIMA GONÇALVES | ||
Descritores: | INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA IMPUGNAÇÃO PERÍODO LEGAL DA CONCEÇÃO ÓNUS DA PROVA RÉU RECUSA EXAME MÉDICO CULPA PROVA | ||
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Nº do Documento: | SJ | ||
Data do Acordão: | 03/28/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGAR A REVISTA | ||
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Sumário : | I. O n.º2 do artigo 344.º do Código Civil estabelece que há inversão do ónus da prova quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sendo que, no que respeita à recusa da parte em se submeter a exame hematológico nas ações de reconhecimento de paternidade, dar-se-á a inversão do ónus da prova quando o exame for o único meio de provar a filiação biológica e a recusa implique a impossibilidade de o autor fazer essa prova. II. Perante a inversão do ónus da prova, competia ao Réu provar que a Autora não é fruto de relações de sexo entre o Réu e a mãe da Autora e que esta não é sua filha, o que o Réu não conseguiu provar, porquanto, como consta do facto provado, não se provou se o relacionamento sexual entre o Réu e a mãe da Autora terminou antes do período legal da conceção. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I. Relatório 1. AA, menor, judicialmente representada pela sua progenitora BB, propôs a presente ação de investigação de paternidade contra CC, pedindo que o Tribunal declare que a Autora é filha do Réu e que ordene a retificação do registo de nascimento quanto à menção da paternidade. Alega, em síntese, que: - no âmbito do processo n.° 2404/18...., foi proferida sentença declarando que DD não é o pai da menor AA e que o pai da menor é CC. 2. O Réu veio contestar, concluindo pela improcedência da ação. Alega que: - não existe qualquer possibilidade de ser o pai da menor AA, uma vez que, não obstante ter tido, a partir de 2005, um relacionamento com a mãe da Autora, tal relação terminou cerca de um ano antes do nascimento da menor (meados de 2011), não mais havendo qualquer tipo de contacto entre o Réu e a mãe da Autora dentro do período legal de conceção, o que demonstra a evidente impossibilidade de ser o Réu o pai da autora. Mais refere que a relação entre a mãe da Autora e o Réu era conturbada pelo facto de aquela manter, de forma habitual, relações sexuais com outros homens durante o período em que durou aquela relação. 3. Foi realizada audiência final, vindo ser proferida sentença cujo dispositivo é o seguinte: "Pelo supra exposto, julgo procedente, por provada, a presente ação e, em consequência, declaro que o réu CC é pai biológico da autora AA, nascida em .../.../2012, ordenando consequentemente o averbamento da paternidade e da avoenga paterna no assento de nascimento da menor.” 4. Inconformado com esta decisão, o Réu interpôs recurso de apelação. 5. O Tribunal da Relação de Évora veio a julgar o recurso improcedente, confirmando a sentença recorrida. 6. Novamente inconformado, a Autora veio interpor recurso de revista excecional, invocando o disposto na alínea a) do n.º1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil, recurso de revista que foi admitido pela Formação de Juízes a que alude o n.º3 do artigo 672.º do Código de Processo Civil, formulando as seguintes (transcritas) conclusões: A - Nos presentes autos está em causa uma questão que, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do Direito a apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça. B - A questão que se solicita apreciação nos presentes autos consiste em saber se, numa ação de investigação de paternidade se pode estabelecer a presunção legal de filiação constante da alínea e) do n.º 1 do artigo 1871.º do Código Civil, assente numa inversão do ónus da prova, sem que tenha havido uma recusa culposa do investigado em realizar um teste de ADN. C - A apreciação da questão suscitada no presente recurso é absolutamente essencial para uma melhor aplicação do Direito, sob pena de se abrir um precedente, capaz de abalar de forma drástica a certeza e a segurança jurídica, mormente, no que à inversão do ónus da prova e à aplicação da presunção de paternidade diz respeito. D - A interpretação e aplicação da lei constante do Douto Acórdão recorrido reveste natureza invasiva e violadora de diversos direitos fundamentais, em termos de se justificar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça para evitar dissonâncias interpretativas a por em causa a boa aplicação do Direito. E - Os contornos da apreciação da verificação de uma situação de inversão do ónus da prova para efeitos da aplicação da presunção de filiação constante da alínea e) do n.º 1 do artigo 1871.º do Código Civil com base na inversão do ónus da prova fundamentada num comportamento notoriamente não culposo, nos moldes que foram efetuados no Acórdão recorrido, assume particular relevância social. F - Essa relevância social existe por se tratar de uma matéria com repercussão de amplo espectro, e apta a causar alarme e controvérsia, por conexão com os valores socioculturais dominantes, podendo colocar em causa a eficácia do direito e/ou criar dúvidas sobre a sua credibilidade, quer na formulação legal, quer na aplicação casuística. G - Esta matéria vai muito para além dos interesses individuais dos sujeitos processuais, revestindo contornos de abrangência geral e comunitária, em que existe um interesse da comunidade que ultrapassa a referida dimensão das partes aqui em querela (art. 672.º n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil). H - A questão que integra o objeto do presente recurso é suscetível de gerar colisão com os valores sócio culturais dominantes. I - A prova produzida e dada como assente pelo Tribunal de 1ª Instância nos autos é insuficiente para determinar a procedência da presente ação, impondo-se outro julgamento da matéria de direito. J - Não se logrou provar nos autos, que o réu teve relações sexuais de cópula completa com a autora durante o período legal de conceção. K - Não se logrou provar nos autos que o recorrente se tenha recusado de forma ilegítima e culposa realizar o teste de ADN. L - O recorrente, e qualquer outro cidadão, não pode andar ao sabor do vento e da vontade de qualquer pessoa que arbitrariamente vai indicando quem lhe aprouver para realizar teste de ADN. M - A autora mantinha relações sexuais com outros homens, e no processo principal onde os autos correm por apenso constata-se que a menor até tinha, à data da ação, outro pai. N - Tudo demonstrativo que a própria autora não sabe quem é o pai da menor, e que pode andar de ação em ação a melindrar e aborrecer diversos intervenientes, até encontrar o pai da menor. O - O réu a aceitar fazer tal exame de ADN, que certamente daria negativo para a paternidade, estaria a dar azo que logo de seguida a autora entrasse novo processo contra outro homem. P - E assim se ia prosseguindo até encontrar o pai da menor, em prejuízo da criança que é quem menos culpa tem no processado, e da própria imagem dos tribunais, na vertente da certeza e da segurança jurídica – e os tribunais não se podem sujeitar a tal. Q - A recusa não foi ilegítima ou culposa – foi apenas o réu a defender os seus direitos. R - O tribunal a quo ao decidir desta forma abriu um grave precedente que permite que qualquer pessoa inicie processos de paternidade e obrigue quem bem entender, e sem fundamento, a fazer o exame de ADN – tudo com o claro objetivo de aborrecer quem lhe aprouver. S - Não se pode ignorar todos os malefícios e repercussões que um exame deste jaez provoca na esfera pessoal e familiar de qualquer cidadão – podendo destruir qualquer família apenas por mera má fé de uma qualquer pessoa que decida avançar com este tipo de ação. T - Não é legal, sendo completamente ilusório e desproporcional impor ao recorrente que realize um teste de ADN por mera indicação da autora. U - O recorrente não se recusou ilegitimamente ou de forma culposa realizar teste de ADN, e não pode ser prejudicado nos seus direitos de defesa por esse facto. V - Não estão por isso preenchidos os requisitos legais para operar uma inversão do ónus da prova constantes do n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil, e não logrou a autora provar, tampouco, que manteve relações sexuais com o réu durante o período legal de conceção. W – A recorrida não logrou fazer prova de que manteve relações sexuais com o recorrente durante o período legal de conceção, como o próprio tribunal de 1.ª instância concluiu (“Ora, não se provou qualquer facto que permitisse presumir a paternidade nos termos do artigo 1871.º/1 do Código Civil.”). X - Mas mesmo que assim não fosse, o que apenas por mera cautela de patrocínio se pondera, mas não se concede, havendo inversão do ónus da prova, não podia operar a presunção de paternidade constante do artigo 1871.º, n.º 1, alínea e) do Código Civil. Y – Incumbindo ao réu fazer prova, este logrou demonstrar clara e inequivocamente que não manteve relações sexuais com a autora durante o período legal de conceção. Z - Demonstrou que a autora não é impoluta e isenta de responsabilidade, uma vez que a menor durante vários anos esteve convicta que tinha um pai (conforme resulta do processo original ao qual o processo em causa corre por apenso). AA - E estando o Tribunal a quo obrigado a aplicar a regra constante do artigo 414.° do Código de Processo Civil que estabelece que, em caso de dúvida sobre a realidade de um facto, ela se terá de ser resolvida contra a parte à qual o facto aproveita (ou seja contra o recorrido); BB – Em todo e qualquer caso, a presente ação de investigação da paternidade deveria ter sido julgada pelo Douto Tribunal a quo como improcedente, por não provada e o ora recorrente absolvido do pedido. CC - Não estão reunidos no presente processo os pressupostos da inversão do ónus da prova constantes do n.° 2 do artigo 344.° do Código Civil. DD - O Douto Acórdão recorrido viola o disposto nos artigos 1871.º, n.º 2, 342.º e 344.º, todos do Código Civil, bem como os artigos 412.º, 414.º e 417.º do Código de Processo Civil. EE - Não se aplicando no presente caso a presunção constante da alínea e) do n.º 1 do artigo 1871.º do Código Civil, porque a ora recorrida não logrou fazer prova da ocorrência de relações sexuais com o ora recorrente no período legal da conceção. FF - Não subsistindo quaisquer dúvidas de que o Douto Tribunal a quo errou na interpretação e aplicação do direito, pelo urge revogar o Douto Acórdão recorrido; GG - Devendo ser proferido Acórdão a julgar a ação improcedente por não provada e a absolver o recorrente do pedido, por força do disposto nos referidos normativos; E conclui: “… deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se o Acórdão recorrido, e, em consequência ser a ação julgada improcedente, por não provada, sendo o recorrente absolvido do pedido.” 7. A Recorrida não contra-alegou. 8. Cumpre apreciar e decidir. II. Delimitação do objeto do recurso Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que, dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pelo Réu / ora Recorrente decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões: - a inversão do ónus da prova; - se o Réu demonstrou que não manteve relações sexuais com a mãe da Autora durante o período legal de conceção desta. III. Fundamentação 1. As instâncias deram como provados os seguintes factos: 1.1. No dia 01-07-2012, nasceu a menor AA, na freguesia e Concelho ..., filha da requerente BB e como tal registada no assento de nascimento n.° ...25 do ano de 2012, na Conservatória do Registo Civil .... 1.2. Foi proferida Sentença, no âmbito do processo n.° 2404/18...., que declarou que DD não é o pai da menor AA. 1.3. O réu e a mãe do menor tiveram uma relação que iniciou em 2005 e terminou em 2011, em data não concretamente apurada, tendo havido partilha de cama, mesa e habitação entre ambos, inicialmente em ..., durante data não concretamente apurada, mas não superior a 8 meses, em ..., e, desde 2008 até ao final da relação, em .... 2. E foram julgados como não provados os seguintes factos: 2.1. Durante os primeiros cento e vinte dias dos trezentos que precederam o nascimento da autora, nascida em .../.../2012, o réu e a mãe desta, BB, mantiveram relações sexuais de cópula completa. 2.2. A autora nasceu como consequência de relações sexuais mantidas entre o réu e BB. 2.3. BB mantinha, de forma habitual, relações sexuais com outros homens durante o período em que durou a relação com o réu. 3. A inversão do ónus da prova O Tribunal de 1.ª instância entendeu que, no caso presente, estaríamos em presença de uma situação em que ocorria a inversão do ónus da prova, nos termos do disposto no n.º2 do artigo 344.º do Código Civil, por recusa ilegítima do Réu em realizar o exame, ficando o Réu onerado com a prova de que a Autora não é fruto de relações sexuais entre si e mãe daquela. O Tribunal da Relação de Évora manteve tal entendimento. O Réu veio insurgir-se contra o entendimento das instâncias. Vejamos. O reconhecimento do filho nascido ou concebido fora do matrimónio efetua-se por perfilhação ou decisão judicial em ação de investigação (artigo 1847.º do Código Civil). A paternidade pode ser reconhecida em ação especialmente intentada pelo filho se a maternidade já se achar estabelecida ou for pedido conjuntamente o reconhecimento de uma e outra (artigo 1869.º do Código Civil). No artigo 1871.º, n.º 1, do Código Civil prevêem-se os casos de presunção de paternidade. Por outro lado, nas ações relativas à filiação são admitidas como meios de prova os exames de sangue e quaisquer outros métodos cientificamente comprovados. Nos termos do disposto no n.º1 do artigo 342.º do Código Civil, compete ao autor a prova do factos constitutivo do direito alegado. Contudo, o n.º2 do artigo 344.º do Código Civil prescreve que ´”há também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei de processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações.” E o n.º2 do artigo 417.º do Código de Processo Civil preceitua que “aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º2 do artigo 344.º do Código Civil.” Assim, o n.º2 do artigo 344.º do Código Civil estabelece que há inversão do ónus da prova quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sendo que, no que respeita à recusa da parte em se submeter a exame hematológico nas ações de reconhecimento de paternidade, dar-se-á a inversão do ónus da prova quando o exame for o único meio de provar a filiação biológica e a recusa implique a impossibilidade de o autor fazer essa prova. Lebre de Freitas [“Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, p. 409] entende que se verifica o condicionalismo daquele normativo quando a conduta do recusante impossibilita a prova do facto a provar, a cargo da contraparte, por não ser possível consegui-la com outros meios de prova, já por a lei o impedir, já por concretamente não bastarem para tanto os outros meios produzidos. Se outra prova dos factos em causa não existir ou, existindo, for insuficiente, a recusa pode dar lugar à inversão do ónus da prova, que ficará a cargo da parte não cooperante. No que respeita à recusa da parte em se submeter a exame hematológico nas ações de reconhecimento de paternidade, entende aquele autor que há lugar à inversão do ónus da prova quando o exame for o único meio de provar a filiação biológica e a recusa implique a impossibilidade de o autor fazer essa prova, privando-o da prova directa, por meios científicos (Lebre de Freitas, obra e lugar citados na nota 7 e ainda “A Acção Declarativa Comum”, p., 185). Por sua vez, Lopes do Rego (Comentários do Código de Processo Civil, p. 361) refere que se o exame se configurar como absolutamente essencial à determinação da filiação biológica – implicando consequentemente a recusa do pretenso pai verdadeira impossibilidade de o autor fazer prova da invocada filiação biológica – deverá aplicar-se o preceituado no n.º 2 do art.º 334.º, presumindo-se a paternidade. A recusa ilegítima da parte em se submeter a exame constitui violação do dever de colaboração consagrado no artigo 417º do Código de Processo Civil, não podendo aquela conduta deixar de se considerar culposa. E se a prova produzida nos autos for insuficiente para determinar a procedência da ação, existe impossibilidade de prova imputável àquela conduta da parte. Ou, como se afirma no Acórdão do STJ, de 3/09/2017 (processo n.º737/13.4TBMDL.G1.C1), “pode, pois, concluir-se que se o investigado, com a sua recusa, ilegítima – de se submeter a exame laboratorial susceptível de fornecer prova directa da filiação biológica – inviabiliza a prova desta filiação, deve, por aplicação do art. 344º nº2, inverter-se o ónus da prova, passando a parte que impossibilitou a prova a ficar onerada com a demonstração da não verificação daquele facto”. - cf., no caso das ações de investigação de paternidade, a conduta do réu de recusa injustificada de realização de exame de sangue poder dar azo à inversão do ónus da prova, nos termos do artigo 344.º, n.º2, do Código Civil, Acórdãos do STJ, de 16/10/2012 (processo 194/08) e de 17/05/2016 (processo n.º8928/11 – No caso presente, o Réu recusou-se legitimamente a submeter-se a exame laboratorial? Nos termos do disposto no n.º3 do artigo 417.º do Código de Processo Civil, a recusa é, porém, legítima se a obediência importar: a) Violação da integridade física ou moral das pessoas; b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações; c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º4”. Nestes autos consta: 1. foi proferido despacho de expressa admissão dessa prova (despacho de 1/02/2020); 2. esse despacho de admissão de prova foi objeto de notificação ao Réu por carta de 12/02/2020; 3. o Réu apresentou requerimento em 18/02/2020 no qual expressou a sua discordância com a realização do exame. 4. perante o que foi ordenada a notificação ao Réu de que a sua recusa em efetuar os exames de ADN era ilegítima e constituiria uma violação culposa do dever de cooperação com o tribunal, que caso se recusasse a efetuar os exames periciais de averiguação de paternidade, ocorreria inversão do ónus da prova, nos termos do artigo 344.º, n.º2, do Código Civil e que tal significaria que teria de demonstrar que não é o pai da menor AA, notificação expedida em 19/03/2020; 5. perante a reiteração da recusa em realizar o exame e faltas de comparência ao mesmo, por diversas vezes agendado, foi proferido o despacho de 06.01.2022, no qual se consignou: "Conforme se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-10-2017, relatado por PINTO DE ALMEIDA, proc. n.° 737/13.4TBMDL.G 1 .S1, «se o réu, investigado, com a sua recusa ilegítima - de se submeter a exame laboratorial susceptível de fornecer prova directa da filiação biológica - inviabiliza a prova desta filiação, face à falência da prova indirecta através de testemunhas, deve, por aplicação do art. 344°, n° 2, do CC, inverter-se o ónus da prova, passando aquele, que impossibilitou a prova, a ficar onerado com a demonstração da não verificação daquele facto, isto é, que o autor não é fruto de relações de sexo entre o réu e a mãe do autor e, assim, que este não é filho daquele». Ora, o réu avisado várias vezes, recusou-se sempre, ilegitimamente, a submeter-se a exame laboratorial suscetível de fornecer prova direta da filiação biológica. Face ao exposto, o Tribunal declara a inversão do ónus da prova, nos termos do artigo 344.72 do Código Civil, ficando o réu onerado com a prova de que a autora AA não é fruto de relações de sexo entre o réu e a mãe da autora e, assim, que não é filha daquele." Deste modo, a inversão do ónus da prova ocorreu perante a recusa ilegítima do Réu em realizar o exame, apesar das advertências do Tribunal para as consequências da falta ao exame, e por, dessa forma, impossibilitar a prova de facto que, por outro meio a Autora não conseguiu provar, como resultada da decisão sobre a matéria de facto. E essa recusa não é legítima, porquanto o direito da menor à identidade pessoal, com o estabelecimento da paternidade, sobrepõe-se à violação dos direitos de personalidade do Réu - cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º401/11 – Assim, nenhuma censura merece a decisão do Tribunal da Relação em considerar que, no caso presente, ocorreu a inversão do ónus da prova. 4. Se o Réu demonstrou que não manteve relações sexuais com a mãe da Autora durante o período legal de conceção desta. Dos factos provados: 1.1. No dia 01-07-2012, nasceu a menor AA, na freguesia e Concelho ..., filha da requerente BB e como tal registada no assento de nascimento n.° ...25 do ano de 2012, na Conservatória do Registo Civil .... 1.3. O réu e a mãe do menor tiveram uma relação que iniciou em 2005 e terminou em 2011, em data não concretamente apurada, tendo havido partilha de cama, mesa e habitação entre ambos, inicialmente em ..., durante data não concretamente apurada, mas não superior a 8 meses, em ..., e, desde 2008 até ao final da relação, em ..., temos de concluir, como o faz o Recorrente, que não se pode operar a presunção de paternidade resultante da alínea e) do n.º1 do artigo 1871.º do Código Civil, isto é, a Autora não provou que o seu nascimento é fruto do relacionamento sexual entre a sua mãe e o Recorrente no período legal da conceção, porquanto esse relacionamento sexual ocorreu ainda no ano de 2011, mas não se apurou em que momento desse ano terminou. Como se referiu, perante a inversão do ónus da prova, competia ao Réu provar que a Autora não é fruto de relações de sexo entre o Réu e a mãe da Autora e que esta não é sua filha, o que o Réu não conseguiu provar, porquanto, como consta do facto provado, não se provou se o relacionamento sexual entre o Réu e a mãe da Autora terminou antes do período legal da conceção. Ora, prescreve o artigo 414.º do Código de Processo Civil que a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita. Assim, como refere Lebre de Freitas, “as normas sobre a distribuição do ónus da prova constituem normas de decisão, pois se destinam em primeira linha a possibilitar a decisão no caso de falta de prova” (Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, p. 216), pelo que, atenta a inversão do ónus da prova, e cabendo ao Réu a prova de o nascimento da Autora não ser fruto do relacionamento sexual do Réu com a mãe da Autora, o que o Réu não conseguiu, conduz-nos a que essa falta de prova funciona contra o Réu que estava onerado com a prova desse facto. Ao decidir pela procedência da ação, por o Réu não ter feita a prova desse facto, o Acórdão da Relação não merece censura. Deste modo, o recurso tem de improceder. IV. Decisão Posto o que precede, acorda-se em negar a revista, e, consequentemente, em manter o Acórdão recorrido. Custas pelo Recorrente.
Lisboa, 28 de março de 2023 Pedro de Lima Gonçalves (Relator) Maria João Vaz Tomé António Magalhães |