Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1320/14.2TMPRT.P2.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: DIVÓRCIO
FALECIMENTO DE PARTE
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
MANDATÁRIO
FALTA DE ADVOGADO
PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO
DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
CASO JULGADO FORMAL
PRESSUPOSTOS
NEGLIGÊNCIA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
PRINCÍPIO DA AUTORRESPONSABILIDADE DAS PARTES
Data do Acordão: 03/25/2025
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA PROCEDENTE
Sumário :
I. Numa ação de divórcio, morrendo o autor na pendência da ação, e tendo como sucessores habilitados todos os seus filhos, a falta de constituição de mandatário por um dos sucessores não pode determinar a deserção da instância quanto a todos os coautores.

II. A deserção da instância, nos termos do artigo 281.º, n.º 1 e n.º 4 do CPC, exige a existência de um comportamento negligente da parte que tem o ónus do impulso processual, não bastando, portanto, o decurso do prazo legal sem que o onerado promova o andamento do processo.

III. A decisão que determina a suspensão dos autos até que um dos coautores constitua mandatário (após renúncia do anterior), faz caso julgado formal apenas sobre a concreta questão apreciada, não se projetando tal decisão sobre a (autónoma) apreciação dos pressupostos da deserção da instância em relação a todos os coautores.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. AA propôs ação de divórcio, sem consentimento do outro cônjuge, contra BB, com quem era casado no regime da separação de bens. Alegou factos tendentes a demonstrar a rutura definitiva do casamento entre ambos, bem como a separação de facto por mais de um ano.

2. Contestada a ação (e tendo a ré deduzido reconvenção, por pretender o decretamento do divórcio por culpa exclusiva do autor e a condenação deste no pagamento de indemnização, bem como a fixação de pensão alimentar), seguiu-se a normal tramitação, tendo existido, na audiência prévia, a conversão em divórcio por mútuo consentimento. Os autos prosseguiram para apreciação das questões incidentais que se mantinham em litígio.

3. Tendo falecido o autor, foram habilitados como seus sucessores (para lá da ré BB, ainda sua mulher): os seus filhos CC, DD, EE, o neto FF e ainda o filho GG.

4. O mandatário constituído pelo habilitado GG (que manifestara nos autos o seu desacordo no prosseguimento da ação para efeitos patrimoniais) renunciou ao mandato.

5. A ré – BB – apresentou requerimentos (em 06.11.2020 e 13.11.2020) pedindo a notificação de GG para constituir novo mandatário (por se verificar uma situação de litisconsórcio necessário dos sucessores do falecido autor), com a cominação do art.º 41º do CPC. Tais requerimentos merecem resposta, designadamente do habilitado EE (sustentando não se verificar a invocada situação de litisconsórcio) e de GG (corroborando verificar-se situação de litisconsórcio, não estando ele de acordo com o prosseguimento dos autos).

6. Foi proferido despacho, em 30.04.2021 (notificado às partes representadas por mandatário e também ao habilitado GG), com o seguinte teor:

Tendo em consideração, por um lado, que o habilitado GG, na sequência da renúncia ao mandato levada a cabo pela sua Ilustre Mandatária, não constituiu novo Advogado no prazo a que alude o art.º 47.º n.º 3 do C. P. Civil, e, por outro lado, atendendo ao facto de na presente causa ser obrigatória a constituição de Advogado (cfr. o art.º 40.º n.º 1 a) do citado diploma legal), declaro a instância suspensa (alínea a) do n.º 3 do art.º 47.º do C. P. Civil).”

7. O habilitado CC requereu, em 09.09.2021, o prosseguimento dos autos, alegando que havendo sido concedido o prazo para o habilitado GG constituir mandatário, sem que o tivesse feito, deveria o processo prosseguir.

Esta pretensão foi deferida, por despacho de 21.09.2021, sendo determinado o prosseguimento dos autos, realizado o julgamento e proferida sentença que, para efeitos patrimoniais, fez retroagir a maio de 2013 os efeitos do divórcio entre o falecido autor e a ré.

8. Inconformada com o despacho de 21.09.2021 e com a sentença, apelou a ré. Fê-lo com sucesso, pois, por acórdão de 17.05.2022, foi decidida a revogação do despacho apelado de 21.09.2021, por se manterem os efeitos processuais do caso julgado formal do despacho de 30.04.2021, com a consequente anulação de todo o processado posterior, incluindo o julgamento e a sentença.

9. Transitado em julgado tal acórdão (a revista dele interposta não foi admitida pelo STJ, por acórdão de 17.01.2023), baixou o processo à 1ª instância, sendo proferido despacho (em 16.02.2023) que determinou, por ser de manter a suspensão da instância decretada pelo despacho de 30.04.2021, que os autos aguardassem o decurso do prazo a que alude o art.º 281º, n.º 1 do CPC (despacho notificado às partes representadas por mandatário e também ao habilitado GG).

10. Em 16.05.2023, os habilitados CC, DD, EE e FF apresentaram requerimento pretendendo a notificação do habilitado GG do “seu dever de constituir mandatário judicial” à luz do princípio da cooperação (antes de suscitarem a sua litigância de má fé), o que, após resposta da ré, foi indeferido, por despacho de 05.06.2023, ponderando que, face ao decidido no acórdão do TRP de 17.05.2022, se mantinha a suspensão da instância decretada, com força de caso julgado, pelo despacho de 30.04.2021, devendo os autos continuar a aguardar o decurso do prazo aludido no art.º 281º, n.º 1 do CPC. Contra este despacho, os mesmos habilitados interpuseram recurso, o qual não foi admitido, por se ter considerado que tal decisão só podia ser impugnada com o recurso da decisão final.

11. Em 28.09.2023, a ré a requereu que se decretasse a deserção da instância (n.º 4 do art.º 281º do CPC), porquanto o processo se encontrava a aguardar, há mais de seis meses, o impulso processual. Ouvidos os habilitados (sustentando o CC, o DD, o EE e o FF não se vislumbrar dos autos que tenha ocorrido, por negligência a si imputável, qualquer inércia em promover o andamento do processo), foi proferido, em 12.01.2024, despacho com o seguinte teor:

«O habilitado GG, a 10 de dezembro 2020, constituiu mandatário, manifestando desacordo no prosseguimento dos autos para efeitos patrimoniais, e requerendo a extinção do processo.

A 05 de Janeiro de 2021, o seu mandatário renunciou ao mandato e, não tendo o mandante constituído novo mandatário no prazo legalmente previsto, a instância foi julgada suspensa por despacho de 30 de abril de 2021.

O Tribunal da Relação do Porto a 17-05-2022 por acórdão que revogou “(…) o despacho apelado de 21/09/2021 (por se manterem os efeitos processuais do caso julgado formal do despacho de 30/04/2021), anulando todo o processado posterior, incluindo o julgamento e a sentença.”

Foi proferido despacho a 16-02-2023: “Li o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto. Em face do mesmo, mantendo-se a suspensão da instância decretada pelo despacho de 30.04.2021, aguardem os autos o decurso do prazo a que alude o disposto no artigo 281º, n.º 1 do CPC.”

Tal despacho foi notificado às partes em 17-02-2023.

A 15-11-2023 foi proferida decisão que manteve o despacho reclamado que não admitiu o recurso interposto do despacho de 16-02-2023.

Nos termos do artigo 281.º, n.º 1 do CPC: «considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses».

Ora, tendo decorrido o referido prazo, desde logo após o despacho de 16-02-2023, não restam dúvidas que a instância se encontra deserta e por consequência extinta (artigo 281.º, n.º 1 e 277.º, al. c) do CPC).

Custas pelo habilitado GG.»

12. Contra esta decisão e contra o despacho de 05.06.2023 apelam os habilitados CC, DD, EE e FF, pretendendo a sua revogação e substituição por decisão que ordenasse o prosseguimento dos autos.

13. A segunda instância proferiu acórdão com o seguinte dispositivo:

«Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e, em consequência, em confirmar as decisões apeladas

14. CC, DD, EE, FF (habilitados sucessores do falecido Autor, AA) interpuseram revista a título excecional ao abrigo das alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 672º do CPC. Nas suas alegações formularam as seguintes conclusões:

«I. Vem o presente recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, que julgou improcedente a Apelação e confirmou a decisão apelada.

II. O Tribunal de primeira instancia havia proferido despacho, em 30/04/2021, declarando que não tendo o habilitado GG constituído mandatário, após renuncia do anterior, e sendo os autos de constituição obrigatório de advogado, que declarava a instancia suspensa.

III. De tal despacho, foi interposto recurso.

IV. O habilitado CC veio solicitar o prosseguimento dos autos, requerendo a designação de data para produção de prova.

V. O Tribunal de primeira instancia decretou a diligencia e o consequente divorcio.

VI. Inconformada com a decisão, veio a R. BB apelar, tendo sido proferido acórdão a revogar a decisão anterior, anulando todo o processado.

VII. Baixaram os autos á primeira instancia, ficando a aguardar o decurso do prazo previsto no art. 281 n.º 1 do CPC.

VIII. Vieram os habilitados CC, DD, EE e FF apresentar requerimento, pretendendo a notificação do habilitado GG para que viesse constituir mandatário à luz do principio da cooperação.

IX. Por despacho de 05/06/2023, decidiu o Tribunal de primeira instancia manter a suspensão e aguardar pelo decurso do prazo do art. 281 n.º 1 do CPC.

X. Na sequência de requerimento apresentado pela R. BB, foi proferido despacho, a 05/06/2023, a decretar deserta a instancia.

XI. Vieram os habilitados, ora Recorrentes, interpor recurso para o Tribunal da Relação do Porto, a requer a revogação do despacho e decisão que ordenasse o prosseguimento dos autos.

XII. Por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, foi a pretensão indeferida, sendo deste Acórdão que ora se recorre.

XIII. O presente Recurso que é de Revista Excepcional, tem por fundamento as situações em que a questão cuja apreciação se vem remeter a V/ Exas. tem relevância jurídica, sendo necessária par uma melhor aplicação do direito, sem perder de vista que estão em causa interesses de particular relevância social.

XIV. O Tribunal da Relação escudou a sua decisão por porfiar a existência de um caso julgado formal, que entendemos não existir.

XV. Ainda que, academicamente, se pudesse admitir a existência de um caso julgado formal, nunca a mesma poderia conduzir a uma decisão escandalosamente violadora do sentimento de justiça, quando a conduta adoptada, por quem procura entorpecer a justiça, quadra uma figura de abuso de direito, para alem de fazer um uso anormal do processo.

XVI. Em defesa do nosso entendimento de que inexiste caso julgado formal, impõe-se, em primeiro lugar, que se atente ao disposto no art. 620 n.º 1 do CPC, aí se dizendo que as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.

XVII. Este caso julgado formal, relativo a questões ou matérias que não são de mérito, têm como corolários fundamentais:

i) as sentenças, acórdãos e despachos transitados têm força obrigatória de tal forma que são imodificáveis no interior do processo em que são proferidos e é inadmissível (ineficaz: art. 625º, 2, CPC) decisão posterior e/ou decisão contrária ou desrespeitadora sobre a mesma questão ou matéria sobre o qual incidiram (extinção do poder jurisdicional: art. 613º CPC;

ii) o caso julgado constitui-se e produz efeitos «nos precisos limites e termos em que julga» (art. 621º CPC), o que implica a determinação exacta do âmbito objectivo e extensão do conteúdo da decisão a aferir como transitada.

XVIII. Assim sendo, a “ofensa de caso julgado”, como vício na modalidade de caso julgado “formal”, implicaria em termos recursivos a invocação de decisão ou decisões transitadas em julgado que contendam e/ou se sobreponham ao conteúdo e efeitos da decisão que alegadamente desrespeita a questão anteriormente decidida.

XIX. Por outro lado, a decisão processual como caso julgado apenas se constitui no âmbito endógeno do processo desde que – se assim forem identificados num nexo de conexão e instrumentalidade – não se verifique certa condição, o decurso de certo prazo ou a prática de determinado facto, se e na medida em que esses eventos negativos possam ser qualificados como verdadeiros pressupostos dos seus limites objectivos, de acordo com a 2.ª parte do art. 621º, 1, do CPC; se se verificarem, e enquanto se verificarem, a eficácia de caso julgado não se produz e nada obsta a que se decida novamente sobre o objecto da decisão proferida, uma vez que o poder jurisdicional não se encerrou.

XX. Com efeito, o pressuposto de normalidade dos presentes autos era de que a acção iria prosseguir e conhecer os seus normais termos, já que, o que estava no espirito de todos, é que os habilitados iriam fazer prosseguir o processo em respeito daquilo que era a vontade do falecido pai.

XXI. Jamais esteve na mente e no entendimento do próprio tribunal que um só herdeiro pudesse impedir a obtenção do fim que ocorreria normalmente com o A. vivo, e que usando de uma posição processual totalmente dissociada daquele que era a pretensão do próprio A. pudesse obstaculizar a própria acção. Tudo em resultado de politica mancomunada com a R., em que um dos representantes do A. se associa á R., leia-se parte contraria, em busca de permissão de enriquecimento que no futuro a beneficiar duplamente.

XXII. Ou seja, tendo presente o teor do despacho em causa em que referiu da necessidade de todos os habilitados fazerem prosseguir o processo, partiu do pressuposto de que a boa-fé imperaria e que o espirito dos autos manifestado pelo A. seria prosseguido por aqueles que se lhe sucederam e que iriam respeitar aquelo que era a sua vontade, jamais equacionando que a obtenção de tal desiderato ficaria dependente, por vicissitudes supervenientes nos autos a possível desfecho contrario.

XXIII. Verificando-se esta conduta anormal, os demais filhos do A. vieram solicitar o prosseguimento da acção que impunha necessidade de decisão e que, por conseguinte, não estava o tribunal impedido sobre nova pronuncia sobre o acto processual decidido.

XXIV. Ou seja, o conteúdo estava ainda na disponibilidade decisória do juiz.

XXV. E terá sido esse o entendimento do tribunal de primeira instancia ao fazer prosseguir os autos e levar a cabo a diligencia de discussão e julgamento e posterior sentença que o tribunal da Relação veio a revogar.

XXVI. Com a nova realidade, contrária ao espirito que presidia os autos, não poderia o tribunal ficar impedido de conformar a realidade com o verdadeiro espirito que imperava nos autos, não decidindo sobre o objecto a coberto de um pretenso caso julgado cujos fundamentos se alteraram a partir da recua do habilitado GG mancomunado com a parte contraria.

XXVII. Por isso que inexistia caso julgado formal impeditivo de se fazer prosseguir os autos.

XXVIII. Ainda que academicamente se cogitasse algo diferente do aqui defendido, a verdade é que, sempre se chegaria ao mesmo resultado/conclusão, de que a vontade de um não pode por em causa a vontade de todos e a segurança do direito.

XXIX. Como resulta dos autos, o A. AA foi casado com a R., existindo desse casamento um filho, de seu nome GG.

XXX. De um casamento anterior do A. existem outros 3 filhos.

XXXI. O A. era ainda pai de um outro filho, também ele habilitado.

XXXII. A. e R. tendo manifestado vontade de se divorciarem acordaram na conversão do litigio em mutuo consentimento, a 7 setembro de 2015, ficando apenas pendentes as questões incidentais do destino da casa morada de família e pensão de alimentos.

XXXIII. Falecido o A., vieram os herdeiros habilitar-se.

XXXIV. Porque a vontade manifestada, anteriormente, se mostrava inalterada, o A. AA, deixou declaração expressa, subscrita notarialmente, na qual deixava clarividente que, caso lhe acontecesse alguma fatalidade, como infelizmente aconteceu, pretendia que algum dos seus herdeiros, ou todos, prosseguissem a acção e obtivessem o divorcio com a R.

XXXV. A instancia achava-se validamente constituída e encontrava-se estabilizada quanto aos sujeitos processuais.

XXXVI. Sendo evidente e patente a vontade do falecido A. se divorciar, quer em razão da propositura da acção, quer em razão da conversão do divorcio em mutuo consentimento, quer e razão do propalado pelo mesmo durante todo o tempo em que viveu, quer em razão da declaração que deixou escrita nos curtos 15 dias anteriores ao seu decesso, criou no espeito de todos a certeza de que o processo era para prosseguir, e que tal vontade seria respeitada como uma das ultimas vontades expressamente manifestada pelo de cujus.

XXXVII. Obviamente que os filhos viram necessidade de fazer cumprir aquilo que era a vontade do falecido, que apenas veio a ser excepcionada, pelo filho que mancomunado com a R., que poderia conseguir beneficio em relação a seus irmãos, utilizando expediente ardiloso com o qual a lei e o direito não podem compactuar.

XXXVIII. Apesar do habilitado GG saber que o pai pretendia o divorcio da sua mãe, começou por praticar acto assistido por mandatário, para, de imediato vir afastar o mandato, e conseguir assim criar uma paralisação nos autos que jamais seria idealizada por quem quer que fosse.

XXXIX. Aquilo que o habilitado GG pretendia é que o Tribunal viesse a decretar a deserção da instancia por paralisação, e assim, transformar a quase divorciada, e, por conseguinte, sem direito a património do falecido, novamente em sua mulher e com direito a património por via do estado civil de viúva.

XL. Só que esta conduta é processualmente indigna, já para não falar no sentimento de absoluta revolta que causa pelo facto de se pretender ver negado aquilo que era a vontade do falecido, e que expressamente deixou repisada em declaração notarial gizada poucos dias antes do seu óbito.

XLI. Ora, a conduta adaptada em todo o hiato temporal que decorreu até ao momento em que o habilitado GG decidiu não constituir mandatário criou a convicção segura aos demais habilitados de que jamais ele se serviria do processo para conseguir um fim que a lei não pode permitir e que apenas é idealizável por recurso ao impedir o normal prosseguimento dos autos.

XLII. Das circunstâncias decretadas e factuais, analisadas á luz de critério de normalidade e experiencia comum, formou-se na mente de todos, a firme convicção de que as partes iriam prosseguir os normais termos do presente acção e que a vontade expressa nos autos e na declaração a que supra se aduziu obteria o seu normal curso.

XLIII. Mas o que se veio a assistir é que a conduta do habilitado GG, que inicialmente produziu a convicção segura de que o processo iria seguir o seu normal curso até final, acabou por se alterar porque este assumiu conduta que visa atingimento de um fim proibido por lei, obstando ao objectivo normal prosseguida pelas partes.

XLIV. Mais não fez o habilitado GG de que, de comum acordo com a R. obstaculizar o normal prosseguimento dos autos em ordem em obter uma sentença cujo beneficio lhes seja exclusivamente benéfico a eles, mesmo sabendo que, nos autos assumem processualmente posições antagónicas.

XLV. Depreende-se dos autos que o habilitado GG, com a sua conduta processual está conluiado com a R. para obter determinado efeito jurídico, in casu, transformar a R. em herdeira de seu pai, prejudicando os seus irmãos germanos, mesmo que tal viole sobremaneira a ultima vontade do pai de todos...

XLVI. Na verdade, a suspensão da instancia decretada, para conduzir a uma deserção da instancia, emergiu de acordo entre o habilitado GG que tinha o ónus de dar impulso processual, constituindo mandatário, e a R., sua mãe, interveniente naquele que deveria ser o polo oposto do habilitado GG.

XLVII. Aqui chegados, verifica-se que ocorreu uma situação típica de abuso de direito, já que o habilitado GG, detentor de um determinado direito, o exercitou fora do seu objectivo natural e de razão justificava da sua existência e ostensivamente contra o sentimento jurídico dominante.

XLVIII. Dogmaticamente tem-se considerado abuso de direito o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas que se pode definir como o exercício de um direito que devido a circunstâncias extraordinárias dá origem a resultados totalmente estranhos ao que é admissível pelo sistema, quer por contrariar a confiança ou aquilo que o outro poderia razoavelmente esperar, quer por dar origem a uma desproporção manifesta e objectiva entre os benefícios recolhidos pelo titular ao exercer o direito e os sacrifícios impostos á outra parte resultantes desse exercício.

XLIX. A luz deste instituto jurídico deste abuso de direito, deve impedir-se a obtenção do beneficio jurídico que pretende obter injustificadamente, atento o grave desequilíbrio que se produz no direito das partes, apenas porque um pretende beneficiar a contraparte, para mais tarde ver tal reflexo de beneficio em sua esfera, prejudicando todos os demais, a revelia do que era a vontade do primitivo A. e do que era expectável vir a ocorrer, não fosse a conduta eivada de ilegalidade e concupiscência de actuação.

L. Por isso que, aqui chegados se impõe a prolação de douto acórdão que revogue a decisão que decretou a deserção da instancia, ordenando o prosseguimento dos autos, para posterior decretação do divorcio, assim se fazendo inteira e sã justiça.

LI. Estão assim violados, por erro de aplicação e interpretação o vertido nos artigos 6.º 7.º, 8.º, 47.º, 269.º, 275.º, 277.º c), 281.º n.º 1, 580 e 581.º, 612.º, 620.º e 621.º do C.P.C., igualmente violado o art. 1785.º do Código Civil, bem como o disposto no artigo 20, n.º 1, 2 e 4 da C.R.P.

Pelo exposto e pelo que doutamente for suprido, a decisão proferida deve ser revogada, e, em sua substituição, ser proferido Douto Acórdão que conceda provimento ao presente recurso, ordenando o prosseguimento dos autos, para assim se fazer, inteira e sã justiça.»

15. A recorrida apresentou resposta, que sintetizou nos seguintes termos:

«A. O presente recurso de revista excecional não cumpre os requisitos legais para que o mesmo seja admissível, ou seja, não se encontram verificados todos os normativos impostos, nomeadamente: a dupla não conforme, a demonstração da necessidade duma melhor aplicação do direito ou a existência de interesses de particular relevância social.

B. O Acórdão da Relação do Porto, cujo recurso é o objeto dos presentes autos, é irrecorrível.

C. Não foram alegados ou demonstrados quaisquer factos concretos ou argumentos específicos que permitissem concluir pela necessidade duma melhor aplicação do direito ou a proteção de interesses de particular relevância social.

D. O que os recorrentes pretendem é obter uma decisão, com base numa condenação da atuação do habilitado GG, que nem sequer é Reu neste processo, mas a ser seria sempre Autor.

E. O que os Recorrentes pretendem é uma nova decisão, tendo já obtido duas que lhes foram desfavoráveis, e assim contornar a necessidade do respeito da dupla conforme.

F. É a segurança jurídica que está em causa, o instituto do caso julgado, é fundamental na interpretação e aplicação do Direito.

G. A decisão que agora pretendem por em causa os Recorrentes, nem sequer é a que vem plasmada no douto Acórdão que recorrem, é aquela que decidiu que o despacho de primeira instância transitou, decisão essa tomada pelo Tribunal da Relação anteriormente, e que também transitou.

H. O habilitado GG não tem o ónus de dar impulso processual, é um poder que pode exercer, querendo. Nada o obriga a constituir mandatário ou a acompanhar a ação.

I. Não há qualquer abuso de direito do habilitado GG tal como foi decidido pelo Tribunal da Relação, e ainda que houvesse não era nesta ação que as consequências desse abuso poderiam ser julgadas.

J. Lembrar que o habilitado GG não é parte na presente ação.

K. Encontram-se assim violados os Art°s 3.º, 620º, 625º todos do Código de Processo Civil.

Nestes termos, deve ser mantido o douto Acórdão do Tribunal da Relação na sua plenitude. Só assim se fazendo justiça.»

16. O recurso foi admitido pela Formação a que alude o artigo 672º, n.º 3 do CPC.

17. Dado que o acórdão da Formação, que admitiu a revista, fazia referência à pendência da revista ampliada, correspondente ao processo n.º 4368/22.0T8LRA.C1.S1 (relator Luís Espírito Santo), na qual se debatiam os pressupostos da figura da “deserção da instância”, a relatora determinou que os presentes autos aguardassem até à prolação do acórdão correspondente a essa revista ampliada.

Proferida essa decisão em 23.01.2025, cabe apreciar.

*

II. FUNDAMENTOS

1. Admissibilidade e objeto do recurso

O recurso foi admitido como revista excecional com base no artigo 672º, n.º 1, alínea a) do CPC. O acórdão da Formação, que admitiu este recurso, sustentou-se, essencialmente, nos seguintes argumentos:

«A questão que os recorrentes, em substância, pretendem ver apreciada pelo Supremo Tribunal de Justiça reconduz-se a saber se a verdade material se sobrepõe a um mero formalismo, concretamente, se pode ser declarada a deserção da instância sustentada no reconhecimento da verificação do caso julgado formal, cuja existência os recorrentes questionam, de tal sorte que a solução encontrada pelas Instâncias importaria, na ótica dos recorrentes, dar guarida a uma situação típica de abuso de direito, uma vez que o habilitado, GG, detentor de um determinado direito, o exercitou fora do seu objetivo natural e de razão justificava da sua existência e ostensivamente contra o sentimento jurídico dominante.»

O objeto da revista, decorrente das conclusões das alegações dos recorrentes e com o âmbito de admissibilidade traçado pelo acórdão da Formação, é, em primeira linha, o de saber se as instâncias fizeram a correta aplicação do direito quando decretaram a deserção da instância, apesar da especificidade do caso concreto. Por outro lado, é ainda suscitada a questão de saber se o coautor habilitado – GG – age em abuso de direito.

2. Fundamentação de facto

A matéria factual a ponderar para efeitos da presente revista é a que já resulta do relatório supra apresentado.

3. O direito aplicável

3.1. Entendem os recorrentes que a decisão que decretou a deserção da instância deve ser revogada, devendo os autos prosseguir para que seja conhecido o mérito da causa, porquanto não existiria caso julgado formal que a tal obstasse. E entendem ainda que o coautor GG se encontra em situação de abuso do direito, ao não constituir mandatário.

3.2. Sobre a questão de saber se devia ter sido decretada a deserção da instância:

O acórdão recorrido confirmou a decisão da primeira instância no sentido de que a ausência de constituição de mandatário por um dos coautores habilitados, dentro do prazo legal, tinha como consequência a deserção da instância e a consequente extinção do processo quanto a todos. As instâncias entenderam, assim, que a omissão de um dos coautores afetava a posição dos demais. E entenderam que a deserção da instância era uma consequência inelutável do facto de existir uma decisão com caso julgado formal que determinara a suspensão da instância até que o coautor GG constituísse mandatário.

Antes de se passar à análise do acerto deste entendimento, vejamos como se encontra justificado.

Da fundamentação do acórdão recorrido extratam-se os seguintes segmentos, que (de modo mais especifico) conduzem à compreensão da decisão em causa:

«Ponto de partida incontornável na apreciação e análise da presente apelação (e que a torna, em termos estritamente técnico-jurídicos, de manifesta e patente simplicidade) é o caso julgado formal do despacho de 30/04/2021, com o significado e alcance que lhe foi reconhecido no acórdão, também transitado em julgado (e por isso também com força de caso julgado formal quanto à questão), de 17/05/2022 – nesta última decisão reconheceu-se e considerou-se que o caso julgado daquele despacho de 30/04/2021 tinha como necessária consequência (atenta a sua força obrigatória dentro do processo - vinculando todas as partes e o tribunal, quer o tribunal de 1ª instância, quer qualquer outro) a manutenção da suspensão da instância até que o habilitado GG constituísse mandatário.

Quanto a tal questão (manutenção da suspensão da instância até que o referido interessado constituísse mandatário) verificam-se, pois, os efeitos processuais do caso julgado (também o acórdão da Relação tem força de caso julgado formal sobre a questão): trata-se de decisão de forma, incidente sobre aspecto processual, que apreciou e decidiu questão que não respeita ao mérito da causa (art. 620º do CPC), insusceptível de ser modificada ou alterada (a insusceptibilidade do tribunal - qualquer tribunal - se voltar a pronunciar sobre ela – o efeito negativo do caso julgado), sendo indiscutível o conteúdo do decidido (o tribunal – o tribunal que a proferiu ou outro – fica vinculado ao nela definido – o efeito positivo do caso julgado).

Adquirido, pois, com força de caso julgado formal, que para que a acção pudesse prosseguir seria necessário que o habilitado GG constituísse mandatário (art. 276º, nº 1, b) do CPC).

Não se objecte – veja-se a conclusão L – que a questão suscitada no requerimento dos apelantes de 16/05/2023 extravasava o caso julgado formado nos autos; o paralogismo da argumentação é evidente, ponderando que estando a instância suspensa (questão relativamente à qual se formara o caso julgado) só podiam praticar-se actos urgentes destinados a evitar dano irreparável (art. 275º do CPC).

[…]

Na situação dos autos (e sendo certo não ter sido praticado o acto apto a fazer cessar a suspensão da instância – alínea b) do nº 1 do art. 276º do CPC –, por isso se mantendo a suspensão da instância) nenhum dano irreparável se impunha ao tribunal evitar (sendo certo que não integra o conceito de dano irreparável, para efeitos do normativo em questão - 275º do CPC -, a possibilidade da instância se extinguir por deserção, enquanto consequência da não realização do acto destinado a fazer cessar a suspensão, mesmo ponderando que, no caso dos autos, os habilitados não podem propor nova acção, pois a lei – art. 1785º, nº 3 do CC – apenas lhes concede a possibilidade de fazer prosseguir, para efeitos patrimoniais, a acção de divórcio intentado pelo seu antecessor, falecido na pendência da causa) – o habilitado GG (ao qual compete a prática do acto susceptível de fazer cessar a suspensão) fora notificado dos despachos de 30/04/2021 e de 16/02/2023, tendo-lhe sido dado a conhecer que a instância ficava suspensa até que constituísse mandatário, não se afigurando como acto urgente próprio para evitar dano apreciável determinar a sua (nova) notificação para constituir mandatário, agora à luz do princípio da cooperação, sequer também a sua notificação para se pronunciar (durante a suspensão da instância) sobre a sua eventual litigância de má fé em vista da apreciação desta (a apreciação da litigância de má fé das partes pode ocorrer, sem qualquer prejuízo que importe acautelar ou prevenir, com a prolação da decisão final da causa – designadamente de despacho a julgar a sua extinção, em razão de deserção, então se convidando a parte para sobre a questão se pronunciar).

[…]

A disponibilidade da instância que o despacho (transitado em julgado) de 30/04/2021 reconheceu e conferiu ao habilitado GG (não está em questão apreciar se bem ou mal – o caso julgado assenta no valor da segurança do direito e da justiça, não tanto na validade) não pode ser-lhe retirada à luz do princípio da cooperação – não pode exigir-se-lhe que, ao abrigo da cooperação, dê impulso subsequente ao processo: tal disponibilidade (da instância) é faculdade sua, sem que o tribunal ou a parte contrária se lhe possa, no caso, substituir.

Na verdade, constitui um ónus e não um dever jurídico o de impulsionar (inicial ou subsequentemente) o processo (…)

[…]

Ponderando o despacho, com força de caso julgado, de 30/04/2021, o habilitado tinha, pois, o ónus de dar impulso subsequente ao processo (isto é, impunha-se-lhe que constituísse mandatário para que mantivesse o processo pendente ou, noutra perspectiva, evitasse a sua extinção), não já o dever jurídico de fazer (praticar acto destinado a) cessar a suspensão da instância e evitar a deserção.

Interpretação (dos preceitos respeitantes ao caso julgado e do regime da suspensão da instância) que não viola os princípios da proibição da indefesa e do acesso à justiça (artigos 2º e 20º da CRP) – foi às partes garantido, em igualdade de circunstâncias, o uso dos meios facultados em processo judicial equitativo para a defesa dos respectivos direitos.

[…]

O caso julgado, como se disse, encontra justificação no valor da segurança jurídica, não tanto na validade do conteúdo da decisão – a imutabilidade da decisão transitada constitui garantia processual com fonte constitucional (…)

[…]

Do exposto resulta que, face ao caso julgado da decisão de 30/04/2021, ao habilitado GG cabia o ónus de dar impulso subsequente ao processo, fazendo cessar a ali decretada suspensão da instância – não tendo sido praticado tal acto (constituição de mandatário), nem havendo que praticar acto destinado a evitar dano irreparável, o despacho de 05/06/2023, que não atendeu ao pedido dos apelantes de conceder ao habilitado GG última oportunidade de constituir mandatário judicial, em vista do prosseguimento dos autos, e determinou que os autos aguardassem o decurso do prazo aludido no art. 281º, nº 1 do CPC, não merece qualquer censura.

Sendo de corroborar o despacho de 5/06/2023, patente o acerto da decisão que decretou a deserção da instância.

Improcede, pois, a apelação (…)»

3.3. Antes de se concluir se o acórdão recorrido procedeu, ou não, à correta aplicação do instituto da deserção da instância, convoca-se a caraterização desta figura, feita desenvolvidamente na recente revista ampliada, decidida em 23.01.2025, correspondente ao processo n.º 4368/22.0T8LRA.C1.S1 (relator Luís Espírito Santo), na qual é analisado o seu alcance normativo, compreendido à luz da respetiva evolução histórica, desde a sua consagração legal no CPC de 1939 até ao regime vigente.

Extratam-se dessa revista ampliada os seguintes excertos:

«Esta evolução legislativa evidencia claramente o desígnio da promoção da celeridade processual, da diminuição das pendências e a inerente libertação de recursos humanos, fomentando-se ainda, com particular ênfase, a maior auto-responsabilidade das partes no desenvolvimento proactivo da instância.

Manifesta-se desta forma a especial preocupação com a salvaguarda do interesse, de natureza pública, do regular funcionamento dos serviços judiciais, com racionalização de meios e adequada gestão processual, eliminando-se delongas evitáveis, impertinentes e injustificadas, mormente as que resultam (causalmente) da violação pelas partes dos seus deveres de cooperação e diligência.

Ou seja, visa-se agora a celeridade e agilização processual, sendo que a desejável dinâmica dos seus trâmites pressupõe a respectiva movimentação dentro dos ritmos processuais pré-estabelecidos, não se concebendo que, perante a inércia do interessado em promover o impulso que lhe cabe, os processos fiquem nas secretarias judiciais em estado de inútil latência por um período temporal tido por não razoável.

O funcionamento da máquina judiciária, tendo em conta os elevados custos que acarreta para a comunidade e a necessidade de afirmação do seu próprio prestígio institucional, não se compadece com incompreensíveis posturas de desinteresse, desatenção ou desleixo na prossecução dos termos processuais, imputáveis àqueles que, no domínio dos direitos privatísticos, deveriam ser os primeiros – por especialmente interessados no desfecho da lide que voluntariamente encetaram – a preocuparem-se proactivamente com o seu desenvolvimento, com vista a alcançar-se uma composição do pleito em tempo útil, adequado e razoável.

Trata-se, no fundo, de uma questão de natureza pragmática tal como, de resto, a figura da deserção da instância foi primitivamente concebida no Código de Processo Civil de 1939, aprovado pelo Decreto-lei nº 29637, publicado no Diário do Governo Iª Série, nº 123, de 28 de Maio de 1939.

De todo o modo, a deserção da instância na acção declarativa implicará necessariamente a apreciação e valoração jurisdicional, caso a caso, do comportamento omissivo das partes, sendo mister concluir-se que foi devido a tal postura negativa que o processo se manteve sem andamento algum durante o lapso temporal legalmente exigido (seis meses e um dia).

Acrescente-se, ainda, que nos encontramos apenas perante a produção de um efeito exclusivamente processual – a extinção da instância – que deixa, contudo, intocado, no plano substantivo, o direito que a parte pretendia fazer valer através da acção judicial que instaurou, o qual não se extingue nem modifica desta forma (…)

Sobre a análise dos pressupostos legais necessários ao decretamento da deserção da instância, extratam-se desse aresto as seguintes afirmações:

«A decisão judicial que declara a instância deserta e, nessa medida, extinta nos termos dos artigos 281º, nº 1, e 277º, alínea c), do Código de Processo Civil, tem como pressuposto essencial a negligência em promover o impulso processual por parte daquele sobre quem impende esse ónus, conjugada com o decurso do período temporal consignado na lei e conducente a tal desfecho.

Não é, portanto, suficiente para a produção deste efeito processual - extinção da instância por efeito de deserção - a simples paragem do processo pelo tempo legalmente previsto (mais de seis meses consecutivos).

Exige-se ainda, como conditio sine qua non, que esse imobilismo seja devido à injustificada inércia da parte a quem cabe o ónus de promover o prosseguimento dos autos, que dele estava ou deveria estar seguramente ciente, e que não o satisfez.

E acrescenta-se:

«Este instituto jurídico assenta, portanto, no demonstrado desinteresse, incúria ou indesculpável desleixo da parte (que sabia ou devia saber que sobre ela recaía o impulso processual) em promover os termos da causa, concretizando-se, portanto, na falta do empenho e cooperação (cfr. artigos 7º, nº 1, e 8º do Código de Processo Civil) que lhe eram em concreto exigíveis, não sendo admissível que a instância subsista indefinidamente à espera da prática do acto processual que lhe competia diligentemente realizar e que durante tanto tempo inexplicavelmente omitiu.

Assim sendo, o tribunal apenas pode declarar a extinção da instância por deserção quando dispuser dos elementos que lhe permitam concluir, com inteira segurança, que deve fundar-se na rigorosa e atenta análise dos autos, que existiu de facto negligência em promover o seu impulso, exclusivamente imputável à parte interessada, a qual estava sujeita aos efeitos decorrentes dos princípios do dispositivo e da auto-responsabilidade que vigoram no direito processual civil.

Logo (…) é absolutamente decisivo para que seja legalmente possível declarar a deserção da instância a prévia e detalhada análise do circunstancialismo próprio e singular de cada situação processual concreta.»

À luz deste entendimento, cabe, agora, decidir sobre o acerto como, no caso concreto, o acórdão recorrido interpretou e aplicou a figura da deserção da instância.

3.4. O caso concreto, na sua especificidade, implica a consideração de dois momentos processuais que problematicamente se imbricam: por um lado, a questão de saber qual o alcance do caso julgado formal correspondente ao despacho proferido em 30.04.2021 (que determinou a suspensão da instância até que o coautor GG constituísse mandatário) e, por outro lado, a questão de saber em que medida essa decisão vem a condicionar a posterior decisão sobre a deserção da instância.

O que resultou do despacho de 30.04.2021 foi que os autos deviam aguardar até ao final do prazo previsto no artigo 281.º, n.º 1 do CPC. Efetivamente, até ao último dia desse prazo, o coautor habilitado GG poderia constituir mandatário (independentemente de ter expressado a vontade de não continuar em juízo).

Com esse alcance, ou seja, sobre a concreta questão processual apreciada, o referido despacho de 30.04.2021 fez caso julgado formal (art.º 620.º, n.º 1 e art.º 595.º, n.º 3 do CPC).

Todavia, daí não se pode concluir automaticamente que, decorrido o prazo legal sem que o GG tenha constituído mandatário, a deserção da instância tenha de ser inelutavelmente declarada.

Dispõe o artigo 281º, n.º 1 do CPC que:

«Sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses

Nos termos desta norma, o comportamento que determina a interrupção da normal tramitação dos autos e a consequente deserção da instância tem de ser subjetivamente imputável à parte, ou seja, tem de decorrer de negligência do sujeito que vem a ser penalizado pela sua inércia.

Como se concluiu do disposto no artigo 281.º n.º 4 do CPC, no processo declarativo, a deserção da instância não opera automaticamente pelo decurso do prazo, pois depende de decisão judicial. Nessa decisão, deverá o julgador proceder a um juízo autónomo de imputabilidade do comportamento do sujeito que será penalizado pela deserção da instância, como exige o n.º 1 do artigo 281.º, apurando, portanto, se a falta de impulso processual se deveu a negligência sua ou a alguma circunstância que não lhe seja subjetivamente imputável.

Existem, portanto, dois momentos processuais a considerar (que o acórdão recorrido não distinguiu): a decisão de suspender a instância enquanto o coautor GG não constituísse mandatário, nos termos do artigo 47º, n.º 3, alínea a) do CPC; e a decisão que decreta a deserção da instância, nos termos do artigo 281º, n.º 1 e n.º 4 do CPC, e a consequente extinção da instância, nos termos do artigo 277º, alínea c).

Ora, como é claro, o caso julgado formal apenas se constitui sobre a primeira destas decisões (a decisão proferida em 30.04.2021). Assim, por força da decisão que se tornou definitiva, até ao final do prazo dos seis meses (referido no artigo 281.º, n.º 1) podia o GG constituir novo mandatário, devendo os autos aguardar o decurso desse prazo.

Questão diferente, e que já não é abrangida pelo caráter definitivo daquela primeira decisão, é a de saber se, decorrido o prazo legal sem haver constituição de mandatário, estavam reunidos os requisitos para ser declarada a deserção da instância, tendo presentes as especificidades do caso concreto. Esta é a questão central a decidir.

Ora, tanto no acórdão recorrido como na decisão da primeira instância (por ele confirmada) foi feita uma errada interpretação do alcance do caso julgado formal (respeitante ao despacho de 30.04.2021) não tendo tais decisões verificado se existia comportamento negligente dos sujeitos penalizados pela deserção da instância, como era imposto pelo n.º 1 do artigo 281.º do CPC.

Efetivamente, há que compreender como é que a especificidade do caso concreto se projeta na aplicação teleológica da figura da deserção da instância.

Após a morte do autor, a sua posição processual foi assumida pelos seus filhos, em litisconsórcio necessário (art.º 33.º do CPC). Porém, a configuração plural desta parte não se traduziu numa homogeneidade de interesses que continuasse a representar a vontade do falecido autor (como seria típico acontecer).

Como consta dos autos, um dos coautores habilitados – GG – divergiu dos demais quanto à prossecução do interesse do falecido autor (pai de todos os coautores habilitados). Declarou, mesmo, não pretender continuar a ação e não constituiu mandatário depois de o anterior ter renunciado ao mandato.

Se estivesse em causa a existência de um único autor, as consequências do seu comportamento recairiam, obviamente, apenas sobre esse sujeito. E verificando-se a extinção do processo, o autor poderia, eventualmente, propor uma nova ação.

Mas não é assim que acontece no caso concreto. O GG não é o único autor; e havendo extinção da instância, a presente ação (por ser uma ação de divórcio) não poderá voltar a ser proposta, pois após a morte do autor apenas poderá prosseguir, pelos seus herdeiros, nos termos do artigo 1785º, n.º 3 do CC, para efeitos patrimoniais.

Constata-se, assim, que, quando compreendida teleologicamente, a deserção da instância, no caso concreto, não conduz aos efeitos típicos que o legislador teve em mente quando regulou esta figura. Antes pelo contrário, conduz a um resultado que penaliza todos os outros coautores que se encontram representados por advogado, e que procuraram (através de vários requerimentos) que o processo seguisse a sua normal tramitação.

Nestes termos, não se pode concluir que tivesse existido negligência destes coautores, como exigiria o artigo 281º, n.º 1 do CPC, para ser decretada a deserção da instância.

Por outro lado, interpretando o alcance do caso julgado do despacho de 30.04.2021 com o alcance que o acórdão recorrido lhe atribuiu, ou seja, tendo como consequência inevitável a deserção da instância, seria atribuir a uma decisão sobre uma questão meramente processual um alcance que se projetaria inelutavelmente sobre o mérito da causa, dado que (como supra referido) a ação de divórcio não poderia voltar a ser proposta. Não existiria, deste modo, decisão sobre a questão substantiva que determinou o autor a recorrer a tribunal. A regulação definitiva dos direitos substantivos (que todos os coautores encabeçam) resultaria, assim, de uma decisão meramente processual, respeitante apenas a um deles, sem que o tribunal se tivesse pronunciado sobre o mérito da questão que a todos respeita.

Conclui-se, nestes termos, que, não tendo existido negligência da maioria dos coautores na suspensão da instância, os quais se encontram devidamente representados por mandatário, a deserção não podia ter sido decretada, pois tal decisão contraria o disposto no artigo 281.º, n.º 1 do CPC.

3.5. A voluntária ausência de constituição de mandatário, quando a lei determina a necessidade dessa representação (nos termos do art.º 40.º do CPC), não constitui um impedimento absoluto a que, em todo e qualquer caso, os autos possam prosseguir.

Assim acontece, nos termos do artigo 47.º, n.º 3, alínea b) do CPC, quando a falta de constituição de mandatário é do réu, pois nesta hipótese o processo segue a sua marcha, mesmo não estando o réu representado por advogado. Trata-se de uma solução que bem se compreende como forma de evitar que o autor pudesse ser prejudicado, pois se a instância fosse suspensa (e, depois, declarada deserta) por falta de constituição de mandatário do réu, estaria encontrada a forma de o réu obstar ao prosseguimento da ação.

Esta solução legal permite concluir que também no caso concreto não deve existir um impedimento absoluto a que os autos possam prosseguir, mesmo que um dos coautores se recuse a constituir mandatário, para que possa ser salvaguardado o interesse dos demais coautores que pretendem a continuação da ação. Acresce que nada impede o coautor GG de, a qualquer momento, constituir mandatário.

3.6. Pelo exposto quanto à questão anterior, fica prejudicada a apreciação da invocada questão de saber se o coautor GG, ao não constituir mandatário, estaria a agir em abuso de direito.

3.7. Em síntese, conclui-se que o acórdão recorrido não fez a correta aplicação da lei de processo ao declarar a deserção da instância. Consequentemente, terão os autos de retomar a sua marcha normal, seguindo os pertinentes termos legais.

*

DECISÃO: Pelo exposto, julga-se a revista procedente, revogando-se o acórdão recorrido, com a baixa dos autos à primeira instância para prossecução do processo, nos termos legais.

Custas: pela recorrida.

Lisboa, 25.03.2025

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Luís Correia de Mendonça (com voto de vencido)

Graça Amaral

**

Voto vencido com declaração prévia:

Declaração: Ainda que acate funcionalmente a doutrina consagrada pelo AUJ 2/2025, reservo-me a faculdade de remeter para o voto de vencido que então emiti e que contrasta com as transcrições que daquele acórdão acima são feitas.

Voto vencido porque o acórdão não corresponde inteiramente ao objecto do recurso, erigindo em questão central – a irregularidade do despacho de deserção - uma questão que nos autos está configurada como mera consequência da revogação do despacho de 5.6.2023.

Vejamos.

i) Em 30.4.2021 foi suspensa a instância com fundamento na falta de constituição de advogado por parte do habilitado GG.

ii) Omitindo outras vicissitudes de rito, que aqui não importa assinalar, em 16.5.2023, vendo que a situação se mantinha, por alegadamente GG tudo fazer para atrasar os autos, CC e outros filhos do autor requereram que aquele fosse notificado do seu dever de constituir mandatário judicial para que os autos pudessem prosseguir.

iii) Em 5.6.2023, o tribunal proferiu o seguinte despacho: «Em face do acórdão proferido pelo TRP, mantendo-se a suspensão da instância decretada pelo despacho de 30.4.2021, com força de caso julgado, nada mais a determinar para além de aguardarem os autos o decurso do prazo a que alude o disposto no artigo 281.º, n.º1 do CPC»

Faço desde já notar que o que está prioritariamente em causa nestes autos é este despacho e não o despacho de 30.4.2021.

Explico melhor:

iv) Reagindo contra o despacho de 5.6, os habilitados/requerentes interpuseram recurso. Este recurso foi rejeitado e, apresentada reclamação, foi mantido o despacho do tribunal a quo com fundamento em que o recurso deveria ser interposto da decisão final.

v) Em 12.01.2024, foi declarada a deserção da instância ex artigo 281.º CPC.

vi) Então, em 30.1.2024, os requerentes aludidos em ii) interpuseram recurso de apelação dessa decisão.

Como resulta desde logo da conclusão A do recurso: «Pelo presente recurso, visa-se impugnar a decisão interlocutória proferida pelo tribunal de primeira instância em 5.6.2023, que decidiu manter a suspensão da instância decretada por despacho de 30.04.2021, e que conduziu à prolação da sentença que decretou a extinção da instância por deserção».

vii) Nesse recurso, os filhos habilitados do autor dizem claramente que o segundo grau deverá «apreciar as razões apontadas para um comportamento omissivo de um dos interessados, que tudo faz para obstaculizar a realização da justiça» e, em consequência da revogação do despacho de 5.6.2023, «incontornavelmente estará a decisão a jusante, por dependente do despacho impugnado». (sublinhado meu)

viii) As referidas razões foram apreciadas pelo acórdão recorrido, o qual começou por elencar as questões decidendas, a saber:

a) Do desacerto do despacho de 5.6.2023;

b) Que a recusa do tribunal em apreciar tal pedido não se mostra consonante com o dever de acautelar danos irreparáveis (artigo 275.º do CPC) e de apreciar da conduta das partes (mormente a litigância de má fé. Por violação do princípio da cooperação);

c) Nenhum caso julgado formal existe nos autos que a tal obste, sendo o deferimento de tal pretensão imposta pelos princípios da proibição da indefesa e do acesso à justiça (artigos 2.º e 20.º , n.º 1, 2 e 4 da CRP);

d) o desacerto da decisão final (deserção) irremediavelmente afectada pela revogação (que defendem) do anterior despacho de 5.6.2023. (o sublinhado é meu).

ix) O acórdão da Relação do Porto afastou todos os argumentos dos recorrentes, tendo concluído: «Do exposto resulta que, face ao caso julgado da decisão de 30.4.2021, ao habilitado GG cabia o ónus de dar impulso subsequente ao processo, fazendo cessar a ali decretada suspensão da instância – não tendo sido praticado tal acto (constituição de mandatário), nem havendo que praticar acto destinado a evitar dano irreparável, o despacho de 05/06/2023, que não atendeu ao pedido dos apelantes de conceder ao habilitado GG última oportunidade de constituir mandatário judicial, em vista do prosseguimento dos autos, e determinou que os autos aguardassem o decurso do prazo aludido no artigo 281.º, n.º 1 do CPC, não merece qualquer censura.

Sendo de corroborar o despacho de 5/6/2023, patente o acerto da decisão que decretou a deserção da instância». (o sublinhado é meu)

x) Contra esta deliberação se insurgem de novo os recorrentes, mantendo que não existe caso formal que dê cobertura ao despacho de 5.6.2023, além de que há abuso de direito porquanto GG conluiado com a mãe, tudo fizeram para obstar a que os autos prosseguissem.

Pois bem: o presente acórdão debruça-se sobretudo sobre dois despachos, o despacho de suspensão de 30.4.2021 e o de deserção de 12.1.2024, deixando praticamente na sombra o despacho de 5.6.2023 que, esse sim, deveria ter sido revogado, e, consequentemente, o de deserção, e não directamente este.

25.3.2025

Luís Correia de Mendonça