Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3ª. SECÇÃO | ||
Relator: | MANUEL AUGUSTO DE MATOS | ||
Descritores: | HABEAS CORPUS PRISÃO ILEGAL PRISÃO PREVENTIVA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA CRIME RECURSO PENAL | ||
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Data do Acordão: | 08/12/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | HABEAS CORPUS | ||
Decisão: | INDEFERIR A PROVIDÊNCIA DE HABEAS CORPUS | ||
Área Temática: | DIREITO PROCESSUAL PENAL – MEDIDAS DE COACÇÃO E DE GARANTIA PATRIMONIAL / MEDIDAS DE COACÇÃO / MODOS DE IMPUGNAÇÃO / HABEAS CORPUS EM VIRTUDE DE PRISÃO ILEGAL. | ||
Doutrina: | - GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, II, Editorial Verbo, p. 260; - J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª Edição revista, 2007, Coimbra Editora, p. 508 e 510. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 220.º, N.º 1 E 222.º, N.º 2. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 15-01-2014, PROCESSO N.º 1216/05.9GCBRG-A.S1; - DE 26-02-2014, PROCESSO N.º 6/14.2YFLSB.S1; - DE 11-12-2014, PROCESSO N.º 1049/12.6JAPRT-C.S1, IN WWW.DGSI.PT; - DE 15-01-2015, PROCESSO N.º 895/14.0PGLRS-A.S1; IN SASTJ - SECÇÕES CRIMINAIS, JANEIRO – DEZEMBRO DE 2015; - DE 09-04-2015, PROCESSO N.º 21/15.9SHLSB-A.S1; - DE 23-04-2015, PROCESSO N.º 381/12.3JELSB-S.S1; - DE 28-05-2015, PROCESSO N.º 62/15.6YFLSB.S1; - DE 15-07-2015, PROCESSO N.º 529/03.9TAAVR-D.S1; - DE 21-06-2016, PROCESSO N.º 216/16.8PKLSB-A.S1. | ||
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Sumário : | I - A providência de habeas corpus tem os seus fundamentos previstos, de forma taxativa, nos arts. 220.º, n.º 1, e 222.º, n.º 2, ambos do CPP, consoante o abuso de poder derive de uma situação de detenção ilegal ou de uma situação de prisão ilegal, respectivamente. A ilegalidade da prisão pode provir (art. 222.º, n.º 2): a) ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; b) ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial. II – Esta providência está processualmente configurada como uma providência excepcional, não serve para apreciar a correcção da qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido, bem como não constitui recurso sobre actos do processo, designadamente sobre actos através dos quais é ordenada ou mantida a privação de liberdade do arguido, nem é um sucedâneo dos recursos admissíveis, estes sim, os meios adequados de impugnação de decisões judiciais. III - A providência de habeas corpus não se destina a formular juízos de mérito sobre as decisões judiciais determinantes da privação da liberdade ou a sindicar nulidades ou irregularidades dessas decisões – para isso servem os recursos ordinários – mas tão só a verificar, de forma expedita, se os pressupostos da prisão constituem patologia desviante (abuso de poder ou erro grosseiro) enquadrável nas três alíneas do n.º 2 do art. 222 do CPP. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I – RELATÓRIO
1. AA, de nacionalidade espanhola, detido no Estabelecimento Prisional de Caxias, vem, através da sua mandatária, requerer a providência de HABEAS CORPUS, visando a sua «libertação imediata», com os fundamentos que se transcrevem[1]:
«1.O requerente foi presente a primeiro interrogatório judicial 28 de Maio de 2015, tendo por despacho proferido no dia seguinte – 29 de Maio de 2015, sido decretada a sua prisão preventiva. 2.Está previsto para 16/09/2016 a ultima sessão de julgamento. 3.Encontrando-se, no dia de hoje, o aqui requerente há 14 meses e 04 dias em situação de prisão preventiva. 4.Os autos não se encontram em regime de especial complexidade. 5.Ao abrigo da Lei 48/2007 de 29 de Agosto, que altera o Código de Processo Penal, o prazo máximo de prisão preventiva sem que seja proferida decisão condenatória de primeira instância, é nos termos do disposto no Art.º 215 N.º 1 aln d) do C.P.P. de 14 meses passando para 18 nas situações especificamente descritas no N. 2 do referido Artigo. 6.O arguido encontra-se preso preventivamente há 14 meses e 04 dias. 7.Ainda que resulte da acusação estar o aqui requerente indiciado da prática de um crime de Trafico de produto estupefaciente p. e p. no Art 21º do Dec. Lei 15/93 de 22.1, verdade é que tal qualificação jurídica se mostra – salvo melhor e mais douto entendimento, uma grosseira ilegalidade quanto à qualificação jurídica dos factos, tal como configurados no caso concreto até ao momento – pois os mesmos têm enquadramento inequívoco (senão em outro menos gravoso como a tentativa) no crime de menor gravidade p. e p. no Art 25º do Dec Lei 15/93 de 22.1, sendo certo que a moldura penal daquele não integra o alargamento de prazos previsto no N.2 do Art 215º do C.P.P. 8.Na verdade, à parte da quase cristalina existência de mera tentativa do crime de trafico de produto estupefaciente, e da ainda mais flagrante nulidade processual originada pela utilização ilegal de um agente infiltrado, ou no limite, o recurso a meios enganosos na obtenção da prova, inquinando de nulidade todo o processo, resulta evidente do texto da própria decisão de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, e bem assim do texto da decisão instrutória, que o aqui requerente (como ali se lê - único cujas declarações merecem credibilidade total pela coerência e razoabilidade do discurso) que o aqui requerente não passava de um mero correio. 9.Que vinha a mando de um terceiro, sem conhecimento do que transportava (qualidade e quantidade) e que nunca antes havia lidado com o meio do tráfico onde se viu envolvido. 10.Ou seja, foi aceite que o arguido era um “simples correio”, sem qualquer ligação ou posição em uma qualquer organização (que aliás se desconhece se existe), e que foi a primeira vez que praticou tais actos, e em condições muito especiais, que ocorreram como se percebeu já e foi testemunhado, no âmbito de uma acção encoberta ilegal, e no limite ao abrigo de uma entrega controlada, eliminando o perigo de violação do bem protegido pela norma – saúde pública, devendo obrigatoriamente de integrar-se a situação do arguido no art. 25º do Dec Lei 15/93 de 22.1. 11.Pelo exposto encontra-se o detido em situação de prisão Ilegal, porque em privação de liberdade há mais de 14 meses, atendendo ao disposto no Art.º 222, N.º 1 e 2 aln. c), impondo-se a sua imediata libertação! 12. Na sequência e e [m] concordância com o voto vencido aposto no acórdão de 01-02-2007 desse Venerando Supremo Tribunal de Justiça - Proc. 7P353, “… Embora concorde com a tese geral defendida no acórdão ora aprovado, no que respeita à natureza e fins da providência de habeas corpus por prisão ilegal, a razão da minha discordância radica, essencialmente, em considerar que, no caso concreto, estamos perante uma grosseira ilegalidade quanto à qualificação jurídica dos factos, tal como configurados até ao momento – e só com esses podemos contar nesta providência e não com outros que venham a ser entretanto apurados …” 13. “ … Assim, mesmo numa providência excepcional e expedita como é o habeas corpus, poderia e deveria fazer-se esta análise jurídica, necessariamente perfunctória, que não iria impedir uma discussão mais alargada no processo principal, já que a decisão aqui lavrada só faria caso julgado quanto à prisão preventiva e com os elementos de facto até agora recolhidos…” 14. “ … Por outro lado, a circunstância do despacho de pronúncia produzir efeitos no processo quanto à qualificação jurídica dos factos não obsta a que os juízes do julgamento, ou os juízes que julgarem os recursos ordinários, muito menos este Supremo Tribunal de Justiça num habeas corpus, possam modificar livremente a qualificação jurídica, principalmente se for num sentido mais favorável ao arguido, pois neste ponto só o trânsito em julgado da decisão final constitui um marco inultrapassável…”. 15. “ … Gomes Canotilho e Vital Moreira, na “Constituição da República Portuguesa – Anotada”, vol. I, Coimbra Editora, 2007, pág. 510, referem que «a Constituição não estabelece nem configura a providência de habeas corpus como uma providência extraordinária, pelo que é duvidosa a bondade da jurisprudência dominante...mas não é de excluir a possibilidade de habeas corpus em alternativa ao recurso ordinário, quando este se revele insuficiente para dar resposta imediata e eficaz à situação de detenção ou prisão ilegal» (sublinhados nossos)…” 16. “ … A resolução deste habeas corpus que defendi, de considerar que o arguido está em prisão preventiva “por facto pelo qual a lei não permite”, teria o mérito de pôr imediatamente cobro a uma manifesta ilegalidade, sem prejudicar e até podendo beneficiar a discussão mais serena que se vai continuar a fazer no processo principal, onde todas as questões podem e devem ser analisadas até à exaustão.” Em conclusão:
a)- O requerente encontra-se ilegalmente preso, o que cristalinamente viola o disposto nos Art. 27º N.º1 e 3, e Art. 28º N.º4 da C.R.P. b)- Igualmente violado foi o disposto no Art 222º n.º 1 Alínea c) do C.P.P. c)- Nos termos dos Art. 31º n.º 3 da C.R.P. e 222º e 223º n.º 4 alínea d) do C.P.P. deve a prisão ser declarada ilegal e ordenada a sua imediata restituição à liberdade.»
2. O Ex.mo Juiz da Comarca de Lisboa Norte – Loures - Instância Central – Secção Criminal – J 4, exarou a informação, nos termos do n.º 1 do artigo 223.º do Código de Processo Penal, consignando:
«Providência de “habeas corpus”
Informação a que alude o art. 223º, nº 1 do CPP:
Veio o arguido AA apresentar petição de “habeas corpus” por prisão ilegal, invocando que se encontra preso preventivamente há 14 meses e 4 dias, o que excede em 4 dias o prazo máximo de 1 ano e 4 meses previsto no art. 215º, nº1, al. c) do CPP, uma vez que, muito embora este se encontra acusado da prática de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo art. 21º do DL 15/93 de 22-01, a verdade é que tal assenta numa “grosseira ilegalidade quanto à qualificação jurídica dos factos pois os mesmos têm enquadramento inequívoco (senão em outro menos gravoso como a tentativa) no crime de menor gravidade p. e p. no art. 25º do Dec Lei 15/93, de 22.1º e o mencionado ilícito não integra o alargamento de prazos previsto no art. 215º, nº2 do CPP.
Compulsados os autos verifica-se que:
1 – O arguido foi detido em 28-05-2015 e viria a ser submetido à medida de coacção de prisão preventiva em 1-06-2015, após 1º interrogatório de arguido detido – cfr. fls. 1985 a 1988, 2100 a 2103 e 2117 a 2131 e 2209;
2 – Foi acusado nos presentes autos pela prática de factos integradores de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos arts. 21º, nº 1 e 24º, nº 1, als. c) e j) do DL 15/93, de 22 de Janeiro – cfr. fls. 2556 a 2580;
3 – Requerida a abertura de instrução, veio o arguido a ser pronunciada pelas razões de facto e de direito constantes da acusação, para cujos termos o despacho de pronúncia operou remissão – cfr. fls. 2862 a 2871;
4 – A audiência de julgamento teve início no dia 25 de maio de 2016 e encontra-se com continuação designada para o próximo dia 16 de Setembro de 2016, pelas 09h30 – cfr. fls. 3224-3226 e fls. 3498 a 3507;
5 – A medida de coacção de prisão preventiva a que o arguido se encontra sujeito foi revista pela última vez em 16-06-2016, tendo o despacho então proferido afirmado a manutenção dos pressupostos que a haviam determinado e decidido, em consequência, pela sua manutenção – cfr. fls. 3293;
6 - Não foi até à data comunicada qualquer alteração da qualificação jurídica dos factos;
7 – Assim, o prazo máximo de prisão preventiva aplicável é o que se encontra previsto no art. 215º, nº 1, al. c) e 2 do CPP, não se mostrando, salvo melhor entendimento, excedido.»
3. Convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e o Mandatário do requerente, teve lugar a audiência, nos termos dos artigos 223.º, n.os 2 e 3, e 435.º do Código de Processo Penal, cumprindo tornar pública a respectiva deliberação.
II - FUNDAMENTAÇÃO
A. Os factos
Constam dos autos os seguintes elementos fácticos que interessam para a decisão da providência requerida:
1 – O arguido-requerente foi detido no dia 28 de Maio de 2015 e viria a ser submetido à medida de coacção de prisão preventiva em 1 de Junho de 2015, após 1.º interrogatório de arguido detido, por existência de fortes indícios de factualidade que permitiu imputar-lhe, bem como a outros dois arguidos, a prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado p. e p. pelo artigo 24.º, n.º 1, alíneas b) e c) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e dos demais fundamentos constantes do despacho de fls. No mesmo despacho foi validada a detenção do requerente e, bem assim, as vigilâncias e os fotogramas recolhidos.
2 – Por acusação deduzida em 27 de Novembro de 2015, foi imputado ao requerente a prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, n.º 1, alíneas c) e j), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-B.
3 – Requerida a abertura de instrução, veio o arguido a ser pronunciada pelas razões de facto e de direito constantes da acusação, para cujos termos o despacho de pronúncia operou remissão. No âmbito do reexame das medidas de coacção, em conformidade com o disposto no artigo 213.º. n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal, doravante CPP, foi decidido manter a situação de prisão preventiva em que os arguidos, de entre os quais o requerente, se encontram, tendo-se então consignado que: «Dos elementos constantes dos autos, os quais presidiram às decisões de aplicação, em 30 de Maio e 1 de Junho de 2015, da medida de coacção de prisão preventiva, verifica-se que estes não sofreram qualquer alteração, ao invés, surtiram reforçados com a prolação de despacho final de acusação e, desta feita, com a pronúncia, porquanto foi imputada aos arguidos a prática de um (1) crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, n.º 1, alíneas c) e j), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro. Por outro lado, inexistem elementos de onde se possa concluir pela cessação dos perigos concretos de fuga, de continuação da actividade criminosa, conservação ou veracidade da prova bem como de perturbação da tranquilidade pública, atenta a natureza e a gravidade dos ilícitos praticados (cfr. artigo 204.º, alíneas a) a c) do Código de Processo Penal).»
4 – A audiência de julgamento teve início no dia 25 de maio de 2016 e encontra-se com continuação designada para o próximo dia 16 de Setembro de 2016.
5 – A medida de coacção de prisão preventiva a que o arguido se encontra sujeito foi revista pela última vez em 16-06-2016, tendo o despacho então proferido afirmando a manutenção dos pressupostos que a haviam determinado e decidido, em consequência, pela sua manutenção.
B. O direito
1. Estabelece o artigo 31.º, n.os 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, que o próprio ou qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos pode requerer, perante o tribunal competente, a providência de habeas corpus em virtude de prisão ou detenção ilegal. O instituto do habeas corpus «consiste essencialmente numa providência expedita contra a prisão ou detenção ilegal, sendo, por isso, uma garantia privilegiada do direito à liberdade, por motivos penais ou outros. (…). «Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa dos direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade», podendo ser requerido «contra decisões irrecorríveis, (…) mas não é de excluir a possibilidade de habeas corpus em alternativa ao recurso ordinário, quando este se revele insuficiente para dar resposta imediata e eficaz à situação de detenção ou prisão ilegal»[2]. Visando reagir contra o abuso de poder, por prisão ou detenção ilegal, o habeas corpus constitui, para GERMANO MARQUES DA SILVA, «não um recurso, mas uma providência extraordinária com natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação de ilegal privação de liberdade»[3]. Como o Supremo Tribunal de Justiça vem afirmando, esta providência constitui «um processo que não é um recurso mas uma providência excepcional destinada a pôr um fim expedito a situações de ilegalidade grosseira, aparente, ostensiva, indiscutível, fora de toda a dúvida, de prisão e, não, a toda e qualquer ilegalidade, essa sim, objecto de recurso ordinário ou extraordinário…»[4]. Daí que, a providência de habeas corpus tenha os seus fundamentos previstos, de forma taxativa, nos artigos 220.º, n.º 1 e 222.º, n.º 2 do CPP, consoante o abuso de poder derive de uma situação de detenção ilegal ou de uma situação de prisão ilegal, respectivamente.
2. Tratando-se de habeas corpus em virtude de prisão ilegal, situação que se destaca por ser aquela que o requerentes invoca, esta há-de provir, de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 222.º do CPP, de: a) Ter sido efectuada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto que a lei não permite; ou c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.
Como este Supremo Tribunal vem sistematicamente decidindo, a providência de habeas corpus está processualmente configurada como uma providência excepcional, não constituindo um recurso sobre actos do processo, designadamente sobre actos através dos quais é ordenada ou mantida a privação de liberdade do arguido, nem sendo um sucedâneo dos recursos admissíveis, estes sim, os meios adequados de impugnação das decisões judiciais. Assim, como se considera no seu acórdão de 15-01-2014, proferido no proc.º n.º 1216/05.9GCBRG-A.S1 - 3.ª, «está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça substituir-se ao tribunal que ordenou a prisão em termos de sindicar os fundamentos que a ela subjazem, ou seja, de conhecer da bondade da decisão, já que, se o fizesse, estaria a criar um novo grau de jurisdição. Conforme se lê no acórdão deste Supremo Tribunal, de 26-02-2014 (proc.º n.º 6/14.2YFLSB.S1 - 3.ª Secção):
Esta jurisprudência tem sido sucessivamente reafirmada, designadamente no que se reporta a situações, como a que o requerente aponta, em que existe discordância relativamente à qualificação jurídica dos factos. Assim, referenciando pronúncias mais recentes deste Supremo Tribunal, lê-se no acórdão de 15-01-2015 (Proc. n.º 895/14.0PGLRS-A.S1 - 5.ª Secção)[5]:
O habeas corpus não constitui o meio próprio de impugnação das decisões processuais ou para arguição de nulidades ou irregularidades eventualmente cometidas no processo. E também, como expressamente se refere nos acórdãos deste Supremo Tribunal, de 23-04-2015 (Proc. n.º 381/12.3JELSB-S.S1 – 5.ª Secção), e de 28-05-2015 (Proc. n.º 62/15.6YFLSB.S1 – 5.ª Secção)[7], a providência de habeas corpus também não serve para apreciar a correcção da qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido, decisões cujo meio adequado de impugnação é o recurso ordinário.
3. A procedência do pedido de habeas corpus pressupõe ainda uma actualidade da ilegalidade da prisão aferida em relação ao tempo em que é apreciado o pedido. Trata-se de asserção que consubstancia jurisprudência sedimentada no Supremo Tribunal de Justiça, como se dá nota no acórdão de 21 de Novembro de 2012 (Proc. n.º 22/12.9GBETZ-0.S1 – 3.ª Secção), onde se indicam outros arestos no mesmo sentido, bem como no acórdão de 9 de Fevereiro de 2011 (Proc. n.º 25/10.8MAVRS-B.S1 – 3.ª Secção).
4. Alega o requerente que se encontra «detido em situação de prisão ilegal, porque em privação de liberdade há mais de 14 meses», invocando a norma contida no artigo 222.º, n.º 2, alínea c), do CPP – ilegalidade da prisão por se manter para além dos prazos fixados pela lei. Como sustentação desta pretensão, considera o requerente que a qualificação jurídica dos factos que lhe são imputados na acusação e pelos quais se encontra pronunciado e já a ser objecto de julgamento – crime de tráfico agravado p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1, e 24.º, alíneas c) e j), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro – «se mostra (…) uma grosseira ilegalidade», entendendo que os mesmos «têm enquadramento inequívoco (…) no crime de menor gravidade p. e p. no Art. 25.º do Dec Lei 15/93 de 22/1, sendo certo que a moldura penal daquele não integra o alargamento de prazos previsto no N. 2 do Art. 215 do C.P.P.». Lateralmente, ainda que sem outros desenvolvimentos, convoca o requerente a «quase cristalina existência de mera tentativa do crime de tráfico de produto estupefaciente, e da ainda mais flagrante nulidade processual originada pela utilização ilegal de um agente infiltrado, ou no limite, o recurso a meios enganosos na obtenção da prova». Os elementos disponíveis não apontam para verificação das nulidades que, sem qualquer outro fundamento ou suporte, o requerente acena. De todo o modo, e reafirmando considerações já tecidas, a providência de habeas corpus não é o meio próprio para a arguição de nulidades ou irregularidades eventualmente ou pretensamente cometidas no processo uma vez que o meio adequado de impugnação é o recurso ordinário. Tais matérias não estão, como este Supremo Tribunal tem sistematicamente entendido, compreendidas no âmbito da providência de habeas corpus.
Como já se referiu, o habeas corpus está processualmente configurado como uma providência excepcional, não podendo ser utilizada como um recurso sobre actos do processo, designadamente, como se considera no acórdão deste Supremo Tribunal, de 15 de Janeiro de 2014 (Proc. n.º 1216/05.9GCBRG-A.S1 – 3.ª Secção), «sobre actos através dos quais é ordenada e mantida uma privação de liberdade do arguido, nem é um sucedâneo dos recursos admissíveis, estes sim, os meios adequados de impugnação das decisões judiciais», pois «está vedado ao STJ substituir-se ao tribunal que ordenou a prisão em termos de sindicar os fundamentos que a ela subjazem, ou seja, de conhecer da bondade da decisão, já que, se o fizesse, estaria a criar um novo grau de jurisdição.» A discordância quanto à qualificação jurídica dos factos operada na decisão acusatória e reafirmada na decisão de pronúncia não constitui, conforme jurisprudência sedimentada do Supremo Tribunal de Justiça, de que constituem exemplo os acórdãos já citados, fundamento para a ilegalidade da prisão. A qualificação jurídica da factualidade foi efectuada, em adequada fundamentação, pelas autoridades judiciárias envolvidas, tendo-se concluído pela existência de fortes indícios da prática pelo arguido, agora requerente, sob a forma consumada, do crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1, e 24.º, alíneas c) e j), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro. As disposições contidas nas alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP não podem ter em vista «a situação de prisão preventiva cuja legalidade ou ilegalidade seja discutível por depender do entendimento que se tenha sobre se existem ou não fortes indícios da prática do crime ou crimes que determinaram a imposição da medida. O juízo sobre a suficiência ou insuficiência dos indícios para o decretamento da prisão preventiva, podendo implicar demorado e complexo exame dos elementos de prova existentes no processo, não é, ou frequentemente não será, compatível com a exiguidade daquele prazo. Neste sentido, o STJ vem afirmando que não cabe no âmbito da providência de habeas corpus apreciar a validade e justeza de juízos firmados com base em vários meios de prova», conforme acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28-05-2015, proferido no Proc. n.º 64/15.2YFLSB.S1 - 5.ª Secção[8], acórdão que está em consonância com os já mencionados. No mesmo entendimento se insere o acórdão deste Supremo Tribunal, de 1 de Fevereiro de 2007, proferido no proc. n.º 07P353, cuja declaração de voto de vencido por um dos Ex.mos Conselheiros Adjuntos o requerente entendeu transcrever para sustentar a sua pretensão. Em tal decisão se entendeu justamente que: Foi esta a posição que fez vencimento a qual corresponde, como já se referiu, ao entendimento sistematicamente perfilhado por este Supremo Tribunal e que corresponde, sem margem para dúvidas, à natureza e ao perfil da providência de habeas corpus, sendo certo que a declaração de voto aí exarada teve necessariamente por base a situação muito particular, muito específica do caso aí em apreço, sendo infundada qualquer extrapolação imotivada para outras situações e, em particular, para o caso que agora nos ocupa. Em acórdão deste Supremo Tribunal recentemente proferido[9], foi este entendimento reafirmado, numa situação em que o requerente da providência de habeas corpus alegava a inexistência de «indiciação bastante do cometimento (…) de um crime de roubo, na forma consumada, em co-autoria material». Considerou-se, então, na linha de jurisprudência que se referencia, que o instituto do habeas corpus «não constitui um recurso sobre actos de um processo, designadamente sobre actos através dos quais é ordenada e mantida a privação de liberdade do arguido, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis, estes sim, os meios ordinários e adequados de impugnação das decisões judiciais». Por outro lado, afirma-se ainda, está vedado ao Supremo tribunal de Justiça «substituir-se ao tribunal que ordenou a prisão que está na base da petição de habeas corpus em termos de sindicar os motivos que a ela subjazem, visto que se o fizesse estaria a criar um novo grau de jurisdição, igualmente lhe estando vedado apreciar eventuais anomias processuais situadas a montante ou a jusante da decisão que ordenou a prisão, a menos que a situação de privação da liberdade subjacente ao pedido de habeas corpus consubstancie um inequívoco abuso de poder ou um erro grosseiro na aplicação do direito». Concluiu-se não caber no âmbito da providência do habeas corpus «aferir da suficiência da prova na base da qual foi determinada a medida de coacção, competência esta exclusiva do Tribunal da Relação a exercer por via de recurso».
5. Conforme jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça, o habeas corpus não se destina a formular juízos de mérito sobre as decisões judiciais determinantes da privação da liberdade ou a sindicar nulidades ou irregularidades dessas decisões ─ para isso servem os recursos ordinários ─ mas tão só a verificar, de forma expedita, se os pressupostos da prisão constituem patologia desviante (abuso de poder ou erro grosseiro) enquadrável nas três alíneas do n.º 2 do art. 222.º do CPP. O arguido-requerente não se encontra em situação de prisão ilegal que prefigure a existência dos pressupostos da providência extraordinária do habeas corpus se a prisão foi ordenada por entidade competente (a autoridade judiciária competente), por factos fortemente indiciados constitutivos de ilícitos criminais, pelos quais a lei permite a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva e caso esta se mantenha dentro do prazo máximo da sua duração. Efectivamente, foi reconhecida no primeiro interrogatório de arguido detido, no despacho de acusação proferido nos autos e na decisão instrutória a existência de fortes indícios de factualidade que permite imputar ao arguido, agora requerente, a prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, alíneas c) e j) do Decreto-Lei n.º 15/93. Corresponde a este crime pena de prisão de 4 a 12 anos aumentada de um quarto nos seus limites mínimo e máximo. Em conformidade com o disposto no artigo 215, n.ºs 1, alínea c) e 2 do CPP, é de um ano e seis meses o prazo de duração máxima de prisão preventiva aqui aplicável, prazo que ainda não decorreu.
6. Em face do exposto, emanando a prisão do requerente de decisão judicial proferida em 1 de Junho de 2015 na sequência do interrogatório judicial de arguido detido, mantida por decisão do juiz de instrução de 18 de Março de 2016, tratando-se de medida de coacção – prisão preventiva – aplicada por se ter considerado estar fortemente indiciada a prática, em autoria material, de factos integradores do crime de tráfico de estupefacientes agravado punível com pena de prisão de 5 a 15 anos, sendo, pois, admissível em conformidade com o disposto no artigo 202.º, n.º 1, alínea a), do CPP, medida que se entendeu como sendo a única adequada, suficiente e proporcional às exigências cautelares do caso. Por seu lado, como já se referiu o prazo de duração máxima de prisão preventiva – um ano e seis meses sem que tenha havido condenação em 1.ª instância – aqui aplicável, ainda não decorreu.
Carece, pois, de fundamento legal a providência de habeas corpus requerida.
III. DECISÃO
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 12 de Agosto de 2016 (Processado e revisto pelo relator – artigo 94.º, n.º 2, do CPP)
Os Juízes Conselheiros
Manuel Augusto de Matos (Relator) Francisco Caetano _______________________________________________________ |