Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
844/11.8JAPRT
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUES GASPAR
Descritores: HOMICÍDIO
HOMICÍDIO PRIVILEGIADO
COMPREENSÍVEL EMOÇÃO VIOLENTA
EXIGIBILIDADE DIMINUÍDA
CULPA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
ARMA DE FOGO
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
ILICITUDE
Data do Acordão: 09/12/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática:
DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA - LEI DAS ARMAS / ARMAS E SUAS MUNIÇÕES / RESPONSABILIDADE CRIMINAL E CRIMES DE PERIGO COMUM.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - JULGAMENTO / AUDIÊNCIA / ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DOS FACTOS DESCRITOS NA ACUSAÇÃO.
Doutrina:
- Eduardo Correia, in Direito Criminal, II, pp. 278 e ss..
- Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense …, § 1, p. 47, § 3, p. 48, § 6, § 7, p. 50, § 8, pp. 50/51, § 12, pp. 49/50 e 53; in Parecer na Colectânea de Jurisprudência, 1987, tomo 4, p. 55.
- Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1990, p. 40; Homicídios em série, pp. 165, 166 e 168.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 358.º, N.ºS 1 E 3.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 40.º, N.ºS 1 E 2, 71.º, N.º1, 131.º, 133.º.
LEI N.º 5/2006, DE 23-02: - ARTIGO 86.º, N.ºS 1, AL. C), 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 16-01-1990, PROCESSO N.º 38690, CJ 1990, TOMO 1, P. 11 E BMJ N.º 393, P. 212; DE 16-01-1990, PROCESSO N.º 40599, AJ, N.º 5 E MESMO BMJ N.º 393, P. 278; DE 23-05-1991, BMJ N.º 407, P. 341, E DE 05-02-1992, COMENTADO IN REVISTA PORTUGUESA DE CIÊNCIA CRIMINAL, ANO 6 (1996), FASC. 1.º, P. 119.
-DE 29-03-2000, PROCESSO N.º 27/00-3.ª, SEGUIDO DE PERTO NO DE 03-05-2007, PROCESSO N.º 1233/07 – 5.ª; DE 01-03-2006, PROCESSO N.º 3789/05-3.ª E DE 29-03-2006, PROCESSO N.º 360/06-3.ª, ESTES SEGUIDOS PELO ACÓRDÃO DE 12-6-2008, NO PROCESSO N.º 1782/08-3.ª SECÇÃO.
-DE 19-04-1989, BMJ N.º 386, P. 222 E DE 28-09-1994, CJSTJ 1994, TOMO 3, P. 206; DE 11-12-1996, BMJ N.º 462, P. 207; DE 11-06-1997, CJSTJ 1997, TOMO 2, P. 228.
NOS ACÓRDÃOS DE 23-06-2005, PROCESSO N.º 1301/05 E DE 23-10-2008, PROCESSO N.º 1212/08, AMBOS DA 5.ª SECÇÃO.
-DE 03-10-2007, PROCESSO N.º 2791/07 – 3.ª SECÇÃO.
-DE 17-09-2009, PROCESSO N.º 434/09.5YFLSB-3.ª SECÇÃO, (CF. RECENSÃO DO ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE 27 DE JUNHO DE 2012, PROFERIDO NO PROCESSO Nº 3283/09.7TACBR).
Sumário :

I - A compreensível emoção violenta; a compaixão; o desespero; ou um motivo de relevante valor social ou moral constituem cláusulas que apontam para a redução da culpa, ou cláusulas de privilegiamento, ou elementos privilegiadores, traduzindo estados de afecto vividos pelo agente, ou causas de atenuação especial da pena do homicídio.
II - A compreensível emoção violenta é um forte estado de afecto emocional provocado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado e à qual também o homem normalmente “fiel ao direito” não deixaria de ser sensível.
III -O preceito do art. 133.º do CP coloca à cláusula da emoção violenta maiores exigências do que em relação às restantes cláusulas, sofrendo uma dupla exigência que se configura como um duplo controlo: tem de ser compreensível (sendo que nem a compaixão, nem o desespero estão sujeito à cláusula da compreensibilidade), e tem de diminuir sensivelmente a culpa do agente; um duplo controlo a avaliar e ponderar nos limites de determinação da culpa.
IV - A norma do art. 40.º do CP condensa, em três proposições fundamentais o programa político criminal sobre a função e os fins das penas: protecção de bens jurídicos e socialização do agente do crime, sendo a culpa o limite da pena mas não seu fundamento. E, na determinação da medida concreta da pena, o tribunal está vinculado, nos termos do art. 71.º, n.º 1, do CP, a critérios definidos em função de exigências de prevenção, limitadas pela culpa do agente.
V - Do caso importa reter o seguinte:
- as agressões a tiro surgiram na sequência de uma discussão e envolvimento físico de uma das vítimas com a esposa do arguido e do pedido de socorro desta, que levou o arguido a deslocar-se ao local munido de uma arma;
- os disparos ocorreram depois de as vítimas, mesmo perante a presença da arma, “crescerem” para o arguido, em vez de se afastarem;
- as agressões praticadas pelo arguido nas vítimas foram realizadas com arma de fogo, disparada a uma distância demasiado curta para falhar;
- o arguido não deixou de assumir a sua culpa, admitindo a prática dos factos, e demonstrando arrependimento;
- são favoráveis ao recorrente as circunstâncias relativas à sua personalidade, e as relativas à sua integração na sociedade, na família e no trabalho, e o facto de não lhe serem conhecidos antecedentes criminais.
VI - A ilicitude é elevada, assumindo uma extrema intensidade: o arguido, na sequência de um desentendimento motivado por antecedentes relacionais problemáticos, causou a morte de duas pessoas. Actuou também com a forma mais grave de culpa: não controlou a reacção perante situação de potencial conflito, muniu-se previamente de uma arma de fogo, e sabendo que a natureza do meio e a intensidade causariam graves danos para a vida e a integridade física, actuou querendo causar a morte de duas pessoas. De relevo também a circunstância de uma das vítimas – sobrinho do arguido – não ter qualquer antecedente de desentendimento ou de relacionamento problemático com o arguido.
VII - Nestas circunstâncias, se bem que as exigências de prevenção especial não sejam particularmente intensas, dada a integração social e familiar do arguido, as imposições de prevenção geral para reafirmação da validade das normas e de integridade dos valores comunitários essenciais, são determinantes quando esteja em causa a vida humana, e especialmente, como no caso, a morte de duas pessoas.
VIII - São, assim, de manter as penas fixadas pela decisão recorrida:
- pela prática de um crime de homicídio simples, na pessoa de A, crime esse da previsão do art. 131.° do CP, agravado nos termos do art. 86.º, n.º 3, da Lei 5/2006, de 23-02, a pena de 12 anos de prisão;
- pela prática de um crime de homicídio simples, na pessoa de J, crime esse da previsão do art. 131.º do CP, agravado nos termos do art. 86.°, n.° 3, da Lei 5/2006, de 23-02, a pena de 14 anos de prisão;
- pela prática de um crime de detenção de arma proibida, da previsão do art. 86.º, n.º l , al. c), da Lei 5/2006, de 23-02, a pena de 2 anos de prisão;
- em cúmulo jurídico das 3 penas aplicadas, a pena única de 17 anos de prisão.

Decisão Texto Integral:

            Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

1. O Ministério Público acusou AA, ..., ..., nascido a ..., filho de ... e de ..., natural de ..., concelho de ..., residente na Rua ..., imputando-lhe a prática, em autoria material e concurso efectivo, de dois crimes de homicídio qualificado, da previsão nos arts. 131° e 132°, nº 1 e no 2, alíneas e) e j) do Código Penal, um crime de detenção de arma proibida, na previsão do art. 86º, nº 1, alínea c), e art. 30, no 2,alínea. I) e artº. 2°, nº 3, alínea p) da Lei nº 5/2006, de 23-02, com as alterações introduzidas pela Lei nº 17/2009, de 06-05.
Na sequência do julgamento, o Tribunal do Júri julgou a acusação parcialmente procedente, por provada, e, consequentemente, condenou o arguido AA:
a) pela prática de um crime de homicídio simples, na pessoa de CC, crime esse da previsão do arts. 131º do Código Penal, agravado nos termos do art. 86º, nº 3 da Lei nº 5/2006, de 23-02,  na pena de 12 (doze) anos de prisão;
b) pela prática de um crime de homicídio simples, na pessoa de BB, crime esse da previsão do arts. 131º do Código Penal, agravado nos termos do art. 86º, nº 3 da Lei nº 5/2006, de 23-02,  na pena de 14 (catorze) anos de prisão;
c) pela prática de um crime de detenção de arma proibida, da previsão do art. 86º, nº 1, al. c), da Lei nº 5/2006, de 23-02, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
d) em cúmulo jurídico das três penas aplicadas, o tribunal condenou o arguido na pena única de 17 (dezassete) anos de prisão efectiva.
O tribunal do Júri julgou também parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante DD e, consequentemente, condenou o arguido a pagar à demandante a quantia global de € 177.242,28 (cento e setenta e sete mil duzentos e quarenta e dois euros e vinte e oito cêntimos), a título de danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, acrescendo juros à taxa legal a contar desde a notificação do pedido, e absolveu o demandado do restante pedido.

2. Não se conformando, o arguido recorreu para o tribunal da Relação, entendendo que não deveria ter sido condenado por homicídio privilegiado, nos termos do disposto no art.º 133.º do CP; que não deveria ser aplicada a agravação contida no art.º 86.º, n.º3, da Lei n.º 5/2006, de 23.2, por não constar da acusação e pronúncia, e considerou não ter sido observado o teor do art.º 70.º do CP, devendo ser aplicada uma pena pecuniária.    

             Também a assistente recorreu, invocando os vícios previstos no n.º2 do art.º 410.º do CPP, como nos termos do disposto no art.º 412.º, n.s. 3 e 4 do CPP, com vista à aplicação do tipo agravado e de outra medida concreta da pena mais grave; e discordando também do montante da indemnização.   

            O tribunal da Relação, no entanto, negou provimento aos recursos interpostos pelo arguido AA e pela assistente DD, confirmando integralmente a decisão recorrida.

            3. O arguido recorre agora para o Supremo Tribunal de Justiça, com os fundamentos da motivação que apresenta, e que termina com a formulação das seguintes conclusões:

a) Entende o arguido que deveria ter sido condenado por homicídio privilegiado, na previsão do art°. 133°. Cód. Penal; uma vez que resultaram provados os seguintes factos:

1. o mau relacionamento entre o arguido e o cunhado e infeliz vítima CC,

2. que o mau estar "já se arrastava há anos",

3. que o CC, por vezes, provocava o arguido, com gestos ou palavras,

4. que o arguido ouviu a mulher a gritar a seguinte expressão: "anda cá AA que ele mata-me",

5. que, chegado ao local - acompanhado de uma arma caçadeira de que se tinha munido, previamente - apercebeu-se "que a sua esposa tinha estado envolvida numa discussão com confrontos físicos não concretamente apurados com a vítima CC,

6. que o arguido referiu, voltado para as infelizes vítimas: "tirai-vos daqui",

7. que as infelizes vítimas cresceram para o arguido,

8.  e  que,   só,   nestas  circunstâncias,   é  que  o  arguido  efectuou  os disparos...

b) As penas parcelares aplicadas (e, reflexamente, o cúmulo jurídico) são exageradas e desproporcionadas; sobretudo, no que respeita ao homicídio da infeliz vítima CC.

c) Em todo o caso, os crimes de homicídio não podem - nem devem - ser agravados nos termos do preceituado no art°. 86°., n°. 3 da Lei n°. 5/2006, de 23/2; desde logo, porque esse agravamento não resulta do despacho de pronúncia.

d) O "agravamento" não é um facto,

e) E, por isso, o agravamento não constitui uma alteração (substancial ou não) dos factos e, portanto, não têm, aqui, aplicabilidade os art°.s 303°. e 358°. CPP.

f) A pena aplicada ao arguido pela detenção de arma proibida não deve ser de prisão efectiva.

g) A pena final e global deve, em todo o caso e no contexto exposto, sofrer uma redução substancial e não exceder os oito anos de prisão.

h) Ao decidir de modo diverso, o Tribunal da Relação do Porto violou as seguintes normas: art°.s 131° e 133° do Cód. Penal, art°.s 303° e 358°, n°.s 1 e 3 CPP e art° 86°., n°.s 1, al. c) e 3 da Lei n° 5/2006, de 23/2.

Pede, a terminar, o provimento do recurso, com a revogação do acórdão recorrido, devendo, em sua substituição, ser proferido acórdão «que realize uma adequada e ajustada interpretação da prova produzida e a correspondente aplicação do direito e que, em consequência, a pena final a aplicar ao arguido não ultrapasse os oito anos de prisão efectiva».

O magistrado do Ministério Público respondeu à motivação, concluindo pelo modo seguinte:

1 .Os factos dados como provados integram-se na previsão do crime de homicídio simples, p. e p. pelo art. 131° do Cód. Penal, agravado nos termos do art. 86º. n.° 3, da Lei n.° 5/2006, de 23 de Fevereiro, por que o arguido foi condenado, não se verificando, no caso em apreço, os pressupostos do crime de homicídio privilegiado previsto no art. 133° do Cód. Penal.

2. A alteração da qualificação jurídica efectuada pela 1ª instância obedeceu ao disposto no art. 358°, n.°s 1 e 3, do CPP, em obediência ao princípio do contraditório, pelo que bem andou o acórdão recorrido ao considerar que o acórdão da 1ª instância não enferma da nulidade prevista no art. 379°, n.° 1, al. b), do CPP.

3. As penas parcelares e a pena única encontradas pela 1ª instância e confirmadas pelo acórdão recorrido mostram-se justas e adequadas, de acordo com os critérios legais previstos no art. 71° do Cód. Penal, pelo que não merecem qualquer censura.

Considera, por isso, que o recurso interposto pelo arguido ser julgado improcedente, confirmando-se o acórdão recorrido.

            A assistente, por seu lado, respondeu também à motivação de recurso, concluindo:

1- A assistente, perdeu, alvejados a tiro de caçadeira pelo arguido, seu cunhado, no fatídico dia 18 de Maio de 2011, o marido e o único filho.

2- A assistente discorda frontalmente do arguido quanto ao seu entendimento de que deveria ser punido por dois homicídios privilegiados;

3- Não se provaram quaisquer circunstâncias que diminuam sensivelmente a culpa do agente, designadamente que tivesse actuado dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral

4- As provas produzidas impunham decisão igualmente condenatória do arguido, mas com uma pena mais elevada do que a que teve,

5- Se em relação ao homicídio do cunhado, o arguido tentou “arranjar” uma teoria -que não se aceita - que circunstância se invoca para a vitima BB, com o qual não havia qualquer conflito, era doente mental e estava Indefeso em consequência dessa doença?

6- O cúmulo jurídico operado não valorou devidamente os factos, a personalidade e a culpa do agente;

7- As três penas parcelares foram cumuladas numa pena única de 17 anos de prisão, violando o art ° 77.° n ° 1 do CP, por não se ter tido em devida conta o facto de ter abandonado as vitimas sem lhes prestar auxílio, sendo o BB seu afilhado e não lendo qualquer problema com o mesmo, alvejando-o no peito a três metros de distância depois de já ver o resultado do disparo semelhante feito ao peito do cunhado, e de ter prosseguido com a sua rotina deslocando-se ao centro se saúde no seu carro depois de passar por casa a arrumar a arma e as munições deflagradas, para uma consulta marcada.

8- Foi cumprido o contraditório e a alteração jurídica para a agravação do art ° 86° n.° 3 da Lei nº 5/2006

9- Com relevância para a presente resposta, contrariando a tese do arguido, foram dados como provados os seguintes factos

“Após ter efectuado os dois disparos, o arguido deslocou-se para a respectiva habitação".

“De seguida, guardou a arma caçadeira e os cartuchos não deflagrados, tendo colocado os dois invólucros dos cartuchos deflagrados ... no caixote do lixo existente na cozinhe do rés-do-chão da sua residência.

"Instantes depois, o arguido deslocou-se no seu veículo... para Centro de Saúde de ..., uma vez que tinha marcado uma consulta naquela unidade de saúde, local onde foi encontrado por elementos da G. N R."

“O corpo já cadáver de BB .. .. uma vez que esta vitima não teve morte imediata na sequência do disparo de arma de fogo contra si efectuado, sendo assistida no local"

“O corpo de BB apresentava ainda lesão extensa na  zona do /punho/terço   anterior   do   antebraço   esquerdo,        esta lesão terá resultado de um gesto de protecção/defesa da vítima, quando pressentiu que iria ser efectuado contra si o disparo de arma de fogo que a atingiu ao nível da zona peitoral ou mamaria, do lado direito."

“O arguido usou a arma acima identificada fora da sua residência, com o propósito de praticar os factos descritos, bem sabendo que não a podia utilizar, por apenas ter licença para detenção no domicílio.”

“Há cerca de dez anos que o arguido e a sua mulher e a assistente e o seu marido CC estavam desavindos e não se falavam. Mais recentemente, existia, também, um conflito entre os dois casais, relacionado com o prédio onde ocorreram os factos.”

“Para aceder da sua casa de habitação ao terreno agrícola onde os factos ocorreram, o arguido seguiu por um caminho de terra batida, cerca de 100 metros”

“O arguido não prestou auxílio às vítimas dos seus disparos, seguindo pelo mesmo caminho de terra batida em direcção à sua casa." (sublinhado nosso).

“Posteriormente, o BB que seguia com vida, ainda foi assistido no local pelos serviços dos Bombeiros de ..., mas não resistiu aos ferimentos que lhe foram provocados pelo tiro disparado peio arguido, acabando por falecer cerca de 40 a 45 minutos após ter sido atingido pelo disparo da caçadeira.”

“A morte do marido e do filho causou à assistente um sofrimento profundo e atroz, marcando para sempre a sua personalidade.”

“A vítima BB sofria de problemas mentais, não tendo qualquer conflito com o arguido, seu tio e padrinho, cumprimentando-se quando se encontravam na rua.”

10- Não foi dado como provado, com relevância para a nossa discordância em relação ao defendido pelo arguido:

“Que quando chegou ao local, o arguido se deparou com a sua mulher a ser agredida pelo CC e pelo BB, e a sangrar da boca, ou que se lhes dirigiu a pedir para largarem a mulher e dizendo que não queria problemas”;

“Que nessa altura, as vítimas largaram a mulher do arguido e se dirigiram ao encontro deste, em tom ameaçador, proferindo o CC expressões do género “agora vais ser tu”;

11- O acórdão deu indevidamente como provado.

“…….  o arguido…..  encontrava-se na sua residência,….., quando ouviu a sua esposa EE, a gritar: “anda cá AA que ele mata-me”.”

O arguido disse “anda cá AA que ele mata-me” (10.31:13 a 10:45:00) e a própria mulher, EE, referiu ter gritado, “quem me acode?” (10:28:34 a 10:3300), de onde não pode dar-se como provado a expressão sublinhada;

“Chegado ao local e apercebendo-se que a sua esposa tinha estado envolvida numa   discussão com confrontos físicos…. com a  vitima CC,…. que as vitimas cresceram para ele……….";

Esta factualidade não resulta igualmente provada se se atentar no depoimento do arguido (10: 31: 13 a 12: 04:00), porquanto não foi posteriormente corroborado pela testemunha  EE que  referiu   “eu    ainda    estava    no    chão    quando    ele chegou….” (10.28:34 a  10:34:00),  não conseguindo concretizar as  posições das vitimas e do arguido e ainda a atitude de cada um em concreto;

Resulta das escutas telefónicas, do respectivo auto de transcrição, produto 177, que a mulher do arguido não estava sequer junto das vitimas, “vinha dos carvalhos”, como impossibilitando a conclusão de que houve confrontos físicos com esta e os falecidos antes de o arguido chegar, não estando sequer próximos.

Não há prova directa e presencial sobre as alegadas provocações da vítima CC ao arguido e não se poderia dar como provado "O mau relacionamento entre o arguido e o seu cunhado CC já se arrastava há anos, sendo que o CC, por vezes, provocava o arguido, com gestos ou palavras” Cfr. testemunha FF que disse "só estava num lugar num mau momento" (16:34:23 a 16:36:31)

12- Matéria de facto indevidamente considerada como não provada e elementos probatórios que impunham uma decisão diferente:

“Que a vítima CC foi friamente morto;"

Do relatório de autópsia a fls 482 e ss, do relatório de exame ao local de fls. 119 e ss, as fotografias de fls. 413 resulta a posição das vítimas, a ausência de quaisquer sinais de violência, Que os disparos foram feitos a uma distância de 3 metros e directamente ao coração. Sabendo que as vítimas não se podiam defender e que teriam morte imediata. E não foi feito qualquer outro disparo anteriormente apontando ao chão, ou ao ar, mas directamente a matar.

“Que o arguido apontou a caçadeira e disparou contra o cunhado e o sobrinho, sem que houvesse qualquer diálogo ou qualquer contacto físico com eles,''

O próprio arguido não referiu qualquer contacto físico com nenhuma das vítimas (10:31:13 a 12:00:00); De igual forma tão pouco a testemunha EE refere qualquer contacto físico entre as vítimas e o arguido (10:28.34 a 11:35:00);

“Que o arguido não mostrou qualquer arrependimento ou descontrolo emocional, mantendo-se frio;” e “que o arguido não procurou chamar auxilio”, desmentido pelas declarações da assistente DD (12:06:07 a 12 19:00) do próprio arguido (10:31:13 a 12:0411) e da testemunha EE (10:28:34 a 11:41:22) sobre o abandono das vítimas, para arrumar a arma e as munições em casa e seguir para o centro de saúde para uma consulta marcada.

13- A contradição entre os factos dados como provados e a prova efectivamente produzida, levou a uma motivação edificada sobre pressupostos errados e como tal, a uma condenação numa pena inferior á medida da culpa do arguido.

14- Decidiu bem o acórdão ao não dar como provadas quaisquer agressões da vítima CC à sua irmã. A própria médica que a atendeu no dia seguinte ao dos factos confirmou não “ter quaisquer marcas nas partes do corpo que não estavam tapadas pela roupa” (14:27:07 a 14.29:00), nem “se lhe ter queixado de dores” ou semelhante mas apenas de falta de sono,

15- A fls. dos autos de transcrição das escutas telefónicas (produto 177) realizadas ao arguido que em conversa com a mulher, além do mais, diz “então eu não sei o que fiz?” “tu vinhas lá dos carvalhos” - revelando que não houve qualquer envolvimento entre todos;

16- Não foi dado como provado que o arguido tivesse medo do seu cunhado CC (vide relatório de fls 595 e ss), para justificar a necessidade de se fazer acompanhar da arma.

17- Quanto ao sobrinho e afilhado do arguido filho, BB, com o qual não havia qualquer conflito e sofria de doença mental, que alegou o arguido? - nada.

18- Hoje a propriedade rural não é objecto das disputas de outrora, quer pelo seu abandono e o envelhecimento da pouca população que ainda permanece nos meios rurais, e o arguido era taxista...

19- Quer as penas parcelares, quer a pena única já foram demasiado brandas.

20- Nem a assistente, nem a comunidade local sentem que a condenação em 17 anos de prisão satisfaz as necessidades que a sociedade tem de saber que o direito está vigilante e actuante, repondo a ordem quando ela é violada e punindo na medida da culpa.

21- O acórdão na escolha da medida concreta da pena tomou por base que houve “discussão e envolvimento físico” entre a vítima CC e a mulher do arguido e que ambas as vitimas "cresceram" para o arguido, o que está manifestamente em contradição com os factos provados e não provados e inquina todo o raciocínio dai decorrente com reflexo em penas parcelares demasiado brandas.

22- A pena única deveria ter-se situado já dentro do mínimo de 14 anos e do máximo de 25 anos de prisão, mais próxima do máximo do que encostada ao mínimo, como foi, fazendo com que em concreto o arguido tivesse colhido duas vidas e sendo punido com a pena praticamente aplicada por uma só.

            Defende, em consequência, que deve ser negado provimento ao recurso do arguido.

4. No Supremo Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta teve intervenção nos termos do artigo 416º do CPP.

Colhidos os vistos, o processo foi à conferência, cumprindo decidir.

5. O tribunal do Júri jugou provados os seguintes factos:

O arguido é cunhado do falecido CC e tio do falecido BB, estando, à data, de relações cortadas com o primeiro, não se falando.

No dia 18 de Maio de 2011, por volta das 10.00 horas, o arguido AA encontrava-se na sua residência, sita no ..., em ..., na freguesia de ..., em ..., quando ouviu a sua esposa EE, que se encontrava a cerca de 100 metros, num terreno próximo, a gritar: "anda cá AA que ele mata-me".

O arguido muniu-se de uma arma caçadeira (uma arma de fogo, longa, calibre 12, de tiro a tiro, de dois canos sobrepostos de 70 cm de comprimento, de alma lisa, da marca “Falcon da Saint - Etienne", com a numeração 41922 966, mono gatilho, com bandoleira em cabedal entrançado de cor castanha).

Municiou-a com, pelo menos, dois cartuchos e dirigiu-se por um caminho de terra batida ao terreno onde as vítimas se encontravam a executar trabalhos agrícolas.

Chegado ao local e apercebendo-se que a sua esposa tinha estado envolvida numa discussão com confrontos físicos não concretamente apurados, com a vítima CC, o arguido disse: “Tirai-vos daqui”, ao que as vítimas cresceram para ele, momento em que o arguido, empunhando a referida arma, a apontou, a cerca de 3 metros de distância, ao lado esquerdo do peito do seu cunhado CC e desferiu um tiro, provocando-lhe, de imediato, a morte.

Imediatamente a seguir, virou a arma para o seu sobrinho BB, que se encontrava ao lado de seu pai, a vítima CC, e, a cerca de 3 metros do sobrinho BB, desferiu outro tiro que o atingiu ao lado direito do peito, levando-o também à morte, tendo, contudo, este ainda sido encontrado com vida e assistido no local por elementos da emergência médica de ... e dos Bombeiros Voluntários de ....

Após ter efectuado os dois disparos, o arguido deslocou-se para a respectiva habitação.

No caminho cruzou-se com a sua vizinha GG e com a sua cunhada DD, com quem trocou algumas palavras.

De seguida, guardou a arma caçadeira e os cartuchos não deflagrados, tendo colocado os dois invólucros dos cartuchos deflagrados, calibre 12, de cor vermelha, da marca "Master 33", com a inscrição/referência de malha "4", de cupela baixa, no caixote do lixo existente na cozinha do rés-do-chão da sua residência.

Instantes depois, o arguido deslocou-se no seu veículo da marca "Mercedes-Benz", matricula ...-LD (um táxi), para as instalações da Extensão de ... - Centro de Saúde de ..., uma vez que tinha marcado uma consulta naquela unidade de saúde, local onde foi encontrado por elementos da G.N.R.

O corpo já cadáver de CC foi encontrado na posição de decúbito dorsal, num terreno ocupado por castanheiros, junto a um armazém agrícola, numa propriedade localizada a cerca de 100 m da habitação do arguido AA.

O corpo desta vítima estava prostrado no chão, perfeitamente composto no que à roupa dizia respeito, apresentando lesão correspondente a orifício de entrada de projéctil de arma de fogo, na zona peitoral ou mamária esquerda, consequência necessária do disparo de arma de fogo longa (tipo caçadeira) que o arguido utilizou.

Na zona axilar/escapular esquerda, CC apresentava outras lesões, correspondentes ao impacto de projécteis (vagos de chumbo) resultantes do disparo efectuado, e na mão direita foi ainda observada outra lesão, uma pequena escoriação.

O corpo já cadáver de BB foi encontrado na posição de decúbito dorsal, no interior de uma ambulância dos Bombeiros Voluntários de .., uma vez que esta vítima não teve morte imediata na sequência do disparo de arma de fogo contra si efectuado, sendo assistida no local.

Esta vítima apresentava múltiplas lesões na zona peitoral ou mamária direita, e braço direito, todas correspondentes a impactos e aos orifícios dos projécteis (vagos de chumbo) resultantes de disparo de arma fogo longa (tipo caçadeira) utilizada pelo arguido.

O corpo de BB apresentava ainda lesão extensa na zona do punho/terço anterior do antebraço esquerdo, com destruição significativa de tecidos e exposição óssea, sendo que esta lesão terá resultado de um gesto de protecção/defesa da vítima, quando pressentiu que iria ser efectuado contra si o disparo de arma de fogo que a atingiu ao nível da zona peitoral ou mamária, do lado direito.

Em consequência da conduta perpetrada pelo arguido, CC sofreu e apresentava, entre outras:

a) No tórax, laceração do grande e do pequeno músculos peitorais, com infiltração sanguínea subjacente e exteriorização do pulmão esquerdo, com orifício;

b) Na clavícula, cartilagens e costelas esquerdas: orifício irregular, de bordos infiltrados de sangue, com 9,5 por 6,5 cm de maiores dimensões, interessando o arco médio das 3ª, 4ª e 5ª costelas (com perda de material ósseo) e respectivos espaços intercostais e fracturas dos 7°, 8° e 9° arcos costais posteriores com infiltração sanguínea dos topos ósseos e tecidos adjacentes, sendo as fracturas ao nível do 8° e do 9° arcos costais posteriores cominutivas, com presença de múltiplos projecteis alojados entre as esquírolas ósseas;

c) No pericárdio e cavidade pericárdica, presença de duas lacerações, arredondadas, com infiltração hemorrágica no pericárdio parietal e no pericárdio visceral subjacente;

d) No coração, duas lacerações do miocárdio, com infiltração sanguínea subjacente, localizadas na parede lateral do ventrículo esquerdo;

e) Na artéria aorta: infiltrado sanguínea peri-aorta torácica desde o fim da aorta descendente até à emergência da mesentérica superior e presença de 5 orifícios na parte lateral esquerda, estando o mais inferior a 8 cm da emergência do tronco celíaco;

f) Na Pleura parietal e cavidade pleural esquerda, 900 centímetros cúbicos de sangue na cavidade pleural esquerda, bucha encontrada nessa cavidade e laceração da pleura parietal ao nível das fracturas de costelas com infiltração hemorrágica associada;

g) No Pulmão esquerdo e pleura visceral, esfacelo completo do lobo superior, com hemorragia adjacente. Múltiplas áreas de contusão hemorrágica da face lateral do lobo inferior;

h) No Esófago: infiltração sanguínea peri-esofágica;

i) No Diafragma: Presença de dois orifícios arredondados, que perfuram o diafragma à esquerda, com infiltração hemorrágica adjacente.

A morte de CC deveu-se às lesões traumáticas torácicas descritas, que resultaram da acção de projécteis de arma de fogo de cano comprido, com sinais de disparo a curta distância, desferido pelo arguido AA.

Também em consequência da conduta perpetrada pelo arguido, BB sofreu e apresentava, entre outras:

a) No tórax - orifício principal, com 4,5 por 1,5 cm de maiores dimensões, localizado na região para-esternal direita, medialmente ao mamilo, a 11 cm da articulação esterno - clavicular direita (a 45°) e a 4 cm do mamilo (a 90°), múltiplos orifícios satélite localizados no hemitórax direito, com um raio de dispersão relativamente ao orifício principal de 6,5 cm superiormente, 6,5 cm medialmente e 7,5 cm inferiormente.

b) Membro superior direito: múltiplos orifícios satélite localizados na face anterior do braço, com um raio de dispersão de 19 cm, relativamente ao orifício principal no tórax;

c) Membro superior esquerdo: presença de esfacelo, com exposição óssea e tendinosa, que abarca toda a face anterior do terço inferior do antebraço e do punho - possivelmente criado numa tentativa de defesa e provocado por bagada de chumbos.

d) Paredes Tórax: com infiltração sanguínea dispersa pela grade costal direita e orifício irregular, de bordos infiltrados de sangue, com 4 por 3 centímetros de maiores dimensões, interessando o tecido celular sub-cutâneo, grande peitoral, pequeno peitoral e músculos intercostais. Infiltração sanguínea dispersa dos músculos, grande peitoral direito, da parte inferior do músculo pequeno peitoral direito, assim como dos músculos intercostais, visualizando-se múltiplos "grãos de chumbo".

e) Na clavícula, cartilagens e costelas direitas: fracturas cominutivas do segundo, terceiro, quarto e quinto arcos costais anteriores com infiltração sanguínea dos topos ósseos e tecidos adjacentes.

f) Na pleura parietal e cavidade pleural direita: 3000 centímetros cúbicos de sangue na cavidade pleural, havendo inúmeros “grãos de chumbo" misturados. Infiltração sanguínea da pleura parietal posterior, com laceração e infiltração sanguínea dos músculos intercostais ao nível dos 4°, 5° e 6º espaços intercostais.

g) No pulmão direito e pleura visceral: Presença de orifícios múltiplos, com trajectos penetrantes, com infiltração sanguínea adjacente nos lobos superior e médio e presença de múltiplos projecteis (grãos de chumbo) incrustados; nas secções de corte, parênquima com edema de bolhas finas, sanguinolentas.

h) No diafragma: Presença de múltiplos orifícios arredondados que perfuram a hemicúla diafragmática direita, com infiltração hemorrágica adjacente.

i) No fígado: Diversos orifícios com trajecto penetrante com infiltração sanguínea subjacente na superfície anterior do lobo direito, junto ao ligamento falciforme. Duas lacerações com infiltração sanguínea subjacente, uma na superfície superior do lobo direito e outra na superfície anterior do lobo direito, tendo a maior 5,5 cm de comprimento (superfície anterior).

A morte de BB resultou das lesões torácicas e resultaram da acção de projécteis da arma de fogo de cano comprido utilizada pelo arguido AA.

A morte resultou como causa directa e necessária da conduta do arguido.

Agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de tirar as vidas a CC e a BB, o que representou.

O arguido usou a arma acima identificada fora da sua residência, com o propósito de praticar os factos descritos, bem sabendo que não a podia utilizar, por apenas ter licença para detenção no domicílio.

Sabia o arguido que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

A assistente estava casada com CC, quando este foi morto pelo arguido.
O falecido BB era o seu único filho.
O arguido está casado com uma irmã do falecido CC e era tio e padrinho do BB.
A casa de habitação do arguido e a casa de habitação do seu falecido cunhado, no Bairro do ..., em ..., ficam lado a lado.
Há cerca de dez anos que o arguido e a sua mulher e a assistente e o seu marido CC estavam desavindos e não se falavam.
Mais recentemente, existia, também, um conflito entre os dois casais, relacionado com o prédio onde ocorreram os factos.
Para aceder da sua casa de habitação ao terreno agrícola onde os factos ocorreram, o arguido seguiu por um caminho de terra batida, cerca de 100 metros.
O arguido não prestou auxílio às vítimas dos seus disparos, seguindo pelo mesmo caminho de terra batida em direcção à sua casa.
Ouvindo o som provocado pelos disparos, a assistente dirigiu-se para o local, vendo também uma vizinha de nome GG e, depois, o marido desta, Manuel Santos.
Chagada ao local onde estavam prostrados por terra o corpo do seu marido e o corpo do seu filho, a assistente deparou-se com o maior horror da sua vida.
Ficou em choque, sem saber a quem acudir, gritando por ajuda.
Posteriormente, o BB que seguia com vida, ainda foi assistido no local pelos serviços dos Bombeiros de ..., mas não resistiu aos ferimentos que lhe foram provocados pelo tiro disparado pelo arguido, acabando por falecer cerca de 40 a 45 minutos após ter sido atingido pelo disparo da caçadeira.
Quando a equipa do helicóptero do INEM de ... chegou ao local, o BB tinha acabado de morrer, tendo ainda esta equipa tentado a sua reanimação, mas sem sucesso.
A morte do marido e do filho causou à assistente um sofrimento profundo e atroz, marcando para sempre a sua personalidade.
A assistente perdeu a alegria de viver, anda permanentemente angustiada e deprimida.
Perdeu a vontade de comer e depende de calmantes para dormir.
Não suporta a solidão e está a viver com uma irmã, noutra localidade, não conseguindo estar perto do local onde o arguido lhe matou o marido e o filho.
Fechou a casa e vendeu os animais, abandonando o cultivo dos terrenos.
A vítima BB sofria de problemas mentais, não tendo qualquer conflito com o arguido, seu tio e padrinho, cumprimentando-se quando se encontravam na rua.
A assistente adorava o seu filho, pelo que a sua perda lhe provocou e provoca enorme desgosto e sofrimento profundo.
Permanece ainda hoje aterrorizada e profundamente afectada psicologicamente com toda a situação, nunca mais tendo conseguido dormir tranquila.
Teve de ser assistida no próprio dia dos factos e tem consultas de acompanhamento da especialidade de psicologia.
O falecido CC trabalhava na agricultura, possuía alfaias, máquinas agrícolas e uma égua para trabalhar as terras, cultivando centeio, batatas, milho, cabaças e vários produtos hortícolas, como cebola, tomate, feijão, cenouras ou pimentos, para além de ter árvores de fruto que cuidava.
Produzia para consumo próprio e da família, mas também para vender.
Possuía um rebanho de, pelo menos, 50 ovelhas e, ainda, porcos, galinhas e coelhos.
Beneficiava de subsídios económicos para a exploração agrícola e o rebanho.
De toda a sua actividade retirava um rendimento mensal não concretamente apurado, mas aproximadamente equivalente ao ordenado mínimo nacional.
A assistente ajudava o marido nos trabalhos agrícolas.
O BB estava mentalmente doente há cerca de dez a doze anos, sendo acompanhado regularmente por médicos e fazendo a respectiva medicação.
Fruto da sua doença, deixou praticamente de falar, mas tal não o impedia de trabalhar e ajudar os seus pais nos trabalhos agrícolas.
A assistente pagou pelo funeral do seu marido a quantia de € 900,00, tendo recebido o subsídio de funeral no valor de € 213,86.
Pagou, igualmente, pelo funeral do seu filhos a quantia de € 900,00, tendo recebido de subsídio de funeral a quantia de € 213,86.
Pagou € 70,00 ao sacerdote pela celebração da missa de sufrágio das suas almas.
Pagou € 300,00 pelos serviços do coveiro e sacristão.
Necessitou e continua a necessitar de acompanhamento médico e psicológico, andando a ser acompanhada, tendo de se deslocar para ir às consultas e tendo de adquirir medicamentos.

O arguido é considerado pessoa pacífica e tem bom comportamento anterior e posterior aos factos.
É tido como prestável, respeitado e respeitador, um bom marido e um bom pai e um profissional honesto e trabalhador.
O arguido nunca, anteriormente, teve problemas com a justiça.
O mau relacionamento entre o arguido e o seu cunhado CC já se arrastava há anos, sendo que o CC, por vezes, provocava o arguido, com gestos ou palavras.
No dia dos factos, o arguido encontrava-se no interior da sua residência, quando, a dado momento, ouviu gritos de socorro de uma voz que reconheceu como sendo da sua mulher, e por isso se dirigiu ao local onde a sua mulher se encontrava, transportando consigo a caçadeira que antes municiou.
O arguido colaborou desde o início com a investigação, indicando onde tinha a arma, munições e invólucros das munições deflagradas, tendo, também, em audiência de julgamento, confessado, no essencial, os factos.
Mostrou-se arrependido.
Vivia com a esposa, em casa própria, exercendo a actividade de taxista, da qual retira um rendimento de natureza irregular.
Recebe uma reforma no valor de cerca de € 500,00 mensais, tal como a sua esposa, retirando, ainda, outros rendimentos incertos como resultado do seu trabalho na agricultura, designadamente, vendendo castanhas.
Apesar de ter 71 anos de idade, não tem antecedentes criminais.
                                                         *
De essencial, relativamente à factualidade descrita na acusação, no requerimento do pedido civil e nas contestações, não se provaram os factos seguintes:
- que o arguido estivesse de relações cortadas com o seu sobrinho, a vítima BB;
- que o arguido tivesse disparado logo que chegou ao local dos factos, sem qualquer troca de palavras;
- que o arguido se cruzou com HH, quando, após os factos, regressava para a sua casa;
- que o arguido actuou por motivo insignificante, com indiferença, frieza e desrespeito pela vida humana e reflectindo no meio utilizado, bem sabendo que o mesmo era apto a tal fim (por se tratar de matéria conclusiva);
- que a vítima CC foi friamente morto;
- que o arguido apontou a caçadeira e disparou contra o cunhado e o sobrinho, sem que houvesse qualquer diálogo ou qualquer contacto físico com eles;
- que o arguido não mostrou qualquer arrependimento ou descontrolo emocional, mantendo-se frio;
- que o arguido não procurou chamar auxílio;
- que o arguido, quando se cruzou com a assistente, lhe apontou a caçadeira, dizendo: ”Sai da frente! Já foram dois e tu também vais.”, valendo-lhe a vizinha GG que agarrou o arguido e o segurou até casa, de contrário também a vida da assistente estava em sério risco;
- que a mulher do arguido e uma irmã de nome II estavam no local dos factos, quando a assistente lá chegou, e que a mulher do arguido abandonou rapidamente o local sem prestar qualquer auxílio ou demonstrar qualquer comoção;
- que o BB estava em grande sofrimento e respirando a custo;
- que o arguido teve uma atitude de total indiferença em relação ao sucedido;
- que o BB ficou em agonia, com dificuldades respiratórias e dores lancinantes, durante cerca de 40 a 45 minutos;
- que a actividade do BB representava uma grande ajuda económica para os seus pais, o que representava um valor mensal de cerca de € 150,00;
- que o arguido é pessoa de posses, sendo-lhe conhecidos diversos prédios rústicos e urbanos, bem como aforro em bancos e rendimentos de vária ordem;
- o demais alegado no pedido de indemnização civil e que configura conclusões;
- que o falecido CC ameaçava o arguido exibindo uma pistola e fazendo gestos próprios de quem quer dar um tiro em alguém;
- que esse tipo de comportamento fez com que o arguido tivesse medo/receio do seu cunhado e que evitasse contactos com o mesmo;
- que na povoação de ... e arredores, as pessoas afirmavam que o CC era um indivíduo violento e conflituoso;
- que quando chegou ao local, o arguido se deparou com a sua mulher a ser agredida pelo CC e pelo BB, e a sangrar da boca, ou que se lhes dirigiu a pedir para largarem a mulher e dizendo que não queria problemas;
- que nessa altura, as vítimas largaram a mulher do arguido e se dirigiram ao encontro deste, em tom ameaçador, proferindo o CC expressões do género “agora vais ser tu”;
- que quando estavam a escassos 4 ou 5 metros do arguido, o CC manifestou o propósito de retirar um qualquer objecto do bolso, tendo sido nesse instante que o arguido disparou, por estar em pânico e perante a possibilidade de ser confrontado com uma pistola, que já tinha visto nas mãos do CC por mais do que uma vez ;
- qualquer outro facto alegado na contestação e não mencionado, por se tratar de conclusões ou repetições.   

             

            6. O fundamento principal do recurso do arguido reverte à qualificação dos factos, entendendo que deve ser condenado por homicídio privilegiado nos termos do artigo 133º do Código Penal.

O artigo 133.º do Código Penal estabelece na versão actual que «Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos».
            A enumeração das circunstâncias que caracterizam o tipo privilegiado de homicídio  feita no artigo 133.º não é exemplificativa, o que ressalta com clareza a partir da redacção  introduzida pela alteração do Código Penal, operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, entrada em vigor em 1 de Outubro de 1995 (anteriormente a jurisprudência considerava-a exemplificativa – cfr. acórdãos do STJ, de 16-01-1990, processo n.º 38690, CJ 1990, tomo 1, pág. 11 e BMJ n.º 393, pág. 212; de 16-01-1990, processo n.º 40599, AJ, n.º 5 e mesmo BMJ n.º 393, pág. 278; de 23-05-1991, BMJ n.º 407, pág. 341 e de 05-02-1992, comentado in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 6 (1996), Fasc. 1.º, pág. 119). 

           «Não foi intenção do art. 133º (…) consagrar uma cláusula geral de menor exigibilidade no crime de homicídio; foi, pelo contrário, a de vincular uma tal cláusula à verificação de um dos pressupostos nele explicita e esgotantemente contidos. O que neles não caiba só pode ser (eventualmente) considerado através do instituto da atenuação especial da pena do homicídio simples previsto no art.131º» (cf., Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense …, §§ 6 e 12, págs. 49/50 e 53).

A compreensível emoção violenta; a compaixão; o desespero; ou um motivo de relevante valor social ou moral constituem cláusulas que apontam para a redução da culpa, ou cláusulas de privilegiamento, ou elementos privilegiadores, traduzindo estados de afecto vividos pelo agente, ou causas de atenuação especial da pena do homicídio.
            O artigo 133.º consagra hipóteses de homicídio privilegiado em função, em último termo, de uma cláusula de exigibilidade diminuída legalmente concretizada, advertindo o Autor que a diminuição sensível da culpa não pode ficar a dever-se nem a uma imputabilidade diminuída, nem a uma diminuída consciência do ilícito, mas unicamente a uma exigibilidade diminuída de comportamento diferente, tratando-se da verificação no agente de um estado de afecto, que podendo ligar-se a uma diminuição da imputabilidade ou da consciência do ilícito, independentemente de uma tal ligação, opera sobre a culpa ao nível da exigibilidade.
 «O efeito diminuidor da culpa ficar-se-á a dever ao reconhecimento de que, naquela situação (endógena e exógena), também o agente normalmente “fiel ao direito” (“conformado com a ordem jurídico penal”) teria sido sensível ao conflito espiritual que lhe foi criado e por ele afectado na sua decisão, no sentido de lhe ter sido estorvado o normal cumprimento das suas intenções» (cf., Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense § 1, pág. 47, e § 3, pág. 48).
 «Tanto a qualificação no artigo 132º, como o privilegiamento no artigo 133º, ficam-se a dever a diferentes graduações da culpa, no primeiro caso no sentido de uma especial censurabilidade da atitude contrária ao direito actualizada no facto pelo agente, e, no segundo, no sentido da consideração da atitude do agente manifestada no facto como sensivelmente menos censurável»; «o fundamento de uma agravação ou de uma atenuação que altera uma moldura penal pode não ser um fundamento de ilicitude, mas apenas um fundamento de culpa».
«A moldura penal do homicídio privilegiado funda-se ela própria numa atitude do agente sensivelmente menos censurável e que ultrapassa até os limites impostos pela atenuação especial prevista no (então) artigo 74º, nº 1, alínea a) » (cf., Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1990, pág. 40).
A compreensível emoção violenta é um forte estado de afecto emocional provocado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado e à qual também o homem normalmente “fiel ao direito” não deixaria de ser sensível (cf., Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense …, § 7, pág. 50).
A emoção violenta tem referências na «figura paralela» da provocação denominada “suficiente”, no domínio do CP/1886, sendo aquela  que atingiu “uma intensidade tal que, face a ela, seria razoavelmente de esperar que o provocado reagisse através de uma agressão” (cf., Eduardo Correia, in Direito Criminal, II, págs. 278 e ss).
No esforço de compreensão da emoção violenta é imperativo o estabelecimento de uma relação entre o afecto e as suas causas ou motivos, pois, para se entender uma emoção tem de se entender as relações que lhe deram origem, tendo em atenção o sujeito que a sentiu e o contexto em que se verificou a atitude, em ordem a entender o estado de espírito, o «conflito espiritual», a situação psíquica que leva o agente ao crime.

O facto que origina a emoção não tem que radicar, no entanto, em qualquer provocação. Na perspectiva do art. 133º - assente, não em juízos de ponderação ético-jurídicos dos valores conflituantes, mas sim na valoração da situação psíquica que leva o agente ao crime – o que interessa é «compreender» esse mesmo estado psíquico, no contexto em que se verificou, a fim de se poder simultaneamente «compreender» a personalidade do agente manifestada no facto criminoso e, assim, efectuar sobre a mesma o juízo de (des) valor que afinal constitui o juízo de culpa.

            «A compreensibilidade da emoção é mais, assim, o estabelecer de uma relação não desvaliosa entre os factos que provocaram a emoção e essa mesma emoção. Se essa relação for estabelecida, a emoção é compreensível e provoca, portanto, uma diminuição da culpa do agente» (cf., Figueiredo Dias, in Parecer na Colectânea de Jurisprudência 1987, tomo 4, pág. 55).
   Subjacente à norma do artigo 133º do CP, e como elemento do tipo privilegiado, está um critério de menor exigibilidade relacionado com a “sensível diminuição da culpa”, a que acresce uma exigência adicional, exigindo-se da emoção violenta (e apenas desta, com exclusão da compaixão e desespero, que seja compreensível, restringindo-se a validade da exigência de compreensibilidade para os estados de afecto esténicos (cf., Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, § 8, págs. 50/51).
O preceito do artigo 133.º coloca à cláusula da emoção violenta maiores exigências do que em relação às restantes cláusulas, sofrendo uma dupla exigência que se configura como um duplo controlo: tem de ser compreensível (sendo que nem a compaixão, nem o desespero estão sujeitos à cláusula da compreensibilidade), e tem de diminuir sensivelmente a culpa do agente; um duplo controlo a avaliar e ponderar nos limites de determinação da culpa.
Compreender significa «entender, perceber, alcançar com inteligência, conhecer a razão de, em suma, penetrar o sentido de alguma coisa. O que impõe o estabelecimento de uma relação entre a emoção violenta e aquilo que a precedeu e lhe deu causa, não com o objectivo de estabelecer uma qualquer relação de proporcionalidade, mas antes para conhecer a razão da emoção violenta: a emoção violenta só é compreensível em face das razões que lhe deram origem e do sujeito particular que as sofreu. O que significa que esta compreensibilidade não pode fugir ao princípio da razão» (cf., Teresa Serra, ibidem, págs. 165/6).
Os factos, os motivos e as razões que determinaram a emoção violenta, podem, nesta perspectiva, ser avaliados  por referência à personalidade do  agente que actua; ou, em outro modo de interpretar, a compreensibilidade há-de aferir-se, não em relação às particularidades concretas do agente, mas em relação a um homem médio com certas características que o agente detém.

            Na doutrina, Figueiredo Dias (Parecer publicado na Colectânea de Jurisprudência 1987, tomo 4, pág. 55), considera, como se salientou, que o que interessa é «compreender» o estado psíquico do agente, no contexto em que se verificou, a fim de se poder simultaneamente «compreender» a personalidade do agente manifestada no facto criminoso e, assim, efectuar sobre a mesma o juízo de (des)valor que afinal constitui o juízo de culpa”.
Teresa Serra (Homicídios em série, págs. 166 e 168), por seu lado, sustenta que a emoção violenta só é compreensível em face das razões que lhe deram origem e do sujeito particular que as sofreu, especificando que o critério para aferir da diminuição sensível da culpa provocada por uma emoção violenta deve ser concretizado por referência à personalidade do agente individual que actua.
A jurisprudência, por seu lado, tem seguido um ou outro dos critérios (cf., v. g., acórdãos de 29-03-2000, processo n.º 27/00-3.ª, seguido de perto no de 03-05-2007, processo n.º 1233/07 – 5.ª; de 01-03-2006, processo n.º 3789/05-3.ª e de 29-03-2006, processo n.º 360/06-3.ª, estes seguidos pelo acórdão de 12-6-2008, no processo n.º 1782/08-3.ª, defende-se que a compreensibilidade e perceptibilidade deve ser aferida em função do padrão de um homem médio, colocado nas circunstâncias do agente, com as suas características, o seu grau de cultura e formação, intentando saber-se se esse, nesse exacto contexto, também reagiria assim, incapaz de se libertar dessa emoção, matando ele próprio.
Tal critério foi seguido também, mas reportado ao requisito da proporcionalidade, nos acórdãos de 19-04-1989, BMJ n.º 386, pág. 222 (a invocação de emoção violenta e proporcionada para enquadramento dos factos no tipo de homicídio privilegiado previsto no artigo 133.º do Código Penal, deve fazer-se na perspectiva do homem médio suposto pela ordem jurídica, sem haver que atender a reacções particulares ou ao temperamento do agente) e de 28-09-1994, CJSTJ 1994, tomo 3, pág. 206; de 11-12-1996, BMJ n.º 462, pág. 207; de 11-06-1997, CJSTJ 1997, tomo 2, pág. 228.
Nos acórdãos de 23-06-2005, processo n.º 1301/05 e de 23-10-2008, processo n.º 1212/08, ambos da 5.ª Secção, versando o segundo um caso de ciúme e vingança, defende-se que a menor exigibilidade tem de ser vista à luz do comportamento de um homem normal, respeitador das normas jurídicas, e não do particular ponto de vista do agente.
Já no acórdão de 03-10-2007, processo n.º 2791/07 – 3.ª, defende-se que a ponderação da diminuição sensível da culpa, da diminuição da exigibilidade de conduta diferente, terá de ser realizada à luz do que seria exigível a alguém colocado naquelas circunstâncias concretas.
Para o acórdão de 17-09-2009, processo n.º 434/09.5YFLSB-3.ª, o elemento de referência é um homem comum e fiel ao direito (cf, recensão do acórdão do Supremo Tribunal de 27 de Junho de 2012, proferido no processo nº 3283/09.7TACBR, que desenvolve exaustivamente as questões suscitadas pelo crime de homicídio privilegiado, tanto na doutrina como na jurisprudência do Supremo Tribunal; desta decisão foram colhidas, resumidamente, mas na medida bastante às circunstâncias do caso, as referências à construção e elementos do crime do artigo 133º do CP).

7. Como quer que seja, por um ou outro dos critérios, seja em relação às condições específicas da personalidade do agente nas circunstâncias em que actuou, seja por referência ao homem médio com as características do agente, no caso, os factos e a envolvência e o ambiente em que ocorreram, revelam um afastamento acentuado das razões de proporcionalidade entre as causas da emoção e as consequências; a falta de uma relação de proporcionalidade com a emoção eventualmente sentida pelo arguido não seria «compreensível».
Os factos que estão   provados, as circunstâncias, o ambiente, os antecedentes e a degradação relacional entre o arguido e a vítima, mesmo sendo aptos a determinar um estado psíquico de afectação, nunca seriam bastantes para considerar a emoção como «violenta», e muito menos «compreensível»; no caso, as consequências fogem ao princípio da razão.
Não pode, pois, considerar-se integrado o tipo privilegiado do artigo 133º do CP.

8. O recorrente argumenta que o crime de homicídio não pode - nem deve - ser agravado nos termos do preceituado no art°. 86°., n°. 3 da Lei n°. 5/2006, de 23/2; «desde logo, porque esse agravamento não resulta do despacho de pronúncia».

O recorrente argumenta que o «agravamento» não constava do despacho de pronúncia, e que o «agravamento» não é um facto e, consequentemente, não constitui uma alteração substancial ou não substancial dos factos.

Não são, porém, apreensíveis nem a perspectiva, nem o fundamento.

A alteração da qualificação jurídica constitui alteração da acusação, e depende do cumprimento de exigências processuais que possam assegurar o exercício do contraditório pelo arguido.

No caso, verifica-se (acta de fls. 1297 e 1298) que a alteração da qualificação jurídica foi comunicada ao arguido, cumprindo-se o disposto no artigo 358º, nºs 1 e 3 do CPP, assegurando o contraditório.

Tudo em conformidade com as exigências da lei de processo; o fundamento é, assim, manifestamente improcedente.

9. O recorrente discute também a medidas das penas.

Dispõe o artigo 40º do Código Penal que «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» - nº 1, e que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» - nº 2.

   Não tendo o propósito de solucionar por via legislativa a questão dogmática dos fins das penas, a disposição contém, no entanto, imposições normativas específicas que devem ser respeitadas; a formulação da norma reveste a «forma plástica» de um programa de política criminal cujo conteúdo e principais proposições cabem ao legislador definir e que, em consequência, devem ser respeitadas pelo juiz.

   A norma do artigo 40º condensa, assim, em três proposições fundamentais o programa político criminal sobre a função e os fins das penas: protecção de bens jurídicos e socialização do agente do crime, senda a culpa o limita da pena mas não seu fundamento.

   Neste programa de política criminal, a culpa tem uma função que não é a de modelar previamente ou de justificar a pena, numa perspectiva de retribuição, mas a de «antagonista por excelência da prevenção», em intervenção de irredutível contraposição à lógica do utilitarismo preventivo.

            O modelo do Código Penal é, pois, de prevenção, em que a pena é determinada pela necessidade de protecção de bens jurídicos e não de retribuição da culpa e do facto. A fórmula impositiva do artigo 40º determina, por isso, que os critérios do artigo 71º e os diversos elementos de construção da medida da pena que prevê sejam interpretados e aplicados em correspondência com o programa assumido na disposição sobre as finalidades da punição; no (actual) programa político criminal do Código Penal, e de acordo com as claras indicações normativas da referida disposição, não está pensada uma relação bilateral entre culpa e pena, em aproximação de retribuição ou expiação.

            O modelo de prevenção  -  porque de protecção de bens jurídicos  -  acolhido determina, assim, que a pena deva ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva e que seja definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

            O conceito de prevenção significa protecção de bens jurídicos pela tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e reforço) da validade da norma violada.

A medida da prevenção, que não pode em nenhuma circunstância ser ultrapassada, está, assim, na moldura penal correspondente ao crime. Dentro desta medida (protecção óptima e protecção mínima -  limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.

Nesta dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do artigo 71º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.

Na determinação da medida concreta da pena, o tribunal está vinculado, pois, nos termos do artigo 71º, nº 1, do Código Penal, a critérios definidos em função de exigências de prevenção, limitadas pela culpa do agente.

O recorrente não fundamenta a discordância em relação à medida das penas; produz meras afirmações que, como já a Relação considerou, não constituem fundamento prestável e válido de impugnação.
            De todo o modo, a questão relativa à determinação da natureza e da medida das penas foi desenvolvidamente ponderada no acórdão de tribunal do Júri, e confirmada pelo tribunal da Relação, em termos que não merecem discordância.
            Retomem-se no essencial as circunstâncias:
- as agressões a tiro surgiram na sequência de uma discussão e envolvimento físico de uma das vítimas com a esposa do arguido e do pedido de socorro desta, que levou a arguido a deslocar-se ao local munido de uma arma;
- os disparos ocorreram depois de as vítimas, mesmo perante a presença da arma, crescerem para o arguido, em vez de se afastar
- as agressões praticadas peio arguido nas vítimas foram realizadas com arma de fogo, disparada a uma distância demasiado curta para falhar.
- o arguido não deixou de assumir a sua culpa, admitindo a prática dos factos, e demonstrando arrependimento;
- são favoráveis ao recorrente as circunstâncias relativas à sua personalidade, e as relativas à sua integração na sociedade, na família e no trabalho, e o facto de não lhe serem conhecidos antecedentes criminais.
Nos contra a vida das pessoas, a natureza da ofensa, o modo e a intensidade da agressão, o meio utilizado, a gravidade das lesões causadas e o grau de culpa da vítima são elementos decisivos na ponderação pressuposto pelo artigo 71º do CP.
No caso, a ilicitude é a mais elevada, assumindo uma extrema intensidade; o arguido, na sequência de um desentendimento motivado por antecedentes relacionais problemáticos, causou a morte de duas pessoas.
Actuou também com a forma mais grave de culpa; não controlou a reacção perante situação de potencial conflito, muniu-se previamente de uma arma de fogo, e sabendo que a natureza do meio e a intensidade causariam graves danos para a vida e a integridade física, actuou querendo causar a morte de duas pessoas.
De relevo também a circunstância de uma das vítimas – sobrinho do arguido -não ter qualquer antecedente de desentendimento ou de relacionamento problemático com o arguido.
Nestas circunstâncias, se bem que as exigências de prevenção especial não sejam particularmente intensas, dada a integração social e familiar do arguido, as imposições de prevenção geral para reafirmação da validade das normas e de integridade dos valores comunitários essenciais, são determinantes quando esteja em causa a vida humana, e especialmente, como no caso, a morte de duas pessoas.
Por todas estas razões, já afirmadas e acentuadas no acórdão do tribunal do Júri e no acórdão da Relação, não merecem reparo , nem a natureza nem a medida das penas parcelares e da pena única.
Improcede, o fundamento do recurso do arguido.

10. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se integralmente o acórdão recorrido.

Henriques Gaspar (Relator)
Armindo Monteiro