Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | ERNESTO NASCIMENTO | ||
| Descritores: | RECURSO PER SALTUM ADMISSIBILIDADE QUALIFICAÇÃO JURÍDICA CÚMULO JURÍDICO MEDIDA CONCRETA DA PENA PENA ÚNICA PRISÃO CONCURSO DE INFRACÇÕES ALTERAÇÃO SUCESSÃO DE CRIMES INCONSTITUCIONALIDADE CRIME DE TRATO SUCESSIVO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO ABUSO SEXUAL CRIANÇA | ||
| Data do Acordão: | 11/19/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PROVIDO | ||
| Sumário : | I. Se a regra que resulta do artigo 30.º/1 CPenal é a de que existem tantos crime quantas as vezes que o mesmo tipo legal for preenchido pela conduta do arguido, então não há como não afastar a figura do crime de trato sucessivo no âmbito dos crimes de natureza sexual. II. O Supremo Tribunal tem, de forma uniforme, adoptado a solução da subsunção da pluralidade de condutas, no plano do abuso sexual de crianças, na figura do concurso efectivo de crimes, assim, se afastando a configuração de tais situações nos restantes quadros reguladores possíveis, vg. crime continuado, crime único, ou crime de trato sucessivo. III. O n.º 1 do artigo 177.º CPenal encontra-se estruturado na base da consideração da relevância de diferentes tipos de relação entre o agente e a vítima, que justificam a agravação da pena, havendo que distinguir, - as relações familiares para efeitos da alínea a) em que o maior desvalor do tipo de ilícito resulta da sua simples existência, limitada ao círculo constituído por ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente e, - as relações familiares para efeitos da alínea b) – em que tal desvalor decorre do aproveitamento de outra relação familiar para a prática do acto sexual ilícito. IV. “Relações familiares”, para efeitos do n.º 1 do artigo 177.º, n.º 1, são, pois, as relações constituídas por factos que, nos termos da lei, constituem fontes das relações jurídicas familiares – o casamento, o parentesco, a afinidade e a adopção, artigo 1576.º CCivil. V. Às relações familiares previstas na alínea b), cujo âmbito encontra definição por esta via normativa, veio a Lei 103/2015 - como se evidencia dos elementos histórico e sistemático de interpretação - acrescentar um outro tipo de relação – a de coabitação - que, não emergindo de fontes de relações familiares, alarga a tutela penal a situações de facto em que as pessoas envolvidas abusam de uma relação de confiança, em que se incluem as relações constituídas no âmbito do conceito de família alargada ou família afectiva. VI. As exigências de prevenção geral, no caso do crime de abuso sexual de crianças, são acentuadas, por um lado pela frequência inusitada e assustadora com que ocorrem e, por outro, pela necessidade comunitariamente sentida de preservar os valores da liberdade na autodeterminação sexual. VII. Evidencia uma indesmentível tendência criminosa o trecho da vida trecho de vida do arguido, que durante cerca de 5 anos, comete 13 crimes de abuso sexual em relação ao mesmo ofendido, neto da sua companheira, na ocasião, entre os seus 7 e 12 anos de idade. VIII. Tendo em conta as constitucionais exigências da adequação, necessidade e proporcionalidade das reações punitivas, a fixação de um limite mínimo de 5 anos para as penas acessórias do n.º 2 dos artigos 69.º-B e 69.º-C do Código Penal (na redação da Lei n.º 103/2015), para quem é condenado – dentro da moldura penal abstracta de prisão de 30 dias a 3 anos, pelo crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º/3 CPenal - nas penas concretas de 16 e de 20 meses de prisão, revela-se manifestamente desproporcionada. IX. Consubstanciando uma restrição desproporcionada à liberdade de escolha da profissão, artigo 47.º da Constituição, bem como ao direito a constituir família, artigo 36.º da Constituição, sendo nessa medida inconstitucionais, tendo em conta o disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5.ª secção do Supremo Tribunal de Justiça I. Relatório 1. O Ministério Público acusou em processo comum e com intervenção do Tribunal Colectivo o arguido AA, imputando-lhe a prática, em autoria material, concurso real e na forma consumada, de: i. 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças agravado, na forma consumada (artigos 14.º e 26.º, do Código Penal), previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 3, al. a), 177.º, n.º 1, al. c) e 7, 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º2, do Código Penal; ii. 6 (seis) crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada (artigos 14.º e 26.º, do Código Penal), previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 2, 177.º, n.º 1, al. c) e 7, 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º2, do Código Penal; iii. 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada (artigos 14.º e 26.º, do Código Penal), previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, al. c) e 7, 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º2, do Código Penal em concurso aparente com 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada (artigos 14.º e 26.º, do Código Penal), previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 3, al. b), 177.º, n.º 1, al. c) e 7, 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º2, do Código Penal; iv. 6 (seis) crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada (artigos 14.º e 26.º, do Código Penal), previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, al. c) e 7, 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º2, do Código Penal em concurso aparente com 6 (seis) crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada (artigos 14.º e 26.º, do Código Penal), previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 3, al. a), 177.º, n.º 1, al. c) e 7, 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º2, do Código Penal. 2. Por acórdão de 25.6.2025, no âmbito do processo comum colectivo 434/21.7JAFUN do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Juízo Central Criminal do Funchal - Juiz 3, foi o arguido AA condenado, - parte criminal: - na procedência da acusação, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado em trato sucessivo, p. e p. pelos artigos 171.º/2 e 177.º/1 alínea b) CPenal, - na pena de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão; - na proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período que se fixa em 5 (cinco) anos; - na proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adopção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período que se fixa em 5 (cinco) anos; - parte cível: - na procedência do pedido indemnização civil, a pagar ao ofendido BB, aqui representado por sua mãe CC, a quantia de € 8.000,00 (oito mil euros), a título de indemnização devida por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora contados a partir da data da presente decisão, à taxa supletiva legal de 4% ao ano (ou outra que possa, entretanto, vigorar). 3. Inconformada, recorre a Magistrada do MP, para o Supremo Tribunal de Justiça, rematando o corpo da motivação com as conclusões que se passam a transcrever: I. O arguido AA foi condenado, para além do mais, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado em trato sucessivo, previsto e punido nos termos conjugados dos artigos 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, na pena de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão. II. Foi ainda condenado na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período de 5 (cinco) anos. III. E ainda na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de 5 (cinco) anos. IV. A nossa discordância reporta-se exclusivamente à qualificação jurídico-penal efetuada pelo Tribunal a quo e, por conseguinte, à medida concreta da pena aplicada ao arguido AA. V. A qualificação de crime de trato sucessivo não é aplicável aos crimes sexuais, nos termos do já expendido na motivação. VI. Com efeito, consideramos que foi efetuada errada qualificação jurídico-penal quanto aos factos praticados pelo arguido AA e dados como provados, pugnando-se pela prática em concurso real e efetivo, de 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças agravado, na forma consumada, previstos e punidos nos termos conjugados dos artigos 14.º; 26.º; 171.º, n.º 3, alínea a); 177.º, n.º 1, alínea c) e n.º 7; 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º 2, todos do Código Penal; 5 (cinco) crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada, previstos e punidos nos termos conjugados dos artigos 14.º; 26.º; 171.º, n.º 2, 177.º, n.º 1, alínea c) e n.º 7; 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º 2, todos do Código Penal e 9 (nove) crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada, previstos e punidos nos termos conjugados dos artigos 14.º; 26.º; 171.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, alínea c) e n.º 7; 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º2, do Código Penal. VII. Pela leitura da matéria de facto dada como provada foi possível determinar a prática dos indicados 16 (dezasseis) crimes consumados pelo arguido de abuso sexual de criança no período compreendido entre o ano de 2016 e o dia 13.07.2021, pelo que, nos presentes autos cada ato constitui um crime, devendo, assim, ser afastado o trato sucessivo. VIII. A solução está em identificar tanto quanto possível rigorosamente os atos lesivos e punir aqueles que não oferecem dúvidas. IX. É pela pluralidade de crimes identificados na factualidade dada como assente que o arguido deverá ser punido e não pelo um crime de trato sucessivo a que alude o acórdão recorrido. X. Ora, como já se referiu, da factualidade dada como assente e transcrita na motivação, resulta inequivocamente, a prática pelo arguido de dezasseis crimes de abuso sexual de criança, pois que se verificam todos os elementos objetivos e subjetivos deste tipo de crime e não em trato sucessivo. XI. Com efeito, deverá o arguido ser condenado pela prática, em concurso real e efetivo, de 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças agravado, na forma consumada, previstos e punidos nos termos conjugados dos artigos 14.º; 26.º; 171.º, n.º 3, alínea a); 177.º, n.º 1, alínea c) e n.º 7; 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º 2, todos do Código Penal; 5 (cinco) crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada, previstos e punidos nos termos conjugados dos artigos 14.º; 26.º; 171.º, n.º 2, 177.º, n.º 1, alínea c) e n.º 7; 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º 2, todos do Código Penal e 9 (nove) crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada, previstos e punidos nos termos conjugados dos artigos 14.º; 26.º; 171.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, alínea c) e n.º 7; 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º2, do Código Penal. XII. Ora, considerando todos os apontados fatores (contra e a favor do arguido) descritos no acórdão, não existindo diferenças assinaláveis entre si, consideramos adequado e equilibrado aplicar ao arguido AA a pena de 8 (oito) meses de prisão, por cada um dos 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças agravado, na forma consumada, previstos e punidos nos termos conjugados dos artigos 14.º; 26.º; 171.º, n.º 3, alínea a); 177.º, n.º 1, alínea c) e n.º 7; 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º 2, todos do Código Penal. XIII. Consideramos ainda adequado e equilibrado aplicar ao arguido AA a pena de 5 (cinco) anos de prisão, por cada um dos cinco crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada, previstos e punidos nos termos conjugados dos artigos 14.º; 26.º; 171.º, n.º 2, 177.º, n.º 1, alínea c) e n.º 7; 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º 2, todos do Código Penal. XIV. E, consideramos ainda adequado e equilibrado aplicar ao arguido AA a pena de 2 (dois) anos de prisão por cada um dos nove crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada, previstos e punidos nos termos conjugados dos artigos 14.º; 26.º; 171.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, alínea c) e n.º 7; 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º 2, do Código Penal. XV. Atenta a moldura penal assim obtida: o limite máximo da pena única são 25 (vinte e cinco) anos de prisão e o seu limite mínimo é 5 (cinco) anos de prisão. XVI. Procedendo ao cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas, depois de ponderar os fatores descridos no Acórdão, levando em conta toda a factualidade provada, o número de crimes cometidos e as condições pessoais do arguido, em função da sua culpa e das exigências de prevenção, a proteção dos bens jurídicos em causa e a reintegração do arguido na sociedade, entendemos adequado e equilibrado condenar o arguido AA, em concurso real e efetivo, de 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças agravado, na forma consumada, previstos e punidos nos termos conjugados dos artigos 14.º; 26.º; 171.º, n.º 3, alínea a); 177.º, n.º 1, alínea c) e n.º 7; 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º 2, todos do Código Penal; 5 (cinco) crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada, previstos e punidos nos termos conjugados dos artigos 14.º; 26.º; 171.º, n.º 2, 177.º, n.º 1, alínea c) e n.º 7; 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º 2, todos do Código Penal e 9 (nove) crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada, previstos e punidos nos termos conjugados dos artigos 14.º; 26.º; 171.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, alínea c) e n.º 7; 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º2, do Código Penal, na pena única de 10 (dez) anos de prisão. XVII. Pelo exposto, por se considerar que o Tribunal a quo não procedeu à correta qualificação jurídica dos factos dados como provados e, por conseguinte, à determinação concreta da pena, nessa medida, violou as normas dos artigos 171.º; 40.º; 70.º e 71.º, todos do Código Penal, deverá ser dado provimento ao presente recurso. 4. Respondeu o arguido, pugnando pela improcedência do recurso, mantendo-se a qualificação dos factos como trato sucessivo e, subsidiariamente, pugnando pela revisão da medida da pena aplicada, com a sua suspensão e adequação à sua realidade pessoal, nomeadamente uma pena nunca superior a 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na sua execução, sujeita a regime de prova e acompanhamento/tratamento psicológico ou psiquiátrico do arguido, apresentando as seguintes conclusões: 1. O arguido AA foi condenado, para além do mais, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado em trato sucessivo, previsto e punido nos termos conjugados dos artigos 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, na pena de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão. 2. Foi ainda condenado na proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período que se fixa em 5 (cinco) anos; 3. Na proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período que se fixa em 5 (cinco) anos. 4. Não pode o Arguido recorrente conformar-se com o subscrito no douto acórdão nem no recurso apresentado pelo Ministério Público. 5. Não se concorda com o entendimento do Ministério Público quanto à qualificação jurídica dos factos como concurso real de crimes, porquanto os atos ocorreram de forma reiterada e continuada no tempo, com o mesmo contexto, motivação e finalidade, pelo que se impõe o reconhecimento de trato sucessivo ou unidade de resolução criminosa, aplicando-se por analogia o disposto no artigo 30.º, n.º 2 do Código Penal. 6. A decisão recorrida deve ser mantida quanto à qualificação jurídica dos factos como trato sucessivo, por se mostrar correta e conforme com o direito e a jurisprudência aplicáveis. 7. A qualificação dos factos como concurso real agravaria indevidamente a medida da pena, ao multiplicar artificialmente os ilícitos em causa, desconsiderando a continuidade situacional e a homogeneidade do comportamento do arguido. 8. Para além disso, a medida concreta da pena revela-se manifestamente excessiva, face às circunstâncias do caso, designadamente: a. A ausência de antecedentes criminais do arguido; b. A confissão parcial dos factos; c. O arrependimento demonstrado; d. A colaboração com a justiça; e. A inserção familiar e profissional estável; f. A falta de risco de reincidência, atestada por elementos dos autos (relatório social). 9. Verificam-se, assim, os pressupostos legais e jurisprudenciais para a aplicação de pena inferior a 5 anos de prisão, com suspensão da execução da pena, nos termos dos artigos 50.º e 53.º do Código Penal. 10. A pena efetiva aplicada ofende os princípios da proporcionalidade, adequação e necessidade, ínsitos nos artigos 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, e 40.º e 70.º do Código Penal. 11. A sentença recorrida deve ser revogada, por erro na determinação da medida concreta da pena. 12. O recurso do Ministério Público não deverá merecer provimento mantendo-se a qualificação dos factos como trato sucessivo. 5. Foi, então, proferido despacho a admitir o recurso e a ordenar a sua subida ao tribunal da Relação. 6. Aqui, e vista dos autos a magistrada do MP emitiu parecer no sentido de ser o Supremo Tribunal de Justiça o competente para conhecer do recurso. 7. Notificado o arguido, veio referir que nada tem a opor à remessa dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça. 8. Seguidamente, o Relator proferiu despacho a julgar o Tribunal da Relação incompetente para conhecer do recurso, atribuindo-a ao Supremo Tribunal de Justiça, ordenando a remessa dos autos para este Tribunal. 9. Remetidos a este Supremo Tribunal de Justiça, em vista dos autos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416.º CPPenal, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de dever ser julgado procedente o recurso nos seguintes termos: - deve-se concluir serem tantos os crimes cometidos pelo arguido, quantos os factos ilícitos individualizados, no entendimento de que nos crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual não têm cabimento categorias doutrinárias como o denominado crime prolongado, crime exaurido ou crime de trato sucessivo, figuras nas quais se convenciona (ficciona) que há só um crime, apesar de se desdobrar em várias condutas que, cada uma, em si mesma, isoladamente preenche todos os elementos constitutivos da infracção; - por outro lado, está em causa a prática pelo arguido de, - 10 (dez) crimes de abuso sexual de crianças, agravado, na forma consumada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 171.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, alínea b) – sem a agravação do n.º 7 do artigo 177.º CPenal - 14.º e 26.º, todos do Código Penal [factos provados 7/8 (3 crimes), 9 a 11 (3 crimes), 12 (3 crimes) e 14 (1 crime)], a que corresponde a moldura penal abstracta de prisão de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses; - 4 (quatro) crimes de abuso sexual de crianças, agravado, na forma consumada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 171.º, n.º 2, 177.º, n.º 1, alínea b)- também sem a dita agravação - 14.º e 26.º, todos do Código Penal [factos provados 4 (1 crime) e 13 (3 crimes)], a que corresponde a moldura penal abstracta de prisão de 4 anos a 13 anos e 4 meses; - 1 (um) crime de abuso sexual de crianças, agravado, na forma consumada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 171.º, n.º 3, alínea a), 177.º, n.º 1, alínea b) – ainda sem a dita agravação - 14.º e 26.º, todos do Código Penal [factos provados 3], a que corresponde a moldura penal abstracta de prisão de 1 mês e 10 dias a 4 anos; e, - 3 (três) crimes de abuso sexual de crianças, agravado, na forma consumada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 171.º, n.º 3, alínea b), 177.º, n.º 1, alínea b) – também sem a apontada agravação - 14.º e 26.º, todos do Código Penal [factos provados 5/6], a que corresponde a moldura penal abstracta de prisão de 1 mês e 10 dias a 4 anos; - é certo que se afiguram justas, por adequadas e proporcionais à gravidade dos factos e à personalidade do agente, e conformes aos critérios definidores dos artigos 40.º, n.º 1 e 2, 71.º e 77.º, as penas parcelares e única apontadas no recurso nas assinaladas tipologias - secundando aqui os considerandos tecidos pelo recorrente, no que respeita à determinação da medida das penas (principais) – excepção feita, como decorre do que antecede, ao número de crimes em causa e molduras penais aplicáveis – com o compreensível reporte aos fundamentos expressos na decisão recorrida, de indiscutível pertinência e acerto; - nenhum reparo suscita a condenação do arguido nas sanções acessórias de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adopção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, e de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, qualquer destas por um período de 5 (cinco) anos - matéria que, de resto, não integra o objecto do recurso; - considerando, porém, a diversidade do número de crimes que os factos provados, todos eles já constantes da acusação, permitem individualizar, e a alteração da qualificação jurídica, em razão da diferente circunstância agravante, deverá ter lugar a notificação do arguido em ordem ao exercício do princípio do contraditório e do direito de defesa, nos termos previstos no artigo 424.º/3 CPPenal. 10. Notificado, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 417.º/2 CPPenal, o arguido veio reiterar a posição já sustentada nas suas alegações de recurso (!!??), nomeadamente no sentido de que defende a manutenção da qualificação jurídica dos factos como trato sucessivo e, subsidiariamente, a redução da medida da pena, com suspensão da sua execução. 11. Colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência e dos correspondentes trabalhos resultou o presente Acórdão. II. Fundamentação 1. Objecto do recurso Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (neste sentido, o acórdão n.º 7/95 do Plenário da Secção Criminal, de 19-10-1995, publicado no Diário da República, I Série - A, n.º 298, de 28 de Dezembro de 1995, e verificação de nulidades, que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2 e 410.º, n.º 3, do CPP – é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites de cognição do Tribunal Superior. E, assim, das conclusões do recurso, retira-se que o MP suscita a questão de saber se, - os vários actos sexuais praticados pelo arguido contra o menor deveriam ter sido autonomamente considerados como crimes distintos em concurso real e efetivo, e não como um único crime em trato sucessivo; - se a medida concreta da pena aplicada de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão é, por isso, manifestamente insuficiente face à gravidade e número de condutas e; - se deveria ter sido aplicada uma pena única mais gravosa, resultante do cúmulo jurídico de vários crimes. Importa aqui referir que, como vimos, o arguido na sua resposta ao recurso, por um lado, defende a manutenção do decidido, em sede de crime de trato sucessivo e, por outro, sem prescindir, quanto à medida da pena, entende que a aplicada se revela excessiva - face ao seu perfil – defendendo que deveria ser inferior a 5 (cinco) anos e suspensa na sua execução mediante acompanhamento e tratamento médico especializado psiquiátrico ou psicológico. O arguido discordando do recurso, a ele respondeu defendendo a manutenção da qualificação jurídica dos factos como trato sucessivo e, subsidiariamente, defendendo, a redução da medida da pena, com suspensão da sua execução. Esta forma de apresentar a resposta ao recurso suscita duas observações. Desde logo, o pedido subsidiário só pode ser tomado em consideração se o Tribunal concluir pela improcedência do pedido principal, cfr. artigo 554.º/1 CPCivil, aplicável ex vi art. 4.º do CPPenal. Isto é, no caso, o arguido defende a manutenção da sua condenação com base na figura do trato sucessivo e, apenas para o caso de assim se não entender – e, se conceder provimento ao recurso do MP, alterando aquele entendimento para a figura do concurso real e efectivo de crimes – defende a redução da pena. Donde, nunca se exprime no sentido de a pena ser reduzida, em caso de manutenção do decidido. O que não deixa de ser um paradoxo, é certo. O Tribunal apenas poderia conhecer da questão da sua irresignação quanto à medida da pena e, pretendesse a sua redução, se o arguido deixasse de vir a ser condenado por um crime e viesse a ser condenado por 9 crimes. E, nunca a poderia conhecer, pela forma como se exprimiu, se o recurso do MP não merecesse provimento. Quando, afinal o que o arguido pretende é que seja mantida a sua condenação por um crime e a pena respectiva seja reduzida de 7 anos e 6 meses de prisão para 5 anos e, seja decretada a suspensão da sua execução. E, assim, surge a segunda observação. No recurso subordinado, por definição, a parte é vencida quanto ao resultado da acção (ou seja, quanto a um pedido ou a um segmento do pedido). Caso o recurso principal seja apreciado, então o recurso subordinado terá, obrigatoriamente, de ser decidido. No caso presente o recurso independente interposto pelo MP reporta-se, exclusivamente em relação à matéria penal, como lhes facultava o disposto na al. a) do n.º 1 do art. 403.º do CPP, pelo que não cabe, em relação a eles recurso subordinado, uma vez que se não verifica a condição do n.º 1 do art. 404.º do mesmo diploma legal. Em processo penal, nos termos do artigo 404.º CPPenal, só há lugar a recurso subordinado em caso de recurso principal interposto por uma das partes civis, abrangendo só a questão civil. Face a esta norma tem-se entendido que em processo penal só é possível interpor recurso subordinado relativamente à matéria da acção cível exercida conjuntamente e apenas no caso de uma das partes cíveis ter interposto recurso principal, não sendo possível socorrermo-nos das normas do Código de Processo Civil. Não há, pois, recurso subordinado em relação ao recurso interposto da matéria criminal. É certo, contudo, que nunca o arguido o pretendeu intentar. Por outro lado. Não existe, de todo, no processo penal, a figura da ampliação do objeto do recurso, prevista no artigo 636.º CPPenal. Instituto que pressupõe que o fundamento ou fundamentos invocados para sustentar a decisão favorável não foram acolhidos. Na ampliação do objecto do recurso, deduzida a título subsidiário, verifica-se a não aceitação de algum dos fundamentos de facto ou de direito que sustentavam a pretensão do autor ou a defesa do réu, ou a verificação de alguma nulidade decisória que não tenha interferido (ainda) no resultado final. A quem não cabe reagir mediante a interposição de recurso (nem subordinado, nem independente), antes mediante a ampliação do objeto do recurso nas contra-alegações, de forma a obter uma resposta favorável às questões que suscitou, prevenindo o eventual acolhimento pelo tribunal ad quem dos argumentos de facto ou de direito suscitados pelo recorrente. A apreciação da ampliação do objecto do recurso é, por isso, meramente eventual. A possibilidade de ampliação do objeto do recurso não visa substituir a necessidade de interposição de recurso (principal ou subordinado) por parte de quem se julgue prejudicado pela decisão. Apenas, visa permitir ao recorrido a reabertura da discussão sobre determinados fundamentos que foram por si invocados na impugnação e julgados improcedentes. É, assim, certo, também, que se o arguido discorda, como mostra discordar, no caso concreto, do quantum da pena, a forma idónea, processualmente, para impugnar a decisão recorrida, nesse segmento, seria através da apresentação, ele próprio, de recurso, independente do recurso do MP. Nunca o poderia fazer na resposta ao recurso do MP. Quando já havia decorrido o prazo legal para o fazer, de resto. E, assim, nesse segmento a resposta do arguido não assume qualquer relevância, em termos de definição e delimitação do objecto do recurso e do âmbito de cognição deste Supremo Tribunal. 2. Os factos O Tribunal Colectivo registou os seguintes factos provados: “1. O ofendido BB nasceu a D.M.2009. 2. O arguido AA conheceu o ofendido BB em data não concretamente apurada, mas no ano de 2017, quando aquele tinha apenas 7 (sete) anos de idade, porquanto mantinha um relacionamento amoroso com a avó do menor e a partir de então passou a coabitar com a mesma, na residência sita na Estrada 1, na freguesia do ..., concelho de Santana. 3. Em datas não concretamente apuradas, mas entre 2016 e 13.07.2021, por um número não concretamente apurado de vezes, no interior da sua residência, o arguido AA despiu as suas calças e roupa interior e exibiu os seus pénis e ânus ao ofendido BB. 4. Em datas não concretamente apuradas, mas entre 2016 e 13.07.2021, por um número não concretamente apurado de vezes, no interior da sua residência, o arguido AA colocou asua mão por dentro das calças e roupa interior do ofendido BB e tocou-lhe, com as mãos, no pénis, tendo ainda, por vezes, introduzido o mesmo na sua própria boca. 5. Em datas não concretamente apuradas, mas entre 2016 e 13.07.2021, no interior do seu quarto de dormir, o arguido AA disse ao ofendido BB para se sentar ao seu colo. 6. De seguida, o arguido AA exibiu-lhe, quer através do seu telemóvel, quer através do seu computador, filmes que retratavam pessoas adultas desnudas e a manterem relações sexuais entre si e pediu àquele para reproduzir consigo o que estava a ver, o que fez por um número não concretamente apurado de vezes, mas mais que duas. 7. A pedido do arguido AA, por um número não concretamente apurado de vezes, mas mais do que duas, o ofendido BB tocou no pénis do arguido AA, o que fez por cima e por baixo da sua roupa, sendo que nestas ocasiões, este se despia. 8. Nas mesmas ocasiões, o arguido AA colocou a sua mão por baixo da roupa que o ofendido BB vestia e acariciou o seu pénis. 9. Em datas não concretamente apuradas, mas entre 2016 e 13.07.2021, o arguido AA levou o ofendido BB até à casa de banho da sua residência, onde entraram, tendo aquele fechado a porta atrás de si. 10. No interior da referida casa de banho, o arguido AA despiu as suas calças e cuecas e pegou no seu pénis, fazendo movimentos ascendentes e descendentes. 11. De seguida, o arguido AA pegou na mão do ofendido BB e agarrou com a mesma o seu próprio pénis, fazendo movimentos ascendentes e descendentes, o que fez por um número não concretamente apurado de vezes, mas mais que duas. 12. Noutras ocasiões, no hiato temporal e nas circunstâncias de lugar referidas em 9. e 10., o arguido AA disse ao ofendido BB para pegar no pénis daquele e fazer movimentos ascendentes e descendentes, o que o menor fez, por um número não concretamente apurado de vezes, mas mais do que duas. 13. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 9. e 10., por um número não concretamente apurado de vezes, mas mais do que duas vezes, o arguido AA disse ao ofendido BB para introduzir o pénis deste no seu ânus, ao que o menor acedeu. 14. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 9. e 10., por um número não concretamente apurado de vezes, o arguido AA roçou o seu pénis no ânus do ofendido BB. 15. O arguido AA praticou, em cada uma das situações, os actos supra descritos, com pleno conhecimento da idade do ofendido e aproveitando-se do facto de o mesmo ser neto da sua, à data, companheira, o que facilitava as suas condutas, como queria e conseguiu. 16. O arguido AA atuou, em cada uma das situações, da forma descrita para satisfazer os seus instintos primários e libidinosos, bem sabendo que atentava contra a liberdade e autodeterminação sexual do ofendido e que, dessa forma, prejudicava o desenvolvimento saudável da personalidade do menor. 17. O arguido AA agiu, em cada uma das situações, com o propósito concretizado de obter prazer sexual e satisfazer os seus instintos libidinosos, o que fez com a consciência que o ofendido tinha entre 6 e 12 anos de idade e que as zonas do seu corpo em que tocou constituem património íntimo e uma reserva pessoal da sexualidade do mesmo, que punha em causa o são desenvolvimento da consciência sexual e que ofendia o respetivo sentimento de pudor, intimidade e liberdade sexual, causando-lhe grande sofrimento físico e psíquico, interrompendo o percurso normativo do desenvolvimento psicossexual e erotizando o menor antes deste dispor de competências cognitivas, sociais e emocionais para regularizar a sua sexualidade, bem como para evitar o contacto sexual com um adulto. 18. O arguido AA atuou de forma livre, consciente e voluntariamente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal e tinha capacidade e liberdade para se determinar de acordo com esse conhecimento, tendo atuado com a intenção de satisfazer os seus instintos libidinosos contra a vontade do ofendido. 19. O arguido/demandado AA, actuou, em cada uma das situações constantes da acusação, com pleno conhecimento da idade do ofendido e aproveitando-se do facto de o mesmo ser neto à data, da sua companheira, o que facilitava as suas condutas, como queria e conseguiu. 20º O arguido/demandado, actuou, em cada uma das situações constantes da acusação, para satisfazer os seus instintos primários e libidinosos, bem sabendo que atentava contra a liberdade e autodeterminação sexual do ofendido/demandante e que, dessa forma, prejudicava o desenvolvimento saudável da personalidade do menor. 21º Em consequência dos comportamentos do arguido/demandado o demandante passou a ser mais reservado, sem falar da sua vida privada, tendo ficado mais distante daqueles que lhe são mais próximos. 22º Passou a refugiar-se mais no seu quarto, no seu mundo. 23º Começou a utilizar uma “colher de pau”, como um instrumento de defesa, fazendo movimentos no ar, imitando lutas, o que acontece até à presente data. 24º Tornou-se uma criança ansiosa, atenta a sua tenra idade, entre os 6 e os 12 anos de idade, aquando da prática dos factos. 25º Acresce, ainda, toda a vergonha, o medo, a dor e a humilhação provocadas pela conduta do arguido/demandado. 26º De acordo com o Relatório Social a ele referente, com interesse: À data dos factos constantes da acusação, o arguido residia com DD, avó da vítima nos autos, BB, nascido a D/M/2009, com quem residia na Estrada 1. Este relacionamento marital, iniciou-se em 2016, tendo cessado na sequência da instauração do presente processo, em julho de 2021. Assume que durante o período de relacionamento com DD, convivia com a família desta, incluindo o neto, participando nas rotinas e convívios familiares. Na sequência da rutura deste relacionamento afetivo, AA fixou residência na morada constante nas peças processuais, onde havia residido anteriormente, no decurso de um relacionamento conjugal, iniciado em 1991 e no contexto do qual nasceram em 1993 e 1996, os seus dois filhos. Atualmente, o arguido partilha a habitação com o ex-cônjuge, com quem refere ter-se reconciliado, e a filha de ambos, educadora de infância, reintegrando este agregado, nos períodos de férias, o filho que atualmente está a fazer estágio no continente no âmbito da frequência de um curso universitário. AA retrata uma dinâmica familiar como positiva e de coesão, mostrando-se gratificado pelo facto de ter sido acolhido pela família, referindo que a reaproximação e a reconciliação entre o ex-casal foram graduais, culminando com o que descreve atualmente como sendo a retoma do relacionamento marital. Nos contactos, referiu o facto do ex-cônjuge e dos filhos desconhecerem a existência do presente processo. O agregado partilha uma casa que é propriedade do ex-casal, uma vez que aquando do divórcio, não houve lugar à partilha dos bens. Retrata o espaço como tendo condições de habitabilidade ainda que reconheça a necessidade de algumas obras, nomeadamente no exterior. Possui o 4º ano de escolaridade como habilitações académicas, referindo um percurso escolar pouco investido que se traduziu em insucesso. Não concluiu assim a escolaridade obrigatória para a sua AA manifesta incómodo com a condição jurídico-penal, referindo não a ter partilhado com ninguém, receando a reação da ex-cônjuge e dos filhos, caso seja conhecido o envolvimento com o sistema de justiça e a tipologia criminal. Até ao momento, as repercussões da situação jurídico-penal têm-se feito sentir unicamente ao nível pessoal, fazendo referência à rutura da relação que mantinha com a avó do ofendido, constatando-se no arguido uma atitude de preocupação e de receio pelas potenciais consequências a que poderá ser sujeito, ao nível familiar. Tem consciência da censura social associada aos crimes sexuais contra menores e, nestas circunstâncias, procura posicionar-se em consonância com a crítica vigente, legitimando a intervenção judiciária e a punição. Neste enquadramento, admite a possibilidade de colaborar em eventuais ações de reinserção social que possibilitem a manutenção das condições atuais de inserção social, incluindo a sujeição a acompanhamento médico-psicológico. 27. O arguido não tem antecedentes criminais averbados no seu Certificado de Registo Criminal”. 3. Apreciando os fundamentos do recurso. Não vem colocada em causa a operação de subsunção dos factos ao Direito, enquanto tal. Vem colocado em causa, desde logo, o facto de apesar de o arguido vir acusado pela prática de vários crimes de abuso sexual de crianças, em concurso real, ter sido condenado apenas por um, configurado na decisão recorrida, como de trato sucessivo. Por isso, por aqui iniciaremos a nossa apreciação.
3. 1. Unidade versus pluralidade de crimes. Dispõe o n.º 1 do artigo 171.º CPenal, sob a epígrafe de “abuso sexual de crianças” que, “quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos”. Já de acordo com o seu n.º 2, “se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos”. Ainda de acordo com o n.º 3, “quem: a) Importunar menor de 14 anos, praticando acto previsto no artigo 170.º; ou b) Actuar sobre menor de 14 anos, por meio de conversa, escrito, espectáculo ou objecto pornográficos; c) Aliciar menor de 14 anos a assistir a abusos sexuais ou a atividades sexuais; é punido com pena de prisão até três anos”. A norma matriz para o que qui está em discussão é o artigo 30.º/1 CPenal que dispõe que o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
3. 1. 1. O contexto do recurso. Como vimos o arguido vinha acusado pela prática de, i. 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças agravado, na forma consumada (artigos 14.º e 26.º, do Código Penal), previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 3, al. a), 177.º, n.º 1, al. c) e 7, 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º2, do Código Penal; ii. 6 (seis) crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada (artigos 14.º e 26.º, do Código Penal), previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 2, 177.º, n.º 1, al. c) e 7, 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º2, do Código Penal; iii. 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada (artigos 14.º e 26.º, do Código Penal), previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, al. c) e 7, 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º2, do Código Penal em concurso aparente com 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada (artigos 14.º e 26.º, do Código Penal), previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 3, al. b), 177.º, n.º 1, al. c) e 7, 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º2, do Código Penal; iv. 6 (seis) crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada (artigos 14.º e 26.º, do Código Penal), previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, al. c) e 7, 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º2, do Código Penal em concurso aparente com 6 (seis) crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada (artigos 14.º e 26.º, do Código Penal), previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 3, al. a), 177.º, n.º 1, al. c) e 7, 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º2, do Código Penal. E, a final veio a ser condenado - na procedência da acusação - pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado em trato sucessivo, p. e p. pelos arts. 171º, nº 2 e 177º, nº 1, al. b), ambos do Cód. Penal. É desta condenação que o Ministério Público discorda. Entende que dos factos provados é possível determinar a prática de 16 crimes consumados pelo arguido, pelo que cada acto constitui um crime, devendo, assim, ser afastado o trato sucessivo. E, assim, pugna pela condenação do arguido, pela prática, em concurso real e efetivo, de: - 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças agravado, na forma consumada, previstos e punidos nos termos conjugados dos artigos 14.º; 26.º; 171.º, n.º 3, alínea a); 177.º, n.º 1, alínea c) e n.º 7; 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º 2, todos do Código Penal; - 5 (cinco) crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada, previstos e punidos nos termos conjugados dos artigos 14.º; 26.º; 171.º, n.º 2, 177.º, n.º 1, alínea c) e n.º 7; 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º 2, todos do Código Penal; - 9 (nove) crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada, previstos e punidos nos termos conjugados dos artigos 14.º; 26.º; 171.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, alínea c) e n.º 7; 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º2, do Código Penal. 3. 1. 2. Vejamos primeiramente a fundamentação da decisão recorrida. “(…) Impõe-se agora analisar a questão do número de crimes cometidos pelo arguido. O art. 30º do Código Penal, sob a epígrafe “Concurso de crimes e crime continuado”, estabelece, no seu nº 1, o princípio geral de que “O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.” Os crimes sexuais são muitas vezes atos isolados, fruto de circunstâncias irrepetíveis. Mas, outras vezes seguem um percurso que se prolonga no tempo, isto é, em vez de um ato ou de vários atos ilícitos, há uma atividade sexual ilícita. É próprio da natureza humana a junção dos mesmos parceiros sexuais por períodos prolongados no tempo. O mesmo se passa, muitas vezes, nos crimes sexuais, sempre que as circunstâncias o proporcionam e a diferença entre estes e as uniões sexuais mais correntes entre as pessoas, é a circunstância de nos casos criminosos existir uma vítima, alguém a quem o agente retira (ou condiciona) a liberdade ou a autodeterminação sexual. Na actividade sexual criminosa o agente aproveita-se sexualmente de outra pessoa que é acessível ao seu contacto, por ser da família, ou do seu círculo de amizades, ou do seu local de trabalho, ou por outra circunstância similar, fazendo-o pela força, ou pela intimidação, ou pela incapacidade da vítima em se defender, por exemplo, por ser menor. Nesses casos, os crimes sexuais tendem a ter uma frequência por um período prolongado no tempo e a juntar os mesmos «parceiros», um deles vitimizado sucessivamente. Ora, quando os crimes sexuais são actos isolados, não é difícil saber qual o seu número. Mas, quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva atividade prolongada no tempo, toma-se difícil e quase arbitrária qualquer contagem. A doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime - apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave quanto mais repetido. Ao contrário do crime continuado, nos crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta. Não se vê que diminuição possa existir no caso, por exemplo, do abuso sexual de criança, por atos que se sucederam no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da ilicitude e da culpa se acentua ou, pelo menos, se mantém estável à medida que os atos se repetem. O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação». Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma. Isto dito, no caso sujeito, sendo sempre a vítima a mesma, os factos provados revelam não se ter mostrado possível aferir o número exato de vezes que foi constrangida pelo arguido a contactos de natureza sexual. Sabemos que para além dos concretos que se lograram contabilizar, ocorreram em muito mais ocasiões, entre 2016 e 13.07.2021, sempre com aproveitamento da relação familiar existente entre a vítima e o arguido e no mesmo circunstancialismo exterior. Outrossim, não se pode dizer que a cada um dos incontáveis factos típicos subjacentes à sua conduta delituosa esteja subjacente uma pluralidade de sentidos de ilicitude também típica e, portanto, de crimes. O que se divisa é uma única resolução criminosa que acaba por dominar uma ação unitária, ainda que esta seja cindível numa pluralidade de factos externamente separáveis, mas que se apresentam intimamente ligados no tempo e no espaço, o que nos leva a concluir pela verificação de um único crime cometido em trato sucessivo (cfr., neste sentido, os Acs. do TRL de 26/06/2013 e de 11/09/2013; o Ac. do TRP de 07/10/2009; os Acs. do STJ de 23/01/2008, de 13/07/2011, de 29/11/2012 e de 22/01/2013. Assim, concluindo e em resumo, sendo esse o mais grave que quanto ao ofendido se divisa, cometeu o arguido, em autoria material e convolando todos os crimes pelos quais vinha acusado: • Um crime de abuso sexual de crianças agravado, em trato sucessivo, p. e p. pelos arts. 171º, nº 2 e 177º, nº 1, al. b), ambos do Cód. Penal, punível, em abstrato, com pena de prisão de 4 anos a 13 anos e 4 meses”. 3. 1. 3. Baixando ao caso concreto. A favor da tese do trato sucessivo, nos crimes sexuais, invocou a decisão recorrida 4 acórdãos deste Supremo Tribunal De 23/01/2008, onde se entendeu que “em todo o caso, essas três condutas, se não podem ser unificadas em termos de continuação criminosa, poderão sê-lo como crime de trato sucessivo”. De 13/07/2011, onde se entendeu, “ser de afastar a integração do comportamento do arguido na figura do crime continuado e que em alguns casos a situação de abuso sexual de criança tem sido enquadrada na figura do crime único de trato sucessivo, sendo, contudo tal enquadramento de afastar na situação dos autos, sendo evidente a falta de conexão temporal entre as condutas - quando a proximidade temporal é essencial para o crime de trato sucessivo - e assim se concluiu como mais correcta a solução do concurso real”. De 29/11/2012, onde, com um voto de vencido, se decidiu, “I - Quando os crimes sexuais são atos isolados, não é difícil saber qual o seu número. Mas, quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva atividade prolongada no tempo, torna-se difícil e quase arbitrária qualquer contagem. III - A doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido. IV - Ao contrário do crime continuado [cuja inserção doutrinária também nasceu, entre outras razões, da dificuldade em contar o número de crimes individualmente cometidos ao longo de um certo período de tempo], nos crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta [ou, em caso de eventual «diminuição da culpa pelo facto», um aumento da culpa enquanto negligência na formação da personalidade ou de perigosidade censurável»]. Na verdade, não se vê que diminuição possa existir no caso, por exemplo, do abuso sexual de criança, por atos que se sucederam no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da ilicitude e da culpa se acentua [ou, pelo menos, se mantém estável] à medida que os atos se repetem. V - O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P. P. Albuquerque). VI - Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma”. E, aqui considerou-se ser de em três crimes de trato sucessivo; - factos de 1999 a 2000: coito oral com a menor B, confiada ao arguido para educação e assistência, «sob ameaças que lhe batia caso contasse a alguém» e entre os 10 e os 11 anos de idade da vítima; - factos de 2003 a 2004 (entre os 13 e 14 anos da menor B), retomada a anterior prática em cerca de 20 ocasiões distintas, durante a noite, o arguido dirigiu-se ao quarto da enteada e, depois de a despir, tentou, sem o conseguir, introduzir-lhe o pénis na vagina, voltando a ameaçá-la que lhe batia caso contasse a alguém; - factos de 2009, tentativas de coito vaginal com a filha de 11 anos de idade, seguidas de coito oral; pelo menos por duas vezes, acabou por introduzir o pénis, por completo, na vagina da filha, onde, após friccionar, ejaculou, sendo que arguido a coagia, asseverando-lhe que, se contasse o sucedido a terceiros, a agrediria. E, de 22/01/2013, onde se decidiu “ser de afastar a figura do crime continuado, configurando-se uma situação de concurso real de crimes de abus sexual de criança. Que em alguns casos a situação tem sido enquadrada na figura do crime único de trato sucessivo, entendendo-se haver lugar a uma unificação das condutas ilícitas sucessivas, desde que essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, quando exista uma só resolução criminosa, desde o início assumida pelo agente. Porém, no caso nenhum elemento da materialidade provada permite a redução do processo volitivo do arguido a uma linha uniforme sem qualquer fractura temporal”. Com vimos a linha condutora, ainda assim, deste entendimento, seria sempre a proximidade temporal e a homogeneidade da conduta do arguido. “É certo que, com base nesta ideia de sucessão de crimes idênticos contra a mesma vítima, e num certo e delimitado período temporal, o STJ considerou que estamos perante o que vem designando de “crime de trato sucessivo”, e por isso o acórdão recorrido acabou por condenar o arguido em apenas um crime de abuso sexual de criança e um crime de abuso sexual de menor dependente”, cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 16.12.2021, processo 321/19.9JAPDL.L2.S1 O certo, contudo, é que a evolução da jurisprudência deste Supremo Tribunal desde então, até ao presente, vem sendo, invariavelmente, no sentido de ser de afastar nos crimes de natureza sexual a figura do trato sucessivo. Como o recorrente dá devida nota no recurso. Cristina Almeida e Sousa, in A inconstitucionalidade da jurisprudência do “trato sucessivo” nos crimes sexuais, Revista Julgar online, outubro de 2019, considera que o momento a partir do qual a expressão “trato sucessivo” passou a ser aplicada no âmbito dos crimes sexuais foi o acórdão deste Supremo Tribunal de 2.10.2003 in CJ, S, III, 194. Como adiante daremos devida nota, a decisão recorrida terá olvidado os derradeiros 12 anos de jurisprudência deste Supremo Tribunal. E, assim, se seguiu um entendimento contrário ao que invariavelmente, sem quebras, vem sendo sufragado por este Supremo Tribunal. A tese do acórdão de 29.11.2012 - que se pode ter como paradigmático – acolhida pela decisão recorrida, tinha subjacente o entendimento de que, “nos casos em que os crimes sexuais envolvem uma repetitiva actividade prolongada no tempo, tornando difícil e quase arbitrária qualquer contagem, se deve recorrer às figuras dos crimes “prolongados”, “protelados”, “protraídos”, “exauridos” ou “de trato sucessivo”, de elaboração doutrinária e jurisprudencial, em que se convenciona que há só um crime, apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime, tanto mais grave, no quadro da sua moldura penal, quanto mais repetido”, cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 18.1.2018, processo 239/11.3TALRS.L1. Mas, como impressivamente refere o acórdão deste Supremo Tribunal de 6.4.2016, processo 19/15.7JAPDL, “é evidente que a figura do trato sucessivo permite ultrapassar uma outra questão, a da determinação concreta do número de actos ilícitos que devem ser imputados. Porém, esse é um tema que convoca a forma como se faz a investigação criminal e a diligência acusatória e não uma questão de dogmática penal”. “A aplicabilidade da figura do trato sucessivo aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual foi defendida, nos nossos tribunais superiores, em situações em que está presente uma actividade repetida, prolongada no tempo. Mais recentemente, este Supremo Tribunal tem vindo a decidir, de forma uniforme, pela inaplicabilidade de tal figura a este tipo de crimes. E isto porque- e entre o mais – na perspectiva da vítima, que deve ter-se por decisiva, cada agressão sexual, independentemente de o agente ser o mesmo ou diverso, está dotada de um sentido negativo de valor jurídico penal”, cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 12.1.2022, processo 1079/20.4PASNT E, no acórdão deste Supremo Tribunal de 28.2.2018, processo 128/17.8JAPDL, que, “VI - Casos há em que não é possível apurar o número exacto de condutas praticadas pelo arguido. Ou seja, sobra a pergunta: tendo conseguido a prova dos actos de abuso sexual, mas sem prova precisa do número de vezes e do momento temporal, o arguido deve ser absolvido dos crimes que praticou? Ou quantos crimes devem ser-lhe imputados? Tantos quantos se consigam averiguar. De outra forma estaremos também aqui a dispensar a investigação de determinar o número exacto de actos singulares que foram praticados pelo arguido. Enquanto se mantiver a legislação que temos, cabe fazer a prova do maior número possível de actos individuais, devendo ser excluídos, em nome do princípio in dubio pro reo, aqueles cuja prova se não consegue obter de forma segura”. “Sem necessidade de penetrar na controvérsia doutrinária e jurisprudencial que há décadas se vem mantendo a propósito do central e complexo tema da unidade e pluralidade de infracções, muitas das vezes distante das soluções normativas consagradas na lei penal vigente, dir-se-á apenas, em divergência da solução adoptada no acórdão recorrido e seguindo outra jurisprudência sólida e significativa deste Supremo Tribunal, a reiteração da conduta presente na caracterização da figura do denominado “crime de trato sucessivo” não resulta directamente da estrutura dos elementos do tipo de crime do artigo 171.º CPenal”, cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 18.1.2018, processo 239/11.3TALRS. “I - Quanto à problemática atinente à unificação num só crime de trato sucessivo (também denominado de prolongado, protelado, protraído, exaurido), no essencial correspondente ao crime habitual, de uma pluralidade de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, cometidos durante determinado lapso de tempo contra a mesma vítima, depois de breve hesitação, a alguma jurisprudência do STJ que havia acolhido tal solução tem vindo a pronunciar-se em sentido negativo. II - In casu, em cada uma das situações fácticas dadas como provadas houve da parte do arguido e ora recorrente renovação do desígnio criminoso de sorte que, sem em relação aos desígnios anteriores os que lhes sucederam se representam autónomos, inexistindo razões para se falar em unidade de resolução”, cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 23.5.2019, processo 134/17.2JAAVR.S1 A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem perfilhado, de forma esmagadoramente, uniforme e reiterada, o entendimento que afasta, quer a continuação criminosa, quer a figura do crime exaurido, de trato sucessivo, dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 27.2.2019, processo 2165/15.8JAPRT. “I - A definição do tipo legal de crime de abuso sexual da previsão do art. 171.º do CP não contém qualquer elemento de reiteração; o tipo de ilícito não se preenche pelo “abuso” consistente na repetição de atos, mas pelo “abuso” consistente na prática de cada ato, pelo que, determinando-se o número de crimes pelo número de vezes que o mesmo tipo legal de crime for preenchido pela conduta do agente (art. 30.º, n.º 1, do CP), este pratica novo crime, crimes repetidos, sempre que repetir a prática de cada ato típico. II - Afastada a subsunção da multiplicidade de atos à previsão da norma incriminadora e mostrando-se excluída a possibilidade da sua consideração como crime continuado, por, desde logo, a isso se opor o art. 30.º, n.º 3, haverá concurso de crimes quando o comportamento do agente, independentemente do seu grau de identidade ou semelhança, preenche mais que uma vez o mesmo tipo legal de crime. III - É atualmente uniforme e consolidada a jurisprudência deste tribunal que afasta o recurso à figura do denominado “crime de trato sucessivo” em relação aos crimes contra a autodeterminação sexual”, cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 23.11.2022, processo 754/20.8JABRG. “I - O STJ tem vindo a decidir, de forma uniforme, pela inaplicabilidade da figura do trato sucessivo aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual. II - Como se refere no Ac. STJ de 27/11/2019, Proc. 1257/18.6SFLSB.L1.S1, “cada agressão singular, repetida sucessivamente, indiferentemente do tempo que entre elas medeia, preenchendo todos os elementos do mesmo tipo (objetivo e subjetivo), constitui um crime autónomo, estabelecendo entre si uma relação de concurso real ou efetivo crimes e como tal deve ser punida”, cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 12.5.2021, processo 427/18.1JACBR. “I - A jurisprudência do STJ, já antes maioritária, é presentemente praticamente unânime, ao afastar a figura de «trato sucessivo» dos casos de crimes contra a autodeterminação sexual do art. 171.º e 172.º, ambos do CPP. II - O crime de «trato sucessivo» trata-se de uma criação da doutrina e também da jurisprudência, fundamentalmente para abarcar as situações de reiteração de crimes iguais ou próximos, em que se não pode falar de uma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente (art. 30.º, n.º 2, do CP). No art. 119.º, n.º 2, al. b), do CP alude-se aos “crimes habituais” e, ao nível processual, o art. 19.º, n.º 3, do CPP, ao falar de crime que se consuma por actos reiterados, pode estar a referir-se não só ao crime continuado como ao crime habitual. Assim a designação de «crime habitual» será preferível a «crime de unidade de valoração», «de trato sucessivo» ou de «actividade» ou «exaurido». III - No crime habitual a consumação prolonga-se no tempo por força de uma multiplicidade de actos reiterados, sendo cada um estritamente unitário. Certo que a reiteração se analisa numa pluralidade de actos homogéneos intervalados temporalmente. Ao contrário do crime permanente a persistência no tempo da consumação não decorre de um só acto mas de uma pluralidade deles, e ao invés do crime contínuo os actos reiterados não são seguidos. IV - A redacção dos arts. 171.º e 172.º, ambos do CP, não revela nada de que se possa retirar que se está perante um crime habitual. Caracterizar o comportamento delituoso como uma unidade criminosa, contraria a configuração que o tipo assumiu entre nós. Este não engloba, logo à partida, tanto a prática de um, como de mais actos criminosos. Mas além disso, essa seria uma postura que iria contra a vontade do legislador, claramente patente na nova redacção do artigo 30.º/3 CPenal”, cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 22.3.2018, processo 467/16.5PALSB.L1-S1 “I - Com a alteração ao n.º 3 do art. 30.º do CP, operada com a Lei 40/2010, de 03-09, em que foi suprimida a expressão final “salvo tratando-se da mesma vítima”, resultou o fim da figura do crime continuado que atinja bens essencialmente pessoais, mesmo quando a vítima dos diversos actos seja a mesma pessoa. O crime continuado fica assim restringido à violação plúrima de bens não eminentemente pessoais, independemente de haver uma ou mais vítimas. II -Em alguns casos, as condutas de abuso sexual de criança têm sido enquadradas na figura do crime único, ou de crime único de trato sucessivo, entendendo-se haver lugar a uma unificação de condutas ilícitas sucessivas, desde que essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, quando existe uma mesma, uma só resolução criminosa, desde o início assumida pelo agente. Esta solução, não ventilada pelo recorrente, é de afastar pelas mesmas razões por que se não aceita a configuração do crime continuado, por estarem em causa bens eminentemente pessoais. III - Nos casos de reiteração criminosa há que distinguir entre a que resulta de uma situação externa que subsiste ou se repete sem que o agente para tal contribua e aquela que resulta de uma situação procurada, provocada ou organizada pelo próprio agente. No caso, a repetição criminosa ficou a dever-se à persistente vontade do arguido em satisfazer os seus desejos, que superou até à natural inibição inerente à relação de amizade que o liga à avó materna da menor e num total aproveitamento desse contexto relacional. A jurisprudência aponta maioritariamente para a pluralidade de crimes nas situações em que esteja em causa o mesmo ilícito e a mesma vítima sexualmente abusada, quando haja reformulação do desígnio criminoso, surgindo este de modo autónomo em relação ao propósito criminoso anterior”, cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 25.11.2015, processo 27/14.5JAPTM - onde se faz profusa e completa resenha da jurisprudência deste Supremo Tribunal sobre esta matéria. Impressivamente, refere-se, mesmo, no acórdão de 27.5.2020, processo 1203/19.0JAPRT.S1, que, “a figura do “crime de trato sucessivo” viola os princípios da legalidade criminal e da tipicidade a que o Direito Penal se encontra vinculado”. Ou no acórdão deste Tribunal de 16.12.2021, processo 321/19.9JAPDL, VI - Entendemos, porém, que a unificação de todos os crimes praticados em apenas um crime, quando o tipo legal de crime impõe a punição pela prática de cada ato sexual de relevo, e sem que legalmente esteja prevista qualquer figura legal que permita agregar todos estes crimes, constitui uma punição contra a lei. VII - Só de acordo com os critérios gerais de distinção entre unidade e pluralidade de crimes é que hipóteses de multiplicidade de atos homogéneos, praticados contra a mesma vítima, numa mesma ocasião e local, poderão enquadrar-se num único crime de abuso sexual de crianças e não por apelo à caraterização daqueles crimes como crime habitual ou crime de trato sucessivo (…) com base na ideia de sucessão de crimes idênticos contra a mesma vítima, e num certo e delimitado período temporal, invocando o artigo 30.º/2 CPenal”. “V - Aquela ideia de sucessão de condutas que parece querer-se atingir com a designação de “trato sucessivo” implica necessariamente que haja uma sucessão de tipos legais de crime preenchidos e, portanto, segundo a lei, uma punição em sede de concurso de crimes. A unificação de todos os crimes praticados em apenas um crime, quando o tipo legal de crime impõe a punição pela prática de cada acto sexual de relevo, e sem que legalmente esteja prevista qualquer figura legal que permita agregar todos estes crimes, constitui uma punição contra a lei, desde logo, por não aplicação do regime do concurso de crimes. Unificar jurisprudencialmente várias condutas integradoras de tipos legais de crimes sexuais num único crime constitui uma clara violação do princípio da legalidade”, cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 28.2.2018, processo 128/17.8JAPDL. Acresce dizer que vem sendo defendida na doutrina a inconstitucionalidade da jurisprudência do “trato sucessivo” nos crimes de natureza sexual – vide “A inconstitucionalidade da jurisprudência do «trato sucessivo» nos crimes sexuais.” Cristina Almeida e Sousa, Juiz de Direito, Revista Julgar, outubro de 2019. E. no acórdão deste Supremo Tribunal de 4.5.2017, processo 110/14.7JASTB, entendeu-se que, “XI - A punição de uma certa conduta a partir da reiteração, sem possibilidade de análise individual de cada ato, apenas decorre da lei, ou dito de outro modo, do tipo legal de crime. Ora, unificar diversos comportamentos individuais que têm subjacente uma resolução distinta sem que a lei tenha procedido a essa unificação constitui uma clara violação do princípio da legalidade, e, portanto, uma interpretação inconstitucional do disposto nos artigos 171.º e 172.º CPenal”. “A aplicação do trato sucessivo quando, como sucede nos crimes de abuso sexual de menores, estão em causa bens eminentemente pessoais é afastada pelo STJ «pelas mesmas razões por que se não aceita a configuração do crime continuado» em tais situações, sendo que no caso do crime de abuso sexual de crianças, o entendimento já sedimentado é o da integração da pluralidade de condutas à figura do concurso efectivo de crimes, afastando-se a possibilidade de subsunção a outras figuras, designadamente ao crime de trato sucessivo”, cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 27.11.2019, processo 784/18.0JAPRT. “Estando em causa bens eminentemente pessoais, como no caso de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, é de afastar a figura da continuação criminosa, como de resto a de trato sucessivo, verificando-se concurso real entre os crimes de violação agravada na forma consumada, dois crimes de violação agravada, na forma tentada, e um crime de coacção agravada”, cfr. acórdão deste Supremo tribunal de 17.6.2020, processo 91/18.8JALRA. “IX. Atualmente não há suporte normativo para continuar a entender que constitui um só crime a realização do mesmo tipo ou de vários tipos de crime que protejam o mesmo bem jurídico eminentemente pessoal, executada por forma essencialmente homogénea. X. A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem vindo a recusar uniformemente a aplicação, aos crimes contra a autodeterminação sexual, da categoria do «crime de trato sucessivo». XI. Nos crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual não têm cabimento categorias doutrinárias como o denominado crime prolongado, crime exaurido ou crime de trato sucessivo, figuras nas quais se convenciona (ficciona) que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, cada uma, em si mesma, isoladamente preenche todos os elementos constitutivos da infração”, cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 27.11.2019, processo 1257/18.6SFLSB. “A aplicação do trato sucessivo quando, como sucede nos crimes de abuso sexual de menores, estão em causa bens eminentemente pessoais é pelo STJ «pelas mesmas razões por que se não aceita a configuração do crime continuado» em tais situações, sendo que no caso do crime de abuso sexual de crianças, o entendimento já sedimentado é o da integração da pluralidade de condutas à figura do concurso efectivo de crimes, afastando-se a possibilidade de subsunção a outras figuras, designadamente ao crime de trato sucessivo, cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 27.11.2019, processo 784/18.0JAPRT. “II -Alguma jurisprudência do STJ tem vindo a enquadrar as condutas de abuso sexual de crianças na figura do crime único de trato sucessivo. Porém, a maioria da jurisprudência do STJ é no sentido de que, no caso do crime de abuso sexual de crianças, o entendimento é o da integração da pluralidade de condutas à figura do concurso efectivo de crimes. III - Considera a referida jurisprudência maioritária, que a estrutura típica do crime de abuso sexual de crianças não pressupõe tal reiteração, isto é, não se pretende com o mesmo punir uma actividade, pelo que não lhe é aplicável a figura do crime de trato sucessivo. IV - A eventual admissão da unificação de uma pluralidade de condutas essencialmente homogéneas, através da figura do crime de trato sucessivo, no âmbito do tipo penal de abuso sexual de crianças, poderia redundar num resultado que o legislador claramente quis afastar – ainda que por referência à figura do crime continuado – com a alteração ao n.º 3 do artigo 30.º CPenal, realizada pela Lei 40/2010, de 03-09, que exclui expressamente a admissibilidade da possibilidade de unificação de uma pluralidade de condutas na figura do crime continuado, quando estejam em causa bens eminentemente pessoais. V - Pelo que, merece a concordância a conclusão do acórdão recorrido quanto ao enquadramento jurídico do acervo factual, fixado em 329 crimes de abuso sexual de crianças, enquadramento juridicamente correcto, não sendo aplicável, in casu, a figura do crime de trato sucessivo, invocada pelo recorrente”, cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 14.1.2016, processo 414/12.3TAMCN. “V - O STJ tem optado pela subsunção da pluralidade de condutas, no plano do abuso sexual de crianças, na figura do concurso efectivo de crimes, afastando a configuração de tais situações nos restantes quadros reguladores possíveis, como seja o crime continuado, o crime único ou o crime de trato sucessivo. VI - Não obstante tal entendimento jurisprudencial maioritário, é de proceder à unificação num único crime, quando estejam em causa condutas sem a mínima determinação, ou seja, quando esteja em causa uma imputação genérica, sem a mínima concretização factual/temporal para além da única ocasião que é de ter por assente. Com efeito, tal imprecisão da matéria de facto provada impede que se considere respeitado o princípio do contraditório, dado que o arguido não poderá validamente pronunciar-se sobre uma afirmação genérica, pelo que a situação tem de ser equacionada de acordo com o princípio in dubio pro reo, isto é, optando pela condenação pela prática de um único crime (que não crime único). VII - Já nos outros casos em que não se verifica tal imputação genérica, tendo sido dada como por assente a ocorrência de abusos sexuais em pelo menos 4 vezes, não será de aceitar a unificação realizada pelo acórdão recorrido, estando em causa, em cada caso, a prática pelo recorrente de 4 crimes, em concurso efectivo. Sendo certo que, face ao princípio da reformatio in pejus, tal correcção não terá qualquer influência na medida das penas. VIII - Com efeito, os comportamentos do recorrente não integraram apenas uma resolução criminosa, antes existindo várias resoluções criminosas, que se traduzem no facto de o recorrente em dias e épocas diferentes ter accionado e renovado a sua vontade para praticar o crime sexual e repeti-lo. Ou seja, o arguido criava as condições, procurava e fomentava as oportunidades de contacto, renovando o desígnio criminoso, estando-se, pois, perante resoluções distintas, reformuladas de forma autónoma em relação às anteriores”, cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 30.9.2015, processo 2430/13.9JAPRT. “I - É de afastar a figura do chamado "crime de trato sucessivo", no crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º/1 e 2 e 177.º/1 CPenal, dado que não nos encontramos perante uma "multiplicidade de actos semelhantes" realizados duma forma reiterada sob o denominador duma unidade resolutiva pois que cada um dos vários actos do arguido foi levado a cabo numa policromia de contextos separados por um hiato temporal e comandadas por uma diversas resoluções, traduzindo-se cada uma numa autónoma lesão do bem jurídico protegido. II - Cada um destes actos não constituiu um segmento ou parcela duma globalidade factual desdobrando-se como parte duma única actividade, mas constitui por si mesmo facto autónomo. Deve por isso entender-se que, referentemente a cada grupo de actos existe, pluralidade de crimes”, cfr. acórdão desse Supremo Tribunal de 13.7.2017, processo 1205/15.5T9VIS. Neste sentido, cfr, entre outros, os seguintes acórdãos deste Supremo Tribunal, de 6.4.2016, processo 19/15.7JAPDL, de 20.4.2016, processo 657/13.2JAPRT, de 21.04.2016, processo 657/13.2JAPRT, de 13.07.2016, processo 154/15.1JDLSB, de 10.11.2016, processo 1613/14.9PAALM, de 30.11.2016, processo 444/15.3JAPRT, de 4.5.2017, processo 110/14.7JASTB, de 28.6.2017, processo 23/14.2GCCNT, de 13.9.2017, processo 616/15.0PAVFX, de 28.2.2018, processo 128/17.8JAPDL, de 20.2.2019, processo 234/15.3JAAVR, de 27.2.2019, processo 2165/15.8JAPRT, de 13.3.2019, processo 3910/16.0T9PRT, de 11.9.2019, processo 1032/18.8JAPRT, de 27.11.2019, processo 784/18.0JAPRT, de 22.1.2020, processo 430/16.6GABRR, de 17.6.2020, processo 91/18.8JALRA, de 25.6.2020, processo 227/16.3T9VFR, de 15.10.2020, processo 1498/19.9JAPRT, de 28.1.2021, processo 53/17.2JABRG, de 20.11.2024, processo 2809/20.0JAPRT. Como concluiu a Conselheira Helena Moniz, “Crime de trato sucessivo” (?) Julgar online, abril de 2018, “unificar jurisprudencialmente várias condutas integradoras de tipos legais de crimes sexuais num único crime constitui uma clara violação do princípio da legalidade. Na verdade, ainda que as condutas criminosas estejam próximas temporalmente, ou sejam sucessivas, não podemos considerar estarmos perante um único crime atento os tipos legais de crimes previstos na nossa legislação. A punição de uma certa conduta a partir da reiteração, sem possibilidade de análise individual de cada ato, apenas pode decorrer da lei, ou dito de outro modo, do tipo legal de crime. Ora, unificar diversos comportamentos individuais que têm subjacente uma resolução distinta sem que a lei tenha procedido a essa unificação constitui uma clara violação do princípio da legalidade e, portanto, uma interpretação inconstitucional. Enquanto se mantiver a legislação que temos, cabe fazer a prova do maior número possível de atos individuais, devendo ser excluídos, em nome do princípio in dubio pro reo, aqueles cuja prova se não consegue obter de forma segura”. É certo que o arguido na resposta refere que, o legislador prevê expressamente o trato sucessivo como forma agravada do crime de abuso sexual de criança. Não se trata, pois, de um mero artifício jurídico, mas de uma tipificação própria que afasta o concurso real, justamente para evitar a pulverização das condutas e assegurar proporcionalidade penal e que a jurisprudência tem reafirmado que esta previsão visa punir de forma mais severa comportamentos prolongados e reiterados, sem necessidade de fracionar em múltiplos crimes (cf. Ac. do STJ de 07-06-2022, proc. 128/19.0JELSB.L1.S1). Mas também, é certo que não logramos encontrar este acórdão publicado, com a identificação dada pelo arguido. Importa, contudo, referir, neste contexto, que já foi requerida a uniformização de jurisprudência em sede de qualificação jurídica, tendo sido interposto recurso extraordinário para que se considerasse haver um só crime continuado e não, como foi condenado o recorrente no acórdão recorrido, por tantos crimes de abuso sexual de crianças quantas as suas condutas contra a mesma ofendida, tendo sido decidida no caso concreto a não verificação de oposição de julgados. Lê-se no acórdão de 3.7.2014, processo 1431/11.6PEAVR.C1-A.S1, da 5.ª Secção que “o silêncio do acórdão fundamento sobre a qualificação jurídica dos factos não significa necessariamente a sua concordância com o decidido em 1.ª instância e mantido na Relação. Questionada apenas medida da pena, a alteração oficiosa para concurso real não teria tradução na medida da pena por respeito ao princípio da proibição da reformatio in pejus por não integrar o objecto de recurso”. Portanto, terá de considerar-se que sempre que o crime é praticado em momentos diferentes estamos na presença de mais um crime, tanto mais quanto a sua prática, já o sabemos, pressupõe a criação pelo agente das circunstâncias que a permitam e que “em cada ato individualmente perpetrado a vítima é renovadamente lesada”, cfr. Conselheira Helena Moniz, ob. e loc, cit, 22. Com efeito, a acção que o tipo legal pressupõe implica que sempre e a cada momento ocorre uma abordagem, uma reação, um sentir e uma consequência, o que claramente convoca a ideia de que cada acto, repetida e sucessivamente operado, indiferentemente do tempo que entre eles medeia, preenchendo todos os elementos do mesmo tipo (objetivo e subjetivo), constitui um crime autónomo, estabelecendo entre si uma relação de concurso real ou efetivo de crimes. Da matéria de facto provada resulta, clara limpidamente delimitados – ainda que não concretizados em número - os factos levados a cabo pelo arguido, em termos de tempo, modo e circunstancialismo envolvente. O arguido que vivia em união de facto com a avó do menor praticou os factos ao longo de cerca de 5 anos, pelo que, quanto mais não seja devido ao longo lapso temporal durante o qual perdurou o seu comportamento, é por demais evidente a não ocorrência de uma só resolução criminosa, o que afasta a possibilidade de qualificar os factos por si protagonizados como integrantes de crimes de trato sucessivo. Em todas as situações, dado o enorme lapso de tempo por que perdurou a sua conduta, o arguido renovou o seu desígnio criminoso, surgindo cada uma delas de modo autónomo em relação aos propósitos criminosos anteriores, pois que em cada momento procurava a oportunidade de contacto com o ofendido. E, assim, nada mais resta que não seja concluir pelo afastamento do decidido acerca da verificação de um quadro de crime de trato sucessivo. A factualidade fixada na decisão recorrida não é enquadrável na figura do crime de trato sucessivo, pelo que se altera a qualificação jurídica ali efectuada, no sentido, agora, da existência de um concurso real ou efectivo de crimes. E, assim, também, nós, concordando com os fundamentos para tal aduzidos, propendemos para a solução que este Supremo Tribunal tem, de forma uniforme, adoptado, pela subsunção da pluralidade de condutas, no plano do abuso sexual de crianças, na figura do concurso efectivo de crimes, assim, se afastando a configuração de tais situações nos restantes quadros reguladores possíveis, vg. crime continuado, crime único, ou crime de trato sucessivo. E, assim, em conclusão, se a regra que resulta do artigo 30.º/1 CPenal é a de que existem tantos crime quantas as vezes que o mesmo tipo legal for preenchido pela conduta do arguido, então não há como não afastar a figura do crime de trato sucessivo no âmbito dos crimes de natureza sexual. 3. 2. O número de crimes. 3. 2. 1. A fundamentação da decisão recorrida quanto à operação de subsunção dos factos ao Direito. “Do crime de abuso sexual de crianças, p. e p., pelo art. 171, n.ºs 1, 2 e 3 do Cód. Penal Dispõe o nº 1 do citado art. 171º do Cód. Penal que, “Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos”. Já de acordo com o seu nº 2, “Se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos”. Ainda de acordo com o nº 3 do mesmo artº 171º “Quem: a) Importunar menor de 14 anos, praticando acto previsto no artigo 170.º; ou b) Actuar sobre menor de 14 anos, por meio de conversa, escrito, espectáculo ou objecto pornográficos; c) Aliciar menor de 14 anos a assistir a abusos sexuais ou a atividades sexuais; é punido com pena de prisão até três anos.” O agente deste crime, como deixa entender o n.º 1 do preceito, ao referir genericamente “Quem”, pode ser qualquer pessoa, mesmo os pais da vítima. Esta é, necessariamente, um menor – de qualquer sexo – com menos de 14 anos. Com este preceito tem-se em vista proteger aquelas pessoas que, sexualmente, não têm discernimento para se comportarem com liberdade. É a integridade sexual daqueles que, em função da sua idade, ainda não têm o suficiente discernimento para se auto determinarem livre e conscientemente, que esta norma visa salvaguardar. O bem jurídico protegido no crime em causa é o da autodeterminação sexual, mas num particular prisma qual seja de evitar que certas condutas de natureza sexual, em consideração da pouca idade da vítima mesmo sem coação, possam prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade (Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 541) Atenta a presunção legal, verdadeira convicção afirmada iuris et de iure, de que o menor de 14 anos não é livre para se decidir em termos de relacionamento sexual, é irrelevante, do ponto de vista objetivo (típico), que a vítima seja ou não sexualmente iniciada, que possua ou não capacidade para entender o ato sexual com ela praticado, ou sequer que tenha consentido, incentivado ou tomado a iniciativa de o praticar, podendo tais factos ser apenas atendidos em sede de determinação da pena. A ação típica, no caso do nº 1, consiste em praticar ato sexual de relevo. Não nos dá o Código Penal uma densificação do conceito de ato sexual de relevo, nem nos fornece uma extensa casuística exemplificativa. Ato sexual é todo o comportamento que assume uma natureza ou um conteúdo ou um significado diretamente relacionado com a esfera da sexualidade e, portanto, com a liberdade de determinação sexual de quem o sofre ou o pratica. A questão que se coloca, segundo refere Figueiredo Dias na obra citada, é a de saber se a esta aceção objetiva deve acrescer uma outra subjetiva, traduzida na intenção do agente de despertar ou satisfazer, em si ou em outrem, a excitação sexual (dita também intenção libidinosa) Três posições se perfilam a este respeito: uma interpretação objetivista, segundo a qual constitui ato sexual típico aquele que, atenta a sua manifestação externa, revela uma conexão com a sexualidade; uma outra que exige não só a conexão objetivista, como ainda a subjetivista do conceito, traduzida na dita intenção libidinosa; e uma terceira, a menos exigente, que defende ser o conceito integrado tanto pela sua aceção objetivista como subjetivista. Propende Figueiredo Dias para a interpretação objetiva supra referida, considerando, pois, irrelevante o motivo da atuação do agente embora conceda que o carácter sexual do ato deva ser visto apenas e só “de per se”, sendo relevante para a determinação do seu conteúdo e significado as circunstâncias de tempo e lugar que o rodeiam e que o façam ser reconhecível pela vítima como sexualmente relevante, significativo. Porém, nos termos da lei, não é todo e qualquer ato sexual que permite a subsunção do mesmo à previsão normativa: o ato sexual tem de ser de relevo. Pondera a propósito Sénio Alves (Crimes Sexuais, pág. 8 e segs.): «Em bom rigor, a dificuldade começa logo na definição de ato sexual (para efeitos penais, entenda-se). Um beijo é um ato sexual? O acariciar dos seios é um ato sexual? E se sim, é de relevo? E ainda em caso afirmativo será razoável punir do mesmo modo quem por meio de violência constrange a vítima a praticar consigo coito... (inter femural ou inter-axilar, que me parecem poder integrar, sem grandes objeções, o conceito de ato sexual de relevo) e aquele que, também por meio de violência, consegue acariciar os seios da sua vítima? Numa noção pouco rigorosa (diria sociológica) de ato sexual têm cabimento atos como os supra referidas (o acariciar dos seios e de outras partes do corpo, que não só dos órgãos genitais). São aquilo que vulgarmente se designa como “preliminares da cópula” e, por isso, são atos de natureza sexual ou, se se preferir, atos com fim sexual». Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, pág. 646, em anotação ao artigo 163º, concretizando o que seja ato sexual de relevo, nele integra o toque com partes do corpo nos seios, nádegas, coxas e boca. Na jurisprudência pode colher-se uma certa uniformidade (cfr. nomeadamente os acórdãos do TRC de 05/03/2000, de 27/06/2007, de 09/07/2008, de 02/02/2011 e do TRP, de 26/11/2003, de 07/10/2009, de 27/01/2012 e de 28/11/2012, todos acessíveis em www.dgsi.pt) de acordo com os ensinamentos da doutrina, que será ato sexual de relevo todo aquele que tenha uma natureza objetiva estritamente relacionada com a atividade sexual, ou seja, que normalmente apenas seja praticado no domínio da sexualidade entre pessoas, como é, manifestamente, o caso de acariciar os seios/ mamas, atos preliminares do ato sexual final que conduz ao orgasmo. Também aduziremos e como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 02.02.2011, acessível no mesmo sítio, "o ato sexual de relevo é ( .. .) todo o comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais (ainda que não comporte o envolvimento dos órgãos genitais de qualquer dos intervenientes) que ofende, em grau elevado, o sentimento de timidez e vergonha comum à generalidade das pessoas e a relevância ou irrelevância de um ato sexual só lhe pode ser atribuída pelo sentir geral da comunidade (...) que considerará relevante ou irrelevante um determinado ato sexual consoante ofenda, com gravidade ou não, o sentimento de vergonha e timidez (relacionado com o instinto sexual) da generalidade das pessoas. Por outro lado, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/09/2007, no qual se diz que "a lei presume que a prática de atos sexuais em menor, com menor ou por menor de certa idade, prejudica o seu desenvolvimento global, e considera este interesse tão importante que coloca as condutas que o lesem ou ponham em perigo sob a tutela da pena criminal. Protege-se, pois, uma vontade individual ainda insuficientemente desenvolvida, e apenas parcialmente autónoma, dos abusos que sobre ela executa um agente, aproveitando-se da imaturidade do jovem (...). O que está em causa não é somente a autodeterminação sexual mas, essencialmente, o direito do menor a um desenvolvimento físico e psíquico harmonioso, presumindo-se que este estará sempre em perigo quando a idade se situe dentro dos limites definidos pela lei" (acessível em www.dgsi.pt, processo n.º 07P2273) – cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15/05/2014, disponível para consulta no mesmo sítio in www.dgsi.pt Já no que toca ao nº 2 do mesmo preceito, a cópula e o coito anal e/ou oral com relevância penal típica agravante consistem, respetivamente, na penetração da vagina, do ânus e/o da boca pelo pénis (Ob. cit., pág. 473 e 543) Porém, estes últimos atos sexuais são equiparados à introdução vaginal ou anal de partes do corpo, nomeadamente à introdução da língua, nariz, mão e dedo da mão na vagina da criança abusada. Diga-se, ainda, que o crime de abuso sexual de crianças não exige como elemento típico objetivo a produção de qualquer resultado, mesmo de perigo concreto. Efetivamente, fazendo parte do elenco dos crimes contra a autodeterminação sexual, subjacente à incriminação da descrita conduta está a proteção do bem jurídico consistente no livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual ou, abreviadamente, o desenvolvimento da vida sexual. Porém, a proteção do bem jurídico tutelado não exige, tal como nos crimes de dano, que o mesmo seja violado – um efetivo dano para o desenvolvimento da vida sexual do menor é irrelevante, sendo prescindida pelo legislador, na previsão normativa, até a concreta verificação de perigo para o mesmo bem. O que leva a qualificar o tipo em causa como de crime de perigo abstrato, em que o correspondente dano ou perigo de dano podem nunca vir a ter lugar. Já quanto ao elemento subjetivo, o crime em apreço é doloso quanto a todos os seus elementos objetivos, nomeadamente, quanto à idade da visada. Tecidas estas breves considerações jurídicas, no caso sujeito, provou-se que, em determinado período temporal que se fixou entre 2016 e 2021, no qual o ofendido tinha entre os 7 e os 12 anos de idade, o arguido, aproveitando-se do relacionamento amoroso e da coabitação com a avó do menor: ➢ Por um número não concretamente apurado de vezes, no interior da sua residência, o arguido AA despiu as suas calças e roupa interior e exibiu os seus pénis e ânus ao ofendido BB. ➢ Por um número não concretamente apurado de vezes, no interior da sua residência, o arguido AA colocou a sua mão por dentro das calças e roupa interior do ofendido BB e tocou-lhe, com as mãos, no pénis, tendo ainda, por vezes, introduzido o pénis na sua própria boca. ➢ Por um número não concretamente apurado de vezes, mas mais que duas, no interior do seu quarto de dormir, o arguido AA disse ao ofendido BB para se sentar ao seu colo. De seguida, o arguido AA exibiu-lhe, quer através do seu telemóvel, quer através do seu computador, filmes que retratavam pessoas adultas desnudas e a manterem relações sexuais entre si e pediu àquele para reproduzir consigo o que estava a ver. ➢ Por um número não concretamente apurado de vezes, mas mais do que duas, a pedido do arguido AA, o ofendido BB tocou no pénis do arguido AA, o que fez por cima e por baixo da sua roupa, sendo que nestas ocasiões, este se despia e, nas mesmas ocasiões, o arguido AA colocou a sua mão por baixo da roupa que o ofendido BB vestia e acariciou o seu pénis. ➢ Por um número não concretamente apurado de vezes, mas mais que duas, o arguido AA levou o ofendido BB até à casa de banho da sua residência, onde entraram, tendo aquele fechado a porta atrás de si. No interior da referida casa de banho, o arguido AA despiu as suas calças e cuecas e pegou no seu pénis, fazendo movimentos ascendentes e descendentes. De seguida, o arguido AA pegou na mão do ofendido BB e agarrou com a mesma o seu próprio pénis, fazendo movimentos ascendentes e descendentes. ➢ Por um número não concretamente apurado de vezes, mas mais do que duas, e nas supra descritas circunstâncias, o arguido AA disse ao ofendido BB para pegar no pénis daquele e fazer movimentos ascendentes e descendentes. ➢ Também por um número não concretamente apurado de vezes, mas mais do que duas vezes, e nas supra descritas circunstâncias, o arguido AA disse ao ofendido BB para introduzir o pénis deste no seu ânus, ao que o menor acedeu. ➢ Também nessas ocasiões, por um número não concretamente apurado de vezes, o arguido AA roçou o seu pénis no ânus do ofendido BB. Provou-se ainda que: O arguido AA praticou, em cada uma das situações, os actos supra descritos, com pleno conhecimento da idade do ofendido e aproveitando-se do facto de o mesmo ser neto da sua, à data, companheira, o que facilitava as suas condutas, como queria e conseguiu. O arguido AA actuou, em cada uma das situações, da forma descrita para satisfazer os seus instintos primários e libidinosos, bem sabendo que atentava contra a liberdade e autodeterminação sexual do ofendido e que, dessa forma, prejudicava o desenvolvimento saudável da personalidade do menor. O arguido AA agiu, em cada uma das situações, com o propósito concretizado de obter prazer sexual e satisfazer os seus instintos libidinosos, o que fez com a consciência que o ofendido tinha entre 6 e 12 anos de idade e que as zonas do seu corpo em que tocou constituem património íntimo e uma reserva pessoal da sexualidade do mesmo, que punha em causa o são desenvolvimento da consciência sexual e que ofendia o respectivo sentimento de pudor, intimidade e liberdade sexual, causando-lhe grande sofrimento físico e psíquico, interrompendo o percurso normativo do desenvolvimento psicossexual e erotizando o menor antes deste dispor de competências cognitivas, sociais e emocionais para regularizar a sua sexualidade, bem como para evitar o contacto sexual com um adulto. O arguido AA actuou de forma livre, consciente e voluntariamente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal e tinha capacidade e liberdade para se determinar de acordo com esse conhecimento, tendo actuado com a intenção de satisfazer os seus instintos libidinosos contra a vontade do ofendido. Podemos, pois, concluir que se mostram provados à saciedade os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal contido no artº 171º nºs 1, 2, e 3 do CP. Com interesse para o caso, o art.º 177.º, nº 1 do Código Penal estipula que “1 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima: a) For ascendente, descendente, adotante, adotado, parente ou afim até ao segundo grau do agente; ou b) Se encontrar numa relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação. c) For pessoa particularmente vulnerável, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez.” Ora, como vimos, o menor é neto da companheira do arguido e este cometeu os crimes que a vitimaram em manifesto aproveitamento desta relação familiar. Verifica-se, pois, uma circunstância modificativa agravante em presença em relação a todos os crimes que cometeu. Todavia, – a idade da menor e a consequente vulnerabilidade daí decorrente – já consta do tipo legal de crime de abuso sexual de criança (menor de 14 anos), pelo que não pode ser usada, de novo, para agravar o tipo legal que já a pressupõe. Donde, não sendo de considerar a circunstância agravante prevista na al. c) do art. 177º, nº 1 do Cód. Penal, já pontua em relação a ambos os crimes a circunstância modificativa agravante a que supra se aludiu, p. e p. no nº 1, al. b) do mesmo art. 177º. Consequentemente, as penas aplicáveis aos crimes cometidos pelo arguido são agravadas em um terço dos seus limites máximos e mínimos. (se no mesmo comportamento, ocorrerem mais do que uma circunstância agravativa, só é considerada para efeitos de determinação da pena aplicável a que tiver efeito agravante mais forte, sendo a outra ou outras valoradas na medida da pena, como decorre do estatuído no nº 8 do citado art. 177º do Cód. Penal)”. 3. 2. 2. Aproximação ao caso concreto. A questão supramencionada da dificuldade de apuramento do número de actos criminalmente idóneos, no que ao crime de abuso sexual se reporta, está aqui bem retratada, agora, em sede da quantificação do número de crimes. Ainda que todas as descritas situações sejam susceptíveis de, autonomamente, integrar sempre a mesma previsão legal. Nuns casos o n.º 1, noutros o n.º 2 e ainda em outros o n.º 3, sempre do artigo 171.º CPenal. Questão que na decisão o recorrida se não colocou, também, porque se entendeu ser caso de crime único, de trato sucessivo. Como vimos, na acusação vinha imputada ao arguido a prática de, - 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças agravado, na forma consumada (artigos 14.º e 26.º, do Código Penal), previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 3, al. a), 177.º, n.º 1, al. c) e 7, 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º2, do Código Penal; - 6 (seis) crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada (artigos 14.º e 26.º, do Código Penal), previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 2, 177.º, n.º 1, al. c) e 7, 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º2, do Código Penal; - 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada (artigos 14.º e 26.º, do Código Penal), previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, al. c) e 7, 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º2, do Código Penal em concurso aparente com 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada (artigos 14.º e 26.º, do Código Penal), previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 3, al. b), 177.º, n.º 1, al. c) e 7, 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º2, do Código Penal; - 6 (seis) crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada (artigos 14.º e 26.º, do Código Penal), previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, al. c) e 7, 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º2, do Código Penal em concurso aparente com 6 (seis) crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada (artigos 14.º e 26.º, do Código Penal), previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 3, al. a), 177.º, n.º 1, al. c) e 7, 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º2, do Código Penal. Defende, agora, o MP que da matéria de facto provada resulta que no período compreendido entre o ano de 2016 e o dia 13.7.2021 foram praticados diversos actos sexuais com a criança, em ocasiões distintas, devendo, assim, ser o arguido punido por esta pluralidade de crimes, dezasseis, do seguinte modo: - pelo menos 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças agravado, na forma consumada, previstos e punidos nos termos conjugados dos artigos 14.º; 26.º; 171.º, n.º 3, alínea a); 177.º, n.º 1, alínea c) e n.º 7; 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º 2; - 5 (cinco) crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada, previstos e punidos nos termos conjugados dos artigos 14.º; 26.º; 171.º, n.º 2, 177.º, n.º 1, alínea c) e n.º 7; 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º 2; - 9 (nove) crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada, previstos e punidos nos termos conjugados dos artigos 14.º; 26.º; 171.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, alínea c) e n.º 7; 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º2, todos do Código Penal. Seja, o MP na acusação imputa ao arguido 2 crimes do artigo 171.º/3, 6 crimes do artigo 171.º/2, 2 crimes do artigo 171.º/1 em concurso aparente com o artigo 171.º/3 e 6 crimes do artigo 171.º/1 em concurso aparente com o artigo 171.º/3 e no recurso, defende que foram praticados 9 crimes do artigo 171.º/1, 5 crimes do artigo 171.º/2 e 2 crimes do artigo 171.º/3 E, como vimos já, o MP neste Tribunal efectua uma contagem diversa. Entende que os factos provados integram a prática pelo arguido de, - 10 (dez) crimes de abuso sexual de crianças, agravado, na forma consumada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 171.º/1, 177.º/1 alínea b) – sem a agravação do n.º 7 do artigo 177.º CPenal - 14.º e 26.º, todos do Código Penal [factos provados 7/8 (3 crimes), 9 a 11 (3 crimes), 12 (3 crimes) e 14 (1 crime)], a que corresponde a moldura penal abstracta de prisão de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses; - 4 (quatro) crimes de abuso sexual de crianças, agravado, na forma consumada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 171.º/2, 177.º/1 alínea b) - também sem a dita agravação - 14.º e 26.º, todos do Código Penal [factos provados 4 (1 crime) e 13 (3 crimes)], a que corresponde a moldura penal abstracta de prisão de 4 anos a 13 anos e 4 meses; - 1 (um) crime de abuso sexual de crianças, agravado, na forma consumada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 171.º/3 alínea a), 177.º/1 alínea b) – ainda sem a dita agravação - 14.º e 26.º, todos do Código Penal [factos provados 3], a que corresponde a moldura penal abstracta de prisão de 1 mês e 10 dias a 4 anos; e, - 3 (três) crimes de abuso sexual de crianças, agravado, na forma consumada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 171.º/3 alínea b), 177.º/1 alínea b) – também sem a apontada agravação - 14.º e 26.º, todos do Código Penal [factos provados 5/6], a que corresponde a moldura penal abstracta de prisão de 1 mês e 10 dias a 4 anos. Se necessário fosse, está aqui bem retratada e evidenciada a dificuldade resultante do entendimento de não estarmos perante um único crime de trato sucessivo. Além da já enunciada dificuldade, de na investigação se deslindar a quantidade de actos criminosos, surge depois, mais esta, atinente com a sua contagem, em sede do critério definido pelo artigo 30.º/1 CPenal. Cremos bem que a leitura dos factos provados são susceptíveis de integrar, ainda assim, um outro, diverso número de crimes. Com efeito. Parece claro que em relação ao tipo de crime de abuso sexual de crianças, cada um dos vários actos do arguido foi levado a cabo num diverso contexto situacional, necessariamente comandado por uma diversa resolução e traduziu-se numa autónoma lesão do bem jurídico protegido. E, assim, cada um desses actos constituiu um momento, em si mesmo, um autónomo facto punível. Cremos poder surpreender na actuação do arguido 5 distintos momentos. Seja, outros tantos, factos naturalísticos, que depois se transfigurarão em igual número, de factos normativos. Para começar, deve-se entender que “número não concretamente apurado de vezes” não pode deixar de ser considerado, como sendo, no mínimo, 2 vezes. E que “número não concretamente apurado de vezes, mas mais do que duas” não pode deixar de ser entendido como 3 vezes, no mínimo. Vem provado que, 3. Em datas não concretamente apuradas, mas entre 2016 e 13.07.2021, por um número não concretamente apurado de vezes, no interior da sua residência, o arguido AA despiu as suas calças e roupa interior e exibiu os seus pénis e ânus ao ofendido BB. 4. Em datas não concretamente apuradas, mas entre 2016 e 13.07.2021, por um número não concretamente apurado de vezes, no interior da sua residência, o arguido AA colocou asua mão por dentro das calças e roupa interior do ofendido BB e tocou-lhe, com as mãos, no pénis, tendo ainda, por vezes, introduzido o mesmo na sua própria boca. 5. Em datas não concretamente apuradas, mas entre 2016 e 13.07.2021, no interior do seu quarto de dormir, o arguido AA disse ao ofendido BB para se sentar ao seu colo. 6. De seguida, o arguido AA exibiu-lhe, quer através do seu telemóvel, quer através do seu computador, filmes que retratavam pessoas adultas desnudas e a manterem relações sexuais entre si e pediu àquele para reproduzir consigo o que estava a ver, o que fez por um número não concretamente apurado de vezes, mas mais que duas. 7. A pedido do arguido AA, por um número não concretamente apurado de vezes, mas mais do que duas, o ofendido BB tocou no pénis do arguido AA, o que fez por cima e por baixo da sua roupa, sendo que nestas ocasiões, este se despia. 8. Nas mesmas ocasiões, o arguido AA colocou a sua mão por baixo da roupa que o ofendido BB vestia e acariciou o seu pénis. 9. Em datas não concretamente apuradas, mas entre 2016 e 13.07.2021, o arguido AA levou o ofendido BB até à casa de banho da sua residência, onde entraram, tendo aquele fechado a porta atrás de si. 10. No interior da referida casa de banho, o arguido AA despiu as suas calças e cuecas e pegou no seu pénis, fazendo movimentos ascendentes e descendentes. 11. De seguida, o arguido AA pegou na mão do ofendido BB e agarrou com a mesma o seu próprio pénis, fazendo movimentos ascendentes e descendentes, o que fez por um número não concretamente apurado de vezes, mas mais que duas. 12. Noutras ocasiões, no hiato temporal e nas circunstâncias de lugar referidas em 9. e 10., o arguido AA disse ao ofendido BB para pegar no pénis daquele e fazer movimentos ascendentes e descendentes, o que o menor fez, por um número não concretamente apurado de vezes, mas mais do que duas. 13. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 9. e 10., por um número não concretamente apurado de vezes, mas mais do que duas vezes, o arguido AA disse ao ofendido BB para introduzir o pénis deste no seu ânus, ao que o menor acedeu. 14. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 9. e 10., por um número não concretamente apurado de vezes, o arguido AA roçou o seu pénis no ânus do ofendido BB. E, assim, temos 21 actos autonomizáveis em face da descrição do tipo legal: - 8 crimes do n.º 1 do artigo 171.º; - 5 crimes do n.º 2 do artigo 171.º e, - 8 crimes do n.º 3 do artigo 171.º. E, temos 5 momentos, delimitados em termos de espaço e de tempo. Assim. 1.º momento – factos contidos no ponto 3: - por um número não concretamente apurado de vezes, no interior da sua residência, despiu as suas calças e roupa interior e exibiu os seus pénis e ânus ao ofendido – cometeu 2 crimes do artigo 171.º/3 alínea a) CPenal; 2.º momento – factos contidos no ponto 4: - por um número não concretamente apurado de vezes, no interior da sua residência, colocou a sua mão por dentro das calças e roupa interior do ofendido e tocou-lhe, com as mãos, no pénis, tendo ainda, por vezes, introduzido o pénis na sua própria boca – cometeu 2 crimes do artigo 171.º/2 CPenal; 3.º momento – factos contidos nos pontos 5 e 6: - por um número não concretamente apurado de vezes, mas mais que duas, no interior do seu quarto de dormir, disse ao ofendido para se sentar ao seu colo. De seguida, o arguido exibiu-lhe, quer através do seu telemóvel, quer através do seu computador, filmes que retratavam pessoas adultas desnudas e a manterem relações sexuais entre si e pediu àquele para reproduzir consigo o que estava a ver – cometeu 3 crimes do artigo 171.º/ 3 alínea a) CPenal; 4.º momento – factos contidos nos pontos 7 e 8: - por um número não concretamente apurado de vezes, mas mais do que duas, a pedido do arguido, o ofendido tocou no pénis do arguido, o que fez por cima e por baixo da sua roupa, sendo que nestas ocasiões, este se despia e, nas mesmas ocasiões, o arguido colocou a sua mão por baixo da roupa que o ofendido vestia e acariciou o seu pénis – cometeu 3 crimes do artigo 171.º/3 alínea a) CPenal; 5.º momento – factos contidos nos pontos, 9, 10, 11, 12, 13 e 14: - por um número não concretamente apurado de vezes, mas mais que duas, o arguido levou o ofendido até à casa de banho da sua residência, onde entraram, tendo aquele fechado a porta atrás de si. No interior da referida casa de banho, o arguido despiu as suas calças e cuecas e pegou no seu pénis, fazendo movimentos ascendentes e descendentes. De seguida, o arguido pegou na mão do ofendido e agarrou com a mesma o seu próprio pénis, fazendo movimentos ascendentes e descendentes – cometeu 3 crimes do artigo 171.º/1 CPenal; - por um número não concretamente apurado de vezes, mas mais do que duas, e nas supra descritas circunstâncias, o arguido disse ao ofendido para pegar no pénis daquele e fazer movimentos ascendentes e descendentes – cometeu 3 crimes do artigo 171.º/1 CPenal; - por um número não concretamente apurado de vezes, mas mais do que duas vezes, e nas supra descritas circunstâncias, o arguido disse ao ofendido para introduzir o pénis deste no seu ânus, ao que o menor acedeu – cometeu 3 crimes do artigo 171.º/2 CPenal; - nessas ocasiões, por um número não concretamente apurado de vezes, o arguido roçou o seu pénis no ânus do ofendido – cometeu 2 crimes do artigo 171.º/1 CPenal. A traduzir, seguramente, nas quatro primeiras situações, a prática de 2 crimes susceptíveis de integrar o n.º 2 e, 8 susceptíveis de integrar o n.º 3 do artigo 171.º CPenal. Quanto ao 5.º momento. Sempre nas mesmas circunstâncias, nessa ocasião, o arguido levou a cabo factos susceptíveis, cada um deles, de integrar ou o n.º 1 ou o n.º 2 do artigo 171.º CPenal. Seja, 3 crimes do n.º 2 em concurso aparente com 8 do n.º 1. Cremos que este método, de tentar autonomizar os vários momentos temporais, será o mais correcto, em função do sempre omnipresente critério definido no artigo 30.º/1 CPenal. Isto é, partir da realidade dos factos para os integrar nas várias normas. E, não o seguido pelo representante do MP neste Tribunal, que a partir dos tipos legais aí vai integrando as várias condutas do arguido, olvidando, desde logo, que várias delas são contemporâneas umas das outras, como acontece, manifestamente, desde logo, nos factos agrupados no 5.º momento, 9 a 14 dos factos provados e, por outro lado – o que nos transporta para o próximo patamar de apreciação – estão todas, naturalisticamente, encadeadas umas nas outras. O que traduz um resultado diverso, como vimos. E, voltamos ao artigo 30.º CPenal. Como assertivamente se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de 27.5.2010, processo 474/09.4PSLSB, “a problemática relativa ao concurso de crimes (unidade e pluralidade ide infracções), das mais complexas na teoria geral do direito penal, tem, como vimos já, nesta norma a indicação de um princípio geral de solução. O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. O critério determinante do concurso é, assim, no plano da indicação legislativa, o que resulta da consideração dos tipos legais violados. E efectivamente violados, o que aponta decisivamente para a consagração de um critério teleológico referido ao bem jurídico. A indicação da lei acolhe, pois, as construções teoréticas e as categorias dogmáticas que, sucessivamente elaboradas, se acolhem nas noções de concurso real e concurso ideal. Há concurso real quando o agente pratica vários actos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime (pluralidade de acções), e concurso ideal quando através de uma mesma acção se violam várias normas penais ou a mesma norma, repetidas vezes (unidade de acção). O critério teleológico que a lei acolhe no tratamento do concurso de crimes, condensado na referência a crimes «efectivamente cometidos», é adequado a delimitar os casos de concurso efectivo (pluralidade de crimes através de uma mesma acção ou de várias acções) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efectivo concurso de crimes (os casos de concurso aparente e de crime continuado). Ao lado das espécies de concurso próprio (ideal ou real) há, com efeito, casos em que as leis penais concorrem só na aparência, excluindo uma as outras. A ideia fundamental comum a este grupo de situações é a de que o conteúdo do injusto de uma acção pode determinar-se exaustivamente apenas por uma das leis penais que podem entrar em consideração - concurso impróprio, aparente ou unidade de lei. A determinação dos casos de concurso aparente faz-se, de acordo com as definições maioritárias, segunda regras de especialidade, subsidiariedade ou consunção. Especialmente difícil na sua caracterização é a consunção. Diz-se que há consunção quando o conteúdo de injusto de uma acção típica abrange, incluindo-o, outro tipo de modo que, de um ponto de vista jurídico, expressa de forma exaustiva o desvalor (cfr. v. g. H. H. JESCHECK e THOMAS WEIGEND, "Tratado de Derecho Penal", 5ª edição, p. 788 e ss.). A razão teleológica para determinar as normas efectivamente violadas ou os crimes efectivamente cometidos, só pode encontrar-se na referência a bens jurídicos que sejam efectivamente violados. O critério do bem jurídico como referente da natureza efectiva da violação plural é, pois, essencial. O critério operativo de distinção entre categorias, que permite determinar se em casos de pluralidade de acções ou pluralidade de tipos realizados existe, efectivamente, unidade ou pluralidade de crimes, id. est, concurso legal ou aparente ou real ou ideal, reverte ao bem jurídico e à concreta definição que esteja subjacente relativamente a cada tipo de crime. Ao critério de bem jurídico têm de ser referidas as soluções a encontrar no plano da teoria geral do crime, sendo a matriz de toda a elaboração dogmática (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de 29/06/2006, proc. nº 1942/06-3ª)”. Estamos perante factos, qualquer deles susceptível de integrar o mesmo tipo legal de abuso sexual de crianças, praticados no mesmo momento, no mesmo contexto de espaço e de tempo, sobre o mesmo ofendido. Uns, digamos que, o tipo base e, outros um dos tipos agravados – da mesma norma legal. Não se olvide que estes factos estão descritos no tipo legal, em crescendo, como de facto se tratam, naturalisticamente, como preliminares, como o preâmbulo, do culminar que se pode considerar a cópula. Cremos bem que estamos perante um quadro que traduz a criação de condições para a prática do acto de cópula anal. Sendo certo que os actos preliminares são, também, eles, passíveis de diferentes juízos de censura jurídico-penal - pois que afectam de forma autónoma diferentes vertentes do bem jurídico que a norma visa proteger. Cremos que ninguém defenderá que a prática de um acto sexual de relevo, que venha a culminar no acto de cópula, possa traduzir a prática de dois crimes, em concurso real, desde logo. Com efeito, nos crimes de natureza sexual, os actos de relevo podem ser vistos como integrantes dum processo que conduz à cópula. Ou podem não ser vistos como tal ou nem sempre poderão ser vistos como tal, nas palavras do acórdão deste Supremo Tribunal de 12.5.2011, processo 14125/08.0TDPRT. Tudo despenderá do seu contexto e do circunstancialismo fáctico que os rodeia. E, se assim for a relação entre os dois tipos-de-ilícito é, por conseguinte, de concurso efectivo. No entanto, como assinala o Professor Figueiredo Dias in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2007, 43.º capítulo, III, “só se deve estabelecer uma relação de concurso aparente entre a violação e as coacções sexuais quando estas devam considerar-se integrantes do processo que conduziu à violação. Fora desta hipótese, quer dizer quando os actos de coacção sexual não possam ser vistos como integrantes do processo que conduziu à cópula ou ao coito anal ou oral, o crime de violação não consome as coacções sexuais”. Pode-se colocar mesmo a questão de saber se estamos perante uma mesma resolução criminosa ou perante uma pluralidade de resoluções criminosas. Se, perante uma só, a questão do número estaria resolvida, dado estarmos perante o mesmo tipo legal, perante o mesmo bem jurídico tutelado. Se perante mais que uma, implica saber se o arguido renovou a sua vontade para praticar todos os factos. Ou se todos eles obedecerem a um mesmo desígnio criminoso. Como é sabido, no âmbito do chamado concurso efectivo de infracções, haverá concurso real sempre que à pluralidade de crimes corresponder uma pluralidade de acções e concurso ideal sempre que a mesma acção viole diferentes tipos (concurso ideal heterogéneo) ou um só tipo de crimes (concurso ideal homogéneo). Do concurso real ou efectivo distingue-se o concurso aparente, em que a conduta do agente apenas formalmente preenche vários tipos legais, mas em que, por via da interpretação das normas incriminatórias, se pode concluir ser a conduta totalmente absorvida por um só tipo legal. Isto é, no concurso aparente a aplicação de uma norma importa a exclusão de aplicação de outra, em obediência, às regras da especialidade, da consumpção, da subsidiariedade – ou do facto posterior não punível. Por força das regras da especialidade um dos tipos aplicáveis - tipo especial - abrange - já elementos essenciais de outro, também abstractamente aplicável - o tipo base - ao qual, em vista dos interesses a proteger e da sua especialidade, se aditaram elementos suplementares ou especializadores, recriando um novo tipo, mais ajustasdo às circunstâncias do caso, mercê da regra lex specialis derogat legi generali. A aplicação da regra da consumpção não abdica da consideração de que o preenchimento do tipo mais grave engloba o preenchimento de outro menos grave e, quando tal sucede as disposições legais encontram-se numa posição em que uma consome a protecção legal já conferida por outra- A lei mais ampla, a lex consumens, que é a mais eficaz e a aplicável por força do princípio ne bis in idem, do que a lei menos ampla, a lex consumpta, que não cobra aplicação. E, assim, em relação ao dito 5.º momento: - por um número não concretamente apurado de vezes, mas mais que duas, - o arguido levou o ofendido até à casa de banho da sua residência, onde entraram, tendo aquele fechado a porta atrás de si; - no interior da referida casa de banho, o arguido despiu as suas calças e cuecas e pegou no seu pénis, fazendo movimentos ascendentes e descendentes; - de seguida, o arguido pegou na mão do ofendido e agarrou com a mesma o seu próprio pénis, fazendo movimentos ascendentes e descendentes; - o arguido disse ao ofendido para pegar no pénis daquele e fazer movimentos ascendentes e descendentes; - o arguido disse ao ofendido para introduzir o pénis deste no seu ânus, ao que o menor acedeu; - por um número não concretamente apurado de vezes, o arguido roçou o seu pénis no ânus do ofendido. Esta conduta, do que vem de ser dito, deve ser qualificada como susceptível de integrar a prática de 3 crimes do n.º 2 do artigo 171.º, em concurso aparente com 8 crimes do n.º 1. Sempre nas mesmas circunstâncias, nessa ocasião, o arguido levou a cabo factos susceptíveis, cada um deles, de integrar ou o n.º 1 ou o n.º 2 do artigo 171.º CPenal. A somar, como vimos, aos crimes que integram as quatro primeiras situações - 2 crimes do n.º 2 e 8 do n.º 3 do artigo 171.º CPenal. Subsiste, ainda assim, a questão da qualificação, da circunstância agravativa. Como vimos na acusação imputava-se ao arguido a prática de crimes agravados, nos termos dos artigos, - 171.º/3 alínea a), 177.º/1 alínea c) e 7, - 171.º/2, 177.º/1 alínea c) e 7, - 171.º/1, 177.º/1 alínea c) e 7, - 171.º/3 alínea b), 177.º/1 alínea c) e 7, - 171.º/1, 177.º/1 alínea c) e 7. Na decisão recorrida foi o arguido condenado pelo crime, p. e p. pelos artigos 171.º/2 e 177.º/1 alínea b) CPenal. Desde logo, quer na acusação, quer no recurso defende o MP que a circunstância agravante é a da alínea c) do n.º 1 do artigo 177.º e a do n.º 7. Na decisão recorrida considerou-se ser a da alínea b) do n.º 1 do artigo 177.º. Ali a agravação implica o aumento da moldura abstracta nos limites mínimo e máximo de metade. E, aqui de 1/3. Cremos bem, manifestamente, que o n.º 7 do artigo 177.º não se reporta ao caso – como, de resto defende o representante do MP neste Tribunal. Com efeito, dos vários crimes ali previstos, com a indicação das respectivas normas incriminatórias, não consta, desde logo, a do artigo 171.º. Quanto ao mais. Nos termos do n.º 1 do artigo 177.º, “as penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima: a) For ascendente, descendente, adotante, adotado, parente ou afim até ao segundo grau do agente; ou b) Se encontrar numa relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação. c) For pessoa particularmente vulnerável, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez.” Como vimos a circunstância de a vítima ser menor de 14 anos já consta do tipo base do artigo 171.º, dos seus vários números. Não se vislumbra que os factos descritos na acusação, primeiro e, provados, depois, na decisão recorrida, sejam susceptíveis de integrar a previsão da alínea c) do n.º 1 do artigo 177.º - vítima pessoa particularmente vulnerável, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez. Vejamos, então, se são susceptíveis, como se entendeu na decisão recorrida, sem impugnação, de integrar a previsão da alínea b) – vítima numa relação de coabitação e os factos praticados com aproveitamento de tal relação. Esta interpretação da alínea b) do n.º 1 do artigo 177.º carece, todavia, de verificação e confirmação. Na decisão recorrida, como vimos, afastou-se e, bem, a aplicação da alínea c), como constava da acusação, porque se entendeu que a idade do menor e a consequente vulnerabilidade daí decorrente, já constava do tipo legal de crime de abuso sexual de criança (menor de 14 anos), pelo que não podia ser usada, de novo, para agravar o tipo legal que já a pressupõe. E, depois, afirmou-se a verificação da circunstância agravante da dita alínea b) porquanto se entendeu que o menor é neto da companheira do arguido e este cometeu os crimes que a vitimaram em manifesto aproveitamento desta relação familiar. Dispunha o n.º 1 do artigo 177.º, na sua redacção originária, conferida pelo Decreto Lei 48/95, de 15 de Março, que, “1 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima: a) For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente, ou se encontrar sob a sua tutela ou curatela; ou b) Se encontrar numa relação de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente, e o crime for praticado com aproveitamento desta relação”. A Lei 83/95, de 5 de Agosto, que alterou o n.º 2 do artigo 177.º, manteve inalterado o respectivo n.º 1. A alínea b) do n.º 1 veio a ser alterada pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro, e pela Lei 103/2015, de 24 de Agosto. A primeira acrescentou, como factor de agravação, a circunstância de o agente e a vítima se encontrarem numa “relação familiar, de tutela ou curatela” e a segunda, também como factor de agravação, a circunstância de estes se encontrarem numa relação de “coabitação”. Da Proposta de Lei n.º 305/XII, que esteve na origem da Lei 103/2015, ressalta o propósito de reforçar a protecção das crianças contra “formas graves de abuso e de exploração sexual de crianças” e de tornar o nosso ordenamento jurídico “mais eficaz no combate a uma das mais graves violações dos direitos humanos”. O aditamento da circunstância da coabitação visou, essencialmente transpor para o ordenamento jurídico-criminal interno as recomendações da Convenção de Lanzarote e o regime da Diretiva 2011/93/EU que, no artigo 9.º alínea b) impõe o agravamento do crime de abuso sexual de menores, entre outras situações, também quando é cometido “por uma pessoa que coabita com a criança”, conquanto esta circunstância não constituía elemento do tipo, cfr, acórdão deste Supremo Tribunal de 27.11.2019, processo 1257/18.6SFLSB. O n.º 1 do artigo 177.º, nas suas diferentes versões, encontra-se estruturado na base da consideração da relevância de diferentes tipos de relação entre o agente e a vítima, que justificam a agravação da pena, havendo que distinguir, - as relações familiares para efeitos da alínea a) em que o maior desvalor do tipo de ilícito resulta da sua simples existência, limitada ao círculo constituído por ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente e, - as relações familiares para efeitos da alínea b) – em que tal desvalor decorre do aproveitamento de outra relação familiar para a prática do acto sexual ilícito. “Relações familiares”, para efeitos do n.º 1 do artigo 177.º, n.º 1, são, pois, as relações constituídas por factos que, nos termos da lei, constituem fontes das relações jurídicas familiares – o casamento, o parentesco, a afinidade e a adopção, artigo 1576.º CCivil. Às relações familiares previstas na alínea b), cujo âmbito encontra definição por esta via normativa, veio a Lei 103/2015 - como se evidencia dos elementos histórico e sistemático de interpretação - acrescentar um outro tipo de relação – a de coabitação. Que, não emergindo de fontes de relações familiares, alarga a tutela penal a situações de facto em que as pessoas envolvidas abusam de uma relação de confiança nos termos anteriormente expostos, em que se incluem as relações constituídas no âmbito do conceito de família alargada, cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 13.2.2019, processo 3922/17.6JAPRT. Cremos que no caso se não verifica nenhuma das descritas situações na dita alínea b) – a vítima encontrar-se numa relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação. Ainda que a mais próxima seja a da coabitação. Com efeito, não havendo uma relação familiar entre o arguido e a vítima, no sentido que lhe deve ser atribuído por recurso ao direito de família, e não estando determinado que, entre o arguido e a vítima, existisse uma outra relação relevante nos termos daquela alínea, por exclusão de partes resta a relação de coabitação - que não se confunde com uma relação familiar. Atente-se, ainda, que no caso, crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 171.º/1 e 2 CPenal, para que tenha lugar a agravação prevista no artigo 177.º/1 alínea b), do mesmo diploma legal, na redacção da Lei 103/2015, como resulta do texto da lei, não basta a mera coabitação da vítima com o agente do crime. Exige-se, ainda que o ilícito penal seja praticado com aproveitamento dessa relação. A pressupor, uma relação de autoridade do agente ou de dependência ou confiança da vítima. No caso da coabitação está subjacente a ideia de que em tal contexto e ambiente doméstico e “parafamiliar”, a traduzir uma relação de proximidade e de confiança, o agente se possa prevalecer de circunstancialismo, em que é patente uma maior vulnerabilidade da vítima, que terá menor capacidade de defesa e de protecção, donde pode resultar o favorecimento da atuação do agente, pela inerente restrição da possibilidade de denúncia dos factos. Recordemos o que a este propósito vem provado - tendo presente que a descrição feita na acusação não teve, nunca, presente a circunstância da coabitação, mas sim a da particular vulnerabilidade, em razão da idade, da alínea c), o que compromete, no caso concreto, de forma decisiva a possibilidade de dos factos provados se extrair os factos integradores da dita coabitação. Vem, então, provado que, - o arguido conheceu o ofendido em data não concretamente apurada, mas no ano de 2017, quando aquele tinha apenas 7 (sete) anos de idade, porquanto mantinha um relacionamento amoroso com a avó do menor e a partir de então passou a coabitar com a mesma; - no interior da sua residência, o arguido despiu as suas calças e roupa interior e exibiu os seus pénis e ânus ao ofendido; - no interior da sua residência, o arguido colocou a sua mão por dentro das calças e roupa interior do ofendido BB e tocou-lhe, com as mãos, no pénis, tendo ainda, por vezes, introduzido o mesmo na sua própria boca; - no interior do seu quarto de dormir, o arguido disse ao ofendido para se sentar ao seu colo; - o arguido levou o ofendido até à casa de banho da sua residência, onde entraram, tendo aquele fechado a porta atrás de si; - o arguido actuou, em cada uma das situações constantes da acusação, aproveitando-se do facto de o mesmo ser neto à data, da sua companheira, o que facilitava as suas condutas, como queria e conseguiu; - em consequência dos comportamentos do arguido o ofendido passou a refugiar-se mais no seu quarto, no seu mundo; - o arguido assume que durante o período de relacionamento marital com a avó, desde 2016 até JUL2021, convivia com a família desta, incluindo o neto, participando nas rotinas e convívios familiares. Perante a matéria de facto provada, cremos não ressaltar a pressuposta relação de coabitação. Com efeito se é certo que resulta que o arguido viveu maritalmente com a avó do ofendido, no período da prática dos factos, já não resulta, de forma expressa, que o neto fizesse parte desse agregado “familiar”. E, a forma de expressão utilizada inculca, mesmo a ideia contrária. Com efeito refere-se “no interior da sua residência, o arguido …; o arguido levou o ofendido até à casa de banho da sua residência …”. Donde se depreende que a residência seria apenas do arguido – e da avó. Se o menor ali residisse, com a avó – e. naquele período delimitado no tempo, com o arguido - a forma de expressão não seria a que foi utilizada, já que seria a residência de ambos e não só do arguido, com resulta da descrição. É certo que aquela residência sempre poderia ser a que o arguido tinha antes do relacionamento com a avó – o que sempre se revelaria compatível – e, aí faria sentido a afirmação “sua residência” já não a da avó, mas em parte faltaria o decisivo e fundamental elemento de facto atinente com o facto de o neto viver com a avó, primeiro e com ela e o companheiro depois. Quando é certo desde que se verificasse o elemento da coabitação, não se exige que os factos fossem praticados no local, no espaço físico, na sede onde a mesma se verificava. Esta precisão assume-se como essencial quanto qualificação jurídica, primeiro e, quanto à determinação da moldura abstracta, depois. Da união de facto entre duas pessoas pode ou não resultar uma situação de coabitação de uma delas com os filhos ou com os netos, menores da outra. O arguido e a avó do ofendido estabeleceram a união de facto com vivência comum durante cerca de 5 anos. Mas, decisivamente, não se apurou que o neto fizesse parta daquela família alargada, ou daquela família afectiva, que envolvia a avó e o arguido. Não se verifica, pois, a circunstância agravante da relação de coabitação, aplicada na decisão recorrida. Pelo que a punição do crime deverá ter lugar exclusivamente com base no disposto no artigo 171.º/1 CPenal, que prevê e define o tipo fundamental. E, assim, a agravação, de metade, que caiu por não verificação da circunstância do n.º 7 do artigo 177.º, cai, também, no valor de 1/3, por não verificação da circunstância da alínea b) do n.º 2 do artigo 177.º. E, assim, em concreto, - aos crimes do n.º 2 do artigo 171.º corresponde a moldura penal abstracta de prisão de 3 anos a 10 anos; - aos crimes do n.º 3 do artigo 171.º corresponde a moldura penal abstracta de prisão de 30 dias a 3 anos. 3. 3. A determinação da medida das penas. Entende o MP que considerando todos os apontados fatores (contra e a favor do arguido) descritos no acórdão, não existindo diferenças assinaláveis entre si, será adequado e equilibrado aplicar a pena, - de 8 (oito) meses de prisão, por cada um dos 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças agravado, na forma consumada, previstos e punidos nos termos conjugados dos artigos 14.º; 26.º; 171.º, n.º 3, alínea a); 177.º, n.º 1, alínea c) e n.º 7; 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º 2, todos do Código Penal. - de 5 (cinco) anos de prisão, por cada um dos cinco crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada, previstos e punidos nos termos conjugados dos artigos 14.º; 26.º; 171.º, n.º 2, 177.º, n.º 1, alínea c) e n.º 7; 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º 2, todos do Código Penal; - de 2 (dois) anos de prisão por cada um dos nove crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada, previstos e punidos nos termos conjugados dos artigos 14.º; 26.º; 171.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, alínea c) e n.º 7; 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º 2, do Código Penal; - de 10 anos de prisão, a título de pena única. Como vimos já, a este propósito, entende o arguido que, - os factos devem-se manter subsumidos a um crime de abuso sexual de criança em trato sucessivo; - se se entender que os factos devem se ser alterados e o mesmo condenado por 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças agravado, na forma consumada, previstos e punidos nos termos conjugados dos artigos 14.º; 26.º; 171.º, n.º 3, alínea a); 177.º, n.º 1, alínea c) e n.º 7; 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º 2, todos do Código Penal; 5 (cinco) crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada, previstos e punidos nos termos conjugados dos artigos 14.º; 26.º; 171.º, n.º 2, 177.º, n.º 1, alínea c) e n.º 7; 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º 2, todos do Código Penal; 9 (nove) crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada, previstos e punidos nos termos conjugados dos artigos 14.º; 26.º; 171.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, alínea c) e n.º 7; 69.º - B, n.º 2 e 69.º - C, n. º2, do Código Penal, - sempre a pugnada pena única de 10 (dez) anos de prisão, peca por excesso; - bem como, de resto, a pena aplicada de 7 anos e 6 meses de prisão; - devendo ser punido, em qualquer dos casos, numa pena única nunca superior a 5 anos de prisão e, suspensa na sua execução sujeita a regime de prova e sujeição do arguido a acompanhamento psiquiátrico ou psicológico. 3. 3. 1. A fundamentação da decisão recorrida. A propósito da operação de determinação da medida da pena, para se concluir como adequada, necessária e proporcional à gravidade dos factos e à culpa evidenciada, a aplicação ao arguido, a pena de 7 anos e 6 meses de prisão, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, em trato sucessivo, p. e p. pelos artigos 171.º/2 e 177.º/1 alínea b) CPenal, expendeu-se na decisão recorrida pela forma seguinte: “(…) No caminho da concretização da pena a aplicar tomar-se-ão, pois, em conta os critérios consignados no citado artigo 71º do Cód. Penal e, assim a culpa do agente, as necessidades de prevenção e todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele. Debruçando-nos agora sobre o caso dos autos, dir-se-á que procede, para o fim a alcançar neste ponto, o condicionalismo que neles já foi apontado como demonstrado. O dolo evidenciado pelo arguido foi direto no que toca a todos os atos praticados. No que respeita à execução do facto, e desconsiderando as circunstâncias que já fazem parte dos tipos de crime ajuizados, dir-se-á que os crimes de abuso sexual de crianças agravado revelam uma elevada ilicitude, sobretudo no caso em que vitimaram o ofendido BB, em face dos atos sexuais que resultaram apurados, o período de tempo por que perduraram e a tenra idade deste. Os atos praticados pelo arguido foram, sem sombra de dúvida, suficientes para prejudicar o desenvolvimento da personalidade das vítimas e para lhes causar danos irreparáveis de resto, tais atos causam óbvia repugnância e revelam uma personalidade malformada que ofende, em elevado grau, os sentimentos gerais de pudor sexual. Enfim, o arguido revela uma propensão para procurar satisfação sexual com menores, que importa desmotivar. Há que ponderar também as exigências de prevenção, sendo prementes as de prevenção geral, atenta a objetiva gravidade jurídica dos crimes em presença e a necessidade de defesa da sociedade perante tal prática. Crimes desta natureza constituem, na atualidade, fruto da mediatização veiculada pelos meios de comunicação social de situações similares, uma crescente preocupação social uma vez que a sociedade se mostra hoje consciencializada da problemática que envolvem e assume quanto a eles uma firme atitude crítica, de rejeição e de repúdio. Mais ainda, crimes sexuais que colocam em causa a liberdade e a autodeterminação sexual das vítimas, geram um sentimento de grande repugnância social perante quem os comete. Sem esquecer ainda que o arguido revela um passado isento de mácula criminal e bom comportamento posterior aos factos o que permite dizer que os crimes que cometeu se assumem como um ato isolado num percurso de vida até agora conforme ao direito, embora a preocupação revelada pelo arguido fosse a de ser descoberto pela família e não propriamente auto- censura pelos atos que praticou. A ponderar ainda o que resultou evidenciado quanto à sua personalidade, percurso de vida, hábitos de trabalho e integração familiar e social, de acordo com o Relatório Social a ele referente, atrás firmado e, assim, em síntese: “Com baixas qualificações académicas desenvolveu um percurso profissional na construção civil, beneficiando desde 2022 de uma pensão de invalidez. Não está vinculado a qualquer atividade que permita estruturar ou ocupar o tempo, fazendo referência a uma rede de sociabilidades restrita e a uma tendência para o isolamento e reserva pessoal. Manteve uma relação conjugal longa que terminou com o divórcio e com o estabelecimento de um relacionamento marital com a avó do ofendido. Os factos de que vem acusado motivaram a rutura desta relação, tendo AA reintegrado o antigo agregado familiar. Faz referência a um retomar da relação de intimidade com o ex-cônjuge, assumindo não ter partilhado com esta nem com os filhos de ambos, maiores de idade, a presente situação. (…)”. 3. 3. 2. 1. As penas parcelares. Dispõe o artigo 40.°/1 CPenal que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. E o n.° 2, que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. Esta norma condensa em três proposições fundamentais o programa político criminal sobre a função e os fins das penas: protecção de bens jurídicos e socialização do agente do crime, senda a culpa o limita da pena mas não seu fundamento. O modelo do Código Penal é, pois, de prevenção, em que a pena é determinada pela necessidade de protecção de bens jurídicos e não de retribuição da culpa e do facto. A fórmula do artigo 40° CPenal determina, por isso, que os critérios do artigo 71.° CPenal e os diversos elementos de construção da medida da pena que prevê sejam interpretados e aplicados em correspondência com o programa assumido na disposição sobre as finalidades da punição. O modelo de prevenção - porque de protecção de bens jurídicos - determina, assim, que a pena deva ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva e que seja definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa. O conceito de prevenção significa protecção de bens jurídicos pela tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e reforço) da validade da norma violada, cfr. Professor Figueiredo Dias, "Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime", 227 e ss. A medida da prevenção, que não pode em nenhuma circunstância ser ultrapassada, está, assim, na moldura penal correspondente ao crime. Dentro desta medida (protecção óptima e protecção mínima - limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa. A finalidade de reintegração do agente na sociedade há-de ser, em cada caso, prosseguida pela imposição de uma pena cuja espécie e medida, determinada por critérios derivados das exigências de prevenção especial, se mostre adequada e seja exigida pelas necessidades de ressocialização do agente, ou pela intensidade da advertência que se revele suficiente para realizar tais finalidades. Nesta dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do artigo 71.° CPenal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena. Tais elementos e critérios devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente. As exigências de prevenção geral, no caso do crime de abuso sexual de crianças, são acentuadas, por um lado pela frequência inusitada e assustadora com que ocorrem e, por outro, pela necessidade comunitariamente sentida de preservar os valores da liberdade na autodeterminação sexual. A medida de prevenção deve ser essencialmente determinada pela projecção da ilicitude dos factos. Há que ressaltar o facto de os crimes de abuso sexual de crianças visarem a protecção do desenvolvimento sexual das crianças, preservando-as de um envolvimento prematuro, precipitado, precoce em atividades sexuais e, por essa via, impedir a existência de qualquer prejuízo no seu livre crescimento, amadurecimento da personalidade do menor. Porém, não obstante as exigências de prevenção, não podem ser desconsiderados, em necessária concordância de objectivos, outros elementos, como as necessidades de prevenção especial, e especialmente, pelo lado do agente, a carência de pena em face das circunstâncias do caso, nomeadamente a idade do agente, as perspectivas de recomposição para os valores e a distância temporal entre os factos e aplicação a pena. No caso concreto há que ter presente todas as circunstâncias já ponderadas na decisão recorrida, - o dolo evidenciado pelo arguido foi direto no que toca a todos os actos praticados; - a elevada ilicitude dos factos, traduzida no período de tempo por que perduraram e a tenra idade do ofendido; - a sua personalidade, percurso de vida, hábitos de trabalho e integração familiar e social - com baixas qualificações académicas desenvolveu um percurso profissional na construção civil, beneficiando desde 2022 de uma pensão de invalidez. Não está vinculado a qualquer atividade que permita estruturar ou ocupar o tempo, fazendo referência a uma rede de sociabilidades restrita e a uma tendência para o isolamento e reserva pessoal; - manteve uma relação conjugal longa que terminou com o divórcio e com o estabelecimento de um relacionamento marital com a avó do ofendido; - os factos de que vem acusado motivaram a rutura desta relação, tendo reintegrado o antigo agregado familiar; - o facto de arguido revelar um passado isento de mácula criminal e bom comportamento posterior aos factos; - faz referência a um retomar da relação de intimidade com o ex-cônjuge, assumindo não ter partilhado com esta nem com os filhos de ambos, maiores de idade, a presente situação. Atento todo o exposto e tendo presente as assinaladas molduras penais abstractas, de prisão de 3 anos a 10 anos e de prisão de 30 dias a 3 anos, julgamos adequadas ao caso concreto as seguintes penas parcelares: - por cada um dos 5 crimes do n.º 2, 5 anos de prisão; - por cada um dos 8 crimes do n.º 3, 1 ano de prisão. A operação de determinação da pena única deve ser efectuada tendo presente os critérios definidos no artigo 77.º/1 CPenal. Com efeito. Dispõe o artigo 77.º/1 CPenal, a propósito da punição do concurso de crimes, que, “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”. E o n.º 2, dispõe que, “a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão e 900 dias, tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo, a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”. Assim sendo, no caso, a moldura penal do concurso situa-se entre os 5 anos e os 25 anos de prisão, atendendo a que a soma das 13 penas parcelares ascende 33 anos de prisão. A medida concreta da pena do concurso é determinada, tal como a das penas singulares, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, como impõem os artigos 40.º e 71.º CPenal, havendo, porém, que atender a um critério específico - a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente, nos termos do artigo 77.º/1 parte final CPenal). “À visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, na operação de determinação da pena única importa a visão de conjunto, em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detetar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente”, como se entendeu no acórdão deste Supremo Tribunal, citado pelo Sr. PGA, de 21.10.2021, processo 64/15.2PBBJA-5.ª. Do que se trata agora é de ver os factos em relação uns com os outros, de modo a detetar a possível conexão e o tipo de conexão que intercede entre eles, tendo em vista a totalidade da atuação do arguido como unidade de sentido, que há-de possibilitar uma avaliação do ilícito global e a “culpa pelos factos em relação”. A punição do concurso efectivo de crimes funda as suas raízes na concepção da culpa como pressuposto da punição – não como reflexo do livre arbítrio ou decisão consciente da vontade pelo ilícito. Mas antes como censura ao agente pela não adequação da sua personalidade ao dever - ser jurídico penal. Como refere o professor Figueiredo Dias, in Liberdade, Culpa e Direito Penal, Coimbra Editora, 2.ª edição, 183/5, “(…) o substracto da culpa (…) não reside apenas nas qualidades do carácter do agente, ético-juridicamente relevantes, que se exprimem no facto, na sua totalidade todavia cindível (…). Reside sim na totalidade da personalidade do agente, ético-juridicamente relevante, que fundamenta o facto e, portanto também na liberdade pessoal e no uso que dela se fez, exteriorizadas naquilo a que chamamos a “atitude” da pessoa perante as exigências do dever ser. Daí que o juiz, ao emitir o juízo de culpa ou ao medir a pena, não possa furtar-se a uma compreensão da personalidade do delinquente, a fim de determinar o seu desvalor ético-jurídico e a sua desconformação em face da personalidade suposta pela ordem jurídico-penal. A medida desta desconformação constituirá a medida da censura pessoal que ao delinquente deve ser feita, e, assim, o critério essencial da medida da pena”. E, o mesmo autor, in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 420, 290/1, “estabelecida a moldura penal do concurso, a pena conjunta do concurso será encontrada em função das exigências gerais de culpa e de prevenção, fornecendo a lei, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no artigo 72.º/1 (actual 71.º/1), um critério especial: o do artigo 78.º/1 segunda parte (actual 77.º), segundo o qual na determinação concreta da pena do concurso serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, o que obriga logo a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação da medida da pena do concurso2. E, ainda, no § 421, 291/2, acentua “que na busca da pena do concurso, “tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta”. À luz das regras da experiência, a violação, pelo agente, de vários bens jurídicos de igual importância, através da mesma ou de condutas imediatamente seguidas, exprime, geralmente, pluriocasionalidade criminosa. A reiteração espaçada de idênticas ou de diferentes condutas delituosas, à mesma luz, poderá evidenciar uma tendência, persistente vontade em delinquir, ou mesmo uma carreira criminosa. Por conseguinte, a medida da pena do concurso de crimes tem de ser determinada em função desses fatores específicos, que traduzem a um outro nível a culpa do agente e as necessidades de prevenção que o caso suscita. A determinação da pena do cúmulo exige um exame crítico de ponderação conjunta sobre a interligação entre os factos e a personalidade do condenado, de molde a poder valorar-se o ilícito global. A autoria em série será factor de agravação dentro da moldura penal conjunta, enquanto a pluriocasionalidade, que não radica na personalidade, não terá esse efeito agravante. Na expressão dos acórdãos deste Supremo Tribunal de 20.2.2008, processo 4733/07 e de 8.10.2008, processo 2858/08-3.ª, na elaboração do cúmulo jurídico, o conjunto dos factos fornece a imagem global do facto, o grau de contrariedade à lei, a grandeza da sua ilicitude e, a personalidade revela-nos se o facto global exprime uma tendência, ou mesmo uma “carreira”, criminosa ou uma simples pluriocasionalidade. Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, como se o conjunto de crimes em concurso se ficcionasse como um todo único, unificado, globalizado, que deve ter em conta a existência ou não de ligações ou conexões e o tipo de ligação ou conexão que se verifique entre os factos em concurso. Na formação da pena conjunta é fundamental uma visão e valoração completa da pessoa do autor e das diversas penas parcelares de modo a que a pena global reflicta a personalidade do autor, o conjunto dos factos e a interacção destes com aquela. E nesta apreciação, avaliação e ponderação assume especial importância a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente - exigências de prevenção especial de socialização – tendo presente as mais variadas circunstâncias, vg. o arco temporal por que se prolongou a atividade criminosa; a natureza, diversidade e gravidades dos vários crimes; o número de vítimas, a motivação do agente; a intensidade da actuação criminosa; o grau de adesão ao crime como modo de vida e as expetativas quanto ao seu futuro comportamento. Por outro lado, na pena única há que ter presentes os princípios da proporcionalidade, da adequação e proibição do excesso, levando, sempre em consideração os critérios gerais da determinação da medida da pena contidos no artigo 71.º – exigências gerais de culpa e prevenção – em conjugação com a proclamação de princípios ínsita no artigo 40.º - a necessidade de tutela dos bens jurídicos violados e as finalidades das penas. “E, aqui as finalidades exclusivamente preventivas da protecção de bens jurídicos – prevenção geral positiva ou de integração – e da reintegração do agente na sociedade – prevenção especial positiva ou de socialização – devem coexistir e combinar-se da melhor forma e até ao limite possível, na pena única, porque umas e outras se encontram no propósito comum de prevenir a prática de crimes futuros. Finalidades, estas, que a par da culpa, tendo já intervindo, no momento anterior de determinação da medida das penas parcelares, operam aqui por referência ao conjunto dos factos e à apreciação geral da personalidade, o que não se confunde com a ponderação das circunstâncias efetuada relativamente a cada crime, que é necessariamente parcelar - e não envolve, por isso, violação do princípio da dupla valoração”, cfr, citado acórdão deste Supremo Tribunal de 21.10.2021. Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de 10.9.2009, processo 26/05.8SOLSB-A.S1-5.ª, “a pena conjunta situar-se-á até onde a empurrar o efeito “expansivo” sobre a parcelar mais grave, das outras penas, e um efeito “repulsivo” que se faz sentir a partir do limite da soma aritmética de todas as penas. Ora, esse efeito “repulsivo” prende-se necessariamente com uma preocupação de proporcionalidade, que surge como variante com alguma autonomia, em relação aos critérios da “imagem global do ilícito” e da personalidade do arguido. Proporcionalidade entre o peso relativo de cada parcelar, em relação ao conjunto de todas elas”. “Se a pena parcelar é uma entre muitas outras semelhantes, o peso relativo do crime que traduz é diminuto em relação ao ilícito global, e portanto, só uma fracção menor dessa pena parcelar deverá contar para a pena conjunta”, cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 23.9.2009, processo 210/05.4GEPNF.S2-5.ª. É aqui que deve continuar a aflorar uma abordagem diferente da pequena e média criminalidade, face à grande criminalidade, para efeitos de determinação da pena conjunta, e que se traduzirá, na prática, no acrescentamento à parcelar mais grave de uma fracção menor das outras. Como se menciona no acórdão deste Supremo Tribunal de 21.6.2012, processo n.º 38/08.0GASLV.S1, “numa situação de concurso entre uma pena de grande gravidade e diversas penas de média e curta duração, este conjunto de penas tem de ser objecto de uma especial compressão para evitar uma pena excessiva e garantir uma proporcionalidade entre penas que correspondem a crimes de gravidade muito díspar; doutro modo, corre-se o risco de facilmente se poder atingir a pena máxima, a qual deverá ser reservada para as situações de concurso de várias penas muito graves”. Regressando ao caso concreto Como se referiu, a moldura penal do concurso situa-se entre 5 e os 25 anos de prisão. A pena conjunta visa corresponder ao sancionamento de um determinado trecho de vida do arguido, de cerca de 5 anos, visando 13 crimes de abuso sexual em relação ao mesmo ofendido, neto da sua companheira, na ocasião, entre os seus 7 e 12 anos de idade. Há que valorar o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a sua relacionação com a personalidade revelada pelo arguido. Na determinação da pena conjunta impõe-se fazer uma nova reflexão sobre os factos em conjunto com a personalidade do arguido, em ordem a adequar a medida da pena à personalidade, nos factos, revelada, de onde ressalta, sem margem para dúvida a apetência, a propensão demonstrada para abusar sexualmente da criança, que era, então, o neto da sua companheira. Importa ter em conta a natureza e a igualdade dos bens jurídicos tutelados, ou seja, aqui, a dimensão e a intensidade da repetida lesão do mesmo bem jurídico na actuação global do arguido. A evidenciar uma indesmentível tendência criminosa. A pena serve “finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial, assumindo a culpa um papel meramente limitador da pena”. Dentro da moldura penal do concurso, o limite mínimo inultrapassável da dosimetria da pena concreta é dado pela necessidade de tutela dos bens jurídicos violados ou, na expressão de J. Figueiredo Dias, “do quantum da pena imprescindível, também no caso concreto, à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias”, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 242. As exigências de prevenção geral podem variar em função do tipo de crime e variam as necessidades de prevenção especial de socialização em razão das circunstâncias do concreto agente e da personalidade que revela no cometimento dos factos. A prevenção especial de socialização pode, sem interferir naqueles limites, fazer oscilar o quantum da pena no sentido de se aproximar de um dos limites. Se as necessidades de prevenção geral são elevadas, as necessidades de prevenção especial já não se revelam particularmente prementes, resultando que estas empurram a medida da pena para o mínimo consentido pela culpa posta na execução da panóplia de crimes aqui em causa. A pena única visa corresponder ao sancionamento de um determinado trecho de vida do arguido condenado por pluralidade de infracções. É evidente a conexão e estreita ligação entre todos os 13 crimes de abuso sexual de criança, consubstanciados em condutas homótropas, com afinidades e pontos de contacto entre todas elas. O conjunto de ilícitos traduz-se em condutas violadoras da liberdade de autodeterminação sexual, do direito do menor a um desenvolvimento físico e psíquico harmonioso. As circunstâncias do caso apresentam um acentuado grau de ilicitude global, manifestado no número, na natureza e gravidade doa crimes praticados, nos bens jurídicos violados na área dos direitos de personalidade do menor abusado. Os actos praticados pelo arguido, ao longo de cerca de 5 anos, foram, sem sombra de dúvida, suficientes para prejudicar o desenvolvimento da personalidade do ofendido e para lhe causar danos irreparáveis. Actos que, objectivamente, causam óbvia repugnância e revelam uma personalidade malformada que ofende, em elevado grau, os sentimentos gerais de pudor sexual. O que não permite afirmar que os 13 crimes, pelo menos – recorde-se- que cometeu, ao longo de cerca de 5 anos, se traduzam num acto isolado. Apenas e, não é pouco, que ilustram um percurso numa fase, delimitada, no tempo, da sua vida de vida, ainda que em dimensão não desprezível. Estando em causa 13 crimes de abuso sexual de crianças, agravado, levados a cabo quando o menor tinha entre 7 e 12 anos de idade, todos com acentuada gravidade, indiciando-se uma absoluta e indesmentível, propensão ou inclinação criminosa, valorando o ilícito global perpetrado, considera-se como adequada e proporcional a fixação da pena única em 12 anos de prisão. 3. 3. 3. 1. Atentemos no que a este propósito consta da decisão recorrida. “À luz do que dispõe o artigo 69º-B/2 CPenal, é condenado na proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período fixado entre cinco e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, quando a vítima seja menor. Já de acordo com o artigo 69º-C/2 do mesmo Código, será condenado na proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período fixado entre cinco e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, quando a vítima seja menor. A aplicação destas medidas, que visam a redução ou eliminação de práticas sexuais sobre potenciais vítimas, foi aqui requerida pelo Ministério Público. Essa aplicação, de resto, configura uma verdadeira imposição legal, não dependendo, nos aludidos casos, como o é o presente, da apreciação do julgador. Assim, considerando o factualismo aqui apurado, a personalidade evidenciada pelo arguido e as necessidades cautelares em presença, feita a devida ponderação, entendemos ser de fixar cada uma de tais penas acessórias, que aqui se decretam, pelo período de 5 anos, correspondente ao mínimo legal”. Como vimos, o arguido vem condenado por crimes do n.º 2 do artigo 171.º e do n.º 3 alínea a) do mesmo artigo, em ambos os casos, agravados pela alínea b) do n.º 1 do artigo 177.º. CPenal, a que corresponde, respectivamente, a moldura penal abstracta de prisão de 4 anos a 13 anos e 4 meses e de 40 dias a 4 anos. Sobre a precisa e concreta questão da proporcionalidade entre as molduras penais abstractas da pena principal e das penas acessórias, já o Tribunal Constitucional foi chamado a pronunciar-se. E fê-lo por diversas ocasiões. Assim. No acórdão 688/2024 do Tribunal Constitucional, de 9.10.2024, decidiu-se, “a) julgar inconstitucional a norma do artigo 69.º-B/2 CPenal (na redação conferida pela Lei 103/2015, de 24 de agosto) no segmento normativo em que determina a obrigatoriedade de aplicação da pena acessória com limite mínimo de cinco anos para a proibição, em caso de punição pela prática de crime de abuso sexual de menores dependentes, p. p. pelos artigos 172.º/2 e 171.º/3 alínea b), ou de importunação, p. p. pelo artigo 170.º CPenal (na redação conferida pela Lei 103/2015, de 24 de agosto); b) julgar inconstitucional a norma do artigo 69.º-C/2 C Penal (na redação conferida pela Lei 103/2015, de 24 de agosto) no segmento normativo em que determina a obrigatoriedade de aplicação da pena acessória com limite mínimo de cinco anos para a proibição, em caso de punição pela prática de crime de abuso sexual de menores dependentes, p. p. pelos artigos 172.º/2 e 171.º/3 alínea b), ou de importunação, p. p. pelo artigo 170.º CPenal (na redação conferida pela Lei 103/2015, de 24 de agosto)”. De onde se retira a seguinte fundamentação: “cominando com pena de prisão até um ano a prática de crime de abuso sexual de menores dependentes, p. p. pelos artigos 172.º/2 e 171.º/3 alínea b) CPenal e de crime de importunação, p. p. pelo artigo 170.º CPenal, o legislador não estava impedido pelo artigo 30.º/4 da Constituição da República Portuguesa, de prever outras sanções – desprovidas de natureza privativa da liberdade ou de cariz patrimonial, antes se traduzindo na privação de certos direitos ou posições materiais – como consequências jurídicas das condutas tipificadas, seja exemplo as previstas nos artigos 69.º-B/2 e 69.º-C/2 CPenal. Este não é o efeito automático proibido pelo artigo 30.º/4 da Constituição, é apenas uma fórmula de punição complexa que atenderá às especificidades da prática delitual e à realização das finalidades do Direito do crime nesse domínio específico. Pois que assim é, solução legislativa não nos merece juízo de censura com este fundamento. Afastada que está a reprovação constitucional com base no artigo 30.º/4 da Lei Fundamental, porém, importa abordar o problema por outro prisma, este respeitante ao caráter intrusivo de ambas as penas em direitos, liberdades e garantias ou em outros direitos fundamentais de estrutura defensiva, artigo 17.º, que necessariamente terão de observar a pauta de proporcionalidade contida no artigo 18.º/2 e 3, da Constituição da República Portuguesa. E, assim, que, “a introdução no regime jurídico-penal de penas acessórias estatutivas da proibição do exercício de funções relacionadas com menores, artigo 69.º-B/2 CPenal e da proibição de confiança de menores e inibição de responsabilidades parentais, artigo 69.º-C/2 CPenal, como fórmulas de reação penal aos crimes de abuso sexual de menores dependentes, p. p. pelos artigos 172.º/2 e 171.º/3 alínea b) CPenl e de importunação, p. p. pelo artigo 170.º CPenal, não é proibido pela Lei Constitucional. Na verdade, o domínio de tutela em causa é extremamente sensível e legitima respostas jurídico-penais de grau de ingerência expressivo, também em função da especial vulnerabilidade dos titulares dos bens jurídicos protegidos pelos tipos incriminadores. No entanto, o modelo jurídico adotado, ao associar o caráter injuntivo de aplicação das penas a molduras legais de mínimos de proibição de cinco anos, sinaliza rotura com o princípio da proporcionalidade, artigo 18.º/2 da Constituição da República Portuguesa, isto perante o nível de intrusão que as medidas sinalizam na liberdade de escolha e de exercício de profissão, artigo 47.º/1 da Constituição da República Portuguesa), no direito ao desenvolvimento da personalidade, artigo 26.º/1 da Constituição da República Portuguesa) e no direito a constituir família , artigo 36.º/1 da Constituição da República Portuguesa) e a ampla heterogenia (em medida de lesão, censurabilidade e necessidades preventivas) das condutas incriminadas pelos tipos-de-crime em referência” Já anteriormente o Tribunal Constitucional se havia pronunciado sobre a mesma matéria, no acórdão 442/2024, de 5.6.2024, de onde se respigam os seguintes excertos: ” (…) conclui-se, pois, que as normas que estabelecem a aplicação necessária das penas acessórias — a norma do n.º 2 do artigo 69.º-B do Código Penal (na redação da Lei 103/2015, de 24 de agosto), no segmento em que estabelece a aplicação necessária da pena acessória de condenação na proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pela prática do crime previsto no n.º 1 do artigo 176.º CPenal quando a vítima seja menor; e a norma do n.º 2 do artigo 69.º-C CPenal (na redação da Lei 103/2015, de 24 de agosto), no segmento em que estabelece a aplicação necessária da pena acessória de proibição de assumir a confiança de menores, pela condenação pelo crime previsto no n.º 1 do artigo 176.º CPenal, quando a vítima seja menor — não transgridem o disposto no n.º 4 do artigo 30.º da Constituição, que proíbe os efeitos automáticos das penas. Nessa medida, importa, nesta parte, conceder provimento ao recurso e determinar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo negativo de inconstitucionalidade. (…) 12. Simplesmente, a circunstância de a Constituição não vedar ao legislador a previsão de penas acessórias a aplicar necessariamente pelo legislador pela condenação de certo crime (dentro de um limite mínimo e um limite máximo) não atesta necessariamente a conformidade constitucional de todas as normas agora em crise. A viabilidade constitucional de o legislador estabelecer a aplicação necessária de penas acessórias para determinado crime não atesta, por si só, a conformidade constitucional dos segmentos normativos que fixam a moldura mínima dessas penas — em concreto, a norma do n.º 2 do artigo 69.º-B do Código Penal (na redação da Lei 103/2015), na parte em que fixa um período mínimo de 5 anos para a pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pela condenação pelo crime previsto no n.º 1 do artigo 176.º CPenal quando a vítima seja menor; e a norma do n.º 2 do artigo 69.º-C CPenal (na redação da Lei 103/2015), na parte em que fixa um período mínimo de 5 anos para a pena acessória de proibição de assumir a confiança de menores, pela condenação pelo crime previsto no n.º 1 do artigo 176.º CPenal, quando a vítima seja menor. Com efeito, importa agora saber se tais normas transgridem o princípio da proporcionalidade, ínsito no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, na restrição à liberdade de exercício de profissão (artigo 47.º da Constituição) ou ao direito de constituir família (artigo 36.º da Constituição, que abrange outras relações familiares para além da filiação, como a adoção, o acolhimento familiar e o apadrinhamento civil, Guilherme de Oliveira, Manual de Direito da Família, 2.ª edição, Almedina, 2021, 47 e 57; e Jorge Duarte Pinheiro, O direito da família contemporâneo, 5.ª edição, Gestlegal, 2023, 83. A Constituição não é indiferente à restrição de direitos fundamentais em consequência da condenação de determinado crime, que depende dos pressupostos constitucionais de restrição dos direitos afetados. O que, aliás, o Tribunal Constitucional tem dito expressamente, apreciando a bondade constitucional de efeitos associados à condenação por certo crime à luz da proporcionalidade da restrição do direito em causa — sobretudo quando a condenação criminal constitua um pressuposto negativo que impede a aquisição ou manutenção de certo direito, cfr. Acórdãos 176/2000, 202/2000, 311/2012, 106/2016, 331/2016, 376/2018. Nessa medida, estabelecendo o legislador a obrigatoriedade de, sempre que o agente seja condenado pelos crimes previstos nos artigos 163.º a 176.º-A e a vítima seja menor, o juiz aplicar as duas penas acessórias ora analisadas por um mínimo de 5 anos, importa saber se tais normas cumprem o princípio da proporcionalidade das restrições. A ponto de, face a uma moldura tão elevada (de 5 a 20 anos), se poder “recear que tais limites sejam significativos de uma utilização destas sanções que já não se enquadre propriamente na sua justificação político-criminal, parecendo resvalar antes para o âmbito dos indesejáveis efeitos estigmatizantes das penas”, cfr. Maria João Antunes, “Penas acessórias…”, cit., 79. 12.1. No n.º 2 do artigo 69.º-B e no n.º 2 do artigo 69.º-C CPenal, preveem-se penas acessórias cujo limite mínimo (5 anos) é superior ao limite mínimo das penas principais aplicáveis nos vários crimes que lhe dão causa (um mês de prisão nos crimes de fraude sexual, de importunação sexual, de atos sexuais com adolescentes, de recurso à prostituição de menores, de pornografia de menores (considerando a redação dada pela Lei 103/2015, de 24 de agosto) e de aliciamento de menores para fins sexuais; seis meses de prisão para os crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, de abuso sexual de pessoa internada; 1 ano de prisão, para os crimes de coação sexual (considerando a redação dada pela Lei 83/2015, de 05 de agosto), de procriação artificial não consentida, de abuso sexual de crianças, de abuso sexual de menores dependentes e de lenocínio de menores; 3 anos de prisão para o crime de violação (considerando a redação dada pela Lei 83/2015, de 05 de agosto). Nas normas especificamente sob fiscalização nos presentes autos — que fixam um período mínimo de 5 anos para as penas acessórias em causa a quem for punido pelo crime previsto no n.º 1 do artigo 176.º CPenal — a pena principal tem um limite mínimo de 1 ano e um limite máximo de 5 anos de prisão. Isto é, a duração mínima das penas acessórias estatuída pelas normas fiscalizadas é equivalente à duração máxima da pena principal. (…) Um juízo de censura constitucional às normas ora fiscalizadas depende da conclusão de que o limite mínimo de 5 anos é manifesta e claramente excessivo (Acórdão 145/2021), por atenção ao valor a proteger. (…) As penas acessórias de proibição de exercer profissões que envolvam o contacto com crianças e de proibição de assumir a confiança de crianças fazem parte das consequências jurídicas para os crimes previstos nos artigos 163.º a 176.º-A quando a vítima seja menor. Têm por finalidade o fortalecimento da reação do ordenamento jurídico à prática daqueles factos ilícitos e culposos e o reforço da reafirmação contrafáctica das expectativas comunitárias na manutenção da validade e vigência das normas violadas, satisfazendo, em particular, necessidades preventivas — gerais e especiais —, realizando um interesse público imediatamente em causa. Exercem, pois, uma função preventiva coadjuvante da pena principal ou de substituição aplicada, cfr. Maria João Antunes, “Anotação ao artigo 179.º”, cit., 901; Acórdão 143/1995. Nos presentes autos, está em causa a norma segundo a qual aquela pena é aplicada por um período mínimo de 5 anos, quando seja praticado, contra menor, o crime previsto no n.º 1 do artigo 176.º CPenal — que pune quem “a) Utilizar menor em espetáculo pornográfico ou o aliciar para esse fim; b) Utilizar menor em fotografia, filme ou gravação pornográficos, independentemente do seu suporte, ou o aliciar para esse fim; c) Produzir, distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder, a qualquer título ou por qualquer meio, os materiais previstos na alínea anterior; D) Adquirir ou detiver materiais previstos na alínea b) com o propósito de os distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder”. Ora, tendo em conta o exposto sobre as exigências de proporcionalidade das reações punitivas, a fixação de um limite mínimo de 5 anos destas penas por quem tiver sido condenado pelo crime previsto no n.º 1 do artigo 176.º CPenal revela-se manifestamente desproporcionada. (…) De resto, a manifesta desproporcionalidade pode ser mensurada por confronto com outras penas acessórias. Não existe, ao longo de todo o Código Penal, qualquer outra pena acessória com semelhante imposição de limite mínimo: a pena acessória de proibição de exercício de funções públicas é fixada entre 2 e 5 anos (artigo 66.º); a proibição de conduzir veículos a motor é fixada entre 3 meses e 3 anos (artigo 69.º); a proibição de contacto com a vítima de violência doméstica é determinada entre 6 meses e 5 anos (artigo 152.º); a proibição de contacto com a vítima de perseguição é determinada entre 6 meses e 3 anos (artigo 154.º-A); a pena acessória de inelegibilidade é fixada entre 2 anos e 10 anos (artigo 346.º); a privação do direito a deter animais de companhia não tem limite mínimo e tem um limite máximo de 3 anos (artigo 388.º-A). O mesmo é dizer que o limite mínimo aqui fiscalizado constitui reação sancionatória manifestamente excessiva: a fixação de uma pena acessória por um período mínimo de 5 anos pode implicar a sua determinação concreta acima do limite da culpa e sem proporção à gravidade da infração”. E, assim se concluiu que, “as normas fiscalizadas, ao estatuírem um período mínimo de 5 anos para as penas acessórias, são violadoras do disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, na restrição que operam à liberdade de escolha da profissão (artigo 47.º da Constituição) e ao direito a constituir família (artigo 36.º da Constituição)” e se decidiu: “não julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 69.º-B do Código Penal (na redação da Lei 103/2015, de 24 de agosto), no segmento em que estabelece a aplicação necessária da pena acessória de condenação na proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pela prática do crime previsto no n.º 1 do artigo 176.º CPenal quando a vítima seja menor; b) Julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 69.º-B CPenal (na redação da Lei 103/2015, de 24 de agosto), na parte em que fixa um período mínimo de 5 anos para a pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pela condenação pelo crime previsto no n.º 1 do artigo 176.º CPenal quando a vítima seja menor; c) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 69.º-C CPenal (na redação da Lei 103/2015, de 24 de agosto), no segmento em que estabelece a aplicação necessária da pena acessória de proibição de assumir a confiança de menores, pela condenação pelo crime previsto no n.º 1 do artigo 176.º CPenal, quando a vítima seja menor; e d) Julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 69.º-C CPenal (na redação da Lei 103/2015, de 24 de agosto), na parte em que fixa um período mínimo de 5 anos para a pena acessória de proibição de assumir a confiança de menores, pela condenação pelo crime previsto no n.º 1 do artigo 176.º CPenal, quando a vítima seja menor; e, em consequência”. Neste acórdão consta a declaração de voto do Relator que, aqui se transcreve, pela manifesta importância e relevo das questões que aí se suscitam: “apesar de ter relatado o presente Acórdão, discordo profundamente dos termos em que foi delimitado o objeto do recurso (pontos 6.1 e 6.3. da fundamentação) e da consequente exclusão do juízo de inconstitucionalidade dos segmentos normativos que determinam a condenação necessária nestas penas acessórias. Segundo creio, as normas que o tribunal a quo recusou aplicar (e sobre que deveria ter incidido o recurso de constitucionalidade) são as regras do n.º 2 do artigo 69.º-B e do n.º 2 do artigo 69.º-C CPenal, na redação da Lei 103/2015, que estabelecem a aplicação necessária das penas por um período mínimo de 5 anos. Na decisão recorrida, considerou-se “desproporcional (quanto [a]o limite mínimo fixado) a aplicação das penas acessórias previstas nos aludidos artigos 69º-B, n.º 2 e 69º C, n.º 2 CPenal” (fls. 24) e, em consequência, não se condenou o arguido em qualquer pena acessória. Nessa medida, o pressuposto lógico da não condenação do arguido nas penas acessórias foi o afastamento das normas que estabelecem a sua condenação necessária por um mínimo de 5 anos. Normas essas que são inconstitucionais, não podendo ser aplicadas. Não por preverem um efeito automático das penas (ponto 11. da fundamentação); mas pela desproporcionalidade da sua aplicação necessária por um limite mínimo de 5 anos (pontos 12. a 14. da fundamentação). 2. Em divergência com este entendimento, a maioria decidiu dividir as normas em causa em dois distintos segmentos: por um lado, o que determina a condenação necessária nas penas; por outro, o que fixa o limite mínimo da moldura penal. Ora, perante uma tal autonomização, o diferente juízo de inconstitucionalidade dos segmentos desagregados implica a reforma a decisão recorrida. Isto é, caso o tribunal a quo continue a entender que a versão aplicável aos autos é a da Lei 103/2015 (tendo em conta que a redação atual dos artigos 69.º-B, n.º 2, e 69.º-B, n.º 2 CPenal não mais determina a condenação necessária nas penas acessórias, sendo por isso mais favorável ao arguido), fica compelido a aplicar a parte da norma segundo a qual o tribunal é obrigado a condenar o arguido nas penas acessórias; embora não disponha de limite mínimo da moldura penal (que foi julgado inconstitucional). Esta opção suscita-me as mais sérias objeções. Em primeiro lugar, por, em meu juízo, se dissecar artificialmente a norma cuja aplicação foi recusada para, ao estilo de um tribunal de revista, se procurar modificar a solução do caso concreto. Em segundo lugar, por, a partir da conclusão de que a previsão de condenação obrigatória em penas acessórias não transgride a proibição constitucional de efeitos automáticos das penas, se inferir que o segmento que isoladamente postula a necessidade de condenação é constitucionalmente conforme. Por fim, e sobretudo, por se concluir pela viabilidade de o tribunal a quo aplicar o segmento segundo o qual o arguido é necessariamente condenado em penas acessórias julgadas inconstitucionais quanto ao limite mínimo da moldura penal. Sugerindo-se, porventura, que o tribunal criminal recorresse ao limite mínimo da pena acessória estatuída no n.º 1 do artigo 69.º-B CPenal (ponto 6.1. da fundamentação). Ora, sendo a norma penal inconstitucional (por força da sua desproporcionalidade), não creio ser possível aplicar-se o segmento segundo o qual o tribunal é obrigado a condenar o arguido nas penas acessórias ali previstas (i); nem que possa o tribunal criminal assumir o ónus de procurar relação ou analogia com outra sanção acessória, criando uma nova moldura penal (ii); nem que seja legítimo combinar o limite mínimo da moldura contida em outro preceito com o limite máximo dos n.ºs 2 dos artigos 69.º-B e 69.º-C CPenal (iii). 3. Diferentemente, e tal como concluiu o tribunal a quo, perante a inconstitucionalidade da moldura penal, impunha-se recusar a aplicação das normas dos n.ºs 2 dos artigos 69.º-B e 69.º-C CPenal, na redação da Lei 103/2015, que estabelecem a condenação necessária nas penas acessórias por um período mínimo de 5 anos. São estas as normas que, em meu juízo — e como constava do projeto de decisão que apresentei — deveriam ter sido objeto do recurso e que, como a fundamentação deste Acórdão confirma, são inconstitucionais”. E, no acórdão 641/2024, de 25.9.2024, onde se decidiu, “a) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 69.º-B CPenal, na redação dada pela Lei 103/2015, de 24 de agosto, no segmento em que estabelece a aplicação necessária da pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pela condenação pelo crime de pornografia de menores previsto no artigo 176.º, n.º 1, alínea c) CPenal, agravado nos termos do 177.º, n.º 7, do mesmo Código, na redação conferida pela Lei 40/2020; b) Julgar inconstitucional, por violação dos artigos 18.º/ 2 e 47.º/1 da Constituição, a norma do n.º 2 do artigo 69.º-B CPenal, na redação dada pela Lei 103/2015, de 24 de agosto, na parte em que fixa um período mínimo de 5 anos para a pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pela condenação pelo crime de pornografia de menores previsto no artigo 176.º/1 alínea c) CPenal, agravado nos termos do 177.º/7 do mesmo Código, na redação conferida pela Lei 40/2020”. E, voltou a fazê-lo no acórdão 706/2024 de 10.10.2024, entendendo “manter por isso a conclusão a que se chegou no Acórdão 442/2024, reiterada e secundada pelo Acórdão 641/2024, segundo a qual “a fixação de uma pena acessória por um período mínimo de 5 anos pode implicar a sua determinação concreta acima do limite da culpa e sem proporção à gravidade da infração”, violando assim o «disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, na restrição que opera […] à liberdade de escolha da profissão (artigo 47.º da Constituição) e ao «direito a constituir família (artigo 36.º da Constituição)”. E se decidiu, “a) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 69.º-B CPenal, na redação dada pela Lei 103/2015, de 24 de agosto, no segmento em que estabelece a aplicação necessária da pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pela condenação pelo crime de pornografia de menores previsto no artigo 176.º/5 CPenal, na redação conferida pela Lei 40/2020; b) Julgar inconstitucional, por violação dos artigos 18.º/2 e 47.º/1 da Constituição, a norma do n.º 2 do artigo 69.º-B CPenal, na redação dada pela Lei 103/2015, de 24 de agosto, na parte em que fixa um período mínimo de 5 anos para a pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pela condenação pelo crime de pornografia de menores previsto no artigo 176.º/5 CPenal, na redação conferida pela Lei 40/2020; c) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 69.º-C CPenal, na redação da Lei 103/2015, de 24 de agosto, no segmento em que estabelece a aplicação necessária da pena acessória de proibição de assumir a confiança de menores, pela condenação pelo crime previsto no n.º 5 do artigo 176.º CPenal, na redação conferida pela Lei 40/2020; e d) Julgar inconstitucional, por violação dos artigos 18.º/ 2, 36.º e 47.º/1 da Constituição, a norma do n.º 2 do artigo 69.º-C CPenal, na redação da Lei 103/2015, de 24 de agosto, na parte em que fixa um período mínimo de 5 anos para a pena acessória de proibição de assumir a confiança de menores, pela condenação pelo crime de pornografia de menores previsto no artigo 176.º/5 CPenal, na redação conferida pela Lei 40/2020”. E, posteriormente no acórdão 757/2024 de 23.10.2024, onde entendendo-se estar perante uma situação em tudo semelhante àquela que foi já apreciada e decidida pelo Tribunal Constitucional no acórdão 688/2024 (retificado pelo Acórdão 755/2024), não apresentando o caso sub judice particularidades de relevo em relação àquele que foi apreciado no Acórdão citado, nem qualquer outra razão que justifique apreciação diversa da que ali foi adotada, pelo que se impunha reiterar o juízo de inconstitucionalidade e, assim se decidiu, “a) Julgar inconstitucional a norma do artigo 69.º-B/2 CPenal no segmento normativo em que determina a obrigatoriedade de aplicação da pena acessória com limite mínimo de cinco anos para a proibição, em caso de punição pela prática de crime de importunação sexual, p. p. pelo artigo 170.º CPenal; b) Julgar inconstitucional a norma do artigo 69.º-C/2 CPenal no segmento normativo em que determina a obrigatoriedade de aplicação da pena acessória com limite mínimo de cinco anos para a proibição, em caso de punição pela prática de crime de importunação sexual, p. p. pelo artigo 170.º CPenal”. E ainda no acórdão 109/25 de 5.2, onde se entendeu que, “(…) a jurisprudência introduzida pelo Acórdão do TC 688/2024 que vimos citando posiciona-se pela compaginação constitucional de um quadro jurídico-penal que, como fórmula de reação a práticas de abuso sexual de menores dependentes ou de importunação, preveja penas acessórias, adjuvantes face à pena de prisão ou multa, que se traduzam na proibição do exercício de certo tipo de funções especialmente relacionadas com menores (artigo 69.º-B/2 CPenal) e/ou na interdição de confiança de menores e de exercício de responsabilidades parentais (artigo 69.º-C/2 CPenal). O modelo adotado nas normas sindicadas, porém, impondo a aplicação obrigatória das sanções através da sujeição do agente a períodos de interdição nunca inferiores a cinco anos, corporiza um nível de intrusão excessivo nos direitos fundamentais restringidos pelas normas punitivas (liberdade de escolha e de exercício de profissão, direito ao desenvolvimento da personalidade e direito a constituir família), isto quando se considere a grande amplitude e inerente diversidade dos registos de ilicitude e censurabilidade das condutas abarcadas pelos tipos-de-crime em referência e, bem assim, das necessidades preventivas passíveis de sinalização em cada caso. O regime é, portanto, excessivamente intrusivo por via da amplitude maximizada do seu perímetro de aplicabilidade, aí residindo o vício de inconstitucionalidade material. Este entendimento veio a ser reiterado no Acórdão do TC 757/2024 e parece também compatível com a doutrina perfilhada nos Acórdãos do TC 442/2024 e 642/2024. Sujeitando a fiscalização às mesmas normas, esta parte da jurisprudência cindiu o objeto da sindicância, julgando não-inconstitucional a obrigatoriedade de aplicação das penas acessórias, mas considerando que os artigos 69.º-B/2 e 69.º-C/2 CPenal, quando determinam um período mínimo de cinco anos de sujeição do agente às proibições estatuídas nos programas normativos sindicados, constituem intrusões desproporcionais nos direitos à liberdade de profissão e a constituir família. Parece, portanto, que se trata de decisões genericamente convergentes com as conclusões alcançadas no Acórdão do TC 688/2024 e que reforçam o seu estatuto enquanto corrente jurisprudencial: muito embora a Lei Fundamental comporte a introdução de um regime punitivo acessório por crimes sexuais que compreenda a tipologia de interdições em causa, os termos do sancionamento definidos nas normas fiscalizadas rompem com a parametrização constitucional. 7. Pois bem, estas considerações merecem inteira aplicação quando se tenha por referência o crime de pornografia de menores, p. p. pelo artigo 176.º/1 alínea c) CPenal, que se coloca nestes autos e que caracteriza o objeto da fiscalização. Também esta infração criminal tem por bem jurídico tutelado a liberdade de desenvolvimento da personalidade na sua dimensão sexual, protegendo a integridade do contexto em que o desenvolvimento da criança ou jovem se opera, por sobre o pressuposto que o confronto com campos circunstanciais de cariz sexual sem que exista um mínimo de resistência emocional e maturidade é apto a comprometer a estabilidade e saúde psicológica do indivíduo em fase de evolução, com violentas e possivelmente irreversíveis repercussões na sua integridade psico-afectiva, cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 1999, Coimbra Editora, 541-542 e, em especial, 544. À semelhança do crime de abuso sexual de menores ou de importunação a que se dedica o Acórdão do TC 688/2024, a descrita função de tutela seria passível de legitimar a introdução no Direito ordinário de uma reação penal à infração de estrutura dualista, estabelecendo sanções adjuvantes à pena principal proibitivas do exercício de funções relacionadas com crianças e jovens ou interditivas da aquisição do vínculo de responsabilidades parentais ou de confiança de menor. O modelo adotado nos artigos 69.º-B/2 e 69.º-C/2 CPenal, porém, resulta excessivo também na dimensão que consideramos e pelos mesmos motivos. A moldura legal do delito, balizada de um a cinco anos, significa que a infração pune eventos caracterizáveis entre a média criminalidade (no limiar mais alto da moldura) e a bagatela penal (no limiar inferior): a conduta típica do artigo 176.º/1 alínea c) CPenal, pois, compreende factos cuja ressonância penal não permite ter por observada a pauta de proporcionalidade imposta pelo artigo 18.º/2 da Constituição da República Portuguesa, para a intrusão em direitos fundamentais defensivos operada pelas normas fiscalizadas, seja o caso da liberdade de escolha e de exercício de profissão, a liberdade de constituir família e o direito ao desenvolvimento da personalidade, como vimos. O caráter injuntivo de aplicação das penas acessórias, associado ao limite mínimo de período de proibição estabelecido em ambas as normas é, como sublinha a jurisprudência, excessivo, pelo que resta-nos reiterar o juízo de inconstitucionalidade material quanto às normas sob sindicância”. E, assim se decidiu, “a) Julgar inconstitucional a norma do artigo 69.º-B/2 CPenal no segmento normativo em que determina a obrigatoriedade de aplicação da pena acessória com limite mínimo de cinco anos para a proibição, em caso de punição pela prática de crime de pornografia de menores, p. p. pelo artigo 176.º/1 alínea c) CPenal, na redação conferida pela Lei 103/2015, de 24 de agosto, por violação dos artigos 26.º/1, 47.º/1 e 18.º/2 da Constituição da República Portuguesa; b) Julgar inconstitucional a norma do artigo 69.º-C/2 CPenal no segmento normativo em que determina a obrigatoriedade de aplicação da pena acessória com limite mínimo de cinco anos para a proibição, em caso de punição pela prática de crime de pornografia de menores, p. p. pelo artigo 176.º/1 alínea c) CPenal, na redação conferida pela Lei 103/2015, de 24 de agosto, por violação dos artigos 36.º/1, 26.º/1 e 18.º/2 da Constituição da República Portuguesa”. E, ainda no acórdão 117/2025 de 6.2.2025, onde se entendeu que, “não se verificando que “a gravidade do sancionamento se mostre inequívoca, patente ou manifestamente excessiva”, Acórdãos 13/1995, 99/2002 e 145/2021, não pode o Tribunal Constitucional julgar inconstitucionais os segmentos normativos que preveem um limite mínimo de 5 anos para as penas acessórias do n.º 2 do artigo 69-º-B e do n.º 2 do artigo 69.º-C CPenal na redação da Lei 103/2015, de 24 de agosto, para o crime de abuso sexual de crianças previsto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 171.º CPenal”. E, se decidiu, assim, “a) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 69.º-B CPenal, na redação da Lei 103/2015, de 24 de agosto, no segmento em que estabelece a aplicação necessária da pena acessória de condenação na proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pela prática do crime previsto no n.º 1 do artigo 176.º CPenal quando a vítima seja menor; b) Julgar inconstitucional, por violação do disposto no n.º 2 do artigo 18.º em conjugação com o artigo 47.º da Constituição, a norma do n.º 2 do artigo 69.º-B CPenal, na redação da Lei 103/2015, de 24 de agosto, na parte em que fixa a moldura de 5 anos a 20 anos para a pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pela condenação pelo crime previsto no n.º 1 do artigo 176.º CPenal quando a vítima seja menor; c) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 69.º-C CPenal, na redação da Lei 103/2015, de 24 de agosto, no segmento em que estabelece a aplicação necessária da pena acessória de proibição de assumir a confiança de menores, pela condenação pelo crime previsto no n.º 1 do artigo 176.º CPenal, quando a vítima seja menor; e d) Julgar inconstitucional, por violação do disposto no n.º 2 do artigo 18.º em conjugação com o artigo 36.º da Constituição, a norma do n.º 2 do artigo 69.º-C CPenal, na redação da Lei 103/2015, de 24 de agosto, na parte em que fixa a moldura de 5 anos a 20 anos para a pena acessória de proibição de assumir a confiança de menores, pela condenação pelo crime previsto no n.º 1 do artigo 176.º CPenal, quando a vítima seja menor; e) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 69.º-B CPenal, na redação da Lei 103/2015, de 24 de agosto, no segmento em que estabelece a aplicação necessária da pena acessória de condenação na proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pela prática do crime previsto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 171.º CPenal, quando a vítima seja menor; f) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 69.º-B CPenal, na redação da Lei 103/2015, de 24 de agosto, na parte em que fixa a moldura de 5 anos a 20 anos para a pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pela condenação pelo crime previsto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 171.º CPenal quando a vítima seja menor; g) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 69.º-C CPenal, na redação da Lei 103/2015, de 24 de agosto, no segmento em que estabelece a aplicação necessária da pena acessória de proibição de assumir a confiança de menores, pela condenação pelo crime previsto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 171.º CPenal, quando a vítima seja menor; h) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 69.º-C CPenal ,na redação da Lei 103/2015, de 24 de agosto, na parte em que fixa a moldura de 5 anos a 20 anos para a pena acessória de proibição de assumir a confiança de menores, pela condenação pelo crime previsto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 171.º CPenal, quando a vítima seja menor”. Com uma declaração de voto, subscrita por dois Conselheiros, que votaram parcialmente vencidos, nos seguintes termos: “Vencida quanto às alíneas f) e h) do dispositivo. 1. Ao contrário da posição que fez vencimento, entendo que o limite mínimo de cinco anos fixado às penas acessórias previstas nos artigos 69.º-B/2 e 69.º-C/2 CPenal, ambos na redação da Lei 103/2015, de 24 de agosto, se mantém incompatível com o n.º 2 do artigo 18.º em conjugação, no primeiro caso, com o artigo 47.º da Constituição, e, no segundo, com o artigo 36.º da Constituição, ainda que reportado à prática do crime tipificado no n.º 2 do artigo 171.º CPenal. Nos Acórdãos 442/2024, 638/2024, 651/2024, 652/2024 e 706/2024, o Tribunal julgou inconstitucional o limite mínimo de cinco anos fixado para as penas acessórias previstas nos artigos 69.º-B/2 e ou 69.º-C/2 CPenal, ambos na redação da Lei 103/2015, quando aplicável, respetivamente, aos crimes tipificados nos artigos 176.º/1, 171.º/3 alínea a), 176.º/1 alínea c), conjugado com o n.º 7 do artigo 177.º, 170.º e 176.º/5 CPenal. Em todos esses julgamentos, o Tribunal considerou que a “assunção legislativa” de que a prática de qualquer desses ilícitos “reclama uma punição por um mínimo de 5 anos com a proibição de exercício de quaisquer profissões que envolvam contacto com menores e de assumir confiança de menores revela-se manifestamente desproporcionada, por abranger situações relativamente às quais não pode verificar-se necessidade de tal pena por um período mínimo de 5 anos”. Ao contrário da maioria, não creio que o facto de estar causa o crime previsto no n.º 2 do artigo 171.º do Código Penal imponha uma conclusão de sentido inverso. 2. Em primeiro lugar, cumpre notar que nos situamos ainda no âmbito dos crimes contra a autodeterminação sexual. Se a conduta tipificada no n.º 2 do artigo 171.º CPenal for praticada por meio de violência ou ameaça grave, a conduta é subsumível no n.º 2 do artigo 164.º CPenal, com a agravação decorrente do n.º 7 do artigo 177.º do mesmo Código, na redação conferida pela Lei 40/2020, de 18 de agosto (a que corresponde o n.º 8 do referido artigo 177.º, na versão decorrente das alterações introduzidas pela Lei 15/2024, e atualmente em vigor). Em segundo lugar, cabe recordar que, ao tipificar os crimes contra a autodeterminação sexual, o legislador português, ao contrário, por exemplo, do legislador espanhol (artigo 183 bis do Código Penal espanhol), não fez uso da faculdade conferida pelo n.º 1 do artigo 8.º da Diretiva 2011/93/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, relativa à luta contra o abuso sexual e a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil, que permite aos Estados-Membros excluir a relevância criminal da conduta descrita no n.º 2 do artigo 171.º CPenal quando a mesma consista na prática de “atos sexuais consensuais entre pares próximos de idade e grau de desenvolvimento ou maturidade psicológica e física, na medida em que tais atos não comportem abuso”. Desde que o agente tenha completado 16 anos de idade e a vítima seja menor de 14 anos, o consentimento desta é sempre irrelevante, pelo que o envolvimento na prática de qualquer dos atos referidos no n.º 2 do artigo 171.º CPenal dará lugar ao preenchimento do tipo objetivo do ilícito independentemente das circunstâncias em que tenha tido lugar e ou do tipo de relação que interceda entre ambos. 3. Como ensina Figueiredo Dias, o legislador, quando “dispõe a moldura penal para certo tipo de crime, tem de prever as mais diversas formas e graus de realização do facto, desde os da menor até aos da maior gravidade pensáveis: em função daqueles fixará o limite mínimo; em função destes fixará o limite máximo da moldura respetiva; de modo a que em todos os casos, a aplicação da pena concretamente determinada possa corresponder ao limite da culpa e às exigências da prevenção”, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, 302. Ora, isto vale quer para as penas principais, quer para as penas acessórias. Com efeito, se as penas acessórias pressupõem, como se diz no Acórdão, “a efetiva consideração das específicas e concretas circunstâncias do caso (cf. Pedro Caeiro, “Qualificação da sanção de inibição da faculdade de conduzir prevista no artigo 61.º/2 alínea d) do Código da Estrada”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, vol. 3, 1993, 566)”, também o limite mínimo da respetiva moldura há de ser estabelecido tendo presente todo o espetro de atuações recondutíveis ao tipo legal de modo a que a medida concreta da pena a fixar pelo tribunal possa ser sempre determinada dentro do «limite consentido pela culpa”, sem exceder a necessidade de “defesa retrospetiva da ordem jurídica e as exigências de ressocialização do condenado, evidenciadas a partir das circunstâncias concretas do caso sub judice” (Maria João Antunes, “Penas acessórias e aplicação a título principal”, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Américo Taipa de Carvalho, Universidade Católica Editora, 2022, 76). Ora, tendo em conta a amplitude do âmbito de incidência do tipo legal previsto no n.º 2 do artigo 171.º CPenal, que não deixa de ser aplicável “quando o autor for pessoa próxima do menor em idade e grau de desenvolvimento ou maturidade física e psicológica” (artigo 183 bis do Código Penal espanhol), creio que o limite mínimo de cinco anos fixado às penas previstas nos artigos 69.º-B/2 e 69.º-C/2 CPenal, ambos na redação da Lei 103/2015 – que são, ao contrário do que presentemente se verifica (v. artigos 69.º-B/2 e 69.º-C,/2 CPenal, na redação conferida pela Lei 15/2024), de aplicação obrigatória - não cumpre essa finalidade. 4. É certo, como se diz no Acórdão, que não existe uma disparidade evidente “entre os períodos fixados para a pena principal abstratamente aplicável ao crime previsto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 171.º CPenal (3 a 10 anos de prisão) e o limite mínimo das penas acessórias aqui em apreciação (5 anos)”. Simplesmente, ao considerar que tal circunstância afasta a possibilidade de se “«concluir que o legislador estabeleceu uma reação sancionatória manifestamente desproporcionada”, a maioria não leva quanto a mim em devida consideração o facto de as penas acessórias, ao contrário das penas principais, não serem especialmente atenuáveis (v. o artigo 73.º CPenal), o que significa que não podem ser desagravadas, designadamente no seu limite mínimo, ainda que no caso concorram “circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena” (artigo 72.º/1 CPenal) Não sendo tal opção, em si mesma, constitucionalmente censurável, já o será o limite mínimo inalterável fixado para cada pena acessória se o mesmo não refletir a consideração, de entre todas as possíveis formas de realização típica, daquelas de menor gravidade conjeturável, inviabilizando desse modo que, também nestes casos, a medida concreta da pena a aplicar possa vir a conformar-se tanto com o limite consentido pela culpa, como com as exigências de prevenção, geral e especial. Sendo isso, quanto a mim, o que se verifica relativamente ao limite mínimo de cinco anos das penas previstas nos artigos 69.º-B/2 e 69.º-C/2 CPenal, ambos na redação da Lei 103/2015, para o crime tipificado no n.º 2 do artigo 171.º do mesmo Código, divirjo do juízo que obteve vencimento”. Este acórdão 117/25 foi retificado pelo acórdão 184/2025, nos seguintes termos: “assim, na parte decisória, onde se lê: “b) Julgar inconstitucional, por violação do disposto no n.º 2 do artigo 18.º em conjugação com o artigo 47.º da Constituição, a norma do n.º 2 do artigo 69.º-C do Código Penal (na redação da Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto), na parte em que fixa a moldura de 5 anos a 20 anos para a pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pela condenação pelo crime previsto no n.º 1 do artigo 176.º do Código Penal quando a vítima seja menor; c) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 69.º-B do Código Penal (na redação da Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto), no segmento em que estabelece a aplicação necessária da pena acessória de proibição de assumir a confiança de menores, pela condenação pelo crime previsto no n.º 1 do artigo 176.º do Código Penal, quando a vítima seja menor; e” - deve ler-se: b) Julgar inconstitucional, por violação do disposto no n.º 2 do artigo 18.º em conjugação com o artigo 47.º da Constituição, a norma do n.º 2 do artigo 69.º-B do Código Penal (na redação da Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto), na parte em que fixa a moldura de 5 anos a 20 anos para a pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pela condenação pelo crime previsto no n.º 1 do artigo 176.º do Código Penal quando a vítima seja menor; c) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 69.º-C do Código Penal (na redação da Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto), no segmento em que estabelece a aplicação necessária da pena acessória de proibição de assumir a confiança de menores, pela condenação pelo crime previsto no n.º 1 do artigo 176.º do Código Penal, quando a vítima seja menor; “ Mais recentemente, no acórdão 582/2025 decidiu-se, ”julgar inconstitucional a norma do artigo 69.º-B, n.º 2, do Código Penal (na redação conferida pela Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto) no segmento normativo em que determina a obrigatoriedade de aplicação da pena acessória com limite mínimo de cinco anos para a proibição de exercer profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, em caso de punição pela prática de crime previsto no artigo 170.º do Código Penal. E no acórdão 579/2025 decidiu-se, “a) não julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 69.º-B do Código Penal (na redação da Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto), no segmento normativo em que determina a obrigatoriedade de aplicação da pena acessória com limite mínimo de cinco anos para a proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pela condenação pelo crime previsto nos artigos 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal; b) não julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 69.º-C do Código Penal (na redação da Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto), no segmento normativo em que determina a obrigatoriedade de aplicação da pena acessória com limite mínimo de cinco anos para a proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pela condenação pelo crime previsto nos artigos 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal; e, consequentemente, Finalmente, no acórdão 396/2025 decidiu-se, - a) julgar inconstitucional a norma constante do artigo 69.º-B, n.º 2, do Código Penal, na redação conferida pela Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto, no segmento normativo em que determina a obrigatoriedade de aplicação da pena acessória com limite mínimo de cinco anos para a proibição, em caso de punição pela prática de crime de pornografia de menores, previsto e punido pelo artigo 176.º, n.º 1, alíneas c) e d), n.º 8, e 177.º, n.º 7, do Código Penal, na redação da Lei n.º 40/2020, de 18 de agosto, por violação dos artigos 26.º, n.º 1, 47.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, todos da Constituição da República Portuguesa; b) Julgar inconstitucional a norma do artigo 69.º-C, n.º 2, do Código Penal, na redação conferida pela Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto, no segmento normativo em que determina a obrigatoriedade de aplicação da pena acessória com limite mínimo de cinco anos para a proibição, em caso de punição pela prática de crime de pornografia de menores, previsto e punido pelo artigo 176.º, n.º 1, alíneas c) e d), n.º 8, e 177.º, n.º 7, do Código Penal, na redação da Lei n.º 40/2020, de 18 de agosto, por violação dos artigos 36.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, todos da Constituição da República Portuguesa; e, em consequência, Vejamos. É certo que a redacção das normas contidas nos referidos artigos 69.º-B e 69.º-C CPenal foram, entretanto, alteradas, através da Lei 15/2024, de 29 de Janeiro, por forma a que onde anteriormente constava “é condenado” hoje passou a constar “pode ser condenado”. O que aqui não releva, de todo, dado que nunca o Tribunal Constitucional considerou materialmente inconstitucionais qualquer das normas na redacção anterior, no que se reporta à questão de saber se ao estabelecer um limite mínimo de cinco anos de aplicação necessária sempre que o juiz condene o agente por qualquer crime contra a liberdade e autodeterminação sexual praticado contra menor — in casu, pelo crime previsto no artigo 176.º do Código Penal —, o legislador criou um efeito automático da condenação proibido pelo n.º 4 do artigo 30.º da Constituição - isto é, se as normas que estabelecem a aplicação necessária das penas acessórias reguladas no n.º 2 do artigo 69.º-B e no n.º 2 do artigo 69.º-C, ambos do Código Penal, na redação da Lei 103/2015 transgridem a proibição constitucional dos efeitos automáticos das penas, cfr, por ser o mais recente o mencionado acórdão 117/2025. A questão coloca-se na proporcionalidade e reportada essencialmente ao limite mínimo das ditas penas acessórias. A questão reporta-se a saber se foi cominada uma restrição desproporcionada a direitos, liberdades e garantias do condenado, em violação do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, na restrição que operam à liberdade de escolha da profissão, artigo 47.º da Constituição e ao direito a constituir família, artigo 36.º da Constituição, ao estabelecer-se um limite mínimo, para ambas as penas, de 5 anos. É esta a dimensão de ambas as normas que aqui pode ser colocada em causa. Penas acessórias, por um período de 5 a 20 anos, aplicáveis a quem for condenado por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A e 176.º-C CPenal, quando a vítima seja menor. Recordemos que, no que ao caso aqui releva, o arguido vem condenado pela prática de crimes de abuso sexual de crianças, nos termos do n.º 2 do artigo 171.º e do n.º 3 alínea a) do mesmo artigo, a que correspondem, respectivamente, a moldura penal abstracta de prisão de 3 a 10 anos e prisão de 30 dias a 3 anos. Como vimos nunca o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional qualquer das normas contidas nos artigos 69.º-B e 69.º-C CPenal, na parte em que fixam a moldura de 5 anos a 20 anos para a pena acessória, pela condenação pelo crime previsto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 171.º CPenal, com ou sem a agravação do artigo 177.º/1 alínea a), quando a vítima seja menor ou pelo crime do artigo 164.º CPenal, quando a vítima seja menor, sempre se entendendo que em tais casos “não se verificando que “a gravidade do sancionamento - com o limite mínimo de 5 anos .se mostre inequívoca, patente ou manifestamente excessiva. Fazendo, a resenha das apontadas decisões do Tribunal Constitucional, foi já julgado inconstitucional, - as normas dos artigos 69.º-B/2 e 69.º-C/2 CPenal (na redação conferida pela Lei 103/2015, de 24 de agosto) no segmento normativo em que determina a obrigatoriedade de aplicação da pena acessória com limite mínimo de cinco anos para a proibição, em caso de punição pela prática de crime de abuso sexual de menores dependentes, p. p. pelos artigos 172.º/2 e 171.º/3 alínea b), ou de importunação, p. p. pelo artigo 170.º CPenal (na redação conferida pela Lei 103/2015, de 24 de agosto) – punidos em ambos os casos com pena de prisão até 1 ano; - as normas do n.º 2 do artigo 69.º-B e do n.º 2 do artigo 69.º-C/2 CPenal (na redação da Lei 103/2015, de 24 de agosto), na parte em que fixa um período mínimo de 5 anos para a pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pela condenação pelo crime previsto no n.º 1 do artigo 176.º CPenal quando a vítima seja menor – a que corresponde em abstracto a moldura pena de prisão de 1 a 5 anos; - a norma do n.º 2 do artigo 60.º-B CPenal, na redação dada pela Lei 103/2015, de 24 de agosto, por violação dos artigos 18.º/ 2 e 47.º/1 da Constituição, na parte em que fixa um período mínimo de 5 anos para a pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pela condenação pelo crime de pornografia de menores previsto no artigo 176.º/1 alínea c) CPenal, agravado nos termos do 177.º/7 do mesmo Código, na redação conferida pela Lei 40/2020 – a que corresponde am abstracto a moldura penal de prisão de 16 meses a 6 anos e 8 meses; - as normas do n.º 2 do artigo 69.º-B e do n.º 2 do artigo 69.º-C CPenal, na redação dada pela Lei 103/2015, de 24 de agosto, por violação dos artigos 18.º/2 e 47.º/1 da Constituição, na parte em que fixa um período mínimo de 5 anos para a pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pela condenação pelo crime de pornografia de menores previsto no artigo 176.º/5 CPenal, na redação conferida pela Lei 40/2020 – a que corresponde em abstracto a moldura penal de prisão até 2 anos; - a norma dos artigos 69.º-B/2 e 69.º-C/2 CPenal no segmento normativo em que determina a obrigatoriedade de aplicação da pena acessória com limite mínimo de cinco anos para a proibição, em caso de punição pela prática de crime de importunação sexual, p. p. pelo artigo 170.º CPenal – a que corresponde em abstracto a moldura penal de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias; - as normas dos artigos 69.º-B/2 e 69.º-C/2 CPenal, na redação conferida pela Lei 103/2015, de 24 de agosto, no segmento normativo em que determina a obrigatoriedade de aplicação da pena acessória com limite mínimo de cinco anos para a proibição, em caso de punição pela prática de crime de pornografia de menores, p. p. pelo artigo 176.º/1 alínea c) CPenal, por violação dos artigos 26.º/1, 47.º/1 e 18.º/2 da Constituição da República Portuguesa – a que corresponde em abstracto a moldura penal de prisão de 1 a 5 anos; - a norma do n.º 2 do artigo 69.º-B CPenal, na redação da Lei 103/2015, de 24 de agosto, por violação do disposto no n.º 2 do artigo 18.º em conjugação com o artigo 47.º da Constituição, na parte em que fixa a moldura de 5 anos a 20 anos para a pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pela condenação pelo crime previsto no n.º 1 do artigo 176.º CPenal quando a vítima seja menor – a que corresponde em abstracto a moldura penal de prisão de 1 a 5 anos; - a norma do artigo 69.º-B, n.º 2, do Código Penal (na redação conferida pela Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto) no segmento normativo em que determina a obrigatoriedade de aplicação da pena acessória com limite mínimo de cinco anos para a proibição de exercer profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, em caso de punição pela prática de crime previsto no artigo 170.º do Código Penal – a que corresponde em abstracto a moldura penal de prisão até 1 anos ou multa até 120 dias; - a norma constante do artigo 69.º-B, n.º 2, do Código Penal, na redação conferida pela Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto, por violação dos artigos 26.º, n.º 1, 47.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, todos da Constituição da República Portuguesa, no segmento normativo em que determina a obrigatoriedade de aplicação da pena acessória com limite mínimo de cinco anos para a proibição, em caso de punição pela prática de crime de pornografia de menores, previsto e punido pelo artigo 176.º, n.º 1, alíneas c) e d), n.º 8, e 177.º, n.º 7, do Código Penal, na redação da Lei n.º 40/2020, de 18 de agosto – a que corresponde em abstracto a moldura penal de prisão de 1 ano e 4 meses a 6 anos e 8 meses; - a norma do artigo 69.º-C, n.º 2, do Código Penal, na redação conferida pela Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto, por violação dos artigos 36.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, todos da Constituição da República Portuguesa, no segmento normativo em que determina a obrigatoriedade de aplicação da pena acessória com limite mínimo de cinco anos para a proibição, em caso de punição pela prática de crime de pornografia de menores, previsto e punido pelo artigo 176.º, n.º 1, alíneas c) e d), n.º 8, e 177.º, n.º 7, do Código Penal, na redação da Lei n.º 40/2020, de 18 de agosto – a que corresponde em abstracto a moldura penal de prisão de 1 ano e 4 meses a 6 anos e 8 meses. De toda esta enumeração a situação que mais se assemelha ao caso dos autos – prisão de 30 dias a 3 anos - é a aquela em que está em causa a moldura penal abstracta de prisão de 1 a 5 anos. Não estará, pois, em causa a questão da proporcionalidade em relação aos crimes do n.º 2 do artigo 171.º, punidos com pena de prisão de 3 a 10 anos. Subsiste a questão dos crimes do artigo 171.º/3, a que correspondem em abstracto a moldura de prisão de 30 dias a 3 anos. Cremos que a aplicação das referidas penas acessórias neste caso concreto, colide, da mesma forma, com o texto constitucional Com efeito, seguindo aqui de perto a fundamentação aduzida nos citados acórdãos 442/24 e 641/24, “os segmentos normativos que fixam a moldura mínima dessas penas — em concreto, a norma do n.º 2 do artigo 69.º-B do Código Penal (na redação da Lei n.º 103/2015), na parte em que fixa um período mínimo de 5 anos para a pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores e a norma do n.º 2 do artigo 69.º-C do Código Penal (na redação da Lei n.º 103/2015), na parte em que fixa um período mínimo de 5 anos para a pena acessória de proibição de assumir a confiança de menores, consubstancia uma restrição desproporcionada à «liberdade de escolha da profissão, artigo 47.º da Constituição, bem como ao direito a constituir família, artigo 36.º da Constituição (que abrange outras relações familiares para além da filiação, como a adoção, o acolhimento familiar e o apadrinhamento civil, cfr. Guilherme de Oliveira, Manual de Direito da Família, 2.ª edição, Almedina, 2021, 47 e 57; Jorge Duarte Pinheiro, O direito da família contemporâneo, 5.ª edição, Gestlegal, 2023, 83) sendo nessa medida inconstitucionais, tendo em conta o disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição. Decorre desta última norma “que só razões de prevenção, nomeadamente de prevenção geral de integração, podem justificar a aplicação de reacções criminais”, cfr. Professor Figueiredo Dias, Direito Penal Português — Parte Geral II, cit., 84; e daí se impõe que “a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos”, ibidem, 227. Ou dito de outro modo: ainda que certo comportamento seja digno de tutela criminal, vedado é ao legislador prever a sua punição para casos em que a pena não surja como consequência jurídica necessária e proporcional , cfr. Professor Figueiredo Dias, com colaboração de Maria João Antunes Susana Aires de Sousa, Nuno Brandão e Sónia Fidalgo, Direito Penal — Parte Geral I, 3.ª edição, Gestlegal, 2019, 793. As penas acessórias associam-se, por natureza, a certo crime. Trata-se de modelar a censura jurídico-criminal através da fixação de uma consequência criminal que acresce à pena principal, orientada pelo específico circunstancialismo que presidiu à situação concreta e mediada pelo julgador. É essa a razão pela qual a sua aplicação e medida dependem da culpa do agente e das exigências de prevenção, artigo 71.º/1 CPenal, visando a reintegração do agente, artigo 40.º/1 CPenal. A sua previsão tende à proteção de bens jurídicos constitucionalmente respaldados, visando simultaneamente dissuadir a prática de crimes, restabelecer a confiança da comunidade na vigência das normas violadas e censurar o agente por um ato que lhe é imputável. Por assim ser, “torna-se — até jurídico-constitucionalmente — indispensável que aquele instrumento ganhe um específico conteúdo de censura do facto, por aqui se estabelecendo a sua necessária ligação à culpa”, cfr. Professor Figueiredo Dias, Direito Penal Português — Parte Geral II, cit., 96. Tal não obsta a que as penas acessórias possam perseguir, também, outras finalidades, de acordo com o interesse público que imediatamente se visa proteger. Razão pela qual se exige uma ligação especial entre o crime cometido e o interesse subjacente. “Com a sanção acessória, afinal, mais do que impor um mal ao agente e desse modo prosseguir, entre outras, finalidades preventivas (mas também isso), visa-se proteger de forma imediata o interesse público que esteja em causa. Pelo que será de exigir uma conexão especial entre o crime cometido, abstractamente considerado, e o interesse público que a restrição visa salvaguardara”, cfr. Francisco Borges, “Efeitos automáticos…”, cit., 890. Assim, a adequação, necessidade e proporcionalidade das penas acessórias em causa — que restringem a liberdade de escolha de profissão (artigo 47.º da Constituição) e o direito a constituir família (artigo 36.º da Constituição) — depende da demonstração de que os eventuais efeitos de tutela do interesse público perseguidos se ligam aos crimes cuja prática determina a aplicação das penas acessórias em causa. Isto é, as sanções só serão constitucionalmente lícitas — porque adequadas, necessárias e proporcionais — quando “visem censurar especialmente o arguido pelo circunstancialismo que envolve o crime cometido, circunstancialismo esse que justifica a privação de certo direito, faculdade ou posição privilegiada de algum modo relacionados com a prática do crime”, cfr. Pedro Caeiro, “Qualificação…”, cit., 566. As penas acessórias de proibição de exercer profissões que envolvam o contacto com crianças e de proibição de assumir a confiança de crianças fazem parte das consequências jurídicas para os crimes previstos nos artigos 163.º a 176.º-A quando a vítima seja menor. Têm por finalidade o fortalecimento da reação do ordenamento jurídico à prática daqueles factos ilícitos e culposos e o reforço da reafirmação contrafáctica das expectativas comunitárias na manutenção da validade e vigência das normas violadas, satisfazendo, em particular, necessidades preventivas — gerais e especiais —, realizando um interesse público imediatamente em causa. Exercem, pois, uma função preventiva coadjuvante da pena principal ou de substituição aplicada, cfr. Maria João Antunes, “Anotação ao artigo 179.º, cit., 901 e acórdão do Tribunal Constitucional 143/1995. Nos referidos n.º 2 do artigo 69.º-B e do artigo 69.º-C preveem-se penas acessórias cujo limite mínimo, de 5 anos, é superior ao limite mínimo das penas principais aplicáveis nos vários crimes que lhe dão causa (um mês de prisão nos crimes de fraude sexual, de importunação sexual, de atos sexuais com adolescentes, de recurso à prostituição de menores, de pornografia de menores (considerando a redação dada pela Lei 103/2015, de 24 de agosto) e de aliciamento de menores para fins sexuais; seis meses de prisão para os crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, de abuso sexual de pessoa internada; 1 ano de prisão, para os crimes de coação sexual (considerando a redação dada pela Lei 83/2015, de 05 de agosto), de procriação artificial não consentida, de abuso sexual de crianças, de abuso sexual de menores dependentes e de lenocínio de menores; 3 anos de prisão para o crime de violação (considerando a redação dada pela Lei 83/2015, de 05 de agosto). No caso em apreço subsistem as penas acessórias cuja moldura abstracta é de 5 a 20 anos, por crimes em que às penas principais correspondem as molduras abstractas de prisão de 30 dias a 3 anos. Situando-se a questão controversa, sem dúvida, de forma manifesta no patamar mínimo da pena acessória. Nessa medida, um juízo de censura constitucional às normas ora fiscalizadas depende da conclusão de que o limite mínimo de 5 anos é manifesta e claramente excessivo, por atenção ao valor a proteger, cfr. acórdão 145/2021 do Tribunal Constitucional. Como refere Maria João Antunes, “Penas acessórias…”, 79, importa saber se tais normas cumprem o princípio da proporcionalidade das restrições - a ponto de, face a uma moldura tão elevada (de 5 a 20 anos), se poder “recear que tais limites sejam significativos de uma utilização destas sanções que já não se enquadre propriamente na sua justificação político-criminal, parecendo resvalar antes para o âmbito dos indesejáveis efeitos estigmatizantes das penas”. Não é o simples facto de os limites destas penas acessórias serem superiores ao das penas principais previstas que gera, ipso facto, um vício de inconstitucionalidade, não podendo censurar-se a moldura penal de uma pena acessória apenas pela circunstância de o seu limite mínimo ser superior ao das penas principais, cfr. acórdão 289/1995 do Tribunal Constitucional. Contudo, a enunciada desproporção advém da conjugação de várias circunstâncias. Desde logo, a amplitude e a diversidade das condutas que podem ser subsumidas na norma penal incriminatória, cuja previsão abrange um conjunto de comportamentos a que corresponde um grau de censura e/ou danosidade distinto. As condutas ali descritas não revelam sempre, em toda e qualquer circunstância, a necessidade de punir o agente por um período mínimo de 5 anos com a proibição de exercício de profissões que envolvam contacto com menores. E, assim sendo, “ao estabelecer um limite mínimo tão elevado (5 anos) para um conjunto alargado de comportamentos – nem todos indiciando a necessidade de punição por tal período –, o legislador violou a obrigação que se lhe impunha de proceder a uma avaliação diferenciada, estabelecendo a sua aplicação por um mínimo de 5 anos para casos em que a necessidade dessa pena pode não existir”. Acresce que o limite mínimo de cinco anos é o mesmo, comparativamente com crimes sexuais mais gravosos. O legislador pressupõe a mesma necessidade de aplicação das penas acessórias por um período mínimo de 5 anos quer para crimes graves contra a liberdade sexual (v. g., violação, abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, abuso sexual de pessoa internada), quer para crimes contra a autodeterminação sexual de gravidade muito diversa – como é o caso da pornografia de menores. Assim violando a injunção constitucional de adequação, necessidade e proporcionalidade da moldura penal”. Por outro lado, “a manifesta desproporcionalidade pode ser mensurada por confronto com outras penas acessórias”, uma vez que “não existe, ao longo de todo o Código Penal, qualquer outra pena acessória com semelhante imposição de limite mínimo”. Por fim, apesar de aqui estar em causa crimes cometidos contra menores mantém-se a “franca disparidade” entre “os períodos fixados para a pena principal abstratamente aplicável” “e aqueles que o legislador cominou para as penas acessórias - 5 a 20 anos”. É certo que não existe uma obrigação constitucional de equivalência temporal entre as molduras abstratamente aplicáveis entre as penas acessórias e a pena principal. Mas, tendo em conta o exposto sobre as exigências de proporcionalidade das reações punitivas, a fixação de um limite mínimo de 5 anos para a pena acessória para quem é condenado nas penas concretas de 16 e de 20 meses de prisão, revela-se manifestamente desproporcionada. Aquele limite mínimo de 5 anos constitui reação sancionatória manifestamente excessiva. A fixação de uma pena acessória por um período mínimo de 5 anos pode implicar a sua determinação concreta acima do limite da culpa e sem proporção à gravidade da infração. E, assim, entendemos ser de concluir pelo juízo de inconstitucionalidade, nesta precisa e supra delimitada, questão.
3. 3. 3. 3. Aplicação prática. E, assim, resta aplicar as penas acessórias em relação aos 5 crimes do n.º 2 do artigo 171.º e recusar a aplicação aos 8 crimes do n.º 3 da mesma norma. Como vimos, segundo o artigo 69º-B/2 CPenal, é condenado na proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período fixado entre cinco e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, quando a vítima seja menor. E, pelo artigo 69º-C/2 CPenal é condenado na proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período fixado entre cinco e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, quando a vítima seja menor. Considerando o factualismo apurado, a personalidade evidenciada pelo arguido e as necessidades cautelares em presença, feita a devida ponderação, entendemos ser de fixar cada uma de tais penas acessórias, por cada um dos 5 crimes, do artigo 171.º/2, pelo período de 5 anos, correspondente ao mínimo legal. Quanto às penas acessórias dever-se-á ter presente que também elas estão sujeitas a cúmulo jurídico, devendo ser-lhes igualmente aplicável a argumentação do AUJ 2/2018 deste Supremo Tribunal, que uniformizou jurisprudência no sentido em que, “em caso de concurso de crimes, as penas acessórias de conduzir de proibição de conduzir veículo com motor com previsão no n.º 1 alínea a) do artigo 69.º CPenal, estão sujeitas a cúmulo jurídico”. Naturalmente, como as penas principais, desde que sejam da mesma natureza. Isto para dizer que, no caso, sendo aplicáveis distintas penas acessórias, a prevista no artigo 69.º-B CPenal - proibição do exercício de funções por crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual - e a prevista no artigo 69.º-C CPenal - proibição de confiança de menores e inibição de responsabilidades parentais - não se podem tratar como se fossem da mesma natureza, atenta a finalidade de cada uma delas (ainda que ambas visem proteger menores vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual previstos nos artigos 163.º a 176.º-A CPenal. Não podendo, pois, deixar de ser feito o cúmulo jurídico de cada uma delas e, não de ambas, em conjunto. E, então, temos em ralação a cada uma delas, a moldura do concurso, com tendo o limite mínimo correspondente a 5 anos e o máximo a 25 anos. Haverá que ponderar, também, aqui, todas as circunstâncias que fundamentaram o cálculo da pena única. Assim, tudo ponderado, julga-se na medida justa, sendo adequado e proporcionado, fixar cada uma das penas únicas acessórias no período de 12 anos. III. Dispositivo Por todo o exposto, acordam os Juízes que compõem este Tribunal em conceder provimento ao recurso interposto pela Magistrada do MP e em consequência, 1. revogar a decisão recorrida e, 2. condenar o arguido AA, enquanto autor material, na forma consumada e em concurso real, pela prática de, 2. 1. 5 crimes de abuso sexual de criança, pp. e pp. pelas disposições conjugadas dos artigos 171.º/2 CPenal, sendo 3 deles, em concurso aparente com 8 crimes do n.º 1 do artigo 171.º, 2. 1. 1. na pena de 5 anos de prisão, por cada um; 2. 1. 2. nas penas acessórias dos 69.º-B/2 CPenal e 69.º-C/2 CPenal, respectivamente, proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores e, proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, em ambos os casos, pelo período de 5 anos, por cada crime; 2. 2. 8 crimes de abuso sexual de crianças, pp. e pp pelas disposições conjugadas dos artigos 171.º/3 alínea a) CPenal, 2. 2. 1. na pena de 1 ano de prisão por cada um: 2. 2. 2. não se aplicando as penas acessórias dos artigos 69.º-B/2 e 69.º-C/2 CPenal, por se julgar inconstitucional, por violação do disposto no n.º 2 do artigo 18.º em conjugação com o artigo 47.º da Constituição, ambas as normas, na redacção da Lei 103/2015, de 24 de agosto, no segmento em que fixam a moldura penal abstracta de 5 anos a 20 anos, no que se reporta à condenação pelo crime de abuso de crianças agravado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 171.º/3 alínea a) e 177.º/1 alínea b) CPenal; 2. 3. operando o cúmulo jurídico, vai o arguido condenado, 2. 3. 1. na pena única de 12 anos de prisão; 2. 3. 2. na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 12 anos; 2. 3. 3. na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 12 anos. Custas pelo arguido, dado o seu total decaimento, fixando-se a taxa de justiça no equivalente a 5 UC,s. Certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e, assinado eletronicamente por si e pelos Srs. Juízes Conselheiros adjuntos, nos termos do artigo 94.º/2 e 3 CPPenal. Supremo Tribunal de Justiça, 2025NOV19 Ernesto Nascimento - Relator Vasques Osório - 1.º Adjunto Pedro Donas Botto – 2.º Adjunto |