Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3ª SECÇÃO | ||
Relator: | HENRIQUES GASPAR | ||
Descritores: | HOMICÍDIO HOMICÍDIO PRIVILEGIADO COMPREENSÍVEL EMOÇÃO VIOLENTA EXIGIBILIDADE DIMINUÍDA CULPA MEDIDA CONCRETA DA PENA PENA PARCELAR PENA ÚNICA ARMA DE FOGO PREVENÇÃO GERAL PREVENÇÃO ESPECIAL ILICITUDE | ||
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Data do Acordão: | 09/12/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Área Temática: | DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA - LEI DAS ARMAS / ARMAS E SUAS MUNIÇÕES / RESPONSABILIDADE CRIMINAL E CRIMES DE PERIGO COMUM. DIREITO PROCESSUAL PENAL - JULGAMENTO / AUDIÊNCIA / ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DOS FACTOS DESCRITOS NA ACUSAÇÃO. | ||
Doutrina: | - Eduardo Correia, in Direito Criminal, II, pp. 278 e ss.. - Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense …, § 1, p. 47, § 3, p. 48, § 6, § 7, p. 50, § 8, pp. 50/51, § 12, pp. 49/50 e 53; in Parecer na Colectânea de Jurisprudência, 1987, tomo 4, p. 55. - Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1990, p. 40; Homicídios em série, pp. 165, 166 e 168. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 358.º, N.ºS 1 E 3. CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 40.º, N.ºS 1 E 2, 71.º, N.º1, 131.º, 133.º. LEI N.º 5/2006, DE 23-02: - ARTIGO 86.º, N.ºS 1, AL. C), 3. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 16-01-1990, PROCESSO N.º 38690, CJ 1990, TOMO 1, P. 11 E BMJ N.º 393, P. 212; DE 16-01-1990, PROCESSO N.º 40599, AJ, N.º 5 E MESMO BMJ N.º 393, P. 278; DE 23-05-1991, BMJ N.º 407, P. 341, E DE 05-02-1992, COMENTADO IN REVISTA PORTUGUESA DE CIÊNCIA CRIMINAL, ANO 6 (1996), FASC. 1.º, P. 119. -DE 29-03-2000, PROCESSO N.º 27/00-3.ª, SEGUIDO DE PERTO NO DE 03-05-2007, PROCESSO N.º 1233/07 – 5.ª; DE 01-03-2006, PROCESSO N.º 3789/05-3.ª E DE 29-03-2006, PROCESSO N.º 360/06-3.ª, ESTES SEGUIDOS PELO ACÓRDÃO DE 12-6-2008, NO PROCESSO N.º 1782/08-3.ª SECÇÃO. -DE 19-04-1989, BMJ N.º 386, P. 222 E DE 28-09-1994, CJSTJ 1994, TOMO 3, P. 206; DE 11-12-1996, BMJ N.º 462, P. 207; DE 11-06-1997, CJSTJ 1997, TOMO 2, P. 228. NOS ACÓRDÃOS DE 23-06-2005, PROCESSO N.º 1301/05 E DE 23-10-2008, PROCESSO N.º 1212/08, AMBOS DA 5.ª SECÇÃO. -DE 03-10-2007, PROCESSO N.º 2791/07 – 3.ª SECÇÃO. -DE 17-09-2009, PROCESSO N.º 434/09.5YFLSB-3.ª SECÇÃO, (CF. RECENSÃO DO ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE 27 DE JUNHO DE 2012, PROFERIDO NO PROCESSO Nº 3283/09.7TACBR). | ||
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Sumário : | I - A compreensível emoção violenta; a compaixão; o desespero; ou um motivo de relevante valor social ou moral constituem cláusulas que apontam para a redução da culpa, ou cláusulas de privilegiamento, ou elementos privilegiadores, traduzindo estados de afecto vividos pelo agente, ou causas de atenuação especial da pena do homicídio. II - A compreensível emoção violenta é um forte estado de afecto emocional provocado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado e à qual também o homem normalmente “fiel ao direito” não deixaria de ser sensível. III -O preceito do art. 133.º do CP coloca à cláusula da emoção violenta maiores exigências do que em relação às restantes cláusulas, sofrendo uma dupla exigência que se configura como um duplo controlo: tem de ser compreensível (sendo que nem a compaixão, nem o desespero estão sujeito à cláusula da compreensibilidade), e tem de diminuir sensivelmente a culpa do agente; um duplo controlo a avaliar e ponderar nos limites de determinação da culpa. IV - A norma do art. 40.º do CP condensa, em três proposições fundamentais o programa político criminal sobre a função e os fins das penas: protecção de bens jurídicos e socialização do agente do crime, sendo a culpa o limite da pena mas não seu fundamento. E, na determinação da medida concreta da pena, o tribunal está vinculado, nos termos do art. 71.º, n.º 1, do CP, a critérios definidos em função de exigências de prevenção, limitadas pela culpa do agente. V - Do caso importa reter o seguinte: - as agressões a tiro surgiram na sequência de uma discussão e envolvimento físico de uma das vítimas com a esposa do arguido e do pedido de socorro desta, que levou o arguido a deslocar-se ao local munido de uma arma; - os disparos ocorreram depois de as vítimas, mesmo perante a presença da arma, “crescerem” para o arguido, em vez de se afastarem; - as agressões praticadas pelo arguido nas vítimas foram realizadas com arma de fogo, disparada a uma distância demasiado curta para falhar; - o arguido não deixou de assumir a sua culpa, admitindo a prática dos factos, e demonstrando arrependimento; - são favoráveis ao recorrente as circunstâncias relativas à sua personalidade, e as relativas à sua integração na sociedade, na família e no trabalho, e o facto de não lhe serem conhecidos antecedentes criminais. VI - A ilicitude é elevada, assumindo uma extrema intensidade: o arguido, na sequência de um desentendimento motivado por antecedentes relacionais problemáticos, causou a morte de duas pessoas. Actuou também com a forma mais grave de culpa: não controlou a reacção perante situação de potencial conflito, muniu-se previamente de uma arma de fogo, e sabendo que a natureza do meio e a intensidade causariam graves danos para a vida e a integridade física, actuou querendo causar a morte de duas pessoas. De relevo também a circunstância de uma das vítimas – sobrinho do arguido – não ter qualquer antecedente de desentendimento ou de relacionamento problemático com o arguido. VII - Nestas circunstâncias, se bem que as exigências de prevenção especial não sejam particularmente intensas, dada a integração social e familiar do arguido, as imposições de prevenção geral para reafirmação da validade das normas e de integridade dos valores comunitários essenciais, são determinantes quando esteja em causa a vida humana, e especialmente, como no caso, a morte de duas pessoas. VIII - São, assim, de manter as penas fixadas pela decisão recorrida: - pela prática de um crime de homicídio simples, na pessoa de A, crime esse da previsão do art. 131.° do CP, agravado nos termos do art. 86.º, n.º 3, da Lei 5/2006, de 23-02, a pena de 12 anos de prisão; - pela prática de um crime de homicídio simples, na pessoa de J, crime esse da previsão do art. 131.º do CP, agravado nos termos do art. 86.°, n.° 3, da Lei 5/2006, de 23-02, a pena de 14 anos de prisão; - pela prática de um crime de detenção de arma proibida, da previsão do art. 86.º, n.º l , al. c), da Lei 5/2006, de 23-02, a pena de 2 anos de prisão; - em cúmulo jurídico das 3 penas aplicadas, a pena única de 17 anos de prisão. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:
1. O Ministério Público acusou AA, ..., ..., nascido a ..., filho de ... e de ..., natural de ..., concelho de ..., residente na Rua ..., imputando-lhe a prática, em autoria material e concurso efectivo, de dois crimes de homicídio qualificado, da previsão nos arts. 131° e 132°, nº 1 e no 2, alíneas e) e j) do Código Penal, um crime de detenção de arma proibida, na previsão do art. 86º, nº 1, alínea c), e art. 30, no 2,alínea. I) e artº. 2°, nº 3, alínea p) da Lei nº 5/2006, de 23-02, com as alterações introduzidas pela Lei nº 17/2009, de 06-05. 2. Não se conformando, o arguido recorreu para o tribunal da Relação, entendendo que não deveria ter sido condenado por homicídio privilegiado, nos termos do disposto no art.º 133.º do CP; que não deveria ser aplicada a agravação contida no art.º 86.º, n.º3, da Lei n.º 5/2006, de 23.2, por não constar da acusação e pronúncia, e considerou não ter sido observado o teor do art.º 70.º do CP, devendo ser aplicada uma pena pecuniária. Também a assistente recorreu, invocando os vícios previstos no n.º2 do art.º 410.º do CPP, como nos termos do disposto no art.º 412.º, n.s. 3 e 4 do CPP, com vista à aplicação do tipo agravado e de outra medida concreta da pena mais grave; e discordando também do montante da indemnização. O tribunal da Relação, no entanto, negou provimento aos recursos interpostos pelo arguido AA e pela assistente DD, confirmando integralmente a decisão recorrida. 3. O arguido recorre agora para o Supremo Tribunal de Justiça, com os fundamentos da motivação que apresenta, e que termina com a formulação das seguintes conclusões: a) Entende o arguido que deveria ter sido condenado por homicídio privilegiado, na previsão do art°. 133°. Cód. Penal; uma vez que resultaram provados os seguintes factos: 1. o mau relacionamento entre o arguido e o cunhado e infeliz vítima CC, 2. que o mau estar "já se arrastava há anos", 3. que o CC, por vezes, provocava o arguido, com gestos ou palavras, 4. que o arguido ouviu a mulher a gritar a seguinte expressão: "anda cá AA que ele mata-me", 5. que, chegado ao local - acompanhado de uma arma caçadeira de que se tinha munido, previamente - apercebeu-se "que a sua esposa tinha estado envolvida numa discussão com confrontos físicos não concretamente apurados com a vítima CC, 6. que o arguido referiu, voltado para as infelizes vítimas: "tirai-vos daqui", 7. que as infelizes vítimas cresceram para o arguido, 8. e que, só, nestas circunstâncias, é que o arguido efectuou os disparos... b) As penas parcelares aplicadas (e, reflexamente, o cúmulo jurídico) são exageradas e desproporcionadas; sobretudo, no que respeita ao homicídio da infeliz vítima CC. c) Em todo o caso, os crimes de homicídio não podem - nem devem - ser agravados nos termos do preceituado no art°. 86°., n°. 3 da Lei n°. 5/2006, de 23/2; desde logo, porque esse agravamento não resulta do despacho de pronúncia. d) O "agravamento" não é um facto, e) E, por isso, o agravamento não constitui uma alteração (substancial ou não) dos factos e, portanto, não têm, aqui, aplicabilidade os art°.s 303°. e 358°. CPP. f) A pena aplicada ao arguido pela detenção de arma proibida não deve ser de prisão efectiva. g) A pena final e global deve, em todo o caso e no contexto exposto, sofrer uma redução substancial e não exceder os oito anos de prisão. h) Ao decidir de modo diverso, o Tribunal da Relação do Porto violou as seguintes normas: art°.s 131° e 133° do Cód. Penal, art°.s 303° e 358°, n°.s 1 e 3 CPP e art° 86°., n°.s 1, al. c) e 3 da Lei n° 5/2006, de 23/2. Pede, a terminar, o provimento do recurso, com a revogação do acórdão recorrido, devendo, em sua substituição, ser proferido acórdão «que realize uma adequada e ajustada interpretação da prova produzida e a correspondente aplicação do direito e que, em consequência, a pena final a aplicar ao arguido não ultrapasse os oito anos de prisão efectiva». O magistrado do Ministério Público respondeu à motivação, concluindo pelo modo seguinte: 1 .Os factos dados como provados integram-se na previsão do crime de homicídio simples, p. e p. pelo art. 131° do Cód. Penal, agravado nos termos do art. 86º. n.° 3, da Lei n.° 5/2006, de 23 de Fevereiro, por que o arguido foi condenado, não se verificando, no caso em apreço, os pressupostos do crime de homicídio privilegiado previsto no art. 133° do Cód. Penal. 2. A alteração da qualificação jurídica efectuada pela 1ª instância obedeceu ao disposto no art. 358°, n.°s 1 e 3, do CPP, em obediência ao princípio do contraditório, pelo que bem andou o acórdão recorrido ao considerar que o acórdão da 1ª instância não enferma da nulidade prevista no art. 379°, n.° 1, al. b), do CPP. 3. As penas parcelares e a pena única encontradas pela 1ª instância e confirmadas pelo acórdão recorrido mostram-se justas e adequadas, de acordo com os critérios legais previstos no art. 71° do Cód. Penal, pelo que não merecem qualquer censura. Considera, por isso, que o recurso interposto pelo arguido ser julgado improcedente, confirmando-se o acórdão recorrido. A assistente, por seu lado, respondeu também à motivação de recurso, concluindo: 1- A assistente, perdeu, alvejados a tiro de caçadeira pelo arguido, seu cunhado, no fatídico dia 18 de Maio de 2011, o marido e o único filho. 2- A assistente discorda frontalmente do arguido quanto ao seu entendimento de que deveria ser punido por dois homicídios privilegiados; 3- Não se provaram quaisquer circunstâncias que diminuam sensivelmente a culpa do agente, designadamente que tivesse actuado dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral 4- As provas produzidas impunham decisão igualmente condenatória do arguido, mas com uma pena mais elevada do que a que teve, 5- Se em relação ao homicídio do cunhado, o arguido tentou “arranjar” uma teoria -que não se aceita - que circunstância se invoca para a vitima BB, com o qual não havia qualquer conflito, era doente mental e estava Indefeso em consequência dessa doença? 6- O cúmulo jurídico operado não valorou devidamente os factos, a personalidade e a culpa do agente; 7- As três penas parcelares foram cumuladas numa pena única de 17 anos de prisão, violando o art ° 77.° n ° 1 do CP, por não se ter tido em devida conta o facto de ter abandonado as vitimas sem lhes prestar auxílio, sendo o BB seu afilhado e não lendo qualquer problema com o mesmo, alvejando-o no peito a três metros de distância depois de já ver o resultado do disparo semelhante feito ao peito do cunhado, e de ter prosseguido com a sua rotina deslocando-se ao centro se saúde no seu carro depois de passar por casa a arrumar a arma e as munições deflagradas, para uma consulta marcada. 8- Foi cumprido o contraditório e a alteração jurídica para a agravação do art ° 86° n.° 3 da Lei nº 5/2006 9- Com relevância para a presente resposta, contrariando a tese do arguido, foram dados como provados os seguintes factos “Após ter efectuado os dois disparos, o arguido deslocou-se para a respectiva habitação". “De seguida, guardou a arma caçadeira e os cartuchos não deflagrados, tendo colocado os dois invólucros dos cartuchos deflagrados ... no caixote do lixo existente na cozinhe do rés-do-chão da sua residência. "Instantes depois, o arguido deslocou-se no seu veículo... para Centro de Saúde de ..., uma vez que tinha marcado uma consulta naquela unidade de saúde, local onde foi encontrado por elementos da G. N R." “O corpo já cadáver de BB .. .. uma vez que esta vitima não teve morte imediata na sequência do disparo de arma de fogo contra si efectuado, sendo assistida no local" “O corpo de BB apresentava ainda lesão extensa na zona do /punho/terço anterior do antebraço esquerdo, esta lesão terá resultado de um gesto de protecção/defesa da vítima, quando pressentiu que iria ser efectuado contra si o disparo de arma de fogo que a atingiu ao nível da zona peitoral ou mamaria, do lado direito." “O arguido usou a arma acima identificada fora da sua residência, com o propósito de praticar os factos descritos, bem sabendo que não a podia utilizar, por apenas ter licença para detenção no domicílio.” “Há cerca de dez anos que o arguido e a sua mulher e a assistente e o seu marido CC estavam desavindos e não se falavam. Mais recentemente, existia, também, um conflito entre os dois casais, relacionado com o prédio onde ocorreram os factos.” “Para aceder da sua casa de habitação ao terreno agrícola onde os factos ocorreram, o arguido seguiu por um caminho de terra batida, cerca de 100 metros” “O arguido não prestou auxílio às vítimas dos seus disparos, seguindo pelo mesmo caminho de terra batida em direcção à sua casa." (sublinhado nosso). “Posteriormente, o BB que seguia com vida, ainda foi assistido no local pelos serviços dos Bombeiros de ..., mas não resistiu aos ferimentos que lhe foram provocados pelo tiro disparado peio arguido, acabando por falecer cerca de 40 a 45 minutos após ter sido atingido pelo disparo da caçadeira.” “A morte do marido e do filho causou à assistente um sofrimento profundo e atroz, marcando para sempre a sua personalidade.” “A vítima BB sofria de problemas mentais, não tendo qualquer conflito com o arguido, seu tio e padrinho, cumprimentando-se quando se encontravam na rua.” 10- Não foi dado como provado, com relevância para a nossa discordância em relação ao defendido pelo arguido: “Que quando chegou ao local, o arguido se deparou com a sua mulher a ser agredida pelo CC e pelo BB, e a sangrar da boca, ou que se lhes dirigiu a pedir para largarem a mulher e dizendo que não queria problemas”; “Que nessa altura, as vítimas largaram a mulher do arguido e se dirigiram ao encontro deste, em tom ameaçador, proferindo o CC expressões do género “agora vais ser tu”; 11- O acórdão deu indevidamente como provado. “……. o arguido….. encontrava-se na sua residência,….., quando ouviu a sua esposa EE, a gritar: “anda cá AA que ele mata-me”.” O arguido disse “anda cá AA que ele mata-me” (10.31:13 a 10:45:00) e a própria mulher, EE, referiu ter gritado, “quem me acode?” (10:28:34 a 10:3300), de onde não pode dar-se como provado a expressão sublinhada; “Chegado ao local e apercebendo-se que a sua esposa tinha estado envolvida numa discussão com confrontos físicos…. com a vitima CC,…. que as vitimas cresceram para ele………."; Esta factualidade não resulta igualmente provada se se atentar no depoimento do arguido (10: 31: 13 a 12: 04:00), porquanto não foi posteriormente corroborado pela testemunha EE que referiu “eu ainda estava no chão quando ele chegou….” (10.28:34 a 10:34:00), não conseguindo concretizar as posições das vitimas e do arguido e ainda a atitude de cada um em concreto; Resulta das escutas telefónicas, do respectivo auto de transcrição, produto 177, que a mulher do arguido não estava sequer junto das vitimas, “vinha dos carvalhos”, como impossibilitando a conclusão de que houve confrontos físicos com esta e os falecidos antes de o arguido chegar, não estando sequer próximos. Não há prova directa e presencial sobre as alegadas provocações da vítima CC ao arguido e não se poderia dar como provado "O mau relacionamento entre o arguido e o seu cunhado CC já se arrastava há anos, sendo que o CC, por vezes, provocava o arguido, com gestos ou palavras” Cfr. testemunha FF que disse "só estava num lugar num mau momento" (16:34:23 a 16:36:31) 12- Matéria de facto indevidamente considerada como não provada e elementos probatórios que impunham uma decisão diferente: “Que a vítima CC foi friamente morto;" Do relatório de autópsia a fls 482 e ss, do relatório de exame ao local de fls. 119 e ss, as fotografias de fls. 413 resulta a posição das vítimas, a ausência de quaisquer sinais de violência, Que os disparos foram feitos a uma distância de 3 metros e directamente ao coração. Sabendo que as vítimas não se podiam defender e que teriam morte imediata. E não foi feito qualquer outro disparo anteriormente apontando ao chão, ou ao ar, mas directamente a matar. “Que o arguido apontou a caçadeira e disparou contra o cunhado e o sobrinho, sem que houvesse qualquer diálogo ou qualquer contacto físico com eles,'' O próprio arguido não referiu qualquer contacto físico com nenhuma das vítimas (10:31:13 a 12:00:00); De igual forma tão pouco a testemunha EE refere qualquer contacto físico entre as vítimas e o arguido (10:28.34 a 11:35:00); “Que o arguido não mostrou qualquer arrependimento ou descontrolo emocional, mantendo-se frio;” e “que o arguido não procurou chamar auxilio”, desmentido pelas declarações da assistente DD (12:06:07 a 12 19:00) do próprio arguido (10:31:13 a 12:0411) e da testemunha EE (10:28:34 a 11:41:22) sobre o abandono das vítimas, para arrumar a arma e as munições em casa e seguir para o centro de saúde para uma consulta marcada. 13- A contradição entre os factos dados como provados e a prova efectivamente produzida, levou a uma motivação edificada sobre pressupostos errados e como tal, a uma condenação numa pena inferior á medida da culpa do arguido. 14- Decidiu bem o acórdão ao não dar como provadas quaisquer agressões da vítima CC à sua irmã. A própria médica que a atendeu no dia seguinte ao dos factos confirmou não “ter quaisquer marcas nas partes do corpo que não estavam tapadas pela roupa” (14:27:07 a 14.29:00), nem “se lhe ter queixado de dores” ou semelhante mas apenas de falta de sono, 15- A fls. dos autos de transcrição das escutas telefónicas (produto 177) realizadas ao arguido que em conversa com a mulher, além do mais, diz “então eu não sei o que fiz?” “tu vinhas lá dos carvalhos” - revelando que não houve qualquer envolvimento entre todos; 16- Não foi dado como provado que o arguido tivesse medo do seu cunhado CC (vide relatório de fls 595 e ss), para justificar a necessidade de se fazer acompanhar da arma. 17- Quanto ao sobrinho e afilhado do arguido filho, BB, com o qual não havia qualquer conflito e sofria de doença mental, que alegou o arguido? - nada. 18- Hoje a propriedade rural não é objecto das disputas de outrora, quer pelo seu abandono e o envelhecimento da pouca população que ainda permanece nos meios rurais, e o arguido era taxista... 19- Quer as penas parcelares, quer a pena única já foram demasiado brandas. 20- Nem a assistente, nem a comunidade local sentem que a condenação em 17 anos de prisão satisfaz as necessidades que a sociedade tem de saber que o direito está vigilante e actuante, repondo a ordem quando ela é violada e punindo na medida da culpa. 21- O acórdão na escolha da medida concreta da pena tomou por base que houve “discussão e envolvimento físico” entre a vítima CC e a mulher do arguido e que ambas as vitimas "cresceram" para o arguido, o que está manifestamente em contradição com os factos provados e não provados e inquina todo o raciocínio dai decorrente com reflexo em penas parcelares demasiado brandas. 22- A pena única deveria ter-se situado já dentro do mínimo de 14 anos e do máximo de 25 anos de prisão, mais próxima do máximo do que encostada ao mínimo, como foi, fazendo com que em concreto o arguido tivesse colhido duas vidas e sendo punido com a pena praticamente aplicada por uma só. Defende, em consequência, que deve ser negado provimento ao recurso do arguido.
4. No Supremo Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta teve intervenção nos termos do artigo 416º do CPP. Colhidos os vistos, o processo foi à conferência, cumprindo decidir.
5. O tribunal do Júri jugou provados os seguintes factos: O arguido é cunhado do falecido CC e tio do falecido BB, estando, à data, de relações cortadas com o primeiro, não se falando. No dia 18 de Maio de 2011, por volta das 10.00 horas, o arguido AA encontrava-se na sua residência, sita no ..., em ..., na freguesia de ..., em ..., quando ouviu a sua esposa EE, que se encontrava a cerca de 100 metros, num terreno próximo, a gritar: "anda cá AA que ele mata-me". O arguido muniu-se de uma arma caçadeira (uma arma de fogo, longa, calibre 12, de tiro a tiro, de dois canos sobrepostos de 70 cm de comprimento, de alma lisa, da marca “Falcon da Saint - Etienne", com a numeração 41922 966, mono gatilho, com bandoleira em cabedal entrançado de cor castanha). Municiou-a com, pelo menos, dois cartuchos e dirigiu-se por um caminho de terra batida ao terreno onde as vítimas se encontravam a executar trabalhos agrícolas. Chegado ao local e apercebendo-se que a sua esposa tinha estado envolvida numa discussão com confrontos físicos não concretamente apurados, com a vítima CC, o arguido disse: “Tirai-vos daqui”, ao que as vítimas cresceram para ele, momento em que o arguido, empunhando a referida arma, a apontou, a cerca de 3 metros de distância, ao lado esquerdo do peito do seu cunhado CC e desferiu um tiro, provocando-lhe, de imediato, a morte. Imediatamente a seguir, virou a arma para o seu sobrinho BB, que se encontrava ao lado de seu pai, a vítima CC, e, a cerca de 3 metros do sobrinho BB, desferiu outro tiro que o atingiu ao lado direito do peito, levando-o também à morte, tendo, contudo, este ainda sido encontrado com vida e assistido no local por elementos da emergência médica de ... e dos Bombeiros Voluntários de .... Após ter efectuado os dois disparos, o arguido deslocou-se para a respectiva habitação. No caminho cruzou-se com a sua vizinha GG e com a sua cunhada DD, com quem trocou algumas palavras. De seguida, guardou a arma caçadeira e os cartuchos não deflagrados, tendo colocado os dois invólucros dos cartuchos deflagrados, calibre 12, de cor vermelha, da marca "Master 33", com a inscrição/referência de malha "4", de cupela baixa, no caixote do lixo existente na cozinha do rés-do-chão da sua residência. Instantes depois, o arguido deslocou-se no seu veículo da marca "Mercedes-Benz", matricula ...-LD (um táxi), para as instalações da Extensão de ... - Centro de Saúde de ..., uma vez que tinha marcado uma consulta naquela unidade de saúde, local onde foi encontrado por elementos da G.N.R. O corpo já cadáver de CC foi encontrado na posição de decúbito dorsal, num terreno ocupado por castanheiros, junto a um armazém agrícola, numa propriedade localizada a cerca de 100 m da habitação do arguido AA. O corpo desta vítima estava prostrado no chão, perfeitamente composto no que à roupa dizia respeito, apresentando lesão correspondente a orifício de entrada de projéctil de arma de fogo, na zona peitoral ou mamária esquerda, consequência necessária do disparo de arma de fogo longa (tipo caçadeira) que o arguido utilizou. Na zona axilar/escapular esquerda, CC apresentava outras lesões, correspondentes ao impacto de projécteis (vagos de chumbo) resultantes do disparo efectuado, e na mão direita foi ainda observada outra lesão, uma pequena escoriação. O corpo já cadáver de BB foi encontrado na posição de decúbito dorsal, no interior de uma ambulância dos Bombeiros Voluntários de .., uma vez que esta vítima não teve morte imediata na sequência do disparo de arma de fogo contra si efectuado, sendo assistida no local. Esta vítima apresentava múltiplas lesões na zona peitoral ou mamária direita, e braço direito, todas correspondentes a impactos e aos orifícios dos projécteis (vagos de chumbo) resultantes de disparo de arma fogo longa (tipo caçadeira) utilizada pelo arguido. O corpo de BB apresentava ainda lesão extensa na zona do punho/terço anterior do antebraço esquerdo, com destruição significativa de tecidos e exposição óssea, sendo que esta lesão terá resultado de um gesto de protecção/defesa da vítima, quando pressentiu que iria ser efectuado contra si o disparo de arma de fogo que a atingiu ao nível da zona peitoral ou mamária, do lado direito. Em consequência da conduta perpetrada pelo arguido, CC sofreu e apresentava, entre outras: a) No tórax, laceração do grande e do pequeno músculos peitorais, com infiltração sanguínea subjacente e exteriorização do pulmão esquerdo, com orifício; b) Na clavícula, cartilagens e costelas esquerdas: orifício irregular, de bordos infiltrados de sangue, com 9,5 por 6,5 cm de maiores dimensões, interessando o arco médio das 3ª, 4ª e 5ª costelas (com perda de material ósseo) e respectivos espaços intercostais e fracturas dos 7°, 8° e 9° arcos costais posteriores com infiltração sanguínea dos topos ósseos e tecidos adjacentes, sendo as fracturas ao nível do 8° e do 9° arcos costais posteriores cominutivas, com presença de múltiplos projecteis alojados entre as esquírolas ósseas; c) No pericárdio e cavidade pericárdica, presença de duas lacerações, arredondadas, com infiltração hemorrágica no pericárdio parietal e no pericárdio visceral subjacente; d) No coração, duas lacerações do miocárdio, com infiltração sanguínea subjacente, localizadas na parede lateral do ventrículo esquerdo; e) Na artéria aorta: infiltrado sanguínea peri-aorta torácica desde o fim da aorta descendente até à emergência da mesentérica superior e presença de 5 orifícios na parte lateral esquerda, estando o mais inferior a 8 cm da emergência do tronco celíaco; f) Na Pleura parietal e cavidade pleural esquerda, 900 centímetros cúbicos de sangue na cavidade pleural esquerda, bucha encontrada nessa cavidade e laceração da pleura parietal ao nível das fracturas de costelas com infiltração hemorrágica associada; g) No Pulmão esquerdo e pleura visceral, esfacelo completo do lobo superior, com hemorragia adjacente. Múltiplas áreas de contusão hemorrágica da face lateral do lobo inferior; h) No Esófago: infiltração sanguínea peri-esofágica; i) No Diafragma: Presença de dois orifícios arredondados, que perfuram o diafragma à esquerda, com infiltração hemorrágica adjacente. A morte de CC deveu-se às lesões traumáticas torácicas descritas, que resultaram da acção de projécteis de arma de fogo de cano comprido, com sinais de disparo a curta distância, desferido pelo arguido AA. Também em consequência da conduta perpetrada pelo arguido, BB sofreu e apresentava, entre outras: a) No tórax - orifício principal, com 4,5 por 1,5 cm de maiores dimensões, localizado na região para-esternal direita, medialmente ao mamilo, a 11 cm da articulação esterno - clavicular direita (a 45°) e a 4 cm do mamilo (a 90°), múltiplos orifícios satélite localizados no hemitórax direito, com um raio de dispersão relativamente ao orifício principal de 6,5 cm superiormente, 6,5 cm medialmente e 7,5 cm inferiormente. b) Membro superior direito: múltiplos orifícios satélite localizados na face anterior do braço, com um raio de dispersão de 19 cm, relativamente ao orifício principal no tórax; c) Membro superior esquerdo: presença de esfacelo, com exposição óssea e tendinosa, que abarca toda a face anterior do terço inferior do antebraço e do punho - possivelmente criado numa tentativa de defesa e provocado por bagada de chumbos. d) Paredes Tórax: com infiltração sanguínea dispersa pela grade costal direita e orifício irregular, de bordos infiltrados de sangue, com 4 por 3 centímetros de maiores dimensões, interessando o tecido celular sub-cutâneo, grande peitoral, pequeno peitoral e músculos intercostais. Infiltração sanguínea dispersa dos músculos, grande peitoral direito, da parte inferior do músculo pequeno peitoral direito, assim como dos músculos intercostais, visualizando-se múltiplos "grãos de chumbo". e) Na clavícula, cartilagens e costelas direitas: fracturas cominutivas do segundo, terceiro, quarto e quinto arcos costais anteriores com infiltração sanguínea dos topos ósseos e tecidos adjacentes. f) Na pleura parietal e cavidade pleural direita: 3000 centímetros cúbicos de sangue na cavidade pleural, havendo inúmeros “grãos de chumbo" misturados. Infiltração sanguínea da pleura parietal posterior, com laceração e infiltração sanguínea dos músculos intercostais ao nível dos 4°, 5° e 6º espaços intercostais. g) No pulmão direito e pleura visceral: Presença de orifícios múltiplos, com trajectos penetrantes, com infiltração sanguínea adjacente nos lobos superior e médio e presença de múltiplos projecteis (grãos de chumbo) incrustados; nas secções de corte, parênquima com edema de bolhas finas, sanguinolentas. h) No diafragma: Presença de múltiplos orifícios arredondados que perfuram a hemicúla diafragmática direita, com infiltração hemorrágica adjacente. i) No fígado: Diversos orifícios com trajecto penetrante com infiltração sanguínea subjacente na superfície anterior do lobo direito, junto ao ligamento falciforme. Duas lacerações com infiltração sanguínea subjacente, uma na superfície superior do lobo direito e outra na superfície anterior do lobo direito, tendo a maior 5,5 cm de comprimento (superfície anterior). A morte de BB resultou das lesões torácicas e resultaram da acção de projécteis da arma de fogo de cano comprido utilizada pelo arguido AA. A morte resultou como causa directa e necessária da conduta do arguido. Agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de tirar as vidas a CC e a BB, o que representou. O arguido usou a arma acima identificada fora da sua residência, com o propósito de praticar os factos descritos, bem sabendo que não a podia utilizar, por apenas ter licença para detenção no domicílio. Sabia o arguido que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
6. O fundamento principal do recurso do arguido reverte à qualificação dos factos, entendendo que deve ser condenado por homicídio privilegiado nos termos do artigo 133º do Código Penal. O artigo 133.º do Código Penal estabelece na versão actual que «Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos». «Não foi intenção do art. 133º (…) consagrar uma cláusula geral de menor exigibilidade no crime de homicídio; foi, pelo contrário, a de vincular uma tal cláusula à verificação de um dos pressupostos nele explicita e esgotantemente contidos. O que neles não caiba só pode ser (eventualmente) considerado através do instituto da atenuação especial da pena do homicídio simples previsto no art.131º» (cf., Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense …, §§ 6 e 12, págs. 49/50 e 53). A compreensível emoção violenta; a compaixão; o desespero; ou um motivo de relevante valor social ou moral constituem cláusulas que apontam para a redução da culpa, ou cláusulas de privilegiamento, ou elementos privilegiadores, traduzindo estados de afecto vividos pelo agente, ou causas de atenuação especial da pena do homicídio. O facto que origina a emoção não tem que radicar, no entanto, em qualquer provocação. Na perspectiva do art. 133º - assente, não em juízos de ponderação ético-jurídicos dos valores conflituantes, mas sim na valoração da situação psíquica que leva o agente ao crime – o que interessa é «compreender» esse mesmo estado psíquico, no contexto em que se verificou, a fim de se poder simultaneamente «compreender» a personalidade do agente manifestada no facto criminoso e, assim, efectuar sobre a mesma o juízo de (des) valor que afinal constitui o juízo de culpa. «A compreensibilidade da emoção é mais, assim, o estabelecer de uma relação não desvaliosa entre os factos que provocaram a emoção e essa mesma emoção. Se essa relação for estabelecida, a emoção é compreensível e provoca, portanto, uma diminuição da culpa do agente» (cf., Figueiredo Dias, in Parecer na Colectânea de Jurisprudência 1987, tomo 4, pág. 55). Na doutrina, Figueiredo Dias (Parecer publicado na Colectânea de Jurisprudência 1987, tomo 4, pág. 55), considera, como se salientou, que o que interessa é «compreender» o estado psíquico do agente, no contexto em que se verificou, a fim de se poder simultaneamente «compreender» a personalidade do agente manifestada no facto criminoso e, assim, efectuar sobre a mesma o juízo de (des)valor que afinal constitui o juízo de culpa”. 8. O recorrente argumenta que o crime de homicídio não pode - nem deve - ser agravado nos termos do preceituado no art°. 86°., n°. 3 da Lei n°. 5/2006, de 23/2; «desde logo, porque esse agravamento não resulta do despacho de pronúncia». O recorrente argumenta que o «agravamento» não constava do despacho de pronúncia, e que o «agravamento» não é um facto e, consequentemente, não constitui uma alteração substancial ou não substancial dos factos. Não são, porém, apreensíveis nem a perspectiva, nem o fundamento. A alteração da qualificação jurídica constitui alteração da acusação, e depende do cumprimento de exigências processuais que possam assegurar o exercício do contraditório pelo arguido. No caso, verifica-se (acta de fls. 1297 e 1298) que a alteração da qualificação jurídica foi comunicada ao arguido, cumprindo-se o disposto no artigo 358º, nºs 1 e 3 do CPP, assegurando o contraditório. Tudo em conformidade com as exigências da lei de processo; o fundamento é, assim, manifestamente improcedente.
9. O recorrente discute também a medidas das penas. Dispõe o artigo 40º do Código Penal que «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» - nº 1, e que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» - nº 2. Não tendo o propósito de solucionar por via legislativa a questão dogmática dos fins das penas, a disposição contém, no entanto, imposições normativas específicas que devem ser respeitadas; a formulação da norma reveste a «forma plástica» de um programa de política criminal cujo conteúdo e principais proposições cabem ao legislador definir e que, em consequência, devem ser respeitadas pelo juiz. A norma do artigo 40º condensa, assim, em três proposições fundamentais o programa político criminal sobre a função e os fins das penas: protecção de bens jurídicos e socialização do agente do crime, senda a culpa o limita da pena mas não seu fundamento. Neste programa de política criminal, a culpa tem uma função que não é a de modelar previamente ou de justificar a pena, numa perspectiva de retribuição, mas a de «antagonista por excelência da prevenção», em intervenção de irredutível contraposição à lógica do utilitarismo preventivo. O modelo do Código Penal é, pois, de prevenção, em que a pena é determinada pela necessidade de protecção de bens jurídicos e não de retribuição da culpa e do facto. A fórmula impositiva do artigo 40º determina, por isso, que os critérios do artigo 71º e os diversos elementos de construção da medida da pena que prevê sejam interpretados e aplicados em correspondência com o programa assumido na disposição sobre as finalidades da punição; no (actual) programa político criminal do Código Penal, e de acordo com as claras indicações normativas da referida disposição, não está pensada uma relação bilateral entre culpa e pena, em aproximação de retribuição ou expiação. O modelo de prevenção - porque de protecção de bens jurídicos - acolhido determina, assim, que a pena deva ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva e que seja definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa. O conceito de prevenção significa protecção de bens jurídicos pela tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e reforço) da validade da norma violada. A medida da prevenção, que não pode em nenhuma circunstância ser ultrapassada, está, assim, na moldura penal correspondente ao crime. Dentro desta medida (protecção óptima e protecção mínima - limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa. Nesta dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do artigo 71º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente. Na determinação da medida concreta da pena, o tribunal está vinculado, pois, nos termos do artigo 71º, nº 1, do Código Penal, a critérios definidos em função de exigências de prevenção, limitadas pela culpa do agente. O recorrente não fundamenta a discordância em relação à medida das penas; produz meras afirmações que, como já a Relação considerou, não constituem fundamento prestável e válido de impugnação.
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