Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
29/20.2F9LSB.L1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: CARLOS CAMPOS LOBO
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
INTRODUÇÃO FRAUDULENTA NO CONSUMO
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
PRINCÍPIO DA ADESÃO
Data do Acordão: 10/01/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I – Tendo sido o arguido condenado como autor material de um crime de introdução fraudulenta no consumo, p. e p. pelo artigo 96º, nº 1, alínea a), do Regime Geral das Infrações Tributárias, com referência aos artigos 101º, 104º-A, 104º-B, 106º, 108º a 110º do mesmo complexo legal, e nessa sequência condenado no pagamento de determinado montante a título de indemnização cível, não se mostra violado qualquer preceito legal.

II – Na verdade, sendo o pedido cível deduzido com base em facto criminal, e a coberto da normação constante dos artigos 129º do CPenal e 71º do CPPenal, nada há que o possa questionar.

Decisão Texto Integral:

Acordam em Conferência na 3ª Secção Criminal


I – Relatório

1.No processo nº 29/20.2F9LSB da Comarca de Lisboa – Juízo Local Criminal do Barreiro – Juiz 1, onde figura como arguido AA, filho de BB e de CC, natural da ..., onde nasceu a D-M-1963, casado, empresário, residente na Rua 1, foi proferida sentença, em 11 de junho de 2024, com o seguinte dispositivo (para o que aqui releva):

- Condenar o arguido, como autor material de 1 (um) crime de introdução fraudulenta no consumo, previsto e punido pelo artigo 96.º, n.º 1, alínea a), do Regime Geral das Infrações Tributárias, com referência aos artigos 101.º, 104.º-A, 104.º-B, 106.º, 108.º a 110.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;

- Absolver o arguido, da qualificativa de que vinha acusado, prevista no artigo 97.º n.º 1, alínea b), do Regime Geral das Infrações Tributárias;

- Determinar a suspensão, nos termos previstos no artigo 50.º do Código Penal e no artigo 14.º do R.G.I.T., da pena de prisão aplicada ao arguido, pelo período de 5 (cinco) anos;

- Condicionar tal suspensão, nos termos previstos no artigo 14.º do R.G.I.T., ao pagamento, pelo arguido, AA, no período de suspensão fixado, da prestação tributária – no valor de € 94.237 (noventa e quatro mil, duzentos e trinta e sete euros) - e acréscimos legais.

2. Inconformado com o decidido, o arguido recorreu para o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, suscitando as seguintes questões:

1. Nulidade da sentença por falta de fundamentação, nos termos do artigo 379º, nº 1, alínea a) e 37º, nºs 2, alínea b) e 3 do CPPenal e artigos 32º e 205º da CRP;

2. Nulidade da “prova pericial” relativa às comunicações realizadas ao telemóvel do arguido, por violação do disposto nos artigos 92º, nº 1 e 166º, nº1 ambos do CPP;

3. Vícios decisórios, nos termos do disposto no artigo 410º, nº 2, alíneas b) e c) do CPPenal;

4. Erro de julgamento – artigo 412º, nº 3 do CPPenal;

5. Nulidade do reconhecimento pessoal;

6. Violação dos princípios in dubio pro reo e da livre apreciação da prova.

3. Por Acórdão datado de 20 de fevereiro de 2025, o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, pronunciando-se sobre as questões supra notadas, concedendo parcial provimento ao recurso, decidiu:

a. alterar a redação dos pontos 1, 4, 5, 6 e 10, fixando:

1. No dia 4 de novembro de 2020, pelas 11 horas e 40 minutos, a viatura de marca e modelo Renault Master, com a matrícula V1, conduzida por DD, foi fiscalizada no decurso de operação de fiscalização realizada pela Unidade de Ação Fiscal da Guarda Nacional Republicana, na Rua 2.

4. O destinatário dos dois volumes e respetivo conteúdo era o arguido AA.

5. Tal mercadoria iria ser transportada no veículo de matrícula V2, marca Renault, modelo Maxility, registado em nome da sociedade R..., Lda”, com sede na Rua 3, da qual o arguido, AA, é gerente.

6. O arguido AA não possuía nenhum documento comercial ou aduaneiro relativamente à aquisição da referida mercadoria, nem documentos que lhe permitisse o seu transporte para, em e de Portugal.

10. O arguido AA, no período temporal que medeia o ano de 2016 e 2020, rececionou tabaco em folha, proveniente do Reino de Espanha, sem efetuar, da mesma forma, o pagamento dos devidos impostos, tendo, em concreto, recepcionado: (…)».

b. julgar improcedente o recurso nos demais segmentos decisórios.

4. Discordando deste decidido, o arguido recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça, questionando o aresto prolatado, retirando das suas motivações, as seguintes conclusões: (transcrição)

1º Vem o presente recurso interposto do douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20 de fevereiro de 2025, que confirmou e manteve a decisão proferida pelo Tribunal de Primeira Instância que condenou o arguido e recorrente:

- Pela prática, como autor material de 1 (um) crime de introdução fraudulenta no consumo, previsto e punido pelo artigo 96.º, n.º 1, alínea a), do Regime Geral das Infrações Tributárias, com referência aos artigos 101.º, 104.º-A, 104.º-B, 106.º, 108.º a 110.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;

- Determinou a suspensão, nos termos previstos no artigo 50.º do Código Penal e no artigo 14.º do R.G.I.T., da pena de prisão aplicada, pelo período de 5 (cinco) anos;

- Condicionou tal suspensão, nos termos previstos no artigo 14.º do R.G.I.T., ao pagamento, pelo recorrente, no período de suspensão fixado, da prestação tributária – no valor de € 94.237 (noventa e quatro mil, duzentos e trinta e sete euros) - e acréscimos legais;

- Declarou perdido, a favor do Estado Português, a carrinha de matrícula V2, marca Renault e modelo Maxility, do telemóvel e do tabaco apreendidos e ordenar a inutilização, sob controlo aduaneiro, deste último, em conformidade com o disposto nos artigos 109.º, número 1, do Código Penal, 19.º e 20.º do R.G.I.T. e 113.º do Código dos Impostos Especiais sobre o Consumo; e

- Julgou parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelo Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, contra o arguido, AA, condenando-o no pagamento do I.E.C. omitido com referência aos anos de 2016, 2017 e 2019, no valor global de € 94.237 (noventa e quatro mil, duzentos e trinta e sete euros), acrescidos dos juros reclamados, e absolvendo-o do demais peticionado, nos termos dos artigos 483.ºe ss. do Código Civil e 12.º, número 4, a contrario, do Código dos Impostos Especiais sobre o Consumo.

2º Todavia, tal acórdão mereceu, e bem, em nosso entender, uma declaração de voto de vencido do Sr. Juiz Desembargador Ivo Rosa, com os fundamentos dela constantes, com os quais se concorda e que, por economia processual, se remete.

3º Com o devido respeito que o douto acórdão recorrido nos merece, verifica-se insuficiência para a decisão da matéria de facto provada que acarreta a falta de elementos que preenchem o tipo legal de crime, porque o arguido foi condenado, e o erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410º, nº 2, alíneas a) e c), do CPP.

4º Não pode o recorrente concordar com a decisão recorrida no que respeita aos pontos 1 (em parte), 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17 e 18 da matéria de facto provada, que havia suscitado no recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.

5º Com efeito, não se provou que era o arguido o destinatário de dois volumes de folha de tabaco, com cerca de 100kg, cada um.

6º Que, posteriormente, seria transportada no veículo automóvel, marca Renault, modelo Maxility, com a matrícula V2, e destinada ao seu armazém.

7º Aprova documental, exame e apreensão dos dados contidos no telemóvel do arguido, conjugada com a prova testemunhal, gravada nas sessões de 19/03, 19/04 e 22/05/2024, não permite que se dê como provados os factos 4 a 18 do acórdão.

8º Ocorrendo, ainda, contradição entre o que se diz no ponto 2.3/Motivação da Decisão de Facto, 4º parágrafo (depoimento das testemunhas EE, FF, GG e HH), com o que é dito no 6º parágrafo (“Mereceram credibilidade (….)”.

9º Nem as mencionadas testemunhas, nem o auto de notícia, a fls. 10/4 dos autos, os documentos de fls. 19 a 20, nem os fotogramas nº s 2 e 4, fls. 21 dos autos comprovam que o destinatário da mercadoria seria o arguido.

10º Ao invés, da prova resulta, que o destinatário está perfeitamente identificado como sendo II.

11º Neste sentido também, especificamente, o depoimento da testemunha EE (constante da sessão de 19/03/2024, entre os minutos 00:00 a 13:04, em particular minutos 2:13, 2:40, 5:15, 5:54/6:08, 7:27, 9:18/20; 9:35, 10:00).

12º Apresentando, por sinal, uma narrativa pouco pormenorizada, com evidentes lacunas e falhas lógicas, referindo que tudo o que sabia fora o arguido que lhe havia transmitido.

13º Por sua vez, o depoimento das testemunhas FF, GG e HH, que não pode ser valorado, por se tratar de conhecimento indireto (constante da sessão de 19/03/2024, minutos 00:00 a 11:09; minuto 6:00; 7:09, minutos 12:24 a 12:28; minuto 13:00, minutos 9:45 a 9:59; e minutos 00:00 a 13:46).

14º Depoimentos também eles pouco pormenorizados e com evidentes lacunas.

15º A testemunha EE relatou no auto que elaborou (auto de notícia de fls. 10/4) que teria sido o arguido a confirmar que os dois volumes, que continha tabaco, eram para si e destinados ao seu armazém (cfr, 2º parágrafo, fls. 12 dos autos).

16º Ora, não é possível considerar como prova relevante e processualmente admissível para a convicção do tribunal o dito pelo arguido aos militares da GNR, aquando da sua fiscalização, através de uma “conversa informal”. Neste sentido, vide Ac. da Relação do Porto de 7/02/2024, proferido no processo nº 182/22.2GCVFR.P1.

17º Pois, nesse momento, aquele já não era um mero suspeito e sem direito ao silêncio, mas antes pessoa com todo os requisitos para ser constituído como arguido com os inerentes direitos e deveres, o que faz com que a prova produzida pelas suas declarações, naquelas circunstâncias e sem estar acompanhado de defensor, não seja válida, sendo, portanto, prova proibida, nos termos da lei (vide, entre outros, Ac. STJ de 11/07/2001 e 12/12/2013).

18º O tribunal recorrido também não deveria ter dado como provada a trasfega de tabaco da carrinha da transportadora para a carrinha do arguido, e para isso basta atentarmos no fotograma nº 8 (fls. 22), para verificarmos que ocorreu uma errada apreciação da prova.

19º Aliás, a sentença refere, “posteriormente, a mercadoria seria transportada no veículo ligeiro de mercadoria, marca Renault, modelo Maxity, de matrícula V2”. (realce nosso).

20º Se seria transportada é porque não chegou a sê-lo!

21º Donde a apreensão da referida viatura, com a matrícula V2, foi ilegal.

22º A apreensão dos dados e comunicações eletrónicas (mensagens) contidos no telemóvel e cartão SIM do arguido foram pesquisadas e apreendidas por decisão do Ministério Público (despachos de 25/10/2021 e 21/02/2022, a fls., conjugado com o relatório do OPC), sendo que a intervenção do juiz de instrução criminal apenas teve lugar numa fase posterior, ou seja, após realizada a pesquisa e a apreensão.

23º Ora, a autorização para a apreensão de mensagens de correio eletrónico ou de outros registos de comunicações de natureza semelhante e o conhecimento em primeira mão, constitui ato da competência exclusiva do Juiz de Instrução Criminal (artigos 16º, nº 3, e 17º da lei nº 109/2009, de 15 de setembro (Lei do Cibercrime), e artigos 179º e 17º, ambos do CPP).

24º Sendo que a inexistência de um despacho prévio do juiz de instrução criminal a autorizar o OPC a proceder à pesquisa e apreensão do conteúdo das mensagens que constavam do telemóvel do arguido, como ocorreu no caso, faz com que estejamos perante uma nulidade expressa que se reconduz ao regime de proibição de prova, por força do artigo 126º nº 3 do CPP.

25º A preterição de reserva do juiz e a inobservância de formalismos legais previstos nos artigos 179.º, 189.º e 190.º do CPP e 17.º da Lei do Cibercrime é cominada com a nulidade e redunda em proibição de prova (artigos 126.º/3 CPP e artigos 32.º/8 e 34.º/1 e 4 CRP).

26º O acórdão recorrido violou, assim, nesta parte, as referidas disposições legais.

27º Face à ilegalidade da prova relativa às mensagens apreendidas no telemóvel do arguido e dada a inexistência de outros elementos de prova, o acórdão recorrido padece de erro notório na apreciação da prova relativamente aos factos provados sob os pontos 10 a 18 da sentença, respeitante aos anos 2016, 2017 e 2019 (artigos 410º, nº 2, al. c), e 432º, nº 1, al. a), ambos do CPP).

28º Nos anos de 2016, 2017 e 2019, em que está em causa a comercialização por parte do arguido de 553 kg de folha de tabaco, inexistiu qualquer apreensão de folha de tabaco ao arguido, inexiste qualquer elemento de prova a demonstrar a comercialização de folha de tabaco por parte do arguido, nem existe qualquer comprovativo de receção de encomendas por parte do arguido provenientes de Espanha, não existe qualquer comprovativo de transferências bancárias ou outros meios de pagamento com origem no arguido.

29º Apenas constam dos autos mensagens no telemóvel, desacompanhadas de outros elementos de prova, das quais não é possível concluir quem é o interlocutor.

30º Não se pode concluir pela quantidade e qualidade da folha de tabaco e imputar isso ao arguido.

31º Nem sequer através do depoimento da testemunha JJ, cujo único conhecimento que tem advém da análise que fez ao conteúdo das mensagens do telemóvel (prova proibida).

32º Ao dar-se como provado realidade diferente, ocorre erro notório na apreciação da matéria de facto e insuficiência dos elementos de prova (artigos 410º, nº 2, al. c), e 432º, nº 1, al. a), ambos do CPP).

33º De qualquer modo, caso assim se não entendesse, estaríamos perante uma situação de imprecisão quanto a quantidade de folha de tabaco e valores monetários envolvidos a qual, ao abrigo do princípio in dubio pro reo, teria de ser resolvida a dúvida a favor do arguido.

34º Quanto às transcrições das comunicações realizadas ao telemóvel do arguido, as mesmas encontram-se redigidas em língua estrangeira, violando-se, assim, o disposto no nº 1 do artigo 92º e nº 1 do artigo 166º, ambos do CPP.

35º Dai advém a nulidade da prova pericial.

36º Perante os factos que deveriam ter sido dados como não provados, o arguido deverá ser absolvido, bem como do montante de € 94.237,00 relativo a IVA e IEC, a título de pedido de indemnização civil.

37º Sendo que “O pedido de indemnização civil deduzido em processo penal tem sempre de ser fundamentado na prática de um crime. Se o arguido for absolvido desse crime, o pedido cível formulado só poderá ser considerado se existir ilícito civil ou responsabilidade fundada no risco (responsabilidade extracontratual).” (Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 02/02/2021, proferido no âmbito do processo nº 10684/18.8T9LSB.L1-5, relator Jorge Gonçalves).

5. Sequentemente, em 2 de abril de 2025, no Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, foi proferido despacho onde (…) uma vez que o disposto na al. a) do n.º 1 do art. 432.º do CPP visa apenas decisões das Relações proferidas em 1.ª instância (ou seja, abrange as decisões proferidas pelas Relações de acordo com o art. 12.º, n.º 3, als. a), c), d) e e) do CPP), não admito o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do art. 400.º, n.º 1, als. e) e f) do CPP.1

6. De tal notificado, o arguido reclamou para este Alto Tribunal que, em pronunciamento de 6 de maio de 2025, manteve (…) a decisão de não admissão do recurso quanto à parte penal (…) e determinou que se (…) admita o recurso para o Supremo Tribunal, mas apenas na parte em que visa o mesmo (…) o reexame da condenação do arguido/demandado ao pagamento da indemnização civil fixada na decisão condenatória.2

7.O Digno Ministério Público, junto do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, não apresentou qualquer resposta.

8. Subidos os autos a este Supremo Tribunal de Justiça, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416º do CPPenal, emitiu competente parecer, defendendo: (transcrição)3

(…)

O recorrente assenta toda a sua argumentação no pressuposto – não verificado – da alteração da matéria de facto.

Tal alteração, a ocorrer, deveria levar à sua absolvição do crime de introdução fraudulenta no consumo e, em consequência, absolvido do pedido cível porque – citamos – “O pedido de indemnização civil deduzido em processo penal tem sempre de ser fundamentado na prática de um crime. Se o arguido for absolvido desse crime, o pedido cível formulado só poderá ser considerado se existir ilícito civil ou responsabilidade fundada no risco (responsabilidade extracontratual).”

(…) não tendo sido admitido o recurso em matéria penal, “por ser irrecorrível, uma vez que o disposto na al. a) do n.º 1 do art. 432.º do CPP visa apenas decisões das Relações proferidas em 1.ª instância (ou seja, abrange as decisões proferidas pelas Relações de acordo com o art. 12.º, n.º 3, als. a), c), d) e e) do CPP” (v. despacho de 02.04.2025, ref.ª ......20), soçobra em absoluto toda a argumentação expendida pelo recorrente, inviabilizando o êxito do recurso.

Assim, somos de parecer que o recurso deve ser julgado improcedente mantendo-se a decisão recorrida.

Não foi apresentada resposta.

9. Efetuado o exame preliminar e colhidos que foram os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1.Questões a decidir

Face ao disposto no artigo 412º do CPPenal, considerando a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19 de outubro de 19954, bem como a doutrina dominante5, o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo da ponderação de questões de conhecimento oficioso que possam emergir6.

Isto posto, e vistas as conclusões do instrumento recursivo trazido pelo arguido recorrente que, em muito, constitui a mera reprodução do apresentado junto do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, e os poderes de cognição deste tribunal, e a dimensão da abrangência recursiva que foi admitida, a única questão que aqui se coloca prende-se com a vertente cível.

2. Apreciação

2.1. O Tribunal recorrido considerou provados e não provados os seguintes factos: (transcrição7)

Matéria de Facto Provada

(…)

1.. No dia 4 de novembro de 2020, pelas 11 horas e 40 minutos, a viatura de marca e modelo Renault Master, com a matrícula V1, conduzida por DD, foi fiscalizada no decurso de operação de fiscalização realizada pela Unidade de Acção Fiscal da Guarda Nacional Republicana, na Rua 28.

2. Nessa decorrência, foi constatado, pelo órgão policial indicado, que aquela viatura transportava dois volumes, com cerca de 100Kg, cada um, de tabaco, provenientes de S..., SL, de ..., Espanha.

3. Tal mercadoria não continha a rotulagem necessária, não tinha a estampilha obrigatória, não cumpria as características de apresentação das marcas, nem continha os dizeres necessários referentes à sua composição e, relativamente, ao tabaco manufaturado, as referências aos malefícios para a saúde.

4. O destinatário dos dois volumes e respectivo conteúdo era o arguido AA9.

5. Tal mercadoria iria ser transportada no veículo de matrícula V2, marca Renault, modelo Maxility, registado em nome da sociedade R..., Lda”, com sede na Rua 3, da qual o arguido, AA, é gerente10.

6. O arguido AA não possuía nenhum documento comercial ou aduaneiro relativamente à aquisição da referida mercadoria, nem documentos que lhe permitisse o seu transporte para, em e de Portugal11.

7. Não havia preenchido a declaração de introdução no consumo, não tinha submetido as mercadorias a apreciação das Autoridades Aduaneiras, e não tinha declarado a entrada dos referidos bens às Autoridades Aduaneiras.

8. Pela entrada em território nacional e detenção de tal mercadoria, eram devidos os seguintes impostos:

Ano 2020

IEC=0,175€ X grama

IEC = 0,175x 200000

IEC = €35.000,00 (trinta e cinco mil euros)

IVA = €35.000€ x 23%, no valor estimado de €8.050,00 (oito mil e cinquenta euros) 9. Não obstante saber que tais impostos eram devidos, o arguido AA não preencheu e, muito menos, entregou a declaração de introdução no consumo da referida mercadoria, não tendo comunicado a sua detenção à Alfândega, Instituição que tem a tutela e o controlo destas operações, nem procedeu à liquidação do Imposto Especial sobre o Tabaco e, muito menos, do IVA..

10. O arguido AA, no período temporal que medeia o ano de 2016 e 2020, rececionou tabaco em folha, proveniente do Reino de Espanha, sem efetuar, da mesma forma, o pagamento dos devidos impostos, tendo, em concreto, recepcionado12:

• no último bimestre de 2016, um total de 60 (sessenta) quilos de folha de tabaco, que conforme Nota de Verificação de Contagem de Direitos remetida pela Autoridade Tributária, corresponde ao valor de imposto especial sobre o consumo (EIC) de €10.140,00 (dez mil cento e quarenta euros) e ao valor estimado de IVA de €2.332,20 (dois mil trezentos e trinta e dois euros e vinte cêntimos), perfazendo o total de prestação tributária em dívida de €12.472,20 (doze mil quatrocentos e setenta e dois euros e vinte cêntimos);

• no ano de 2017, um total de 337 (trezentos e trinta e sete) quilos de folha de tabaco, que conforme Nota de Verificação de Contagem de Direitos remetida pela Autoridade Tributária, corresponde ao valor de imposto especial sobre o consumo (EIC) de €56.953,00 (cinquenta e seis mil novecentos e cinquenta e três euros) e a IVA, no valor estimado de €13.099,19, (treze mil e noventa e nove euros e dezanove cêntimos) perfazendo o total de prestação tributária em dívida de €70.052,19 (setenta mil e cinquenta e dois euros e dezanove cêntimos);

• no ano de 2019, um total de 156 (cento e cinquenta e seis) quilos de folha de tabaco, que conforme Nota de Verificação de Contagem de Direitos remetida pela Autoridade Tributária, corresponde ao valor de imposto especial sobre o consumo (EIC) de €27.144,00 (vinte e sete mil cento e quarenta e quatro euros) e a IVA, no valor estimado de €6.243,12 (seis mil duzentos e quarenta e três euros e doze cêntimos), perfazendo o total de prestação tributária em dívida de €33.387,12 (trinta e três mil trezentos e oitenta e sete euros e doze cêntimos);

11. Jamais preencheu e/ou entregou a declaração de introdução no consumo das mercadorias acimas referidas, nem comunicou a sua detenção à Alfândega, instituição que tem a tutela e o controlo destas operações, nem procedeu à liquidação do Imposto Especial sobre o Tabaco e do IVA.

12. Ao adotar as condutas acima descritas, atuou o arguido AA, em obediência ao mesmo desígnio, tendo procedido à aquisição de tabaco proveniente de Espanha, diligenciando pelo seu transporte para o território nacional e visando a sua comercialização de forma irregular.

13. Sabia que tal atividade tinha que seguir diversas formalidades legais, no nosso território nacional, e que estava sujeita ao pagamento de impostos e contribuições.

14. Mais sabia o arguido, AA, que, ao proceder nos termos descritos, não comunicando a entrada da referida mercadoria em Portugal e não declarando a sua introdução no consumo, não cumpria a lei, o que visou e conseguiu.

15. Tinha também o arguido, AA, consciência de que tais mercadorias (Tabaco), tinham de ser transportadas com documentos relacionados com a aquisição, comercialização e transporte, nomeadamente, documentos que comprovassem a sua legal produção e aquisição.

16. Incumpriu, com tal atuação, as formalidades legais e aduaneiras, visando furtar-se ao pagamento das respetivas imposições aduaneiras e fiscais, o que quis e fez, obtendo, consequentemente, proveitos económicos que sabia não lhes ser devidos, com prejuízo para o erário público nacional, por via da não cobrança dos impostos.

17. Agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, não se inibindo ainda assim de as realizar.

18. Em consequência direta e necessária da atuação do arguido AA, já supra descrita, a Fazenda Nacional não arrecadou as seguintes quantias a título de impostos:

Ano 2016

EIC = €10.140,00 (dez mil cento e quarenta euros)

IVA, no valor estimado de €2.332,20 (dois mil trezentos e trinta e dois euros e vinte cêntimos),

Ano 2017

EIC=€56.953,00 (cinquenta e seis mil novecentos e cinquenta e três euros)

IVA, no valor estimado de €13.099,19, (treze mil e noventa e nove euros e dezanove cêntimos)

Ano 2019

EIC= €27.144,00 (vinte e sete mil cento e quarenta e quatro euros)

IVA, no valor estimado de €6.243,12 (seis mil duzentos e quarenta e três euros e doze cêntimos)

Ano 2020

IEC = €35.000,00 (trinta e cinco mil euros)

IVA, no valor estimado de €8.050,00 (oito mil e cinquenta euros), tudo, no valor global, de €158 961,51 (cento e cinquenta e oito mil e novecentos e sessenta e um euros e cinquenta e um cêntimos), de que, até ao ano de 2020, o arguido, AA, beneficiou e, ainda, deve à Fazenda Nacional.

19. A mercadoria referida em 2 foi apreendida no decurso da acção de fiscalização levada a efeito e mantém-se apreendida à ordem dos presentes autos.

20. AA mora, em casa própria, com a esposa, que trabalha, na sobredita firma de que é sócia e gerente, auferindo cerca de € 1.000 (mil euros) mensais, e dois filhos maiores.

21. Já regista uma condenação pela prática, em 2021, de crime de condução de veículo em estado de embriaguez.

22. Mantém-se de baixa (não remunerada), há cerca de 3 (três) anos, por motivos de saúde.

23. Trabalhou, nas últimas décadas, como empresário no ramo da construção civil, até entrar de baixa.


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Matéria de Facto Não Provada

Inversamente, não ficou demonstrado que o tabaco a que se aludiu tivesse um valor comercial superior a € 100.000 (cem mil euros).

2.2. Das questões a decidir

Anote-se, desde já, que o instrumento recursivo agora trazido pelo arguido Recorrente, apresenta-se, em grande parte, como reprodução da argumentação utilizada no recurso respeitante à decisão proferida em 1ª Instância, e apresentado junto do Venerando do Tribunal da Relação de Lisboa.

Diga-se, também, tal como decorre de todo o atrás narrado, neste momento, apenas há a tratar do matiz cível trazido à discussão, mostrando-se definitivamente consolidado todo o segmento relativo à parte criminal.

E, nesta senda, cumprirá, então, avaliar da bondade do caminho recursivamente trilhado.


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Na tese do arguido recorrente, e como imediatamente transparece das conclusões insertas nos pontos 36 e 37 do seu instrumento recursório, (…) (p)erante os factos que deveriam ter sido dados como não provados, o arguido deverá ser absolvido, bem como do montante de € 94.237,00 relativo a IVA e IEC, a título de pedido de indemnização civil (…) O pedido de indemnização civil deduzido em processo penal tem sempre de ser fundamentado na prática de um crime. Se o arguido for absolvido desse crime, o pedido cível formulado só poderá ser considerado se existir ilícito civil ou responsabilidade fundada no risco (responsabilidade extracontratual).

Ou seja, todo o alicerce em que o arguido se estriba prende-se com a circunstância de inexistindo condenação, o pedido cível deduzido com base em facto criminal, e a coberto da normação constante dos artigos 129º do CPenal e 71º do CPPenal, necessariamente sucumbe.

Tal como imediatamente exulta dos autos, o arguido foi condenado como autor material de um crime de introdução fraudulenta no consumo, p. e p. pelo artigo 96º, nº 1, alínea a), do Regime Geral das Infrações Tributárias, com referência aos artigos 101º, 104º-A, 104º-B, 106º, 108º a 110º do mesmo complexo legal, tendo sido nessa sequência, que se decidiu a procedência, parcial, do pedido de indemnização cível deduzido pelo Digno Mº Pº.

Com efeito, basta atentar no prolatado em 1ª Instância, confirmado pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, onde, a dado passo, se enuncia (…) A fls. 185 e ss. dos autos, o Ministério Público deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, AA, pugnando pela condenação do mesmo no pagamento ao Estado Português da quantia global de €158 961,51 (cento e cinquenta e oito mil e novecentos e sessenta e um euros e cinquenta e um cêntimos), correspondente ao valor dos impostos -I.E.C. e I.V.A. - cujo pagamento omitiu, acrescida de juros legais desde a prática dos factos até integral pagamento (…) conforme dispõe o artigo 129.º do Código Penal, é regulada pela lei civil (…) é às disposições do Código Civil – designadamente, aos artigos 483.º e seguintes – que se têm de ir buscar não só os pressupostos da responsabilidade civil, mas também as regras de determinação dos danos a indemnizar (…) o Ministério Público reclama a condenação do arguido, AA, no pagamento do valor global de €158 961,51 (cento e cinquenta e oito mil e novecentos e sessenta e um euros e cinquenta e um cêntimos), correspondente ao valor dos impostos -I.E.C. e I.V.A. - cujo pagamento omitiu, acrescida de juros legais desde a prática dos factos até integral pagamento (…) o arguido, AA, omitiu o pagamento dos impostos devidos por força da introdução, em território nacional, de centenas de quilos de folhas de tabaco que encomendou a fornecedores espanhóis, nos anos de 2016, 2017, 2019 e, ultimamente, no ano de 2020 (…) Procederá (…) o pedido de indemnização civil deduzido, mas, somente, no que tange ao I.E.C. devido por referência aos anos de 2016, 2017 e 2019, no valor global de € 94.237 (noventa e quatro mil, duzentos e trinta e sete euros), acrescido dos juros peticionados, correspondente ao valor de I.E.C. devido com referência a cada um desses anos (…).

Faceando, inexistem quaisquer dúvidas, crê-se, que o pretendido pelo arguido recorrente não tem o menor ancoradouro legal.

III - Dispositivo

Nestes termos, acordam os Juízes da 3ª Secção Criminal deste Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso do arguido AA, confirmando-se a decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.


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Custas pelo arguido / demandado recorrente – artigos 527º do CPCivil e 6º, nº 2 e 7º, nº 2, por referência à Tabela I Anexa, do RCP.

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O Acórdão foi processado em computador e elaborado e revisto integralmente pelo Relator (artigo 94º, nº 2, do CPPenal), sendo assinado pelo próprio e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos.

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Supremo Tribunal de Justiça, 1 de outubro de 2025

Carlos de Campos Lobo (Relator)

José Vaz Carreto (1º Adjunto)

António Augusto Manso (2º Adjunto)

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1. Referência Citius …20.

2. Decisão Proferida no Processo 29/20.2F9LSB.L1-A, Referência Citius ….47.

3. Consigna-se que apenas se transcrevem as partes do texto que constituem todo o posicionamento assumido.

4. Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.

5. SILVA, Germano Marques da Direito Processual Penal Português, vol. 3, 2015, Universidade Católica Editora, p.335; SIMAS SANTOS, Manuel e LEAL-HENRIQUES, Manuel, Recursos Penais, 8ª edição, 2011, Rei dos Livros, p.113.

6. Neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do STJ, de 12/09/2007, proferido no Processo nº 07P2583, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria, disponível em www.dgsi.pt.

7. Consigna-se que o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, procedeu à alteração da factualidade vertida nos pontos 1,4,5,6 e 19, mantendo intacta toda a restante materialidade vinda da 1ª Instância.

8. Facto alterado pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.

9. Facto alterado pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.

10. Facto alterado pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.

11. Facto alterado pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.

12. Facto alterado pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.