Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5ª SECÇÃO | ||
Relator: | HELENA MONIZ | ||
Descritores: | ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS CRIMES SEXUAIS CRIME DE VIOLAÇÃO ABUSO SEXUAL DE PESSOA INCAPAZ DE RESISTÊNCIA TIPO ALTERNATIVO | ||
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Data do Acordão: | 04/14/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Área Temática: | DIREITO PENAL - CRIMES EM ESPECIAL - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL. DIREITO PROCESSUAL PENAL - APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DAS NORMAS DO PROCESSO CIVIL - JULGAMENTO / ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS / ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA / SENTENÇA - RECURSOS / ADMISSIBILIDADE DO RECURSO. | ||
Doutrina: | - Figueiredo Dias, «Crime Preterintencional, causalidade adequada e questão-de-facto», na R.D.E.S., ano XVII (1970), 34 (separata); Direito Processual Penal, lições coligidas por Maria João Antunes, 1988-9, 149 (235). - Jescheck/Weigend, Tratado de Derecho Penal, Granada: Comares, 2002, 285. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 671.º, N.º 3. CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 4.º, 358.º, N.º3, 368.º, 369.º, 380.º, N.º1, AL. B), 400.º, N.º1, AL. F), N.º 3, 403.º, N.º 2, AL. F), 414.º, N.ºS 2 E 3, E 420.º, N.º 1, AL. B), 432.º, N.º1, 472.º. CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 78.º, N.º 2, 164.º, N.º 1, AL. A), 177.º, N.º 1, AL. A). | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 30-10-2004, PROC. N.ºS 16/13.7TBSCF-A.L1-A.S1 - 7.ª SECÇÃO, DE 26-06-2014, 70/10.3T2AVR.C1.S1 - 7.ª SECÇÃO, DE 13-05-2014, 1084/08.9TBCBR.C1.S1 - 6.ª SECÇÃO, DE 10-04-2014, E 2393/11.5TJLSB.L1.S1 - 7.ª SECÇÃO. -DE 29-09-2010, PROC. N.º 343/05.7TAVFN.P1.S1, DE 07-04-2011, PROC. N.º 4068/07.0TDPRT.G1.S1, DE 22-06-2011, PROC. N.º 444/06.4TASEI.L1.S1, DE 30.11.2011, PROC. N.º 401/06.0GTSTR.E1.S1, DE 15-12-2011, PROC. N.º 53/04.2IDAVR.P1.S1, DE 19-09-2012, PROC. N.º 13/09.7GTPNF.P2.S1, DE 13-02-2013, PROC. N.º 707/10.4PCRGR.L1.S1, DE 14-03-2013, PROC. N.º 610/04.7TAPVZ.P1.S1, DE 12-06-2013, PROC. N.º 123/09.0GCTND.C1.S1, DE 30-10-2013, PROC. N.º 150/06.0TACDR.P1.S1, DE 06-03-2014, PROC. N.º 89/01.5IDLSB.L1.S1, E DE 10-04-2014, PROC. N.º 378/08.8JAFAR.E3.S1. -DE 22-01-2013, PROC. N.º 184/11.2GCMTJ.L1.S1 - 3.ª SECÇÃO, DE 06-02-2013, PROC. N.º 593/09.7TBBGC.P1.S1 - 3.ª SECÇÃO, DE 29-05-2013, PROC. N.º 344/11.6JALRA.E1.S1 - 3.ª SECÇÃO. -DE 30-04-2014, PROC. N.º 168/11.0GBSVV.C1.S1. * ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA N.º 1/02, DE 14-03. -*- ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL: -N.º 186/2013, N.º 269/2014, N.º 649/2009, TODOS DISPONÍVEIS EM WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT . | ||
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Sumário : | I. Constituindo o crime de violação um tipo alternativo em que "a lei prevê a possibilidade de exercer distintas ações opcionais que se encontram submetidas à mesma cominação penal", caso em que "cometendo o autor várias das ações alternativas previstas em uma disposição legal deverá ser condenado por um só facto e não por um concurso de delitos integrado por aquelas" (Jescheck/Weigend). II. A alteração dos factos que ocorreu entre a acusação e a condenação não levou à imputação de um crime diverso, nem à agravação dos limites máximos da sanção a aplicar; tratou-se apenas de uma alteração não substancial e de uma alteração da qualificação jurídica notificada ao arguido nos termos do art. 358.º, n.º 3, do CPP, pelo que o acórdão recorrido não é nulo. III. Constituindo a análise da violação do princípio do in dubio pro reo matéria de direito, do âmbito de cognição deste tribunal, a partir do texto da decisão recorrida não se vislumbra qualquer hesitação ou dúvida quanto à matéria de facto provada, pelo que não pode concluir-se que tenha havido violação daquele princípio. IV. O acórdão do Tribunal da Relação confirmou a condenação do arguido em pena de prisão de 2 anos e 9 meses, pela prática de um crime de de violência doméstica agravada, pelo que, nos termos do art. 400.º, n.º 1, al. f) do CPP, a decisão é irrecorrível; V. Por força do art. 671.º, n.º 3 do CPC ex vi art. 4.º, do CPP, tendo havido dupla conforme não é admitido o recurso relativo à questão civil julgada, pelo que fica prejudicada a apreciação relativa à questão invocada quanto à falta (ou não) de capacidade judiciária do demandante. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça: I Relatório 1. No Tribunal Judicial da Comarca de .... (... — Instância Central —... secção criminal — Juiz ...), o arguido AA foi condenado: - pela prática de um crime de violência doméstica na pena de prisão efetiva de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses, nos termos do art. 152.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do Código Penal (CP), - pela prática de um crime de violação agravada na pena de prisão efetiva de 10 (dez) anos, nos termos do art. 164.º, n.ºs 1, al. a) e 177.º, n.º 1, al. a), todos do CP, e - em cúmulo jurídico na pena única conjunta de prisão efetiva de 11 (onze) anos. Foi ainda deliberado condenar o demandado AA: - a pagar, ao demandante BB, uma indemnização, pelos danos não patrimoniais, no valor de 50.000,00 (cinquenta mil euros), e - a pagar à assistente CC, nos termos do art. 82.º-A, do Código de Processo Penal (CPP) e art. 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, uma indemnização no valor de € 2.000,00 (dois mil euros), acrescidos de juro de mora desde a data da prolação do acórdão. Foi ainda ordenada, tendo em conta “a natureza concreta dos factos provados”, “a recolha de amostras biológicas ao arguido, para inserção na base de perfis de ADN, nos termos dos arts. 8.º, n.º 2, e 18.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2008, de 12.02, a efectuar após o trânsito em julgado.” 2. Inconformado com a decisão proferida, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de ... que, por acórdão de 16.11.2015, julgou “não provido o recurso”, mantendo integralmente a decisão recorrida. 3. Vem agora o arguido AA interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, e apresentando as seguintes conclusões: «1. Procedeu o Tribunal a quo à alteração de factos que constavam na acusação, despachando no sentido de que não são substanciais, dando cumprimento ao artigo 358.º, do Código de Processo Penal. 2. Não se conformou e a essa alteração se opôs. e não se conforma, o Recorrente – com o devido e merecido respeito – com tal entendimento. 3. Como já conhecido, na fase de julgamento, o objecto do processo encontra-se fixado pela acusação do Ministério Público, no caso de crimes públicos e semi-públicos, ou pela acusação do assistente, no caso de crimes particulares (arts. 283.º e 285.º, do Código de Processo Penal), ou por ambas, se estiverem em causa crimes públicos ou semipúblicos e particulares. 4. Pode acontecer que no decurso da audiência do julgamento sejam conhecidos factos novos, não constantes da acusação ou da pronúncia. 5. A lei não fornece uma definição de alteração não substancial dos factos, no entanto, a alínea f) do artigo 1.º, do Código de Processo Penal define o conceito de alteração substancial dos factos, estabelecendo que esta é aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. Assim alteração não substancial dos factos é aquela que, consubstanciando embora uma modificação dos factos constantes da acusação ou da pronúncia, não tem por efeito a imputação de um crime diverso, nem a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. 6. Qualquer alteração dos factos descritos na acusação, desde que não implique alteração do juízo base de ilicitude nem agrave os limites máximos das sanções aplicáveis ao agente do crime acusado, pode ser tomada em conta, assegurando-se ao arguido a possibilidade de se defender em razão da alteração (art. 358.º), mas já não nas hipóteses contrárias. 7. Se os factos novos surgidos no decurso da audiência de julgamento – relativamente ao objecto do processo ficado na acusação ou na pronúncia – acarretarem a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, a solução legal é oposta. Estes novos factos não poderão ser tomados em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso e não implicam a extinção da instância. 8. Como se consignou no Acórdão do STJ de 21.03.07, proferido no Processo n.º 24/07, alteração substancial dos factos significa uma modificação estrutural dos factos descritos na acusação, de modo que a matéria de facto provada seja diversa, com elementos essenciais de divergência que agravem a posição processual do arguido, ou a tornem não sustentável, fazendo integrar consequências que se não continham na descrição da acusação, constituindo uma surpresa com a qual o arguido não poderia contar, isto é, a alteração substancial dos factos pressupõe uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refere aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. 9. Na exposição de motivos da proposta de Lei n.º 109/X, baseada no anteprojecto de revisão apresentado pela Unidade de Missão, refere-se: “No âmbito da alteração substancial dos factos introduz-se a distinção entre factos autonomizáveis e factos não autonomizáveis, estipulando-se que só os primeiros originam a abertura de novo processo.”. 10. FREDERICO ISASCA fundamenta que “os factos são autónomos ou autonomizáveis quando podem, por si só, e portanto independentemente dos factos que formam o objecto do processo, serem susceptíveis de fundamentar uma incriminação autónoma em face do objecto do processo.”. (Alteração substancial dos factos e sua relevância no processo penal português, Coimbra, Almedina, 1992) 11. Os factos são não autonomizáveis quando estão “imbricados” nos factos constantes da acusação, quando não são destacáveis ou cindíveis face ao núcleo essencial ou, ainda quando formam juntamente com os constantes da acusação ou da pronúncia, quando a houver, uma tal unidade de sentido que não permite a sua autonomização. 12. Face ao supra aduzido, patenteia-se, com o devido respeito, que os factos novos consubstanciam uma alteração substancial dos factos. 13. Na verdade, esta alteração substancial verificada no caso concreto imputa ao arguido um crime diverso daquele que lhe vinha a ser imputado na acusação, agravando a sua situação jurídico-penal. 14. No caso, os factos agora imputados ao arguido são naturalisticamente diferentes dos que lhe eram imputados na acusação, assim como os actos de execução em que se manifestam também são diversos. 15. São, por isso factos não destacáveis dos restantes a que o arguido está a ser acusado, formando uma unidade de sentido que não permite a autonomização. 16. Aliás, relativamente ao facto “ o arguido obrigava o assistente BB a chupar-lhe o pénis”, o Tribunal entendeu que a prática de dois tipos de actos (coito oral e coito anal), num mesmo momento, integram a prática de apenas um ilícito. 17. Ora, não sendo os factos autonomizáveis, não podem estes ser tomados em conta pelo Tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, face à discordância e oposição do arguido manifestada no contraditório que, à altura, ofereceu em requerimento próprio (fls. 454 a 459). 18. Ademais, é imputado ao arguido, como supra referido, um crime diverso do que foi acusado. De facto, os bens jurídicos tutelados são diferentes. 19. No que se refere ao crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, disposto no artigo 165.º do Código de Processo Penal, o bem jurídico tutelado é o direito à autodeterminação sexual de pessoa incapaz de opor resistência por factores físicos ou psíquicos. O preceito tutela os indivíduos que, por motivos ligados a circunstâncias intelectuais ou psíquicas ou ao seu estado físico, são incapazes de se autodeterminar no plano sexual. 20. Todavia, relativamente ao crime de violação consagrado no artigo 164.º do Código de Processo Penal o bem jurídico tutelado é o da liberdade de determinação sexual. 21.Patenteia-se, assim que existiu uma alteração substancial dos factos, porquanto estão em causa crimes diversos que tutelam bens jurídicos diferentes: crime de violação e crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência. 22. Daí que, salvo melhor opinião e o devido respeito, seja, como se advoga e invoca, nula a sentença por violação das normas referidas. Por outro lado, 23. O princípio “in dubio pro reo” pretende responder ao problema da dúvida na apreciação judicial dos casos criminais. Não da dúvida interpretativa, na aferição do sentido da norma, mas da dúvida sobre o facto, tipicamente forense. 24. O princípio in dubio pro reo é considerado na nossa Ordem Jurídica como um corolário do princípio de presunção de inocência, desde logo porque este último é um dos princípios fundamentais do Direito Processual Penal, responsável por diversas garantias processuais do estatuto processual e da defesa do arguido. 25. O problema da dúvida no processo existe, exactamente, pela mesma razão que torna necessária a fase probatória da lide: o julgador não presencia (na maioria dos casos) as situações que há-de dirimir de acordo com o Direito. Trata-se, habitualmente, de um acontecimento que teve lugar num passado mais ou menos recente e a que o Tribunal tem acesso de um modo mediato, lidando, apenas, imediatamente com as proposições que enunciam factos – enunciados factuais – que afirmam a existência ou a inexistência de determinados comportamentos pretéritos. 26. Atente-se, por isso ao conteúdo da dúvida que é necessário para que se autorize uma solução favorável ao arguido. 27. O princípio da livre apreciação de prova, entendido como esforço para alcançar a verdade material, como tensão de objectividade, encontra no “in dubio pro reo” o seu limite normativo, ao mesmo tempo que transmite o carácter objectivo à dúvida que acciona este último 28. A dúvida ou o non liquet, necessariamente valorado a favor do arguido, não ocorre quando na sentença sejam considerados provados, para além de qualquer dúvida razoável, todos os factos relevantes e preenchidos os elementos essencialmente constitutivos do tipo incriminador em causa. 29. Ao não ter aplicado o principio in dubio pro reo, o Tribunal a quo violou o preceituado no artigo 32.º, n.º 2 da Lei Fundamental. 30. Face a todo o exposto, o Tribunal a quo condenou o ora recorrente apenas com base no depoimento frágil do ofendido e nos relatórios médicos. 31. De facto, o Tribunal a quo, acreditando ab initio na culpa do arguido, sindicou a sua decisão através de um juízo presuntivo, discricionário e inelutavelmente carecido de suporte factual. 32. Tudo visto, e em conclusão, nunca o recorrente poderia ter sido condenado pelo crime de violação agravada. 33. Assim sendo, o Tribunal a quo violou, não só o artigo 210.º, n.º 1 do Código Penal, ao ter proferido decisão condenatória sem que o tipo legal de crime se encontrasse preenchido, como também o artigo 127.º do Código de Processo Penal. 34. De todo o exposto, ponderada a prova produzida, a sua validade e o seu alcance, apenas se pode concluir que o Tribunal a quo, não revelou uma apreciação criteriosa da prova, deu como assente a factualidade ora impugnada, inequivocamente sustentando-se numa presunção de culpa, inaceitável face à Constituição da República Portuguesa (art. 32.º n.º 2). 35. A determinação definitiva da pena é alcançada pelo juiz da causa através de um procedimento que decorre em três fases distintas: na primeira, o juiz investiga e determina a moldura penal abstrata da pena aplicável ao caso; na segunda, o juiz investiga e determina, dentro daquela moldura legal, a medida concreta; na terceira, o juiz escolhe a espécie de pena que efetivamente deve ser cumprida (FIGUEIREDO DIAS, in “As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Ed.). 36. Neste contexto, do moderno direito penal e da actual ciência jurídica criminal, encontra-se afastada e até recusada a tradicional teoria absoluta que via a pena como instrumento de retribuição, expiação, reparação ou compensação do mal do crime, traduzida na máxima: “olho por olho, dente por dente …” 37. Porém, a prossecução daquelas finalidades está condicionalmente limitada pela actuação do princípio da culpa. 38. No que se refere à primeira operação, o crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º, do Código Penal, pelo qual o Recorrente foi condenado, tem como moldura legal a pena de prisão de um a cinco anos. Todavia, se o agente praticar o facto nas circunstâncias descritas no n.º 2 do mesmo artigo, a pena de prisão situa-se entre os dois a cinco anos – como é o caso dos autos. 39. Tendo em conta toda a prova produzida em julgamento, bem como o Relatório Social que se dá por provado no presente Acórdão, a recorrente defende que o Tribunal a quo deveria ter atendido à circunstância atenuante prevista nos artigos 72º e 73º do C. P., ou seja, à Atenuação Especial da Pena. 40. Nos termos do artigo 72º, nº 1 do C.P., quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena, o tribunal deve atenuar especialmente a pena. 41. Conforme resulta do relatório social – tendo sido julgado como provado pelo tribunal a quo – o arguido é o mais velho de uma fratria de 4 irmãos de uma família pobre de arrendatários rurais. As relações familiares eram pouco afectuosas e calorosas, centrada num pai autoritário de quem o arguido tinha receio (ponto de facto provado n.º 17). Além disso, o pai do arguido era emigrante e o arguido foi o único de quatro filhos que ficou a viver com os avós desde a infância (ponto de facto provado n.º 18). Ainda no final da infância o arguido começa a consumir álcool, aí começando o consumo excessivo de álcool que era extensivo aos progenitores e avós. O arguido consumia essencialmente vinho, cerveja e bebidas brancas (bagaço) (ponto de facto provado n.º 23). Resulta ainda que, o arguido reconheceu parcialmente os factos relativos ao crime de violência doméstica (ponto de facto provado n.º 32). 42. Verifica-se uma acentuada diminuição da culpa do agente, da ilicitude do facto e da necessidade da pena. 43. Neste seguimento, e ainda na primeira operação realizada aquando da determinação da pena, deveria o Tribunal a quo aplicar o Instituto da Atenuação Especial da Pena, prevista nos artigos 72º e 73º do C.P. 44. No caso concreto, relativamente ao crime de violência doméstica p. e p. no artigo 152.º do Código Penal, o limite máximo da pena será 3 anos e 3 meses (5 × 1/3 = 1, 67; 5 – 1, 67 = 3 anos e 3 meses) e o limite mínimo da pena será 1 mês (mínimo legal). 45. Nos termos do artigo 40º, nº 1 do C.P., as finalidades da punição são a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Assim, a prevenção geral positiva visa a defesa do ordenamento jurídico-penal e a consciencialização da relevância social dos bens e a prevenção especial visa a ressocialização do agente de forma a prevenir a sua reincidência na prática de crimes. 46. Também na determinação da pena concreta é de ter em conta a conduta anterior e posterior ao facto, principalmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime, nomeadamente todas aquelas aqui referidas como fundamento para a diminuição acentuada da culpa e/ou da necessidade da pena e aplicação do Instituto da Atenuação Especial da Pena, que aqui não se repetem por questão de economia processual. 47. A pena concreta aplicada pelo Tribunal a quo é excessiva e deve ser reduzida. 48. A pena concreta tem como limite a culpa e, por isso, esta deve ser reduzida e próxima do limite mínimo, permitindo uma prevenção geral e especial adequada. 49. Quanto ao crime de violência doméstica, demonstra-se exagerada a pena de prisão determinada por não ter o Tribunal valorado a confissão do recorrente, pelo que uma pena inferior asseguraria as necessidades de prevenção geral e especial associados. Por outro lado ainda, 50. Nos termos do artigo 15.º, do Código de Processo Civil, a capacidade judiciária consiste na susceptibilidade de estar, por si, em juízo, tendo por base e por medida a capacidade de exercício de direitos. 51. Refere ANTUNES VARELA que “Gozando de personalidade judiciária, mas não podendo estar por si mesmas em juízo, as pessoas (interditos, menores, inabilitados) destituídas de capacidade judiciária necessitam, obviamente, de que seja suprida a sua incapacidade. O suprimento é garantido através do representante legal ou do curador, de acordo com as prescrições do direito civil (art.10.º, n.º 1). Tratando-se de menor ou de interdito, o incapaz é substituído, quer como autor (desde a propositura da acção), quer como réu (desde a citação), pelo seu representante legal. Tratando-se de simples inabilitado, o incapaz é assistido pelo respectivo curador.” (VARELA, Antunes, Manual…, op. cit., pág. 122) 52. Por outro lado, “a incapacidade, bem como a irregularidade da representação podem ser alegadas e conhecidas ex officio a todo o tempo, enquanto a decisão da causa não transitar em julgado. Se for conhecida pelo tribunal de recurso, não deixará de ser decretada a absolvição da instância, mesmo que as instâncias, por não terem conhecido do vício, hajam julgado sobre o mérito da causa. Não chegando, porém, a ser conhecida antes do trânsito em julgado da decisão sobre o mérito da causa, a incapacidade judiciária não obsta à validade (definitiva) da sentença, visto ela não constituir fundamento de revisão desta.” (VARELA, Antunes, Manual…, op. cit., pág. 125) 53. Ora, não existe, de facto, uma sentença que declare que o Recorrido é inabilitado ou está interdito. 54. Contudo, resulta da matéria de facto assente pelo Tribunal a quo que o aqui Recorrido, BB, padece de uma incapacidade de 60% decorrente de razões psiquiátricas. 55. Assim, apesar de não existir uma sentença que declare a sua inabilitação ou interdição, existe uma sentença, a dos autos, que assenta a sua incapacidade de 60% por razões psiquiátricas. 56. Note-se que o Recorrente invocou, por requerimento datado de 16 de Abril de 2015, a referida excepção de incapacidade judiciária. 57. Determina o artigo 278.º, n.º 1, al. c) que o juiz deve abster-se de conhecer do pedido e absolver o réu da instância quando entenda que alguma das partes é destituída de personalidade judiciária ou que, sendo incapaz, não está devidamente representada ou autorizada. 58. Assim, “a incapacidade judiciária, não devidamente suprida, provoca a absolvição da instância, devendo o juiz abster-se de conhecer o pedido. (…) Se a falta de capacidade, seja do autor, seja do réu, for manifesta em face do texto da petição inicial, deve esta ser liminarmente indeferida (art. 474.º, 1, b)). Se só mais tarde for apurada, deve absolver-se o réu da instância no despacho saneador (art. 510.º, 1, a)) ou na sentença final (art. 660.º, 1), abstendo-se o juiz de se pronunciar sobre o mérito da acção.” (VARELA, Antunes, Manual…, op. cit., pág. 125) 59. Deveria, pois, o tribunal a quo ter absolvido o réu, aqui Recorrente, da instância, dado que não possuía capacidade judiciária e não estava devidamente representado. 60. Daí que, careça de capacidade o peticionante para estar por si em juízo, devendo o arguido ser absolvido do pedido por ele formulado. 61. Violou assim a douta sentença e proficiente acórdão recorrido, entre outras, as normas jurídicas referidas. TERMOS EM QUE: - deverão dar provimento ao presente recurso de matéria de direito, devendo os novos factos não serem tomados em conta pelo Tribunal para efeito de condenação do processo em curso, por constituírem uma alteração substancial dos factos descritos na acusação e, também, não autonomizáveis, pois que a sentença é nula pelos invocados motivos; - deve decidir-se pela violação do princípio in dubio pro reo e, consequentemente, do artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa; - no que se refere à medida de pena determinada pela prática do crime de violência doméstica, deve a mesma ser reduzida, por se revelar excessiva face à confissão por parte do arguido relativamente à autoria dos factos praticados; SUBSIDIARIAMENTE E SEM PRESCINDIR: -- deve declarar-se a incapacidade judiciária do assistente BB para deduzir o pedido de indemnização civil.» 4. O assistente/demandante, BB, respondeu ao recurso interposto pelo arguido, e tendo concluído nos seguintes termos: «1. O Douto Acórdão recorrido não ofendeu o princípio da proibição de alteração substancial dos factos. 2. O Tribunal recorrido limitou-se a concretizar parte da factualidade vertida no douto despacho de acusação (o que apenas poderá configurar uma alteração não substancial dos factos constantes da acusação) e a imputar ao arguido a prática, não de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência agravado, nos termos dos arts. 165.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1, al. a) ambos do Código Penal, mas sim um crime de violação agravada nos termos dos arts. 164.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. b) ambos do Código Penal (o que constitui apenas uma alteração da qualificação jurídica), pelo que não ocorreu, pois, qualquer alteração substancial dos factos. 3. Neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 13-05-2014: «I. O instituto procedimental da alteração de factos [cfr. artigo 1.º n.º 1 alínea f) do CPP] tem por escopo assegurar as garantias de defesa do arguido, prevenindo um julgamento e uma condenação com base em materialidade de facto diversa daquela que, oportunamente, maxime, na acusação, lhe tenha sido comunicada - artigo 32.º n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP).II. Não configura qualquer alteração, substancial ou não, dos factos acusados, o julgamento, como provados, de factos que representam um minus relativamente àqueles que já constavam da acusação, quando nenhuns outros são introduzidos.» in www.dgsi.pt 4. O Douto Acórdão recorrido não violou o princípio in dubio pro reo. 5. No caso em apreço, como se viu e demonstrou, não emerge qualquer dúvida quanto aos factos julgados provados. 6. Não ocorre, por último, o alegado vício de falta de capacidade judiciária do demandante – BB. 7. “Como é sabido, os recursos constituem meios de impugnação de decisões judiciais e não meios de julgamento de questões novas. Os recursos ordinários visam, pois, a reapreciação da decisão proferida, não podendo ser colocadas ao tribunal superior questões novas, não suscitadas perante o tribunal a quo. Sendo assim, no recurso interposto de acórdão da Relação para o STJ, este não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matérias não alegadas pelo recorrente no tribunal recorrido ou sobre pedidos que ali não foram formulados, ressalvadas, está claro, as matérias de conhecimento oficioso ou os vícios e erros de julgamento que o próprio Tribunal da Relação haja cometido.” – Cfr. Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 395, e Ac. do STJ de 11-02-2009, Proc. n.º 4132/08 -3.ª. 8. A questão da alegada incapacidade judiciária do assistente Marco Carvalho para deduzir pedido cível, ora suscitada no recurso interposto do Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de ..., não foi colocada no âmbito do anterior recurso interposto junto do Tribunal da Relação de .... 9. Pelo exposto, e porque a função do Tribunal de Recurso é sindicar e reapreciar a decisão recorrida, não tendo o Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de ... sido chamado a pronunciar-se sobre a questão ora suscitada, está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça apreciar esta questão nova. 10. Acresce que, o Tribunal de 1ª Instância apreciou e julgou a alegada excepção de ilegitimidade activa, tendo decidido improceder tal excepção com os seguintes fundamentos: - “o demandante é parte legítima para o pedido de indemnização civil”; - “o demandante BB, ainda que padeça de uma incapacidade de 60% por razões psiquiátricas, não padece de incapacidade de exercício de direitos, pois é maior de idade e não foi declarado interdito ou inabilitado. E, não havendo, nesta situação qualquer incapacidade para o exercício de direitos por parte do demandante Marco, não existe, consequentemente, uma incapacidade judiciária.” 11. Como se disse e aqui se reitera, quanto a esta parte decisória (improcedência da excepção de ilegitimidade/incapacidade do demandante), a Douta Sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância não mereceu qualquer censura (recurso) por parte do Arguido/Demandado. 12. De resto, em nenhum momento do seu recurso – interposto para o Tribunal da Relação de ... -, o Arguido/demandado dirige qualquer censura (impugnação) contra a decisão de improcedência da excepção de ilegitimidade/incapacidade do demandante. 13. Pelo exposto, não tendo impugnado a decisão que improcedeu a excepção de ilegitimidade/incapacidade, formou-se nesta parte CASO JULGADO, não podendo agora o Recorrente ressuscitar ex novo a reapreciação dessa questão, sob pena de flagrante violação do princípio da intangibilidade do CASO JULGADO. 14. Não obstante, como bem decidiu o Tribunal de 1ª Instância, o demandante – BB – tem legitimidade (interesse em deduzir o pedido de indemnização cível), pois sofreu danos produzidos pelos factos ilícitos praticados pelo demandado, e tem, também, capacidade jurídica e judiciária, porquanto é maior e não padece de nenhuma outra incapacidade jurídica (interdição ou inabilitação). 15. Consequentemente, não merece provimento o recurso interposto pelo Arguido/demandado. TERMOS EM QUE, DEVERÁ SER NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO DO ARGUIDO E CONFIRMAR-SE NA ÍNTEGRA, DE FACTO E DE DIREITO, O DOUTO ACÓRDÃO RECORRIDO.» 5. O Senhor Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação de ... apresentou resposta, ao recurso interposto pelo arguido, considerando, em súmula, que não houve qualquer violação de disposição legal, e concluindo serem adequadas as penas parcelares e a pena única aplicadas, devendo o acórdão manter-se nos mesmos termos. Quanto a cada uma das quatro questões colocadas na interposição de recurso considerou: a) a punição por um crime de violação agravada, em vez do crime imputado na acusação, o crime de abuso sexual de pessoa incapaz, constituiu uma mera alteração da qualificação jurídica e não uma alteração substancial dos factos; tendo esta alteração sido comunicada nos termos do art. 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, não há qualquer nulidade no acórdão; b) não há qualquer violação do princípio in dubio pro reo, dado que não resultam do texto da decisão recorrida quaisquer elementos que permitam concluir que o tribunal tenha tido qualquer dúvida relativamente aos factos praticados; c) a pena do crime de violência doméstica aplicada é uma pena “justa e adequada”, isto sem prejuízo de entender que aquilo que o recorrente exige — a aplicação do regime de atenuação especial da pena, previsto no CP, com fundamento no reconhecimento parcial dos factos, pelo arguido — constitui a apreciação de uma questão nova que não foi objeto do recurso interposto para o Tribunal da Relação de ..., pelo que este não proferiu qualquer decisão quanto a esta matéria, e não pode agora ser objeto de recurso para o STJ, nem este sobre ela se pode pronunciar; d) também constitui uma questão nova, a alegação referente à falta de capacidade judiciária do ofendido para a interposição do pedido de indemnização civil, dado que não foi invocada no recurso para o tribunal da Relação de ..., pelo que também agora não pode ser invocada no recurso interposto para o STJ, nem por este pode ser decidida. 4. Subidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, o Senhor Procurador Geral-Adjunto, usando a faculdade prevista no n.º 1 do art. 416.º do CPP, considerou que, não representando qualquer uma das partes civis, carecia de legitimidade para emitir parecer quanto ao pedido de indemnização civil. No que respeita ao recurso relativo à pena aplicada pelo crime de violência doméstica deve este ser rejeitado por inadmissibilidade legal, por força do disposto nos arts. 420.º, n.º 1, al. b), 400.º, n.º 1, al. f) e 414.º, n.ºs 2 e 3, todos do CPP. Entende também que o STJ apenas se pode pronunciar sobre matéria de direito, pelo que “no que respeita à violação do princípio in dubio pro reo deve referir-se que é pacífico que as questões relativas à matéria de factos mostram-se definitivamente resolvidas pela Relação, escapando aos poderes de cognição do STJ” (fls. 899). Por fim, no que respeita à alteração decorrente de o arguido vir acusado pelo crime de abuso sexual agravado de pessoa incapaz e ter sido condenado em crime de violação agravado, entende tratar-se de uma alteração não substancial “posto que o coito oral, que não constava da acusação, não foi autonomizado relativamente ao coito anal” (fls. 900), pois “a inclusão de outros actos criminosos (coito oral) no preenchimento daquele crime apenas tem reflexo na dimensão da ilicitude do facto, e não na imputação de crime diverso ou agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. (...). Sublinhe-se que a alteração da qualificação não decorreu do referido aditamento do coito oral.” (fls. 901). 5. Notificado deste parecer, de harmonia com o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido nada disse. 6. Colhidos os vistos em simultâneo, e não tendo sido requerida a audiência de discussão e julgamento, o processo foi presente à conferência para decisão. II Fundamentação A. Matéria de facto provada: 1. Matéria de facto dada como provada pela 1.ª instância: * (…) Factos Não ProvadosDa prova produzida em audiência de julgamento não resultou provado que: 1) O BB e o arguido baixavam as calças e as cuecas até aos tornozelos. 2) O assistente BB acorda em estado de absoluta agonia, ficando com falta de ar e parecendo que vai asfixiar. 3) Quando se recorda do sucedido BB chora, fica nervoso e irrequieto. 4) A personalidade do demandante ficou eternamente marcada pelo horror que passou e não conseguirá libertar-se dos danos que sofreu com a descrita conduta do arguido. 5) O demandante terá de carregar este trauma para toda a vida. 6) O demandante tornou-se pessoa amargurada, depressiva e angustiada, ficou introvertido e tem receio de andar e estar sozinho.»
B. Matéria de direito 1. A partir das conclusões apresentadas aquando da interposição do recurso pelo arguido AA, verificamos que são 4 os pontos a analisar: a) alteração substancial dos factos (ou não) tendo em conta que o arguido foi acusado pelo crime de abuso sexual agravado de pessoa incapaz de resistência (arts. 165.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. a), ambos do CP), e depois condenado pelo crime de violação agravado (arts. 164.º, n.º 1, al. a) e 177.º, n.º 1, al. a), ambos do CP) (conclusões 1 a 22); b) violação do princípio in dubio pro reo (conclusões 23 a 34); c) pena excessiva aplicada no crime de violência doméstica agravado, dado que o tribunal devia ter aplicado o regime de atenuação especial, previsto nos arts. 72.º e 73.º do CP, por o arguido ter reconhecido parcialmente os factos (conclusões 35 a 49); d) falta de capacidade judiciária do demandante BB para deduzir o pedido de indemnização civil (conclusões 50 a 60). Vejamos. 2.1.1. Cumpre desde já salientar que, após recurso interposto para o Tribunal da Relação de ..., este manteve integralmente a decisão recorrida. E no que respeita ao pedido de indemnização civil, o arguido começou por alegar, no recurso interposto para o Tribunal da Relação de ..., que a indemnização civil arbitrada ao ofendido era excessiva, embora sem questionar os motivos que justificaram a atribuição daquele valor, tendo por isto improcedido o pedido (cf. fls. 764); além disso, e no que respeita à indemnização atribuída pela prática do crime de violência doméstica, de 2.000, 00 €, por se tratar de um valor inferior à alçada do tribunal a quo, foi considerado que o acórdão não era recorrível. Ora, também agora, e no respeitante à falta de capacidade judiciária para o demandante BB poder deduzir pedido de indemnização civil, não é admissível o recurso interposto. Na verdade, sabendo que o pedido de indemnização civil foi deduzido a 12.01.2015 (cf. fls. 257 e ss) e que o acórdão de 1.ª instância foi prolatado a 28.05.2015, e sabendo que o Tribunal da Relação de ..., de 16.11.2015, manteve a decisão de 1.ª instância, não é admissível o recurso por força do disposto no art. 671.º, n.º 3, do CPC, ex vi art. 4.º do CPP. Na verdade, com a entrada em vigor do DL n.º 48/2007, de 29.08, muito em particular com a introdução do n.º 3 ao art. 400.º do CPP, procedeu-se a uma profunda alteração do regime de admissibilidade dos recursos para o STJ das decisões proferidas sobre os pedidos de indemnização civil enxertados em processo penal. Por força desta alteração legislativa, a recorribilidade do segmento decisório relativo à matéria civil deixou de estar dependente da admissibilidade de recurso da parte criminal do acórdão recorrido, como até essa data sucedia, até por força do entendimento sufragado pelo acórdão de fixação de jurisprudência n.º 1/02, de 14.03 (neste aresto, recorde-se, este Supremo Tribunal uniformizou a jurisprudência no sentido de que: “no regime do Código de Processo Penal vigente - n.º 2 do artigo 400.º, na versão da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto - não cabe recurso ordinário da decisão final do Tribunal da Relação, relativa à indemnização civil, se for irrecorrível a correspondente decisão penal.”). Com as alterações introduzidas pelo citado diploma, a recorribilidade da decisão sobre matéria civil desprendeu-se do recurso em matéria penal ou, dito por outras palavras, a admissibilidade de recurso para o STJ, restrito à matéria civil, passou a ser avaliada de acordo com os critérios próprios de recorribilidade adotados pelo CPC. Ao estabelecer no n.º 3 do art. 400.º do CPP que “mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil”, o legislador fez apelo, até por força do estatuído pelo art. 4.º do CPP, para o regime de admissibilidade dos recursos interpostos para este Supremo Tribunal dos acórdãos proferidos em recurso pelo Tribunal da Relação, que se mostrava previsto para os processos de natureza exclusivamente civil, maxime pelos arts. 721.º e ss. do CPC, então em vigor. Como a recorribilidade da matéria civil deixou de estar dependente da própria recorribilidade do segmento decisório relativo à matéria criminal, como até aí sucedia, o acesso em sede de recurso a este Supremo Tribunal passou a dever obediência ao regime jurídico do recurso de revista previsto no CPC, na medida em que o legislador processual penal, ao introduzir o n.º 3 ao citado art. 400.º, não definiu normas próprias de admissibilidade de recurso para a parte da sentença relativa ao pedido de indemnização civil, o que deve levar o julgador, perante isto, a socorrer-se dos pertinentes normativos do processo civil, assim se estabelecendo um mesmo regime de admissibilidade do recurso referente a pedidos de indemnização civil, quer sejam processados por apenso ao processo penal, quer o sejam em separado. Explicando melhor: Como a recorribilidade para o STJ da parte da sentença relativa à matéria criminal está essencialmente dependente da medida concreta da pena aplicada ao arguido (cf. maxime arts. 400.º, n.º 1, al. f), e 432,º, n.º 1, ambos do CPP) e como este critério de recorribilidade não demonstra virtualidade de aplicação, por razões óbvias, quanto ao segmento decisório relativo ao pedido de indemnização civil, a admissibilidade de recurso para este Supremo Tribunal de decisão que incida sobre a matéria civil passou a ser regulada, subsidiariamente, pelo regime jurídico vertido no CPC, já que se abandonou, nesta sede, a indexação aos critérios de recorribilidade da matéria criminal. Assim, no que diz respeito à admissibilidade de recurso para o STJ dos acórdãos (ou dos seus segmentos decisórios) que versem matéria civil, procurou-se estabelecer uma igualdade entre a ação civil enxertada em processo penal e aquela que se mostra deduzida, de modo autónomo, em ação de cunho exclusivamente civil, de modo a que a diferente forma de dedução (enxertada ou autónoma) do pedido de indemnização cível não venha a ter qualquer influência nas legítimas expectativas dos sujeitos processuais no que diz respeito às possibilidades de acesso, em sede de recurso, aos tribunais hierarquicamente superiores. Aliás, em conformidade com a exposição de motivos da proposta de lei n.º 109/X (que deu origem à versão atual do art. 400.º, n.º 3 do CPP), onde se afirmou: “Para garantir o respeito pela igualdade, admite-se a interposição de recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil mesmo nas situações em que não caiba recurso da matéria penal”, querendo assim afirmar a igualdade quanto ao que sucederia em processo civil. Acresce que, e seguindo os argumentos deste Tribunal em acórdão proferido no âmbito do processo n.º 168/11.0GBSVV.C1.S1 (relator: Cons. Manuel Braz), “[n]ão existe, efectivamente, razão para que em relação a duas acções civis idênticas haja diferentes graus de recurso apenas em função da natureza civil ou penal do processo usado, quando é certo que neste último caso a acção civil conserva a sua autonomia. Pode mesmo dizer-se que outro entendimento que não o aqui defendido conduziria ao inquinamento da decisão a tomar pelo lesado nos casos em que a lei lhe permite deduzir em separado, perante os tribunais civis, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime. Pense-se, por exemplo, no caso de danos ocasionados pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência da previsão do art. 148.º, n.º 3, do CP, em que o pedido de indemnização tanto pode ser formulado em processo civil como no processo penal, nos termos do art. 72.º, n.º 1, alínea c), do CPP. A opção pelo processo civil estaria clara e injustificadamente condicionada, se a norma limitativa do n.º 3 do art. 671.º do CPC não se aplicasse ao pedido deduzido no processo penal.” E assim, a jurisprudência do STJ, de forma largamente maioritária, tem entendido que o regime de admissibilidade dos recursos previsto no CPC tem aplicação subsidiária aos pedidos de indemnização civil formulados em processo penal (cf., neste sentido, entre muitos outros, os Acs. do STJ de 29.09.2010, Proc. n.º 343/05.7TAVFN.P1.S1, de 07.04.2011, Proc. n.º 4068/07.0TDPRT.G1.S1, de 22.06.2011, Proc. n.º 444/06.4TASEI.L1.S1, de 30.11.2011, Proc. n.º 401/06.0GTSTR.E1.S1, de 15.12.2011, Proc. n.º 53/04.2IDAVR.P1.S1, de 19.09.2012, Proc. n.º 13/09.7GTPNF.P2.S1, de 13.02.2013, Proc. n.º 707/10.4PCRGR.L1.S1, de 14.03.2013, Proc. n.º 610/04.7TAPVZ.P1.S1, de 12.06.2013, Proc. n.º 123/09.0GCTND.C1.S1, de 30.10.2013, Proc. n.º 150/06.0TACDR.P1.S1, de 06.03.2014, Proc. n.º 89/01.5IDLSB.L1.S1, e de 10.04.2014, Proc. n.º 378/08.8JAFAR.E3.S1). Nestes autos, o pedido de indemnização civil foi formulado a 12.01.2015, e a decisão condenatória, do tribunal de 1.ª instância, e o acórdão recorrido, do Tribunal da Relação de ..., foram proferidos no âmbito do período de vigência do novo CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26.06, que entrou em vigor no dia 01 de Setembro do mesmo ano. E, a este propósito, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender, de forma absolutamente pacífica, que a recorribilidade de uma decisão ou, de outro modo, que a admissibilidade do recurso deve ser regulada pela lei processual que estiver em vigor à data em que a decisão recorrida é proferida. Sob a epígrafe “Decisões que comportam revista”, estabelece o art. 671.º, n.º 3, do novo CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, que: “Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que, confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”. Este regime de (in)admissibilidade de recurso, em caso de dupla conforme, tem aplicação a todos os processos cíveis instaurados após o dia 01 de Janeiro de 2008, desde que as decisões recorridas tenham sido proferidas após a data da entrada em vigor da Lei n.º 41/2013, ocorrida no dia 01 de Setembro de 2013, conforme decorre, a contrario, da norma transitória vertida no art. 7.º deste diploma legal. Ora, sabendo que quer o pedido de indemnização civil, quer o acórdão recorrido, ocorreram em data posterior a 1 de setembro de 2013, é aplicável o regime previsto no art. 671.º, n.º 3, do CPC. E de acordo com este normativo, o acórdão do Tribunal da Relação só admite recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo dos casos de revista excecional previstos pelo art. 672.º do CPC, quando, em casos de dupla conforme, não exista unanimidade por parte dos Senhores Juízes Desembargadores e a decisão recorrida apresente uma fundamentação essencialmente divergente da sufragada pela decisão (sentença ou acórdão) do tribunal de 1.ª instância. “Confirmação” significa coincidência decisória entre o acórdão do Tribunal da Relação e a sentença ou acórdão do tribunal de 1.ª instância, o que abrange, quer a coincidência total dos segmentos decisórios em confronto (o que se obtém mediante a confirmação pela Relação de toda a decisão do tribunal de 1.ª instância), quer a coincidência parcial, desde que a decisão contenha segmentos distintos e autónomos, em que, naturalmente, quanto aos mesmos, ocorra confirmação do decidido (a este respeito, cf., a jurisprudência das Secções Cíveis do STJ, vertida nas revistas n.ºs 16/13.7TBSCF-A.L1-A.S1 - 7.ª Secção, de 30-10-2014, 70/10.3T2AVR.C1.S1 - 7.ª Secção, de 26-06-2014, 1084/08.9TBCBR.C1.S1 - 6.ª Secção, de 13-05-2014, e 2393/11.5TJLSB.L1.S1 - 7.ª Secção, de 10-04-2014). A este propósito, importa aqui deixar as palavras que, em jeito mais expressivo, foram vertidas na revista n.º 2393/11.5TJLSB.L1.S1: “(…) nos casos em que a parte dispositiva da decisão contenha segmentos decisórios distintos e autónomos, (podendo as partes, por conseguinte, restringir o recurso a cada um deles), o conceito de dupla conforme terá de se aferir, separadamente, relativamente a cada um deles (…)”. Por seu turno, “fundamentação essencialmente diferente” significa que não é toda e qualquer divergência, por mais insignificante e por mais irrelevante que seja, entre a decisão do tribunal de 1.ª instância e a decisão do tribunal de recurso, que obsta à formação da denominada dupla conforme. Exigem-se divergências marcantes, importantes ou significativas entre essas decisões judiciais, em termos de qualificação ou de enquadramento jurídico, no tocante a aspetos que não sejam acessórios ou secundários para a discussão ou julgamento da causa. A simples diferença na fundamentação não obsta à inadmissibilidade de recurso para o STJ. A lei impõe uma diferença qualificada, nas suas palavras, uma “fundamentação essencialmente diferente”; o n.º 3 do art. 671.º do CPC exige que a fundamentação de direito apresentada pela sentença da 1.ª instância seja drástica ou profundamente divergente face àquela que sustenta o acórdão do tribunal de recurso. No presente caso, a decisão de 1.ª instância foi confirmada pelo Tribunal da Relação, pelo que os requisitos do disposto no art. 671.º, n.º 3, do CPC (ex vi art. 4.º, do CPP) estão preenchidos, sendo inadmissível o recurso interposto. Acresce que, como decorre das disposições conjugadas dos arts. 414.º, n.ºs 2 e 3, e 420.º, n.º 1, al. b), ambos do CPP, a decisão que admitiu o recurso não vincula o tribunal ad quem, nem tão pouco impede a sua rejeição por parte do tribunal a quem se mostra dirigido para apreciação e decisão. Mas, para além disto, e sabendo que em sede de recurso para o Tribunal da Relação de ... não foi sequer alegada a falta de capacidade judiciária do demandante, não se pronunciou aquele tribunal sobre este ponto. Ora, não havendo qualquer decisão sobre esta matéria no acórdão do Tribunal da Relação de ... e considerando que a este Supremo Tribunal apenas cumpre analisar aquela decisão, não pode constituir objeto de recurso de uma decisão matéria que não consta da mesma decisão. Como poderá o Supremo Tribunal apreciar os argumentos de direito sobre uma matéria que não foi objeto de análise pelo tribunal recorrido, pelo que são inexistentes na decisão recorrida? Assim sendo, improcede nesta parte o recurso interposto. 2.1.2. E improcede igualmente o recurso interposto quanto à medida da pena pelo crime de violência doméstica agravado — arts. 164.º, n.º 1, al. a) e 177.º, n.º 1, al. a), ambos do CP. O arguido vem condenado, por este crime, na pena de prisão efetiva de 2 anos e 9 meses. Ora, tendo havido recurso para o Tribunal da Relação e tendo este confirmado a decisão de 1.ª instância, a decisão é irrecorrível por força do disposto no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP. A jurisprudência deste tribunal tem sido unânime e estabilizada no sentido de que podem ser objeto de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça todas as decisões cuja irrecorribilidade não esteja prevista no art. 400.º do CPP. Ora, nos termos do art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP não haverá recurso sempre que o acórdão da Relação confirme o acórdão de 1.ª instância proferido no âmbito do mesmo processo e sempre que a pena aplicada na Relação não exceda os 8 anos de prisão, sendo estes dois requisitos cumulativos. Ou seja, na senda do que as diversas reformas ao CPP têm construído, há uma ideia central — a da limitação dos recursos para o Supremo Tribunal de Justiça a questões mais graves e complexas. Pelo que, todos os acórdãos proferidos na Relação que confirmem decisão da 1.ª instância e que apliquem pena de prisão inferior a 8 anos são considerados definitivos. Ora, para saber da admissibilidade (ou não) do recurso ter-se-á que analisar não só a pena única conjunta atribuída ao concurso de crimes, mas também as penas parcelares atribuídas a cada um dos crimes que integram o concurso. Assim se fazendo uma clara separação entre o momento da determinação da pena em relação a cada crime, e o momento da determinação da sanção em sede de concurso. Nada que o nosso direito não permita. Na verdade, e tendo em conta o regime do concurso superveniente, verifica-se que neste caso, por exemplo, a pena do concurso é determinada já depois do trânsito em julgado de todas as condenações, isto é, sem possibilidade de recurso relativamente a qualquer das decisões relativas a cada crime que integra o concurso, e é determinada em audiência específica para o efeito (de acordo com o estipulado no art. 78.º n.º 2 do CP e art. 472.º do CPP). Ou seja, claramente o nosso CP permite-nos perceber que a determinação da pena do concurso de crimes constitui um ponto a decidir distinto e autónomo dos outros. Ora, também aqui podemos autonomizar esse momento, permitindo que relativamente aos crimes individualmente considerados, e às respetivas penas parcelares atribuídas, se constitua um caso julgado parcial. E não se diga que o momento de determinação da culpabilidade é intrínseco ao momento de determinação da sanção — não só porque em sede de sentença o CPP assim o distinguiu (veja-se os arts. 368.º e 369.º do CPP), como também se admite que haja caso julgado parcial relativamente a cada uma das penas que estejam fixadas na sentença — isso mesmo nos diz o art. 403.º, n.º 2, al. f), quando estabelece que há possibilidade de limitação do recurso a uma parte da decisão, considerando como sendo “autónoma, nomeadamente, a parte da decisão que se referir: (...) f) dentro da questão da determinação da sanção, a cada uma das penas ou medidas de segurança”. Nada impede, pois, que haja caso julgado relativamente aos crimes e penas parcelares correspondentes, independentemente do caso julgado relativo à determinação da pena em sede de concurso de crimes. Aliás, em sentido idêntico se tem pronunciado o Tribunal Constitucional que, no acórdão n.º 186/2013, entendeu “não julgar inconstitucional a norma constante da alínea f), do n.º 1, do art. 400.º, do Código de Processo penal, na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objeto de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão” (e isto mesmo foi já entendido perante a redação do CPP dada pela Lei n.º 20/2013 — assim, no acórdão n.º 269/2014 — acessível aqui: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20140269.html). Isto sem referir jurisprudência anterior do mesmo tribunal, como o acórdão n.º 649/2009, onde se concluiu que não ser inconstitucional o art. 400.º, n.º 1 al. f) do CPP interpretado no sentido de que “no caso de concurso de infrações tendo a Relação confirmado, em recurso, decisão de 1.ª instância que aplicou pena de prisão parcelar não superior a 8 anos, essa parte não é recorrível para o STJ” nos termos daquele dispositivo. Acrescentado: “Quer dizer: o direito ao recurso para o Supremo Tribunal de Justiça só poderia considerar-se violado se, por via da cisão, ao Supremo Tribunal de Justiça nada restasse, a final, para apreciar, no recurso perante este tribunal interposto e admitido. Tal, porém, não sucede. É possível ao Supremo Tribunal de Justiça apreciar a matéria do cúmulo jurídico e as questões relativas à pena única aplicada, sem concomitante apreciação das questões relativas às penas parcelares, como o demonstra o regime do artigo 78º do Código Penal: decorre, na verdade, deste preceito que é possível aplicar uma pena única tendo já transitado em julgado a decisão respeitante à pena parcelar, o que, em virtude do caso julgado desta decisão, inviabiliza a reapreciação das questões relativas a esta pena parcelar aquando da ponderação daquele cúmulo.” (consultável aqui: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20090649.html ) Daqui se conclui que quanto ao crime de violência doméstica agravado formou-se caso julgado (parcial), pelo que não pode ser objeto de análise por este tribunal (apenas podendo analisar-se, para além do respeitante ao crime de violação agravado, a medida da pena única o que, todavia, não constitui objeto da interposição de recurso apresentada pelo arguido). 2.1.3. Além de tudo o mais cumpre ainda dizer o seguinte: O Supremo Tribunal de Justiça, em sede de recurso, analisa e aprecia o acórdão recorrido, no caso o acórdão do Tribunal da Relação de .... Sabendo que no recurso interposto para a Relação nunca o arguido alegou a falta de capacidade judiciária do demandante BB, nem alegou a necessidade de aplicação do regime de atenuação especial da pena pelo facto de ter reconhecido parcialmente os factos relativos ao crime de violência doméstica (embora tivesse alegado que a pena era excessiva e que devia ter relevado a seu favor o reconhecimento parcial dos factos — conclusão LXXIII e ss, cfr. acórdão do Tribunal da Relação de ... a fls. 703 — nada alegou quanto à necessidade de aplicação do regime de atenuação especial), não pode agora o Supremo Tribunal de Justiça analisar estas questões que não foram debatidas pelo Tribunal da Relação de ... e sobre as quais não se pronunciou É claro que, se fosse admissível o recurso quanto ao crime de violência doméstica, ao Supremo Tribunal de Justiça ainda caberia analisar da exatidão (ou não) da pena aplicada, e para tanto necessitaria de usar de todos os elementos que considerasse relevantes para a determinação da medida da pena. Mas, não sendo o recurso admissível, não pode pronunciar-se sobre a pena parcelar aplicada. 2.2. Comecemos por analisar a alegada violação do princípio in dubio pro reo. Ora, constituindo o princípio in dubio pro reo um princípio em matéria de prova, todavia a análise da sua violação (ou não) constitui matéria de direito Assim, Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, lições coligidas por Maria João Antunes, 1988-9, p. 149 (nm. 235)., ou questão de direito enquanto juízo de valor ou ato de avaliação da violação Figueiredo Dias, Crime Preterintencional, causalidade adequada e questão-de-facto, RDES, ano XVII (1970), p. 34 (separata). (ou não) daquele princípio, portanto no âmbito de competência deste tribunal. E assim tem sido entendido por este tribunal: - “O princípio in dubio pro reo, que nada tem a ver com as dúvidas suscitadas ao nível da interpretação das leis, é um princípio geral de direito processual penal, corolário do princípio da presunção da inocência do arguido, com tradução no n.º 2 do art. 32.º da CRP, constituindo a sua violação uma questão de direito, muito embora se assuma como princípio de prova, conformando um daqueles princípios passível de revista.” [ac. de 22-01-2013, Proc. n.º 184/11.2GCMTJ.L1.S1 - 3.ª Secção, Armindo Monteiro (relator)]; - “O princípio in dubio pro reo é princípio geral do processo penal decorrente do princípio da presunção da inocência do arguido. Como tal, assume a natureza de uma questão de direito de que o STJ deve conhecer quando da globalidade do próprio texto da decisão resultar que o tribunal, apesar da hesitação sobre a prova de determinado facto, decidiu em sentido desfavorável ao arguido. [ac. de 06-02-2013, Proc. n.º 593/09.7TBBGC.P1.S1 - 3.ª Secção, Sousa Fonte (relator)]; - “O STJ só pode sindicar a aplicação do princípio in dubio pro reo quando da decisão recorrida resulta que o tribunal a quo ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido.” [ac. de 29-05-2013, Proc. n.º 344/11.6JALRA.E1.S1 - 3.ª Secção, Santos Cabral (relator)]. Assim sendo, a análise da violação deste princípio constitui matéria de direito no âmbito de cognição deste tribunal. Comecemos por salientar que também no recurso interposto para o Tribunal da Relação de ... foi analisado esta mesma violação. E foi então considerado que: «O Tribunal de recurso apenas pode censurar o uso feito desse princípio [in dubio pro reo] se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, escolheu a tese desfavorável ao arguido - (Cf. entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Maio de 1996 Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano IV, Tomo I, pág. 177). In casu, patenteia o texto da decisão ora em crise que tribunal a quo não ficou com qualquer dúvida sobre a matéria de facto que decidiu, mas antes um estado de certeza relativamente a todos os factos que julgou verdadeiros, mostrando-se a respectiva fundamentação consistente, lógica e racional. Sobre os factos atinentes à decisão, nenhuma dúvida razoável restou ao Colectivo de ..., não havendo, por isso, que chamar à colação o princípio in dubio pro reo. Mantém-se, assim, na íntegra, a decisão sobre a matéria de facto, tal qual consta do Acórdão sob judice.» (cf. fls. 762). Ora, compulsada a decisão do tribunal de 1.ª instância nunca se verifica a partir do ali relatado, nomeadamente quanto à fundamentação da matéria de facto (cf. acórdão de 1.ª instância a fls. 471 e ss, em particular, fls. 478 a 486, e reproduzidas a fls. 711 e ss, no acórdão do Tribunal da Relação de ...), qualquer dúvida quanto aos factos provados. O Tribunal sentiu necessidade de valorar as declarações do ofendido, mas também as de outras testemunhas, nomeadamente, as da psicóloga (...) que acompanha o ofendido e denunciou a situação, e ainda o depoimento do irmão do ofendido e da sua mãe, mas também a diretora (...), e a psicóloga (...) do Instituto João Novais e Sousa que conhece o ofendido desde os 9 anos e a sua família, e considerou que o depoimento de ambas as psicólogas e da diretora eram “totalmente isentos e narram o sucedido entre si de forma coerente” (cf. fls. 483). Além disto, salienta que “De todos eles decorre que a situação é despoletada pela comunicação da Escola do André à Dra. ... e que depois tudo se desenrola, com a intervenção da mãe e da Escola que o Marco frequenta. Do que resulta que os factos não partem da assistente CC, nem a mesma os presenciou e o relato que faz, que corresponde ao que ouve dos filhos, em nada sai infirmado por estes depoimentos e menos ainda pelo depoimento das já referidas testemunhas de defesa que entendem que tudo foi inventado pela mesma, no sentido de ficar a casa e a herança do arguido.” (cf. fls. 483). Ou seja, da decisão recorrida não resulta que o tribunal tenha tido qualquer dúvida quanto aos factos praticados e quanto ao autor dos factos. E mesmo quando não há total coincidência entre os depoimentos, como ocorre entre o depoimento do ofendido e de seu irmão, tendo considerado que: “Das referidas incoerências não resulta a descredibilização de nenhum dos dois depoimentos, porque tal é facilmente compreensível à luz da situação pessoal de ambos e da situação traumática que vivenciaram, e não significa até que o arguido não tenha ameaçado o BB com uma espingarda e que numa das situações, quer o arguido, quer o BB tenham retirado a roupa que traziam vestida da parte de cima, pois tratou-se de um longo período de tempo, foram muitas as vezes em que os factos ocorreram e a deficiência mental e o atraso cognitivo de que o Marco padece limitam-no na sua capacidade de verbalização e descrição dos factos, o que também explica tais diferenças.” (cf. fls. 483-4). De tudo isto, e não tendo este Tribunal poderes de cognição em matéria de facto, mas apenas em matéria de direito, apenas lhe cabe apreciar se resulta da decisão alguma dúvida que tenha sido decidida contra o arguido. Ora, do exposto não pode este tribunal concluir que tenha havido violação do princípio in dubio pro reo, dado que da decisão recorrida não resulta qualquer dúvida sobre os factos provados. Assim improcedendo nesta parte o recurso interposto. 2.3. Resta analisar a eventual nulidade do acórdão de 1.ª instância, no que respeita à condenação pelo crime de violação agravado, por alteração substancial dos factos, segundo o recorrente. Na verdade, verifica-se que o arguido vinha acusado pelo crime de abuso sexual de pessoa incapaz (agravado), tendo sido condenado no crime de violação (agravado). E enquanto que na acusação apenas estavam descritas práticas de coito anal [«5º - Entre os dias 11 de Novembro de 2013 e o final do mês de Maio de 2014, o arguido, aproveitando-se da circunstância de se encontrar sozinho com o seu filho Marco no interior da residência comum, entre as 16H45 e as 19H, por diversas vezes e em número não concretamente apurado, encaminhou-o para o quarto onde pernoitava com a sua esposa, dizia-lhe para baixar as calças e cuecas, até aos tornozelos, e se deitar na cama de barriga para baixo, ao que aquele acedia depois do arguido lhe dizer que se não o fizesse lhe dava estalos. 6º - Após, o arguido, baixava as suas calças e cuecas, até aos tornozelos, e introduzia o seu pénis erecto no ânus do filho, repetidamente, num movimento contínuo de vai e vem, durante alguns minutos, causando-lhe dor, sendo que, de seguida, dizia-lhe para jurar pela sua avó que não contava a ninguém senão que lhe dava bofetadas.» (cf. fls. 225).], na decisão condenatória aparecem provadas práticas de coito oral [«5) Pelo menos desde o dia 11 de Novembro de 2013 e até ao final do mês de Maio de 2014, o arguido, aproveitando-se da circunstância de se encontrar sozinho com o seu filho BB no interior da residência comum, entre as 16h45 e as 19h, por diversas vezes e em número não concretamente apurado, encaminhou-o para o quarto onde pernoitava com a sua esposa, dizia-lhe para baixar as calças e cuecas, ajudando-o a retirar tais peças de roupa e para se deitar na cama de barriga para baixo, ao mesmo tempo que lhe dizia que que se não o fizesse lhe batia. 6) Não obstante, o BB dizer-lhe que não queria fazer o que lhe ordenava, acabava sempre por aceder em virtude daquilo que lhe dizia e porque tinha medo do mesmo. 7) Após, o arguido baixava também as suas calças e cuecas e introduzia o seu pénis erecto no ânus do seu filho, repetidamente, num movimento contínuo de vai e vem, durante alguns minutos, causando-lhe dor, sendo que, de seguida e da mesma forma, ainda obrigava o assistente BB a chupar-lhe o pénis e no fim fazia-o jurar pela avó que não contava a ninguém, senão que lhe batia.» (cf. fls. 467).]. Tendo isto em conta cumpre fazer a pergunta: a prova de factos consubstanciadores de coito anal levou à imputação ao arguido de um crime diverso? Isto é, se aquele coito oral não tivesse sido dado como provado o arguido ainda assim viria condenado pelo crime de violação agravado? Mas, mesmo que possamos concluir que apenas com a prova do coito anal o arguido integraria o crime de violação agravado, a prova do coito oral constitui uma alteração substancial dos factos? Não se tratando de uma alteração substancial dos factos foram cumpridas as exigências legais quando se procede a uma alteração não substancial dos factos ou a uma alteração da qualificação jurídica? Compulsada a decisão de 1.ª instância, vejamos o que fundamentou a diferente qualificação jurídica (fls. 494-496): Ou seja, houve uma alteração da qualificação jurídica a partir do entendimento de que houve capacidade do ofendido para se opor aos atos praticados. Ora, segundo o tribunal, o ofendido manifestou a sua oposição, todavia não foi o suficiente, e apenas por causa das ameaças que recebeu acabou por se sujeitar ao que o arguido/pai queria. Apenas por isto ocorreu uma alteração da qualificação jurídica. Não fosse este entendimento e a simples junção à matéria de facto provada de atos de coito oral, para além dos de coito oral, não teria desencadeado qualquer imputação de crime diverso, nem uma agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. Porém, ocorreu uma alteração dos factos, dado que na matéria de facto provada passou a constar não só a prática de coito anal, mas também a prática de coito oral. Tratou-se, no entanto, de uma alteração não substancial, pois não foi a introdução destes novos atos que levou à imputação de um crime diverso. Não tivessem sido provados os atos de coito oral, e o tribunal teria da mesma forma procedido à alteração da qualificação jurídica. Os novos atos foram integrados no mesmo contexto, na mesma imagem global do ilícito, como fazendo parte (até porque eram praticados imediatamente após a prática dos anteriores) da prática do mesmo ilícito. Não foi a partir da prova destes outros atos que se considerou que estaríamos perante outro crime, ou mais crimes da mesma natureza. Pelo que, não podemos considerar como estando perante uma alteração substancial dos factos. Além do mais, verificamos que o crime de violação pelo qual o arguido vem condenado, nos termos do art. 164.º, n.º 1, al. a), do CP (agravado pelo disposto no art. 177.º, n.º 1, al. a), do CP) é integrado por diversos atos típicos, isto é, integra o crime de violação “quem (...) constranger outra pessoa: a) a sofrer (...), consigo (...), cópula, coito anal ou coito oral”. Ou seja, estamos perante um tipo legal de crime de tipo alternativo em que "a lei prevê a possibilidade de exercer distintas ações opcionais que se encontram submetidas à mesma cominação penal" caso em que "cometendo o autor várias das ações alternativas previstas em uma disposição legal deverá ser condenado por um só facto e não por um concurso de delitos integrado por aquelas" (Jescheck/Weigend, Tratado de Derecho Penal, Granada: Comares, 2002, p. 285, tradução livre nossa). Assim sendo, considerando que o arguido praticou ou coito anal, ou coito oral, ou ambas as modalidades de ação, deverá considerar-se que praticou sempre o mesmo crime de violação, não havendo, pois, sequer a imputação ao arguido de um outro crime. Coisa diferente é o que resulta de se referir, na matéria de facto provada, que os atos consubstanciados do crime de violação ocorreram “por diversas vezes e em número concretamente não apurado” (facto provado 5) o que levou o tribunal a considerar que se tratava apenas de um crime de violação; não fosse esta impossibilidade de prova do número de vezes em que o arguido resolveu praticar diversos atos integradores de um crime de violação e, portanto, sucessivamente resolveu praticar diversos crimes de violação, e a conclusão quanto ao número de crimes praticados deveria ser outra. Concluindo pela não alteração substancial dos factos, havendo apenas alteração não substancial dos factos e uma alteração da qualificação jurídica, ainda assim, nos termos do art. 358.º n.º 3, do CPP, terá que se comunicar ao arguido a alteração e conceder-lhe um prazo necessário para a defesa, se assim o requerer. O que aconteceu — na 4.ª sessão da audiência de discussão e julgamento, a 07.05.2015, foi proferido o seguinte despacho: Assim sendo, tendo sido cumpridos todos os formalismos legais, não existe qualquer nulidade tal como o arguido pretende, improcedendo também o recurso nesta parte. 3. Do exposto pode concluir-se que: a) Constituindo o crime de violação um tipo alternativo em que "a lei prevê a possibilidade de exercer distintas ações opcionais que se encontram submetidas à mesma cominação penal", caso em que "cometendo o autor várias das ações alternativas previstas em uma disposição legal deverá ser condenado por um só facto e não por um concurso de delitos integrado por aquelas" (Jescheck/Weigend). b) A alteração dos factos que ocorreu entre a acusação e a condenação não levou à imputação de um crime diverso, nem à agravação dos limites máximos da sanção a aplicar; tratou-se apenas de uma alteração não substancial e de uma alteração da qualificação jurídica notificada ao arguido nos termos do art. 358.º, n.º 3, do CPP, pelo que o acórdão recorrido não é nulo. c) Constituindo a análise da violação do princípio do in dubio pro reo matéria de direito, do âmbito de cognição deste tribunal, a partir do texto da decisão recorrida não se vislumbra qualquer hesitação ou dúvida quanto à matéria de facto provada, pelo que não pode concluir-se que tenha havido violação daquele princípio. d) O acórdão do Tribunal da Relação confirmou a condenação do arguido em pena de prisão de 2 anos e 9 meses, pela prática de um crime de de violência doméstica agravada, pelo que, nos termos do art. 400.º, n.º 1, al. f) do CPP, a decisão é irrecorrível; e) Por força do art. 671.º, n.º 3 do CPC ex vi art. 4.º, do CPP, tendo havido dupla conforme não é admitido o recurso relativo à questão civil julgada, pelo que fica prejudicada a apreciação relativa à questão invocada quanto à falta (ou não) de capacidade judiciária do demandante. III Conclusão Nos termos acima expostos, acordam em conferência na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo integralmente a decisão recorrida. Nos termos do art. 513.º, n.º 1, do CPP, condena-se no pagamento de taxa de justiça em 8 UC.
Supremo Tribunal de Justiça, 14 de abril de 2016 Os Juízes Conselheiros,
(Helena Moniz) (Nuno Gomes da Silva) |