Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08P2156
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS CABRAL
Descritores: HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
VIOLAÇÃO DO DEVER DE CUIDADO
NEGLIGÊNCIA
REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
INDEMNIZAÇÃO
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
NEXO DE CAUSALIDADE
EXCLUSÃO DA RESPONSABIBLIDADE OBJECTIVA
DEVER DE VIGILÂNCIA
CONCURSO DA CULPA DO LESADO COM O RISCO DO VEÍCULO
DIREITO À VIDA
EQUIDADE
Nº do Documento: SJ200807020021563
Data do Acordão: 07/02/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :
I - As regras de precaução que estão subjacentes ao dever objectivo de cuidado, cuja violação integra a prática do crime negligente, podem ter uma fonte social ou uma fonte jurídica. São qualificadas de normativos sociais a negligência, a imprudência e a imperícia – cf. Fiandaca e Musco, Diritto Penale – Parte Generale, pág. 489 e ss. –, pois as regras da diligência, prudência e perícia não se encontram predeterminadas na lei ou noutra fonte jurídica, mas têm na sua génese a experiência da vida social. Haverá negligência se a regra de conduta violada prescreve uma actividade positiva; existirá imprudência na transgressão de uma regra de conduta de que advém a obrigação de não realizar uma determinada acção ou de a realizar em termos diferentes daqueles que foram efectivamente realizados; e a imperícia consiste numa forma de imprudência ou negligência qualificada e refere-se a actividades que exigem particulares conhecimentos técnicos.
II - A fonte daquelas regras cautelares também pode ser jurídica. Na verdade, o mundo moderno assiste a uma crescente positivização das regras de prudência de forma a disciplinar as situações de perigo mais típicas, como é o caso da circulação estradal, com a consequente imposição de um catálogo de normas próprias para regular tal circulação.
III - Assim, em sede de acidentes rodoviários, a imputação de um tipo de crime negligente terá subjacente a violação de um dever objectivo de cuidado que emergirá ou daquela fonte das regras de experiência comum, ou da violação das normas do CEst, ou da violação de ambas. Estamos inteiramente de acordo com a tese defendida por este STJ de que, tendo existido uma violação das normas estradais, se o evento produzido foi do tipo que a lei quis evitar quando impôs a disciplina violada, se deve presumir a negligência.
IV - As regras da experiência comum não impõem necessariamente a conclusão de que, pelo facto de ser dia, a via ser uma recta e não existir obstáculo impedindo a visão, o acidente tenha na sua génese a desatenção do condutor. Tais regras apenas permitem a formulação de conjecturas sobre uma pluralidade de hipóteses explicativas do acidente.
V - Num caso em que a recorrente faz apelo ao facto de, em seu entender, as circunstâncias de tempo, lugar e modo em que ocorreu o acidente imprimirem necessariamente a ideia de que a condutora do veículo, ao não se aperceber da vítima, estava desatenta e, consequentemente, provocou o evento, ou seja, o atropelamento do menor, o que está em causa é uma diversa inferência que a recorrente faz em relação aos factos considerados provados, com uma diferente convicção em termos probatórios e uma diversa valoração da prova produzida em audiência, o que não se pode confundir com erro notório na apreciação da prova.
VI - No domínio da responsabilidade civil extracontratual, a formação da obrigação de indemnizar pressupõe, em princípio, a existência de um facto voluntário ilícito – isto é, controlável pela vontade do agente e que infrinja algum preceito legal, e um direito ou interesse, de outrem, legalmente protegido –, censurável àquele do ponto de vista ético-jurídico – ou seja, que lhe seja imputável a título de dolo ou culpa –, de um dano ou prejuízo reparável, e, ainda, de um nexo de causalidade adequada entre este dano e aquele facto (arts. 483.º, n.º 1, 487.º, n.º 2, 562.º, 563.º e 564.º, n.º 1, do CC).
VII - Embora predomine a responsabilidade subjectiva, ou baseada na culpa, sancionam-se também situações excepcionais de responsabilidade objectiva ou pelo risco, isto é, situações independentes de qualquer dolo ou culpa da pessoa obrigada à reparação, entre as quais se situa a responsabilidade pelos danos causados por veículos de circulação terrestre (arts. 483.º, n.º 2, e 503.º a 508.º do CC).
VIII - São pressupostos desta modalidade de responsabilidade civil: a prática pelo agente de um facto; a existência de um dano reparável na esfera jurídica de um terceiro e o nexo de causalidade adequada entre o referido facto e o dano (arts. 499.º, 563.º e 564.º, n.º 1, do CC). Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que se não encontre em circulação (art. 503.º, n.º 1, do CC).
IX - Tais danos, que a pessoa responsável é obrigada a indemnizar, são os que tiverem como causa jurídica o acidente provocado pelo veículo, ou seja, compreende-se no risco tudo o que se relacione com a máquina enquanto engrenagem de complicado comportamento. Fora do círculo de danos abrangidos pela responsabilidade ficam os que não têm conexão com os riscos específicos do veículo, os que são estranhos aos meios de circulação ou transporte terrestre, entendendo-se como tal os que foram causados pelo veículo como poderiam ter sido provocados por qualquer outra coisa móvel.
X - Assim, não estando demonstrados factos que fundamentem a violação de um dever objectivo de cuidado, ou seja, inexistindo qualquer demonstração de culpa do condutor, estamos perante a eclosão de um evento indissociavelmente ligado à circulação de um veículo automóvel (responsabilidade pelo risco), mas ficando em crise um pressuposto da responsabilidade civil por facto ilícito.
XI - Resulta do art. 505.º do CC que a lei não exige que o acidente seja imputável ao lesado, e/ou a terceiro a título de dolo ou de culpa para que seja excluída a referida responsabilidade pelo risco, bastando para o efeito que ele seja devido, em termos de causalidade, a facto de um ou de outro.
XII - A possibilidade de concurso, em acidente de viação, do perigo especial do veículo com facto de terceiro ou da vítima (culposo ou não), de modo a conduzir a uma repartição da responsabilidade, ou a uma atenuação da obrigação dindemnizar fundada no risco, é rejeitada, com o argumento de não ser justa, nem ter consagração legal. Se o acidente ocorre porque o lesado, ou terceiro, não observaram as regras de prudência exigíveis em face do perigo normal do veículo, cessa a responsabilidade do detentor, porque, não obstante o risco inerente à viatura, os danos provêm de facto de outrem. A responsabilidade (objectiva) imposta ao detentor do veículo é já de tal modo severa que não é justo nem razoável «sobrecarregá-la», ainda, com os casos em que, não havendo culpa dele, o acidente é imputável a quem não adoptou as medidas de prudência exigidas pelo risco da circulação.
XIII - O que se coloca é, não propriamente um problema de culpa, mas, antes, um problema de causalidade, uma vez que o relevante não é saber se o lesado é responsável pelos danos provenientes dos factos que haja praticado, mas sim se esses factos são consequência do facto por si praticado, se o evento danoso é atribuível à sua actuação.
XIV - Relevará aqui, porque de causalidade se trata, a necessidade de, num juízo de prognose posterior objectiva, formulado a partir das circunstâncias conhecidas e cognoscíveis de um observador experiente, se poder afirmar que o acto do lesado, tendo em conta a actuação do lesante, «favorecia aquela espécie de dano, surgindo este, pois, como uma consequência provável ou típica daquele facto». É preciso, em suma, que o comportamento do lesado se não mostre indiferente para a verificação do dano, o que sucederá se «segundo o decurso normal das coisas e da experiência da vida, não eleva, nem favorece, nem modifica os riscos da verificação do dano», pois que, se assim for, haverá inadequação – cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, pág. 518, Rui Alarcão, Obrigações, Lições, pág. 328, e Brandão Proença, A Conduta do Lesado…, pág. 445.
XV - Essa relação de imputação tem de ser objectiva, configurada em concreto nos termos do art. 505.º do CC (exclusão da responsabilidade objectiva), e não com base numa presunção, nomeadamente a afirmada no art. 491.º do CC (responsabilidade das pessoas obrigadas à vigilância de outrem), cujo campo de aplicação é totalmente distinto, incidindo sobre os danos produzidos pela pessoa sujeita à vigilância de outrem.
XVI - Em concreto, a responsabilidade do progenitor apenas poderá ser afirmada a partir do momento em que se demonstre que este não respeitou os deveres que sobre si impendiam, derivados da sua qualidade de pai, e da menoridade da vítima, sendo certo que o dever de vigilância não significa um controlo omnipresente, tutor de toda e qualquer actividade ou movimento do menor, mas uma obrigação com a finalidade de prevenir os perigos que lhe possam advir, através dos cuidados normais, a apreciar segundo as circunstâncias de cada caso.
XVII - Numa situação em que da materialidade considerada provada apenas consta que, antes da ocorrência do acidente, o menor H se encontrava na varanda que tem acesso para a rua, tendo sido advertido pelo pai para não sair, desconhecendo-se por completo o circunstancialismo que rodeou os factos, desde esse momento até ao atropelamento pela viatura,não está demonstrado que aqueles cuidados não tenham existido – bem como não está demonstrado o seu contrário –, o que, à partida, invalida qualquer afirmação da existência de um acto ou omissão do pai do menor ao qual seja imputável a eclosão do sinistro.
XVIII - De qualquer forma, o art. 491.º do CC respeita à presunção de culpa in vigilando relativa aos danos causados a terceiro e não aos danos causados à pessoa vigiada. Quanto a estes vigoram os princípios gerais, pois que, em relação às próprias pessoas obrigadas à vigilância de outrem, elas não são apenas responsáveis pelos danos que este cause a terceiro, nos termos do art. 491.º, mas respondem também, por força do disposto no art. 486.º, pelos danos que as pessoas vigiadas sofram com a omissão do dever de vigilância (v.g., se elas se ferirem ou morrerem em consequência dessa omissão).
XIX - Mas, mesmo admitindo que, para além da responsabilidade pelo risco inerente à condução do veículo, estivesse demonstrada a existência do concurso de culpa de terceiro, sempre seria de perfilhar a perspectiva inovadora desenhada no Ac. deste STJ de 04-10-2007, interpretação progressista ou actualista do art. 505.º segundo a qual importa que se tenha em conta (art. 9.º, n.º 1, do CC) a unidade do sistema jurídico, isto é, que se considere o sistema jurídico global de que a norma faz parte e, neste, o acervo de normas que consagra o concurso da culpa da vítima com o risco da actividade do agente, e se repute adquirida, como princípio geral e universal do pensamento jurídico contemporâneo, em que a responsabilidade pelo risco é enfocada a uma nova luz, iluminada por novas concepções de solidariedade e justiça, e acolhida naquele normativo, a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, e as condições do tempo em que tal norma é aplicada.
XX - É assim que o acórdão referido acaba por concluir que as regras sobre a responsabilidade civil objectiva, nomeadamente os arts. 503.º, 505.º, e 570.º do CC, consagram a possibilidade de concurso do risco do condutor do veículo com a conduta culposa do lesado, e que a responsabilidade pelo risco só é excluída, tal como entende Calvão da Silva, quando o acidente for imputável – i.e., unicamente devido, com ou sem culpa – ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte (exclusivamente) de força maior estranha ao funcionamento do veículo. Não sendo esse o caso, logrará aplicação, na fixação da indemnização, o art. 570.º.
XXI - No que respeita à determinação do valor do direito à vida, a jurisprudência, sem nunca ter caído na arbitrariedade, tem feito apelo à regra da equidade, verificando-se hoje em dia uma tendência para acentuar o valor absoluto de um direito fundamental, e que é a génese de todos os outros direitos, perante objectos referenciados como parâmetros da sociedade de consumo em que vivemos. Tem sido percorrido um caminho de afinamento de critérios jurisprudenciais que leva, hoje em dia, à consideração de valores situados cerca dos € 50.000, dependendo o montante concreto de factores subjacentes àquele apelo à equidade. Esse montante afigura-se ajustado em relação ao direito à vida de uma criança que, tudo o indicava, tinha o futuro à sua espera.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA, assistente nos presentes autos, e BB, demandante cível, vieram interpor recurso da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa que rejeitou, por manifesta improcedência o recurso por si interposto e que, consequentemente, manteve intocável a decisão proferida em primeira instância que decidiu absolver a arguida CC da prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido no artigo 137 nº1 do Código Penal. Mais determinou a mesma decisão a absolvição da arguida e do Fundo de Garantia Automóvel em relação aos pedidos de indemnização cível formulados pela recorrente e pelo assistente AA.
As razões de discordância do primeiro recorrente, relativas á discordância relativa á improcedência do pedido cível formulado, encontram-se sintetizadas nas conclusões da respectiva motivação de recurso onde se refere que:
a)-A matéria provada basta para a caracterizar a culpa exclusiva da arguida e dona do estabelecimento.
b)-Conduzia de tal modo desatenta que nem deu pelo atropelamento como acontecimento real que ocorreu na sua frente;
c) Esta desatenção motivou aliás o erro de manobra que explica o embate do automóvel na criança;
d) Surgida da direita do condutor, foi colhida pela frente direita do automóvel, tendo o impacto quebrado a óptica do farol desse lado direito;
e) Por conseguinte é obvio que uma manobra de desvio para a esquerda evitaria, segundo a experiência comum, este sinistro mortal;
f) Na verdade DD ficou caído a 0,8 metros do passeio do lado direito da condutora arguida;
g) Caracterizada deste modo a culpa exclusiva da arguida, é responsável em solidariedade com o Fundo de Garantia Automóvel pela remoção dos danos patrimoniais e não patrimoniais alegados e provados;
h) Neste domínio, deve ser considerado como dano não patrimonial ressarcível e a ter em conta a angústia inerente ao estado de coma sofrido por DD antes de falecer, porque não é a consciência vigil que oblitera a experiência, ao menos ao nível psíquico profundo, da morte iminente. "
i) E também, nesta ordem de razões, deve entender-se que o pedido globalmente apresentado do quantum indemnizatório que o recorrente propõe é prudente e de deferir;
j) De qualquer modo, tratando-se de hipótese regida pelo Código da Estrada, segundo o sistema de responsabilidade conexa contra-ordenacional e civil, específico do direito rodoviário (no conspecto do ordenamento, de natureza excepcional), a culpa in vigilando, localizada no âmbito e alcance da responsabilidade geral e um, não elide a responsabilidade pelo risco, tematizável à luz estradal;
Ora, mas por argumento de mera cautela, não se provando a culpa da condutora, cai a remoção das consequências danosas, neste caso, no campo da responsabilidade pelo risco;
l) Sob este ponto de vista é de atribuir à criança numa contribuição para a produção do acidente de 10%;
m) E na sequência a arguida e o Fundo são responsáveis pelo pedido com a diminuição do quantum correspondente a esta percentagem;
n) Em todo o caso, nunca a responsabilidade da condutora concorreria com a responsabilidade do pai do menor a título de culpa in vigilando, porque, como acima se disse, esta não pode ser aferida e interveniente no julgamento do caso;
o) Por tudo isto, o Acórdão recorrido, que confirmou a sentença de 1ª instância, infringiu os artigos sob responsabilidade civil rodoviária do Código da Estrada, a saber: artigos 135° e 150°, no modelo que supõem e sobre o qual estão estas normas construídas e operam no campo da relação do transito;
p) Deve o Acórdão recorrido ser revogado e ser substituído por decisão desse STJ que condene a arguida e o Fundo de Garantia Automóvel no pagamento em solidariedade ao recorrente das indemnizações que pede, respectivamente de € 55.000,00 e € 51.550,00;
q) Tanto mais que se não trata de recurso do julgamento da matéria de facto, como erradamente estimou o Tribunal de 2ª instância: o recorrente não tinha pois de cumprir as especificações de crítica do veredicto;
r) Veredicto com o qual concorda, excepto no que diz respeito á conclusão tirada sobre os acontecimentos de a arguida não conduzir desatenta;
s) E mesmo que o conteúdo apareça como resultante do julgamento da matéria de facto, efectivamente não o é, por ser conclusivo e depender, pois, de pontes e apoios nas respostas sobre a visibilidade e desenho do acontecimento: trata-se de um efeito normativo, de erro ou acerto de um raciocínio e não de mera verificação de dados;
t) Assim, embora na sentença de lª instância o tópico da não condução desatenta por parte da arguida venha referido justamente como dado imediato da causa, trata-se, neste particular, de nulidade insuprida, que radica na proibição processual dos actos inúteis e ineficiência radical destes no bom, justo e leal julgamento.
u) Com efeito, não pode haver contraditório, logo há infracção do art. 32.°/4 CRP, em casos de conclusões transvertidas em dados imediatos da causa, porquanto ao assistente seria subtraída a lógica de uma resposta nesse plano trocado.
v) Ora, por força do art.18.°/3 CRP, o desrespeito de uma garantia fundamental tem como consequência jurídica a nulidade insuprível ou, no entendimento da Prof. Doutora Fernanda Palma, a inexistência.
w) Logo, o Acórdão recorrido infringiu os art. 410.°/2 c).3 e 420.°/1 a) CPP, 503/1 e 505.°, 563.° CC, 135.° e 150.° CE, que deveria ter aplicado no sentido das conclusões supra.
x) Mas, só por dever de patrocínio, no caso de o Tribunal vir a considerar aplicável, todavia, o art. 420.°/1 a) CPP, por referência aos art° 412.°/3.4, e 428.°/1 do mesmo diploma legal, ainda nestas circunstâncias de prejuízo do contraditório acima referidas, desde já, se argui a inconstitucionalidade do arco normativo em referência, sob esta especifica interpretação, por se opor ao art. 32/5 CRP
Por seu turno a recorrente invoca as seguintes razões em abono ad procedência do recurso:
l - Não se verificam os fundamentos aduzidos no acórdão recorrido para a rejeição do mesmo, por manifesta improcedência. Na verdade, ao contrário do que é dito no Acórdão, os recorrentes não pretenderam impugnar a decisão de facto pelo que não tinham que cumprir nas motivações, os requisitos do art. 412 do CPP.
2 -O que na realidade os recorrentes nas suas motivações alegaram e efectivamente existe é contradição insanável de fundamentação, cumulativamente com erro notório na apreciação da prova (arts. 410 nº2 al. b) e c) do C.P.P.) vícios que decorrem do próprio texto da decisão. E dos quais a Relação deveria ter conhecido.
3 - Ora entre os factos provados nos pontos 6 e 7 e os não provados existe uma clara e inequívoca contradição e incongruência que resulta patente e notória do texto da decisão recorrida, e que sai reforçada com recurso às regras da experiência comum.
4 -Se o acidente se deu em meados de Maio, pelas 20:00h, portanto absolutamente de dia, a rua onde o mesmo é uma recta, com cinco metros de largura, no momento da ocorrência não chovia, não estava nevoeiro, névoa ou neblina e se a arguida não se apercebeu que o embate ocorreu com uma pessoa obviamente que a arguida circulava de forma desatenta.
5- A decisão recorrida é contraditória, ilógica e vio1adora das regras da experiência comum, pois qualquer condutor médio locado no lugar da arguida ter-se-ia lógica e necessariamente apercebido da infeliz vítima e encetado manobra de travagem ou de desvio para a esquerda evitaria o atropelamento, tanto mais que circulava numa recta, com 5 metros de largura e não ficou provado, nem sequer foi alegado pela arguida, que em sentido contrário circulassem veículos situação em que se poderia invocar que a arguida não se havia desviado pois ao invadir a faixa contrária poderia colidir com aqueles.
6 - Pelo exposto a decisão ora sob censura patenteia contradição insanável da fundamentação pois de acordo com um raciocínio lógico seria de concluir precisamente o oposto ou seja a condução era desatenta ou melhor desatentíssima ... e por -isso culposa. 7 -Concomitantemente patenteia "erro notório na apreciação da prova", a qual flui do texto da decisão que revela distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados e se traduz numa apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passa despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio.
8- Na sentença da primeira instância que a Relação não reparou consta “não se provou, com relevância para a decisão que o acidente se tenha verificado por a arguida circular de forma desatenta"
9- Esta questão é de direito e não de facto pelo que jamais deveria constar do ponto II da decisão - fundamentação de facto -mas sim da fundamentação de direito, ponto III da decisão. Na verdade, a consideração da condução atenta ou desatenta é um juízo conclusivo que deve resultar de factos que o demonstrem.
10- Acresce que como já se disse supra, com base nos factos dados por provados, mormente os por nós supra sublinhados, a conclusão lógica e de acordo com as regras da experiência, teria de ser necessariamente a de que a condutora circulava de forma desatenta, conduta essa culposa e que foi causal do acidente.
11- Na verdade a condução da arguida, desatenta, imprudente e temerária., patenteia objectiva e subjectivamente desconsideração por interesses legalmente protegido, mormente a segurança rodoviária viola as normas estradais art. 24.°1 assim como o art. 3° nº 2 do Código de Estrada.
12- E entendimento jurisprudencial assente que a violação das normas ou regulamentos, mormente as estradais, por constituírem normas de perigo abstracto (ou seja a actividade de condução de veículos automóveis, comporta em si mesma uma potenciação de risco) importam uma presunção de culpa.
13- A interpretação e aplicação, feita pelas instâncias, do instituto da culpa “in vigilando" foi absolutamente errada Na verdade, o que o art.. 491° do Código Civil prevê são as situações em que o incapaz causa danos a terceiro, ou seja quando ocorra lesão cometida pelo incapaz, a lei presume que tal se verificou pela omissão do dever de vigilância, podendo ainda assim os obrigados à vigilância provar que cumpriram o seu dever.
14 - A responsabilidade peto risco recai sobre quem tiver a direcção efectiva do veículo - art. 503°, nº1, do Código Civil- caso se prove, que o condutor não teve culpa no acidente, que não se prove a culpa da vítima, de terceiro ou a existência de caso de força major, art. 505° do C. Civil.
15 - Mesmo que se admitisse, embora sem conceder, que estivesse provada a inexistência de culpa por banda da arguida, sempre haveria responsabilidade dos demandados pelo risco.
16a - Em face do estabelecido no nº1 do art. 503 do C. Civil, não -existindo prova concreta e objectiva de culpa na produção do acidente (ou seja na dinâmica própria do acidente não sendo possível estabelecer qual o acto que foi causal em relação ao dano), a lei presume, residualmente que existe relação ou nexo causal entre o acidente e os riscos próprios (específicos) do veículo enquanto tal, ou seja, com os especiais perigos que a sua utilização como veiculo de circulação efectivamente comporta.
17a - No caso concreto para ser afastada a responsabilidade pelo risco, constante do art. 503°, seria necessário cumulativa e sucessivamente o seguinte:
a) - Em primeiro lugar que tivesse ficado provado que foi por via da concreta actuação do menor que o acidente ocorreu, ou seja provado nexo de causalidade adequada entre ambos. Ora não resultaram factos provados que o admitam, pelo que a questão ficava desde logo arrumada existindo a responsabilidade pelo risco.
b) - E ainda, que a omissão d o dever de vigilância se existisse (o que não é o caso como se verá infra) do pai da vitima do acidente de viação tinha de estarem relação de causalidade com o dano para haver responsabilidade, ou seja a conduta do pai ser causa adequada ao dano
c) - Aquilatar-se se tinham ficado provados factos conducentes ao afastamento da culpa in vigillando
18 - No caso em apreço não parece minimamente beliscada, ou censurável aos olhos do "bom pai de família", do homem médio colocado na posição do pai do menor, a actuação daquele, provado que está que o menor, com 6 anos de idade, estava em casa, numa varanda e que o pai, momentos antes lhe havia recomendado para não sair para a rua.
19 -Em nosso modesto entender este facto provado, é só por si suficiente para considerar cumprido, por parte do pai do menor, o dever de vigilância. Nas circunstância do caso concreto considerar a actuação do pai do menor culposa constitui uma afronta.
20-Do que se deixa escrito resulta à saciedade que ao pai do menor não pode ser assacada qualquer responsabilidade também porque a sua actuação nas circunstâncias concretas provadas, para atém de não ser culposa jamais poderia ser causa adequada ao acidente.
Termina pedindo a procedência dos pedidos cíveis formulados.
Foi produzida resposta pela arguida pedindo a manutenção da decisão recorrida.
O ExºMº Sr.Procurador Geral adjunto pronuncia-se pela inadmissibilidade do recurso
Os autos tiveram os vistos legais.
*
Cumpre decidir.
Em sede de decisão recorrida encontra-se provada a seguinte factualidade:
1.- No dia 16 de Maio de 2004, cerca das 20h00, a arguida CC conduzia o automóvel ligeiro e passageiros, de marca Seat, modelo Ibiza, produzido em 1995, de matrícula …-…-…, pela rua da ……., em Casal Novo - Caneças, a velocidade não concretamente apurada.
2.- Quando a arguida se encontrava sensivelmente em frente do lote 1152, na faixa de rodagem, verificou-se um embate entre o veículo tripulado pela mesma, na parte da frente do lado direito, na zona do farol, e o menor DD - nascido a 2/10/1997, ou seja, com seis anos de idade.
3.- Depois do embate, o menor ficou, na faixa de rodagem, sensivelmente a 0,8 metros do passeio do lado direito, atento o sentido de marcha de CC.
4.- Em consequência do embate, partiu-se o farol dianteiro do lado direito do automóvel tripulado pela arguida e o menor, que ficou caído junto a um automóvel que se encontrava estacionado do lado direito - sofreu as seguintes lesões:
- hematoma no pericranio fronto-esfeno-temporo-parietal esquerdo;
- infiltração sanguínea das leptomeninges dos lobos parietais;
- edema encefálico maligno com encravamento das amígdalas cerebelosas;
- luxação occipito-atloideia com contusão medular e amolecimento;
- escoriação da face posterior do hemitorax direito, rectangular, medindo 8x3cm, de eixo maior vertical;
- onze escoriações lineares na face posterior do hemitorax esquerdo, mais ou menos verticais, medindo todas cerca de 7 cm;
- escoriação na região lombar direita, rectangular, medindo 8x 4 cm;
- escoriação na região frontal, do lado direito, com um diâmetro de 3 cm; ficando de imediato em coma.
5.- O menor DD ficou em coma até às l6h00 do dia seguinte, momento em que, como consequência directa e necessária do embate descrito e das lesões sofridas, veio a falecer.
6.- A rua da ……. é uma recta com cinco metros de largura e é ladeada por passeio de ambos os lados.
7.- Naquele momento, não chovia, não estava nevoeiro, névoa ou neblina.
8.- O menor DD, em virtude do acidente, foi assistido no Hospital de Santa Maria, tendo tal entidade prestado cuidados de saúde em episódio de urgência e episódio de internamento, mais realizando análises clínicas, nos valores de 51,00€, 2.611,42€ e 176€, respectivamente, tudo no total de 2.787,52€ (dois mil setecentos e oitenta e sete euros e cinquenta e dois cêntimos).
9.- O Hélder era, na altura, o único filho do assistente - que não tem mais filhos - e da demandante BB - que, neste momento, tem uma filha.
10.- O assistente e a demandante sofreram um grande choque com a morte do filho, com quem tinham fortes laços afectivos.
11.- A alegria baseada na expectativa dos pais de ver o seu filho crescer foi substituída por tristeza e amargura, que perdurará.
12.- O DD era uma criança que tomava os pais orgulhosos; era estimado por aqueles que o conheciam, sendo que é previsível que a recordação do menor e o desgosto pela sua perda se mantenha durante toda a vida dos pais.
13.- As despesas de funeral do menor DD ascenderam a 900 (novecentos) Euros, sendo suportadas pelo assistente.
14. - Antes da ocorrência do acidente, o menor DD encontrava-se na varanda, que tem acesso para a rua, tendo sido advertido pelo pai para não sair para a rua.
15.- Nada consta do CRC da arguida.
16.- A arguida vive com os pais e irmão.
17.- Trabalha como lojista, por conta de outrem, recebendo um rendimento mensal de cerca de 500 euros, sendo que entrega aos pais 200 euros mensais, a título de contribuição para as despesas comuns.
18.- O veículo tripulado pela arguida e que lhe pertencia, na altura do acidente, não era objecto de seguro obrigatório válido, que abrangesse a responsabilidade civil decorrente da sua circulação.
Não se provou, com relevância para a decisão:
- que o acidente se tenha verificado por a arguida circular de forma desatenta;
- a concreta forma de embate entre o menor e o veículo tripulado pela arguida ou a posição concreta do menor, antes do embate;
- que a arguida se tenha apercebido que o embate havia ocorrido com uma
pessoa;
- que o automóvel junto do qual ficou o corpo do menor DD fosse o único no local estacionado, aquando do acidente;
- que o menor, após o sinistro, tenha sentido sofrimento ou tenha tido consciência da proximidade da morte;
- o montante despendido na pedra tumular do menor.
*
I
a)-Coloca o ExºMº Sr. Procurador-geral Adjunto questão da admissibilidade dos presentes recurso.
Não obstante a argumentação apresentada estamos em crer que a alteração introduzida no artigo 400 nº3 do Código de Processo Penal, em função da Lei 48/2007, é de aplicação imediata o que se traduz na admissibilidade do mesmo recurso

b)-Como questão prévia importa, ainda, precisar que o recurso para o Supremo Tribunal visa exclusivamente o reexame das questões de direito, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios referidos no artigo 410º, nº 2 do CPP. Na verdade, é jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal que o recurso da matéria de facto, ainda que restrito àqueles vícios (a chamada revista alargada), tem de ser interposto para o Tribunal da Relação e, da decisão desta quanto a tal aspecto, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal, pelo que se haverão de considerar precludidas todas as razões que foram ou podiam ser invocadas nesse recurso, cuja decisão esgota os poderes de cognição nessa matéria (1).
Relembrando conceitos por demais sedimentados, em relação ao invocado vicio da sentença importa precisar que o C.P.P. de 1987 trata os vícios previstos no artigo 410 nº2 do Código Penal como vícios da decisão, e não de julgamento. Nesta disposição estamos em face de vícios da decisão recorrida, umbilicalmente ligado aos requisitos da sentença previstos no artigo 374 nº2 do Código de Processo Penal, concretamente á exigência de fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal. (2)
Assim, num ponto concorda a doutrina: o artigo 410 do Código de Processo Penal consagra doutrinalmente o recurso de revista ampliada o que significa que quando tiver havido renúncia ao recurso em matéria de facto nas Relações e no Supremo Tribunal de Justiça) o Tribunal “ad quem” não tem que se restringir á tradicionalmente denominada questão de direito mas antes pode alargar o seu conhecimento a questões documentadas no texto da decisão proferida pelo tribunal “a quo” que contendam com a apreciação do facto.
Consubstancia-se tal recurso de revista ampliada na possibilidade que é dada ao tribunal de recurso de conhecer a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a decisão de direito não encontre na matéria de facto provada uma base tal que suporte um raciocínio lógico subsuntivo; de verificar uma contradição insanável da fundamentação sempre que através de um raciocínio lógico conclua que da fundamentação resulta precisamente a decisão contrária ou que a decisão não fica suficientemente esclarecida dada a contradição entre os fundamentos aduzidos; de concluir por um erro notório na apreciação da prova sempre que para a generalidade das pessoas seja evidente uma conclusão contrária á exposta pelo tribunal.
*
A impugnação da matéria de facto no recurso dirigido a este Supremo Tribunal omite a circunstância de a impugnação da decisão final do tribunal colectivo passar por uma de duas alternativas- visando-se exclusivamente o reexame da matéria de direito (art. 432.º d) o recurso é dirigido directamente ao Supremo Tribunal de Justiça; se não visar exclusivamente o reexame da matéria de direito, dirige-o, «de facto e de direito», à Relação caso em que da decisão desta, se for recorrível, nos termos do art. 400.º, poderá depois ser impugnada perante o STJ (art.º 432.º b do Código de Processo Penal).
Nesta última hipótese, o recurso - agora, puramente, de revista - terá que visar exclusivamente o reexame da decisão recorrida (a da Relação) em matéria de direito (com exclusão, por isso, dos eventuais vícios, processuais ou de facto, do julgamento de 1.ª instância), embora se admita que, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto ostensivamente insuficiente, fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias detectadas por iniciativa do Supremo para além do que tenha de aceitar-se já decidido definitivamente pela Relação, em último recurso, aquele se abstenha de conhecer do fundo da causa e ordene o reenvio nos termos processualmente estabelecidos.
É unicamente com este âmbito que o Supremo Tribunal de Justiça pode ter de avaliar da subsistência dos aludidos vícios da matéria de facto. Tal significa que está fora do âmbito legal do recurso a reedição dos vícios apontados à decisão de facto da 1.ª instância, em tudo o que foi objecto de conhecimento pela Relação. (3)

*
A reafirmação de tal pressuposto da intervenção do Supremo Tribunal de Justiça encontra-se umbilicalmente ligada á impetração formulada pela recorrente que, manifestamente, colide com aquele pressuposto.
Na verdade, a mesma faz apelo ao facto de, em seu entender, as circunstâncias de tempo, lugar e modo em que ocorreu o acidente imprimirem necessariamente a ideia de que a condutora do veículo, ao não se aperceber da vítima, estava desatenta e, consequentemente, provocou o evento, ou seja, o atropelamento do menor.
Ignora a recorrente, na invocação que efectua, que não está em causa uma violação das regras de experiência comum ou de lógica, patente na decisão recorrida, mas única e simplesmente o facto de se ter valorado determinada prova produzida de acordo com as regras do processo. Na verdade, as mesmas regras não impõem necessariamente a conclusão de que, pelo facto de ser dia, a via ser uma recta e não existir obstáculo impedindo a visão, o acidente tenha na sua génese a desatenção do condutor. As mesmas regras de experiência e de vida apenas permitem a formulação de conjecturas sobre uma pluralidade de hipóteses explicativas do acidente.

Realinhando conceitos importa referir que as regras de precaução que estão subjacente ao dever objectivo de cuidado cuja violação integra a prática do crime negligente podem ter uma fonte social ou uma fonte jurídica. Conforme referem Fiandaca e Musco (Diritto Penale-Parte Generale pag 489 e seg) são qualificados de normativos sociais a negligência; a imprudência e a imperícia. Na verdade, as regras da diligência; prudência e perícia não se encontram predeterminadas na lei ou noutra fonte jurídica, mas têm na sua génese a experiência da vida social.
Haverá negligência se a regra de conduta violada prescreve uma actividade positiva; existirá imprudência na transgressão de uma regra de conduta de que advém a obrigação de não realizar uma determinada acção ou de a realizar em termos diferentes daqueles que foram efectivamente realizados; a imperícia consiste numa forma de imprudência ou negligência qualificada e refere-se a actividades que exigem particulares conhecimentos técnicos.
Conforme já se referiu igualmente é certo que a fonte daquelas regras cautelares também pode ser jurídica. Na verdade, o mundo moderno assiste a uma crescente positivização das regras de prudência de forma a disciplinar as situações de perigo mais típicas como é o caso da circulação estradal com a consequente imposição de um catálogo de normas próprias para regular tal circulação.
Temos, assim, por assente que, em sede de acidentes rodoviários, a imputação de um tipo de crime negligente terá subjacente a violação de um dever objectivo de cuidado que emergirá ou daquela fonte das regras de experiência comum, ou da violação das normas do Código da Estrada, ou da violação de ambas. Igualmente é certo que estamos inteiramente de acordo com a tese defendida por este Supremo Tribunal de Justiça de que tendo existido uma violação das normas estradais, e se o evento produzido foi do tipo que a lei quis evitar quando impôs a disciplina violada, se deve presumir a negligência.

No caso vertente não estão demonstrados factos que fundamentem aquela violação de um dever objectivo de cuidado.
O que está em causa, nos termos do recurso interpostos, é uma diversa inferência que a recorrente faz em relação aos factos considerados provados com uma diferente convicção em termos probatórios e uma diversa valoração da prova produzida em audiência o que não se pode confundir erro notório
Improcedem, assim, o vício referido nos termos invocados pela recorrente.

Igualmente é certo que estando indemonstrada a violação daquele dever objectivo de cuidado fica em crise um pressuposto de responsabilidade civil por facto ilicito


II

No domínio da responsabilidade civil extracontratual a formatação da obrigação de indemnização pressupõe, em principio, a existência de um facto voluntário ilícito, isto é, controlável pela vontade do agente e que infrinja algum preceito legal e um direito, ou interesse, de outrem legalmente protegido, censurável àquele do ponto de vista ético-jurídico, isto é que lhe seja imputável a título de dolo ou culpa, e de um dano ou prejuízo reparável e, ainda, de um nexo de causalidade adequada entre este dano e aquele facto (artigos 483º, nº. 1, 487º, nº. 2, 562º, 563º e 564º, nº. 1, do Código Civil).
Importa aqui acentuar que embora predomine a responsabilidade subjectiva, ou baseada na culpa, se sancionam, também, situações excepcionais de responsabilidade objectiva, ou pelo risco, isto é situações independentes de qualquer dolo, ou culpa, da pessoa obrigada á reparação e entre as quais se situa a responsabilidade pelos danos causados por veículos de circulação terrestre.
Na verdade, a obrigação de indemnização independentemente de culpa é excepcional, como é o caso da responsabilidade civil pelo risco, no quadro da probabilidade da existência de um dano, no âmbito dos acidentes causados com a condução de veículos automóveis (artigos 483º, nº. 2, e 503º a 508º do Código Civil). Esta última responsabilidade funda-se na ocorrência de um facto ilícito não culposo de que resultem danos ou prejuízos reparáveis.
São pressupostos desta modalidade de responsabilidade civil: a prática pelo agente de um facto; a existência de um dano reparável na esfera jurídica de um terceiro e o nexo de causalidade adequada entre o referido facto e o dano (artigos 499º, 563º e 564º, nº. 1, do Código Civil). Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que se não encontre em circulação (artigo 503º, nº. 1, do Código Civil).
Tais danos, que a pessoa responsável é obrigada a indemnizar são os que tiverem como causa (jurídica) o acidente provocado pelo veículo, ou seja, compreende-se no risco tudo o que se relacione com a máquina enquanto engrenagem de complicado comportamento. Fora do circulo de danos abrangidos pela responsabilidade ficam os que não têm conexão com os riscos específicos do veículo os que são estranhos aos meios de circulação ou transporte terrestre, como tais os que foram causados pelo veículo como poderiam ter sido provocados por qualquer outra coisa móvel. (4)

Assim, quando a decisão recorrida afirma a existência dos pressupostos de responsabilidade objectiva merece a nossa inteira e completa concordância. Na verdade, inexistindo qualquer demonstração de culpa da condutora estamos perante a eclosão de um evento indissociavelmente ligado á circulação de um veículo automóvel.



III
Nos termos do artigo 505 do Código Civil a responsabilidade civil pelo risco a que se reporta o nº 1 do artigo 503 do mesmo diploma é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado, ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo (artigo 505º do Código Civil).
Resulta, assim, daquele normativo que a lei não exige que o acidente seja imputável ao lesado, e/ou a terceiro a título de dolo ou culpa para que seja excluída a referida responsabilidade pelo risco, bastando para o efeito que ele seja devido, em termos de causalidade, a facto de um ou de outro.
Efectivamente, como aponta Antunes Varela, o art. 505º coloca um problema de causalidade: a verificação de qualquer das circunstâncias nesse preceito referidas – acidente imputável ao lesado ou a terceiro; acidente resultante de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo – quebra o nexo de causalidade entre os riscos próprios do veículo e o dano, excluindo a responsabilidade objectiva do detentor do veículo, pois que o dano deixa, então, de ser um efeito adequado do risco do veículo.
Bastará a imputação causal do acidente ao lesado para excluir a responsabilidade objectiva. Não se exige, pois, que o acidente seja devido a facto culposo do lesado, que seja causado pela conduta censurável deste; abrangem-se também todos os casos em que o acidente é devido ao lesado, mesmo que não haja culpa deste.
A possibilidade de concurso, em acidente de viação, do perigo especial do veículo com facto de terceiro ou da vítima (culposo ou não culposo), de modo a conduzir a uma repartição da responsabilidade, ou a uma atenuação da obrigação de indemnizar fundada no risco, é rejeitada, com o argumento de não ser justa, nem ter consagração legal. Se o acidente ocorre porque o lesado, ou terceiro, não observaram as regras de prudência exigíveis em face do perigo normal do veículo, cessa a responsabilidade do detentor, porque, não obstante o risco inerente à viatura, os danos provêm de facto de outrem.
A responsabilidade (objectiva) imposta ao detentor do veículo é já de tal modo severa que não é justo nem razoável “sobrecarregá-la”, ainda, com os casos em que, não havendo culpa dele, o acidente é imputável a quem não adoptou as medidas de prudência exigidas pelo risco da circulação.
Como é consensualmente admitido, para que certo evento deva considerar-se imputável ao próprio lesado não se exige que o acto por este praticado seja censurável a título de culpa no sentido técnico-jurídico contido no art. 487.º C. Civil, bastando que o facto seja imputável a uma sua actuação.
O que se coloca é, não propriamente um problema de culpa, mas, antes, um problema de causalidade, uma vez que o relevante não é saber se o lesado é responsável pelos danos provenientes dos factos que haja praticado, mas sim se esses factos são consequência do facto por si praticado, se o evento danoso é atribuível à sua actuação.

Relevará aqui, porque de causalidade se trata, a necessidade de, num juízo de prognose posterior objectiva, formulado a partir das circunstâncias conhecidas e cognoscíveis de um observador experiente, se poder afirmar que o acto do lesado, tendo em conta a actuação do lesante, "favorecia aquela espécie de dano, surgindo este, pois, como uma consequência provável ou típica daquele facto".
É preciso, em suma, que o comportamento do lesado se não mostre indiferente para a verificação do dano, o que sucederá se "segundo o decurso normal das coisas e da experiência da vida, não eleva, nem favorece, nem modifica os riscos da verificação do dano", pois que, se assim for, haverá inadequação. (5) (6)

A questão que então se coloca relativamente ao caso vertente é, assim, a de saber se existem elementos de facto que permitam fundamentar a conclusão de que o infeliz evento teve na sua génese uma conduta da vítima ou de terceiro.
No que concerne a tal elemento é um dado adquirido que se desconhece em absoluto as circunstâncias concretas em que se desenrolou o sinistro o que nos impossibilita uma atribuição de responsabilidades, ou distribuição de culpas, dos intervenientes no respectivo processo causal.
O que resta da matéria provada é a constatação de determinados elementos objectivos relativos ás circunstâncias de tempo e lugar do acidente, mas absolutamente inexpressivos sobre a forma como o mesmo se processou sendo certo que não tem qualquer fundamento legal o apelo a presunções baseadas em visões subjectivas da realidade e não em regras da experiência comum.

IV

É nesta sequência que a decisão recorrida vem a afastar a existência de responsabilidade pelo risco com fundamento na culpa de um terceiro, ou seja, a culpa do pai da criança atropelada e vítima mortal do acidente
Como se refere na mesma decisão “tratando-se de um menor de seis anos de idade, desacompanhado de um terceiro mais velho-maxime adulto- impunha-se que fosse garantida a inacessibilidade á faixa de rodagem não nos parecendo suficiente a mera advertência verbal, não seguida de qualquer diligência para verificar a sua concreta observância.
Não se encontrando afastada a presunção de culpa in vigilando prejudicada fica a responsabilidade civil objectiva que faria impender sobre os demandados a obrigação de indemnizar na ausência de contrato de seguro válido
Face a tal injunção decisória impõe-se desde já a consideração sobre a existência de algum elemento objectivo que permita, sem qualquer reticência, a afirmação de que o acidente é imputável ao pai do menor.
Essa relação de imputação tem de ser objectiva configurada em concreto nos termos do artigo 505 (exclusão da responsabilidade objectiva) e não com base numa presunção, nomeadamente a afirmada no artigo 491 do Código Civil (responsabilidade das pessoas obrigadas á vigilância de outrem), cujo campo de aplicação é totalmente distinto, incidindo sobre os danos produzidos pela pessoa sujeita á vigilância de outrem.
Em concreto, a responsabilidade do progenitor apenas poderá ser afirmada a partir do momento em que se demonstre que este não respeitou os deveres que sobre si impendiam, derivados da sua qualidade de pai, e da menoridade da vítima, sendo certo que da materialidade considerada provada apenas consta que antes da ocorrência do acidente o menor DD encontrava-se na varanda que tem acesso para a rua, tendo sido advertido pelo pai para não sair para a rua.

A afirmação de um incumprimento do dever de vigilância pressupõe o conhecimento concreto das condições em que o menor surge na estrada, ou seja, conhecer porque forma se configurou uma conduta do menor e saber se teve na sua génese uma omissão daquele dever por parte do progenitor. Omissão especificamente demonstrada naquelas concretas circunstâncias e não uma remissão para presunções que, de todo, carecem de compatibilidade com o referido artigo 505.
Desde o momento em que, antes do acidente, mas ignorando-se o distanciamento temporal deste, o menor estava na varanda até ao atropelamentoo pela viatura, desconhece-se por completo o circunstancialismo que rodeou os mesmos factos.
Importa salientar que o dever de vigilância não significa um controlo omnipresente, tutor de toda e qualquer actividade ou movimento do menor, mas uma obrigação com a finalidade de prevenir os perigos que lhe possam advir através dos cuidados normais a apreciar segundo as circunstâncias de cada caso.
No caso vertente não está demonstrado que tais cuidados não tenham existido, bem como não está demonstrado o seu contrário, o que á partida invalida qualquer afirmação da existência de um acto ou omissão do pai do menor ao qual seja imputável a eclosão do sinistro.



V

Como se referiu, é certo que o artigo 491 do Código Civil vem configurar uma presunção de culpa do que se encontrar sujeito ao dever de vigilância o qual tem como pressuposto que exista uma lesão cometida pelo incapaz.
No que concerne, e face ao disposto no mesmo normativo, acompanhamos o entendimento expresso por Pais de Sousa quando refere que o normativo em causa estabelece uma presunção legal contra as pessoas obrigadas por lei ou negócio jurídico, a vigiar os menores que causaram danos a terceiro (7) .
É que, de acordo com a experiência, boa parte dos actos ilícitos praticados pelos incapazes têm origem numa falta de vigilância adequada. Assim, para acautelar o direito de indemnização do lesado contra a irresponsabilidade ou falta de solvabilidade do autor da lesão e para estimular o cumprimento dos deveres das pessoas obrigadas à vigilância, fixou-se a referida presunção.
A responsabilidade das pessoas obrigadas à vigilância não é uma responsabilidade objectiva ou por facto de outrem, mas por facto próprio, visto a lei presumir que houve uma omissão de vigilância adequada (culpa in vigilando). Por lei estão obrigados, entre outros, os pais e tutores.
A obrigação de vigilância, no caso de filhos menores, incumbe aos pais, desde que não inibidos do poder parental, porquanto, competindo-lhes o dever educar, a sua responsabilidade radica em acto próprio – a omissão daquele poder-dever, cuja exigência e padrões são indissociáveis de razões culturais e idiossincráticas.
Para Dário Martins de Almeida dois postulados comandam a presunção de culpa das pessoas obrigadas à vigilância de outrem, impondo: a) — que exista um dever legal ou convencional de vigilância; b) — que essa vigilância obrigatória tenha por objecto prevenir perigos resultantes de vigilandos (menores ou dementes), quer pela educação, quer através de cautelas normais, a apreciar segundo as circunstâncias de cada caso.
O dever de vigilância, cuja violação implica responsabilidade presumida, culpa in vigilando, não deve ser entendido como uma obrigação quase policial dos obrigados (sejam pais ou tutores), em relação aos vigilandos porque, doutro modo, o não deixar, sobretudo, no que ao poder paternal respeita, alguma margem de liberdade e crescimento do menor, seria contraproducente para a aquisição de regras de comportamento e vivências compatíveis com uma sã formação do carácter e contenderia com a desejável inserção social.
É nas circunstâncias concretas que importa verificar da existência da relação entre o acto ilícito praticado e o dever de vigilância pois que, como referia Vaz Serra, se o filho, habitando embora com os pais, pratica o facto ilícito em condições que excluem esse dever (fá-lo, por exemplo, quando se encontra na escola, longe da vigilância dos pais, e sem que o facto possa revelar falta de educação que os pais deviam dar-lhe), não existiria a presunção de culpa; se ele, não habitando embora com os pais, pratica o facto quando se acha sob o dever de vigilância deles, existiria presunção de culpa (8).
No mesmo sentido se pronunciava Rodière acentuando que o pai não pode ser obrigado a exercer em todo o tempo sobre seu filho uma vigilância directa e à vista, que as suas obrigações profissionais não poderiam permitir sempre, nem a idade ou o ofício do filho autorizar sempre”, pelo que “não é… permitido nem afirmar a priori que o pai aceita de maneira irrecusável certos riscos […].
“O que os tribunais devem procurar em cada caso é o que teria feito, nas mesmas circunstâncias, um bom pai de família, consciente dos seus deveres, e comparar-lhe a conduta do interessado.

Porém, e com se referiu estamos perante um normativo, ou uma arquitectura legal, que respeita á presunção de culpa in vigilando relativa aos danos causados a terceiro e não aos danos causados á pessoa vigiada. Quanto a estes vigoram os princípios gerais pois que, como referiam Pires de Lima e Antunes Varela (9) , em relação às próprias pessoas obrigadas à vigilância de outrem, elas não são apenas responsáveis pelos danos que este cause a terceiro, nos termos do artigo 491.°; respondem também, por força do disposto neste artigo 486.°, pelos danos que as pessoas vigiadas sofram com a omissão do dever de vigilância (v. g., se elas se ferirem ou morrerem em consequência dessa omissão). (10)Confrontar Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Maio de 2008 (Relator Conselheiro Fonseca Ramos
Termos em que se entende por inaplicável o normativo do artigo 491 do Código Civil ao caso vertente. (11) Refira-se a propósito que, em nosso entender, não merece aplauso o entendimento professado por Maria Clara Sottomayor ( “ A Responsabilidade Civil dos Pais pelos factos ilícitos praticados pelos filhos menores “, BFDUC vol.LXXI, 1995, pág.411 ) no sentido de que a presunção de culpa “ contém simultaneamente uma presunção de causalidade, na medida em que se presume que o não cumprimento do dever de vigilância por parte dos pais é a causa do dano”, pois, de outro modo, “ obrigar a vítima a provar o nexo de causalidade entre a culpa dos pais e o dano seria equivalente a exigir-se a prova da culpa, o que esvaziaria o alcance da presunção estabelecida na lei “.Na verdade, ao entender por tal forma determinando uma interpretação extensiva da norma estende-se o alcance da presunção para além do manifestamente pretendido pelo legislador entrando no domínio da causalidade.


VI

Mas, admitamos, por hipótese académica, que, no caso vertente, existindo a responsabilidade pelo risco inerente á condução de veículo também se demonstra a existência do concurso de culpa de terceiro, nomeadamente da decorrente da omissão de um dever de vigilância.
Mesmo considerando tal hipótese merece inteira aprovação a perspectiva inovadora no que a respeito se desenhou no Acórdão deste Supremo Tribunal de justiça de 4 de Outubro de 2007 (12) o qual, por alguma forma represtina a opinião sufragada mais incisivamente por Brandão Proença (13) A conduta do lesado…. Pag 820 e seg apontando no sentido de que a interpretação estritamente causalista da norma-chave do artigo 505, e que se manteve fiel à perspectiva hermenêutica dominante que tomou por objectivo de análise as disposições correspondentes dos diplomas estradais (artigos 140.° do Código de 1930 e 56.°,1 do Código de 1954), defende a eficácia exoneratória de qualquer culpa e das condutas devidas a pessoas sem capacidade de discernimento e decisão.
Aponta o mesmo autor que sustentando esse radicalismo na lógica interindividual de uma responsabilidade relativa, a doutrina dominante rejeita liminarmente a «convivência» entre factores heterogéneos, integrando a formulação do normativo do artigo 505.° Com o regime da concausalidade concorrente, implicada no critério «subjectivo» do artigo 570.°,1, e com a exigência, não muito assumida, da exclusividade do comportamento exoneratório. Mais afirma que o «nó górdio» da querela que vem dividindo os nossos juristas é, sem dúvida, o do tratamento dos casos em que o dano é atribuído exclusivamente a uma falta leve do lesado e à conduta inesperada de pessoas «desadaptadas» ao tráfego (em atenção à pouca mobilidade e à dificuldade de percepção do idoso ou do deficiente e à normal imprudência da criança que atravessa de repente a via ou que corre atrás de uma bola). Na perspectiva causalista em que se colocam os «puristas», já sabemos que é suficiente a imputação material do dano ao lesado para excluir a responsabilidade, independentemente das razões explicativas dos diversos comportamentos. Na realidade, mesmo que a «força maior humana» esteja relacionada com uma precipitação, uma distracção momentânea, a ausência de um segundo olhar, um descuido forçado pelas condições de circulação dos peões, um acto não voluntário (salto preso na «passadeira», queda fortuita), um movimento repentino de uma criança no seu desejo de apanhar um transporte, o dano sofrido é deslocado para o lesado, por se entender que já não é o resultado dos riscos próprios do veículo.
Essa «lógica das coisas» e a perspectiva de circunscrever rigida­mente o círculo responsablizante do detentor ou do condutor não deixa de nos impressionar, quando pensamos no «nada» indemnizatório como «preço» desses pequenos descuidos, dessas reacções defeituosas ou dos actos praticados por pessoas sem capacidade de «diálogo» com o tráfego. O ver-se a relação entre o risco e o dano num plano unitário, que olha mais para a conexão causal do que para as situações humanas concretas, tem como consequência o tratamento uniforme de lesados cujas condutas são qualitativamente diversas. Efectivamente, não nos parece justo remeter para o âmbito exoneratório do artigo 505.° tanto a conduta do adulto, que atravessou imprevistamente, com sinal luminoso impeditivo ou que se viu obrigado a descer o passeio, como a daquele que, na fragilidade da sua condição, deu um passo imprevidente ou a da criança que, assustada com a aproximação de um cão, fugiu para a estrada. No plano de uma correcta ponderação de interesses e da própria justiça distributiva, não julgamos possível abdicar de um princípio de tutela desses lesados, face aos danos corporais que podem sofrer como autores de condutas distantes da intencionalidade autodanosa e da negligência grave ou muito grave. Particularmente quanto aos pequenos descuidos e aos comportamentos não censuráveis das crianças, parece-nos excessiva a sua consideração segundo uma lógica causal interruptiva. vendo-os como condutas imprevisíveis ou anormais, integrando um processo perfeitamente autónomo, ou como fontes danosas não abrangidas pelo escopo do critério previsto no artigo 503.°,1. Na verdade, pensamos que uma visão flexível ou valorativa do juízo de causalidade, e que leve a colocar a tónica na própria intensidade do risco criado, isto é, no perigo ligado à circulação dos veículos, não necessariamente conexo à chamada participação activa, afasta a perspectiva clássica de focalizar as causas exoneratórias com o único sentido de conter a responsabilidade de um lesante individual. A conjugação da ideia moderna do risco com o apelo a certos factores potenciadores, canalizados para uma leitura proteccionista do seguro obrigatório e para a actual diluição da tríade de causas paralisadoras da responsabilidade objectiva, conduz-nos a não afastar, naqueles dois casos, o nexo de concausalidade, o que também significa fazer sintonizar a chamada quebra causal com as condutas autoresponsáveis dos lesados e que revelem uma determinada intensidade culposa.
Ainda de acordo com teor da decisão supra referida não sendo, pois, afastada a responsabilidade, mas também não repousando o tratamento de favor numa qualquer ficção, ou numa ideia de tutela social qua tale, a base normativa necessária para a fixação ou atribuição da indemnização não deverá ser diferente da que se considera aplicável às mesmas situações nas hipóteses inequívocas de contribuição causal (com culpa ou sem culpa do lesante). No que concerne, em particular, ao dano dos inimputáveis, embora o artigo 570.°1 pudesse ser funcionalizado para a ponderação, é mais rigoroso justificar uma eventual redução indemnizatória com o critério consagrado no artigo 494.°.
E embora se entenda que o ideal, numa perspectiva de política jurídica, seria legislar no sentido de uma desejável protecção automática dos menores de certa idade, os nossos tribunais lograriam conseguir decisões menos radicais, se valorassem o próprio «risco abstracto», a possível ocorrência de atitudes deliberadas, se considerassem a inexistência de seguro, a existência de seguros pessoais constituídos em favor dos lesados ou a sua situação económica e retirassem da culpa in vigilando um mero efeito de desfavorecimento da situação do lesado mediato ou o pressuposto para uma «acção de regresso» (é mais censurável a indiferença paterna em deixar a criança brincar na rua ou atravessar sozinha do que a pequena desatenção, potenciada por um gesto repentino do vigiado).
Mais adianta a decisão em causa, em termos que se sufragam, referindo a existência de razões com força suficiente para pôr em causa a interpretação jurisprudencial clássica que “Com a obrigatoriedade de contratação de um seguro de responsabilidade civil como pressuposto da circulação de veículos terrestres a motor – introduzida pelo Dec-lei 408/79, de 25 de Setembro – e verificada a íntima conexão material entre as normas do Código Civil relativas à responsabilidade pelo risco em matéria de acidentes causados por veículos e as deste último diploma (e os subsequentes, sobre a mesma temática do seguro obrigatório), impõe-se que a procura das soluções do nosso direito positivo, nesta matéria, seja penetrada de uma lufada de ar fresco, sensível “às novas linhas de força da relação entre o risco dos veículos e a fragilidade de certos participantes no tráfego” e que conduza à tutela destes últimos, dos lesados mais frágeis.
Justifica-se, pois, cada vez mais, que se dê a devida atenção às vozes autorizadas de qualificados professores de Direito, que vêm clamando contra a rigidez da doutrina tradicional.” (14)

Assim, uma interpretação progressista ou actualista do art. 505º, que se perfilha, importa que tenha em conta (art. 9º/1) a unidade do sistema jurídico – isto é, que considere o sistema jurídico global de que a norma faz parte e, neste, o referido acervo de normas que consagram o concurso da culpa da vítima com o risco da actividade do agente, e repute adquirida, como princípio geral e universal do pensamento jurídico contemporâneo, a regra do concurso – e as condições do tempo em que tal norma é aplicada – em que a responsabilidade pelo risco é enfocada a uma nova luz, iluminada por novas concepções, de solidariedade e justiça – impõe que se tenha por acolhida, naquele normativo, a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo. (15)

VI
Face ao exposto entende-se que no caso vertente se encontram verificados os pressupostos de responsabilidade pelo risco a que aludem os artigos 499 e 503 do Código Civil.

Na determinação da obrigação de indemnização a primeira questão que se suscita é um tema por demais decantado em termos doutrinais e jurisprudenciais e consubstancia-se na determinação do valor do direito á vida.
Em abstracto todos somos iguais perante o direito mas este principio terá de ser equacionado em concreto com outros factores como a idade; a saúde e a função social.
Como bem refere Pedro Ferreira Dias no plano individual compreende-se perfeitamente que o bem da vida possa ser valorado em abstracto, através de uma compensação uniforme. Mas, do ponto de vista social, as coisas já não serão assim. A vida tem, sobretudo, um valor social porque o homem é, antes de tudo, um ser em situação E terá de ser atendendo a este valor, em temos relativos e numa perspectiva essencialmente de qualidade humana, em que o poder monetário não terá qualquer peso, que os tribunais têm de apreciar, em concreto, o montante da indemnização pela lesão do direito à vida. Tais factores são evidenciados por Dario Almeida quando aponta três vertentes sob que deve ser analisada a lesão deste direito, a saber:
a)- Enquanto vida que se perde, na função normal que desempenha na família e na sociedade em geral;
b)-Enquanto vida que se perde, no papel excepcional que desempenha na sociedade (um cientista, um escritor, um artista); e
c) Enquanto vida que se perde, sem qualquer função específica na sociedade (uma criança, um inválido, mas assinalada por um valor de afeição mais ou menos forte.
A jurisprudência, sem nunca ter caído na arbitrariedade, tem feito um apelo á regra da equidade acentuando-se hoje em dia uma tendência para acentuar o valor absoluto de um direito fundamental, e que é a génese de todos os outros direitos, perante objectos referenciados como parâmetros da sociedade de consumo em que vivemos. Não admira assim que desde os 150.000$00 em que foi valorado o direito á vida de um jovem de 22 anos (conf. Acórdão do STJ de 13/5/1986) se tenha percorrido um caminho de sucessivo afinamento de critérios jurisprudenciais que leva, hoje em dia, á consideração de valores situados cerca dos 50.000 Euros, dependendo o montante concreto de factores subjacentes àquele apelo á equidade.
Esse montante de 50.000 euros se afigura ajustado em relação ao direito á vida de uma criança que, tudo o indicava, tinha o futuro á sua espera


Importa, ainda, equacionar os restantes danos morais susceptíveis cujos montantes são susceptíveis de indemnização.
Uma primeira observação que importa efectuar é a de que a indemnização por danos morais tem por finalidade a satisfação ao lesado dos danos sofridos. O respectivo montante será fixado equitativamente pelo tribunal tendo-se em atenção a extensão e a gravidade dos prejuízos, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e demais circunstâncias do caso. ( n.° 3 do art. 496 do Código Civil).
Não é, porém, fácil avaliar, na prática, estes danos. Na maioria das vezes não existe uma evidência física dos prejuízos e, mesmo quando ela existe, torna-se difícil conhecer as suas consequências. Como salienta Antunes Varela o dano cálculo não tem qualquer cabimento, nesta área. O juiz terá de atender, para além do mais, aos padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, às flutuações do valor da moeda, etc. O bom senso, o equilíbrio, a objectividade e o sentido das proporções são particularmente, aqui, vectores essenciais.
No caso concreto é evidente que sobre os demandantes recaiu o abalo psicológico tremendo que constitui a morte do seu filho em circunstâncias trágicas. O montante peticionado para compensar tal dano não se figura desproporcionado.
Equacionando por tal forma, e atendendo á prática jurisprudencial deste Supremo Tribunal entende-se por adequado fixar o montante da indemnização por danos não patrimonial de cada um dos pais no montante de 10.000 Euros.

Relativamente ás dores e angústias sofridas pela vítima constata-se que as mas não obtiveram demonstração pelo que não são susceptíveis de quantificação e sequente indemnização.
Acresce ainda, em relação ao demandante, o montante pago a título de danos patrimoniais e relativo ás despesa com o féretro da infeliz vítima ou seja 900 Euros.

A responsabilidade pelo pagamento da indemnização arbitrada recai, nos termos do artigo 21 do Decreto-Lei 522/85, sobre o Fundo de Garantia Automóvel – Compete ao Fundo de Garantia Automóvel satisfazer, nos termos do presente capítulo, as indemnizações decorrentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório e que sejam matriculados em Portugal ou em países terceiros em relação à Comunidade Económica Europeia que não tenham gabinete nacional de seguros, ou cujo gabinete não tenha aderido à Convenção Complementar entre Gabinetes Nacional.
2 – O Fundo de Garantia Automóvel garante, por acidente originado pelos veículos referidos no número anterior, a satisfação das indemnizações por:
a)Morte ou lesões corporais, quando o responsável seja desconhecido ou não beneficie de seguro válido ou eficaz ou for declarada a falência da seguradora;
.

Nestes termos julga-se parcialmente procedente o recurso interposto pelos demandantes BB e AA e, em consequência, condena-se o Fundo de Garantia Automóvel a pagar ao demandante AA a quantia de 35.900 Euros e á demandante BB a quantia de 35.000 Euros
Custas pela demandada singular nos termos do artigo 523 do CPP.

Lisboa, 2 de Julho de 2008

Santos Cabral (Relator)
Oliveira Mendes

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1- Cf., Acórdãos de 1/6/2006, Proc. n.º 1427/06 – 5.ª e de 22/6/2006, Proc. n.º 1923-06 – 5
2- Maria João Antunes (R.P.D.C. Ano 4 Fascículo 1º)
3- Como se refere em Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Junho de 2008 (Relator Juiz Conselheiro Souto Moura) O Supremo Tribunal conhece oficiosamente (art. 434.º do Código de Processo Penal e jurisprudência fixada pelo Acórdão n.º 7/95, de 19-10) dos vícios do art. 410.º, n.º 2, não porque possam ser alegados em novo recurso que verse os mesmos depois de terem sido apreciados pela Relação, mas quando, num recurso restrito exclusivamente à matéria de direito, constate que, por força da inquinação da decisão recorrida por algum deles, não possa conhecer de direito sob o prisma das várias soluções jurídicas que se apresentem como plausíveis.
Uma tal interpretação não colide com o direito ao recurso, enquanto parte integrante do direito de defesa consagrado no art. 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, pois o referido direito alcança satisfatoriamente as exigências constitucionais com o asseguramento de um grau de recurso para um tribunal superior, neste caso a Relação (Cf., entre outros, os Acórdãos de 15-10-03, Proc. n.º 1882/03 - 3.ª; de 01-06-06, Proc. n.º 1427/06 - 5.ª e de 22-06-06, Proc. n.º 1923/06 - 5.ª e Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2.ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 371).” (Ac. de 3/4/08, Pº 4280/07-5º Secção relatado pelo Cons. Rodrigues da Costa).
4- Antunes Varela “Obrigações” pag 466; Dario Almeida “Manual dos acidentes de viação” pag 271
5- Lima e A. Varela, "C. C., Anotado", I, 518; Rui Alarcão, "Obrigações", Lições, 328; Brandão Proença "A Conduta do Lesado...", 445)
6- O Supremo Tribunal de Justiça tem afirmado que “o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercedam no caso concreto.” (cf. ainda os Acórdãos de 4 de Novembro de 2004 – P.º 2855/04-2.ª, de 13 de Janeiro de 2005 – P.º 4063/04-7.ª; Prof. A. Varela, in “Das Obrigações em Geral”, 10.ª ed, I, 893, 899, 890/1 – “…do conceito de causalidade adequada pode extrair-se, desde logo, como corolário, que para que haja causa adequada, não é de modo nenhum necessário que o facto, só por si, sem a colaboração de outros, tenha produzido o dano. Essencial é que o facto seja condição do dano, mas nada obsta a que, como frequentemente sucede, ele seja apenas uma das condições desse dano.”).
7- “Incapacidade Jurídica dos Menores Interditos e Inabilitados no Âmbito do Código Civil
8- Boletim nº85, p. 410
9- Código Civil Anotado Volume I
10- Confrontar Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Maio de 2008 (Relator Conselheiro Fonseca Ramos
11- Refira-se a propósito que, em nosso entender, não merece aplauso o entendimento professado por Maria Clara Sottomayor ( “ A Responsabilidade Civil dos Pais pelos factos ilícitos praticados pelos filhos menores “, BFDUC vol.LXXI, 1995, pág.411 ) no sentido de que a presunção de culpa “ contém simultaneamente uma presunção de causalidade, na medida em que se presume que o não cumprimento do dever de vigilância por parte dos pais é a causa do dano”, pois, de outro modo, “ obrigar a vítima a provar o nexo de causalidade entre a culpa dos pais e o dano seria equivalente a exigir-se a prova da culpa, o que esvaziaria o alcance da presunção estabelecida na lei “.Na verdade, ao entender por tal forma determinando uma interpretação extensiva da norma estende-se o alcance da presunção para além do manifestamente pretendido pelo legislador entrando no domínio da causalidade.
12- Relator Conselheiro Santos Bernardino
13- A conduta do lesado…. Pag 820 e seg
14- Cita-se a propósito o entendimento de CALVÃO DA SILVA no sentido de que o texto do art. 505º, devidamente interpretado, expressa a doutrina seguinte Cfr. a sua anotação ao Ac. STJ de 01.03.2001, na RLJ ano 134º, págs. 112 e ss, e designadamente, quanto a este ponto, págs. 115/118.:
Sem prejuízo do concurso da culpa do lesado, a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
No entendimento deste Autor, a lei admite, assim, o concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, sempre que ambos concorram na produção do dano, decorrendo essa admissibilidade (se bem captámos o seu pensamento), do teor da parte inicial do preceito em apreço.Na verdade – diz CALVÃO DA SILVA, decompondo a norma em análise – a ressalva feita no início do art. 505º (“Sem prejuízo do disposto no artigo 570º”) é para aplicar à responsabilidade fixada no n.º 1 do artigo 503º; e esta é a responsabilidade objectiva; logo, a concorrência entre a culpa do lesado (art. 570º) e o risco da utilização do veículo (art. 503º) resulta do disposto no art. 505º, que só exclui a responsabilidade pelo risco quando o acidente for imputável – i.e., unicamente devido, com ou sem culpa – ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte (exclusivamente) de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
E, efectivamente, parece-nos que só assim interpretado o art. 505º, logra significado e efeito útil a sua parte inicial. Assentando a responsabilidade fixada no n.º 1 do artigo 503º no risco da utilização do veículo, e não na culpa, e estando o concurso da conduta culposa do condutor ou detentor do veículo com facto culposo do lesado previsto directamente no art. 570º, não seria razoável interpretar a parte inicial, acima transcrita, do art. 505º, como aplicável havendo culpas de ambas as partes. Numa tal interpretação, aquela parte inicial seria absolutamente desnecessária: mesmo que o art. 505º dela fosse amputado, sempre o caso de concorrência entre facto ilícito e culposo do condutor e facto culposo do lesado seria regulado pelo disposto no art. 570º.
15- É assim, que o acórdão citado acaba por concluir que como conforme com o direito comunitário, das regras nacionais sobre a responsabilidade civil objectiva, que essas normas, nomeadamente o artigo 503; 505 e 570 do código covil consagram a possibilidade de concurso do risco do condutor do veículo com a conduta culposa do lesado, e que a responsabilidade pelo risco só é excluída, tal como entende CALVÃO DA SILVA, quando o acidente for imputável – i.e., unicamente devido, com ou sem culpa – ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte (exclusivamente) de força maior estranha ao funcionamento do veículo. Não sendo esse o caso, logrará aplicação, na fixação da indemnização, o art. 570º.