Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | 1ª SECÇÃO | ||
| Relator: | HELDER ROQUE | ||
| Descritores: | FACTOS CESSÃO DE CRÉDITOS EFICÁCIA NOTIFICAÇÃO CEDENTE CESSIONÁRIO COMPENSAÇÃO DE CRÉDITOS COMPENSAÇÃO RENÚNCIA | ||
| Data do Acordão: | 05/04/2010 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Referência de Publicação: | CJASTJ, ANO XVIII, TOMO III/2010, P.52 | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
| Sumário : | I - Para se determinar quais os factos em que as partes divergem e quais aqueles outros em que estão de acordo, importa considerar, no seu conjunto, toda a matéria de facto articulada por cada uma delas, sendo certo que se tudo o que o réu alegou exclui, necessariamente, a possibilidade de ser verdadeiro determinado facto invocado pelo autor, se a posição definida sobre um facto não envolve admissão por acordo relativamente aos factos, não impugnados, que sejam dependentes ou estejam condicionados pelo facto impugnado, seria absurdo entender que aquele o aceitou como exacto, por o não ter impugnado, directa e especificadamente. II - Se os efeitos da cessão de créditos entre as partes, isto é, entre o cedente e o cessionário, estão dependentes do tipo de negócio que lhe serve de base, já, em relação ao devedor, a eficácia da cessão, que não, propriamente, a sua validade, depende de um de dois factores, ou seja, a notificação e aceitação. III - O devedor cedido pode impugnar, perante o adquirente do crédito, a sua existência e todas as excepções a que teria podido recorrer face ao cedente. IV - Não podendo o devedor cedido invocar meios de defesa que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão, a compensação não procederá se, apenas, se tornar invocável após o conhecimento da cessão, o que significa que o contra-crédito do devedor cedido não se pode vencer depois da data em que o crédito transmitido ao cessionário seja exigível, porquanto, nessa altura, o cedente já não é credor, pois que tal posição é ocupada pelo factor. V - Dependendo a extinção recíproca dos créditos da declaração compensatória, vindo esta a ser efectuada num momento em que o credor do réu, mercê da cessão financeira, era a autora, e não a cedente, já lhe não é oponível este meio de defesa. VI - A renúncia à compensação é um acto voluntário de disposição, lícito e produtor de efeitos jurídicos, podendo ser expressa ou tácita, hipótese esta que tem de traduzir-se num comportamento incompatível com a vontade de compensar, para o que basta uma declaração unilateral do devedor. | ||
| Decisão Texto Integral: | ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA “AA, SA”, anteriormente, denominada “BB Factoring Portuguesa, SA”, com sede em Lisboa, propôs a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra o Município de Castro Marim, com sede em Castro Marim, pedindo que, na sua procedência, o réu seja condenado a pagar à autora a quantia de €55.819,06, que inclui já os juros vencidos, até 10 de Novembro de 2008, e os juros vincendos sobre a importância de €45.917,53, desde aquela data e até integral reembolso, alegando, para o efeito, e, em suma, que celebrou com a empresa construtora “CC & Filhos, Ldª” um contrato de factoring, no âmbito do qual esta lhe cedeu um crédito de €45.917,53, que tinha perante o réu Município, referente a um contrato de empreitada de obras públicas, celebrado entre este e aquela empresa de construção, e que se encontrava titulado por uma factura, relativamente à qual o Presidente da Câmara de Castro Marim subscreveu uma declaração dirigida à autora, donde consta, textualmente, “De conformidade com o solicitado pela firma Construtora Barão, Ldª, declaro ter tomado conhecimento da cedência a V. Exªs do crédito titulado pela factura abaixo discriminada, no montante de €48.455,68.……Declaramos ainda que sobre o referido crédito vai ser descontado 5% como retenção de caução e 0,5% de desconto para a Caixa Geral de Aposentações, pelo que a importância liquidada será entregue directamente à BB Factoring Portuguesa, SA”. Na contestação, o réu aceita os factos alegados pela autora, acabados de descrever, acrescentando que a cedente não cumpriu o contrato de empreitada, abandonando a obra, que, também, deixou com defeitos, que demandam correcção, o que determinou a rescisão do contrato, por parte do réu, com a consequente tomada de posse administrativa da obra. Por outro lado, o réu desencadeou os procedimentos destinados a um novo concurso para a conclusão da obra, suportando custos com o incumprimento, em montante, largamente, superior ao valor do pedido formulado na acção, que importam a extinção do crédito da autora, por compensação. Na réplica, a autora alega que não lhe são oponíveis os meios de defesa que o devedor pudesse invocar contra o cedente, desde que sejam posteriores ao conhecimento da cessão, como acontece com a matéria articulada na contestação do réu. Conhecendo sob a forma de saneador-sentença, o Tribunal de 1ª instância julgou, oficiosamente, verificada a excepção da incompetência, em razão da matéria, da Vara Cível de Lisboa, por entender ser antes competente o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa e, em consequência, absolveu o réu da instância. Deste saneador-sentença, a autora interpôs recurso, tendo o Tribunal da Relação julgado procedente a apelação, revogando a decisão que absolveu o réu Município de Castro Marim da instância, considerando, materialmente, competente o tribunal «a quo», e, na procedência da acção, condenou o mesmo réu no pagamento da quantia de €45.917,53, com juros de mora, à taxa das empresas comerciais, desde 28 de Novembro de 2006, até cumprimento. Do acórdão da Relação de Lisboa, o réu interpôs recurso de revista, terminando as alegações com o pedido da sua revogação, dando-se sem efeito a matéria do ponto 6., do capítulo 3.2 (factos assentes), do douto acórdão recorrido e, além disso, julgando-se que os autos não contêm ainda matéria provada suficiente para uma decisão de fundo, determinando-se que os mesmos baixem à primeira instância, para aí prosseguir a acção os seus regulares termos, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem: 1ª - Alegando o autor que o réu se obrigou a efectuar-lhe o pagamento de um crédito, adquirido por cessão, sem quaisquer outras deduções se não as expressamente indicadas, e respondendo o réu que quando interpelado para o pagamento explicou àquele as razões porque não o podia fazer, não se pode considerar assente por falta de impugnação aquela matéria atinente às deduções. 2ª - A decisão que julga assente tal matéria ofende o disposto no artigo 490°, n° 1, do Código de Processo Civil. 3ª - A declaração constante de um ofício subscrito pelo presidente de uma câmara municipal de que tomou conhecimento da cessão de um crédito e que após efectuadas certas deduções pagará esse crédito directamente ao cessionário destinatário do ofício não pode ser entendida como configurando uma vinculação directa entre o município e o cessionário. 4ª - O sentido e alcance da declaração negocial é, antes do mais, o que resulta da formulação literal, para uma pessoa comum, e ao advérbio de modo directamente aludindo à inexistência de intermediários, não pode ser atribuído outro significado que este. 5ª - O acórdão que diferentemente julga ofende os artigos 236°, n° 1 e 238°, n° 1 do Código Civil. Nas suas contra-alegações, a autora conclui no sentido de que, não obstante o esforço desenvolvido pelo réu, a decisão recorrida não merece qualquer censura e deve ser confirmada. O Tribunal da Relação entendeu que se devem considerar demonstrados os seguintes factos, que este Supremo Tribunal de Justiça aceita, nos termos das disposições combinadas dos artigos 722º, nº 2 e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz, acrescentando-lhe, porém, três novos factos, sob os nºs 7, 8 e 9, com base no teor dos documentos existentes nos autos, atento o disposto pelos artigos 373º, nº 1 e 376º, do Código Civil, 659º, nº 3, 713º, nº 2 e 726º, do CPC: 1. Em 30 de Setembro de 2003, a autora (então, denominada “BB Factoring Portuguesa, SA”) e a sociedade construtora “CC e Filhos, Ldª”, celebraram um contrato de factoring, cuja cópia consta de fls. 5 a 11, por via do qual acordaram que esta cedesse àquela créditos emergentes da sua actividade. 2. Em 16 de Fevereiro de 2004, entre o réu, Município de Castro Marim, e a construtora, “CC e Filhos, Ldª”, foi celebrado um contrato de empreitada de obra pública, cuja cópia consta de fls. 43 e segs. 3. Relativamente à execução desse contrato de empreitada, a construtora “CC e Filhos, Ldª” emitiu, em 28 de Agosto de 2006, uma factura, no valor de €48.455,68, com data de vencimento fixada, em 28 de Novembro de 2006, a que aludem os documentos de folhas 20 e 21. 4. Em 7 de Setembro de 2006, o Presidente do Município de Castro Marim subscreveu a declaração de fls. 19, dirigida à autora, com indicação do assunto “Notificação de Contrato de Factoring - Construtora Barão, Ldª”, na qual refere o seguinte: “De conformidade com o solicitado pela firma Construtora Barão, Ldª, declaro ter tomado conhecimento da cedência a V. Exªs do crédito titulado pela factura abaixo discriminada, no montante de € 48.455,68.…Declaramos ainda que sobre o referido crédito vai ser descontado 5% como retenção de caução e 0,5% de desconto para a Caixa Geral de Aposentações, pelo que a importância liquidada será entregue directamente à BB Factoring Portuguesa, SA”. 5. Em 9 de Setembro de 2006, a construtora “CC e Filhos, Ldª” cedeu à autora o crédito correspondente ao valor da factura de fls. 21, nos termos que constam do doc. de fls. 20. 6. O réu Município assumiu o compromisso de efectuar, oportunamente, o pagamento do crédito representado pela factura, referida em 4., directamente, e só à autora (na ocasião, “BB Factoring”), como cessionária do crédito, sem quaisquer deduções se não as, expressamente, indicadas. 7. No dia 17 de Setembro de 2004, foi lavrado auto de consignação de trabalhos, relativo ao contrato de empreitada, aludido em 2., com vista à construção do Núcleo Museológico de Odeleite, com o prazo inicial de execução de sete meses, que o réu prorrogou, até 1 de Fevereiro de 2006, tendo a sociedade construtora “CC e Filhos, Ldª” continuado os trabalhos e emitido o último auto de medição, em 25 de Agosto de 2006 – Documentos de folhas 47 a 49. 8. A partir de 25 de Agosto de 2006, a permanência em obra, quer da Direcção, quer dos trabalhadores da sociedade construtora “CC e Filhos, Ldª” foi diminuindo, progressivamente, limitando-se à execução de correcções pontuais, o que se manteve, até meados de Novembro de 2006, data a partir da qual se verificou o abandono total da obra – Documento de folhas 48 e 49. 9. Entretanto, em 6 de Junho de 2007, foi conferida posse administrativa, ao réu Município, de todos os trabalhos consignados à sociedade construtora “CC e Filhos, Ldª”, para a normal execução da obra, bem como do produto do trabalho, anteriormente, executado – Documento de folhas 65 e 66. Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir. As questões a decidir, na presente revista, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3, 690º e 726º, todos do CPC, são as seguintes: I – A questão da alteração da decisão sobre a matéria de facto. II – A questão dos meios de defesa oponíveis pelo devedor no contrato de factoring. I. DA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO Defende o réu que a matéria do ponto 6, segundo a qual “O R. Município assumiu o compromisso de efectuar oportunamente o pagamento do crédito representado pela factura referida em 4. directamente e só à A. (na ocasião, BB Factoring), como cessionária do crédito, sem quaisquer deduções se não as expressamente indicadas”, apesar de invocada pela autora, não pode ser incluída nos «factos assentes», por não ter sido aceita, na contestação, porquanto aquele, no contexto deste articulado, alega que o devedor tinha créditos sobre a cedente que motivavam a extinção, por compensação, do crédito desta sobre aquele. Entende, assim, o réu que, ao não ser considerada a defesa, constante da contestação, no seu conjunto, como excepção ao princípio de que a inobservância do ónus de impugnação especificada importa a admissão, por acordo, dos factos correspondentes, verdadeira causa de dispensa desse ónus, foi violado o disposto pelo artigo 490º, nºs 1 e 2, do CPC. Efectivamente, o Supremo Tribunal de Justiça aplica, definitivamente, o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, não podendo ser objecto de recurso de revista a alteração da decisão por este proferida quanto à matéria de facto, ainda que exista erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, quando o Supremo Tribunal de Justiça entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou, finalmente, quando entenda que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica do pleito, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 729º, nºs 1, 2 e 3, e 722º, nº 2, do CPC. Aliás, só à Relação compete, em princípio, modificar a decisão sobre a matéria de facto, podendo alterar as respostas aos pontos da base instrutória, a partir da prova testemunhal extratada nos autos e dos demais elementos de prova que sirvam de base à respectiva decisão, desde que dos mesmos constem todos os elementos probatórios, necessários e suficientes para o efeito, dentro do quadro normativo e através do exercício dos poderes conferidos pelo artigo 712º, do CPC. Assim sendo e, em síntese, cabe às instâncias apurar a factualidade relevante, sendo, a este título, residual a intervenção deste Supremo Tribunal de Justiça, destinada a averiguar a observância das regras de direito probatório material, a determinar a ampliação da matéria de facto ou o suprimento de contradições sobre a mesma existentes (1). A contestação faz nascer para o réu o direito ao julgamento da causa, por decisão de fundo, quando não subsistam motivos de absolvição da instância, garantindo-lhe o direito ao processo, no seu resultado substancial, e à consequente declaração negativa do direito do autor quando infundado (2). Dispõe o artigo 490º, nº 1, do CPC, que, “na contestação, deve o réu tomar posição definida perante os factos articulados na petição”, impugnando, especificadamente, ou seja, individualizadamente, ainda que não, facto por facto, todos aqueles que não queira admitir como certos, a menos que, e trata-se de uma situação de dispensa desse ónus de impugnação, “estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto”, atento o preceituado pelo nº 2 do normativo legal em apreço. Quando o nº 2, do artigo 490º, do CPC, diz que não podem ser admitidos por acordo os factos que se encontrem em manifesta oposição com a defesa considerada no seu conjunto, tal significa que é preciso impugnar outros factos e explicitar as razões dessa impugnação, dando uma versão contrária ou, globalmente, contraposta à do autor, sendo certo que se o réu toma uma posição definida sobre um facto, tal não envolve a admissão por acordo relativamente aos factos, não impugnados, que sejam dependentes ou estejam condicionados pelo facto impugnado (3). Importa, pois, considerar, no seu conjunto, toda a matéria de facto articulada, por cada uma das partes, para se determinar quais os factos em que as mesmas divergem e quais aqueles outros em que estão de acordo (4). Se tudo o que o réu alegou exclui, necessariamente, a possibilidade de ser verdadeiro determinado facto invocado pelo autor, seria absurdo entender que aquele o aceitou como exacto, por o não ter impugnado, directa e especificadamente (5).. Com efeito, a admissão da veracidade dos factos não impugnados assenta num presumido acordo das partes acerca da sua realidade, razão pela qual, faltando a base desta presunção, em virtude do conjunto da posição assumida pela respectiva parte a ilidir, resulta manifesto que esse hipotético acordo não existe (6). Revertendo à factualidade dos articulados, importa reter, no que interessa à questão decidenda, que, tendo a cedente transmitido à autora-cessionária, por força de um contrato de factoring celebrado entre ambas, um crédito, no montante de €45.917,53, de que aquela era titular perante o réu devedor, este subscreveu uma declaração dirigida à autora, onde reconhece a existência desse crédito, no montante de €48.455,68, que iria ser entregue, directamente, à autora, muito embora acrescente que, por força do incumprimento de um contrato de empreitada pela cedente, que abandonou a obra, o réu tenha suportado custos cujo montante, por superar aquele valor, extingue o crédito da autora, por compensação. Assim sendo, o réu aceita a existência do crédito reclamado pela autora-cessionária e a obrigação de entregar, directamente, à mesma a importância liquidada, muito embora invoque a compensação com um contra-crédito que, alegadamente, detém sobre a cedente. Deste modo, a alegação do réu, no seu conjunto, não exclui, necessariamente, a possibilidade de ser verdadeiro aquele facto invocado pela autora, constante de documento escrito, não tendo o réu apresentado uma versão contrária ou, globalmente, contraposta à da autora. Aliás, constitui demonstração inequívoca de que a globalidade dos factos constantes da contestação não infirma aquele específico ponto da petição inicial, que o réu aceita, a circunstância deste deduzir reconvenção contra a autora, reclamando da mesma o pagamento de um contra-crédito de €155784,10, que operaria a extinção do crédito da autora. Quer isto dizer que o réu reconhece, inequivocamente, a existência do crédito da autora, só que sustenta que tem sobre esta um contra-crédito de montante superior, que o extingue, por compensação. Porque o facto constante do ponto 6 da «matéria assente» não se encontra impugnado pela defesa do réu, considerada no seu conjunto, não importa proceder a qualquer alteração da factualidade que ficou consagrada pelo acórdão da Relação. II. DOS MEIOS DE DEFESA DO DEVEDOR NO CONTRATO DE FACTORING O contrato de factoring ou de cessão financeira é um negócio jurídico que se baseia na cessão de créditos, eventualmente, futuros, e que consiste numa transferência de créditos, de natureza continuada, do seu titular – cedente ou aderente ao factor – para outrem - o cessionário ou factor -, derivados da venda de produtos ou da prestação de serviços a terceiros - devedores cedidos - passando o factor, a partir da data da transferência dos créditos e da respectiva notificação ao devedor, a ser o credor e a poder exigir o pagamento do devedor que, anteriormente, era do cedente ou aderente, nos termos das disposições combinadas dos artigos 577º e 583º, ambos do CC. Por via de regra, o factor, tal como acontece na cessão de créditos, na modalidade do factoring «pro soluto» ou factoring sem recurso, que corresponde à cessão de créditos comum, consagrada pelo artigo 587º, nº 1, do CC, que aqui interessa considerar, assume o risco do incumprimento por parte do devedor cedido (7). Por seu turno, dispõe o artigo 585º, do CC, que “o devedor pode opor ao cessionário, ainda que este os ignorasse, todos os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente, com ressalva dos que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão”. Não sendo necessário o consentimento do devedor para se operar, validamente, a cessão do crédito, aquele não pode, em circunstância alguma, ser prejudicado pela modificação subjectiva do lado activo da relação jurídica, isto é, pela cessão de créditos verificada. Com efeito, o crédito em que o cessionário fica investido é o mesmo que pertencia ao cedente, não se transmitindo para aquele apenas os acessórios e as garantias, mas, também, as vicissitudes da relação creditória, que o podem enfraquecer ou destruir. Se os efeitos entre as partes, isto é, entre o cedente e o cessionário, estão dependentes do tipo de negócio que serve de base à cessão, já em relação ao devedor, que não tem de ser parte no contrato de factoring, a eficácia da cessão, que não, propriamente, a sua validade, depende de um de dois factores, ou seja, a notificação ou a aceitação, a que se reporta o artigo 583º, nº 1, do CC (8). É que a notificação da cessão ao devedor ou a aceitação desta servem ainda para lhe atribuir eficácia quanto a terceiros, apresentando um alcance análogo ao que se consegue, noutros casos, com os meios de publicidade(9), desempenhando uma função análoga à do registo. O devedor cedido pode, assim, impugnar, perante o adquirente do crédito, a sua existência e todas as excepções a que teria podido recorrer face ao cedente, em aplicação do princípio do «nemo plus iuris ad alium …», quer sejam factos que determinem a invalidade, como os vícios de vontade, ou a destruição retroactiva, como a resolução, do negócio jurídico donde surge o crédito, quer se trate de causas extintivas do próprio crédito, como o pagamento, podendo defender-se, por excepção, dilatória ou peremptória, em relação ao pedido que contra si o cessionário tenha deduzido, para exigir o cumprimento do crédito V(10), recorrendo, se for caso disso, à excepção do não cumprimento do contrato, na eventualidade de o cedente não cumprir a sua prestação, no prazo estipulado, ou à compensação. Relativamente à excepção da compensação, defendia-se, em face do quadro normativo consagrado pelos artigos 773º e 774º, do Código Civil de 1867, que não era permitido ao devedor que tivesse aceite a cessão, pura e simplesmente, opor ao cessionário a compensação que teria podido deduzir em relação ao cedente, antes da transferência do crédito, com base numa duvidosa ideia de renúncia tácita a esse meio de defesa. Mas, porque esta posição prejudicava, obviamente, o devedor, não havendo qualquer motivo para adoptar, quanto à compensação, um regime distinto do consagrado para as demais excepções, foi aprovada a redacção do artigo 585º, do Código Civil de 1966. O Código Civil de 1966 pretendeu prejudicar, o menos possível, os direitos de defesa que o devedor cedido podia opor ao cedente, caso o direito não tivesse sido transmitido, razão pela qual não é razoável estabelecer uma relação directa entre a aceitação e a renúncia, tudo se resumindo à interpretação da vontade do devedor cedido. É que a aceitação da cessão, sem reserva, pode significar uma renúncia à compensação, mas pode, também, não implicar tal renúncia (11). Efectivamente, a justificação da oponibilidade ao cessionário da compensação de um crédito do devedor perante o cedente reside, acima de tudo, na ideia de que a cessão não deve prejudicar a posição que o devedor tinha perante o cedente, ainda que o seu vencimento seja posterior à cessão, desde que a sua constituição seja anterior ao conhecimento desta ou contemporânea dele (12), sendo necessário que a compensação possa ser oposta ao cedente, o que significa que o contra-crédito do devedor cedido não se pode vencer depois da data em que o crédito transmitido ao cessionário seja exigível, atento o estipulado pelo artigo 847º, do CC. É com base no entendimento de que o devedor não pode invocar meios de defesa que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão que se deve ter por seguro que a compensação não procederá, se ela só se tornar invocável após o conhecimento da cessão (13). . Excluem-se, naturalmente, do círculo de meios de defesa oponíveis pelo devedor cedido todas aquelas excepções e circunstâncias ligadas ao negócio-causa da cessão entre cedente e cessionário, donde resultou a transmissão do crédito, que apenas interessam às relações entre estes, o qual é, relativamente a ele, um «res inter alios acta» (14) O que não pode acontecer é piorar-se a posição do devedor, que continua a poder defender-se com os meios que tiver ao seu dispor, se e quando quiser, apenas se lhe exigindo que, face a uma solicitação do novo sujeito activo da relação obrigacional, da qual é sujeito passivo, cumpra os deveres que a boa fé lhe impõe, informando, nessa medida, o factor. Por isso, é que, se o devedor tiver um contra-crédito sobre o cedente, poderá operar a compensação, imediatamente, após a cessão do crédito ou, se assim o entender, só mais tarde, quando o factor exigir o pagamento do preço, sem prejuízo do dever de informar o ente financeiro da existência do contra-crédito, se este o questionar nesse sentido, enquanto dever lateral de conduta face ao seu novo credor (15). Retornando à factualidade que ficou demonstrada, importa reter que, tendo o cedente, em 28 de Agosto de 2006, emitido uma factura sobre o réu, no valor de €48.455,68, relativamente à execução de um contrato de empreitada em que este era o dono da obra, o mesmo, em 7 de Setembro de 2006, subscreveu uma declaração dirigida à cessionária, referindo que, em conformidade com o solicitado pela cedente, tomou conhecimento da cessão, a favor do cessionário do crédito titulado pela aludida factura, mais declarando ainda que sobre o mesmo vão ser descontados 5%, como retenção de caução, e 0,5%, para a Caixa Geral de Aposentações, sendo a importância liquidada entregue, directamente, à cessionária. Ora, tendo acontecido a cessão do mencionado crédito, a 9 de Setembro de 2006, e o réu cedido assumido o compromisso de efectuar, oportunamente, o pagamento do crédito representado pela factura, directamente, e só à autora, como cessionária do crédito, sem quaisquer deduções que não as, expressamente, indicadas, a esse tempo, a cedente continuou a executar trabalhos para o devedor, até meados de Novembro de 2006, data a partir da qual se verificou o abandono total da obra. Efectivamente, só com a apresentação da contestação-reconveção, datada de 8 de Janeiro de 2009, existe nos autos a primeira demonstração inequívoca da invocação da excepção da compensação de créditos. Deste modo, datando de 7 de Setembro de 2006 a declaração subscrita pelo réu devedor, dirigida à autora cessionária, referindo que, em conformidade com o solicitado pela cedente, tomou conhecimento da cessão e que a importância liquidada seria entregue, directamente, à cessionária, e acontecendo a cessão do crédito, a 9 de Setembro de 2006, data em que o devedor cedido reassumiu o compromisso de efectuar, oportunamente, o pagamento do crédito representado pela factura, directamente, e só à autora, sem quaisquer deduções que não as, expressamente, indicadas, a esse tempo, a declaração inequívoca de compensação só se verificou, a 8 de Janeiro de 2009, muito, posteriormente, portanto, à data do conhecimento da cessão. É que os meios de defesa posteriores ao conhecimento da cessão já não operam, porquanto, nessa altura, o cedente já não é credor, pois que tal posição é ocupada pelo factor (16). Deste modo, e como já se salientou, os meios de defesa que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão são inoponíveis pelo devedor ao cessionário factor. A isto acresce, se necessário ainda fosse, que a declaração de compensação efectuada pelo réu, perante a autora, tem de obedecer às regras contidas nos artigos 847º e 848º, do CC. Os pressupostos da compensação, como forma de extinção das obrigações, de acordo com os normativos acabados de citar, consistem na reciprocidade dos créditos, na homogeneidade do objecto da prestação, na sua exigibilidade, o que importa a sua validade, o seu vencimento e a ausência de excepções oponíveis, e na sua efectivação, mediante declaração de uma das partes à outra. Por seu turno, estipula o artigo 853º, nº 2, do CC, que a compensação não é admitida “…se houver prejuízo de direitos de terceiro, constituídos antes de os créditos se tornarem compensáveis, ou se o devedor a ela tiver renunciado”, acrescentando o artigo 854º, também, do CC, que “feita a declaração de compensação, os créditos consideram-se extintos desde o momento em que se tornaram compensáveis”. E, dependendo a extinção recíproca dos créditos da declaração compensatória, esta veio a ser efectuada num momento em que o credor do réu, mercê da cessão financeira, era já a autora, e não a cedente. Ora, tendo a compensação natureza dispositiva, destinada a regular interesses privatísticos, a renúncia à mesma é um acto voluntário de disposição, lícito e produtor de efeitos jurídicos, podendo ser expressa ou tácita, hipótese esta em que tem de traduzir-se em comportamento incompatível com a vontade de compensar, bastando, para tanto, uma declaração unilateral do devedor (17). E daí que, se a compensação fosse, «in casu», um meio de defesa lícito do réu, devia entender-se que, em relação aos créditos, até ao montante de €45917,53, o réu renunciou a qualquer direito de compensação(18), ainda que não à totalidade do crédito que vem pedida, em sede reconvencional. Não colhem, pois, com o devido respeito, as conclusões constantes das alegações da revista do réu Município de Castro Marim. CONCLUSÕES: I - Para se determinar quais os factos em que as partes divergem e quais aqueles outros em que estão de acordo, importa considerar, no seu conjunto, toda a matéria de facto articulada por cada uma delas, sendo certo que se tudo o que o réu alegou exclui, necessariamente, a possibilidade de ser verdadeiro determinado facto invocado pelo autor, se a posição definida sobre um facto não envolve admissão por acordo relativamente aos factos, não impugnados, que sejam dependentes ou estejam condicionados pelo facto impugnado, seria absurdo entender que aquele o aceitou como exacto, por o não ter impugnado, directa e especificadamente. II - Se os efeitos da cessão de créditos entre as partes, isto é, entre o cedente e o cessionário, estão dependentes do tipo de negócio que lhe serve de base, já, em relação ao devedor, a eficácia da cessão, que não, propriamente, a sua validade, depende de um de dois factores, ou seja, a notificação ou a aceitação. III - O devedor cedido pode impugnar, perante o adquirente do crédito, a sua existência e todas as excepções a que teria podido recorrer face ao cedente. IV - Não podendo o devedor cedido invocar meios de defesa que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão, a compensação não procederá se, apenas, se tornar invocável após o conhecimento da cessão, o que significa que o contra-crédito do devedor cedido não se pode vencer depois da data em que o crédito transmitido ao cessionário seja exigível, porquanto, nessa altura, o cedente já não é credor, pois que tal posição é ocupada pelo factor. V - Dependendo a extinção recíproca dos créditos da declaração compensatória, vindo esta a ser efectuada num momento em que o credor do réu, mercê da cessão financeira, era a autora, e não a cedente, já lhe não é oponível este meio de defesa. VI – A renúncia à compensação é um acto voluntário de disposição, lícito e produtor de efeitos jurídicos, podendo ser expressa ou tácita, hipótese esta em que tem de traduzir-se num comportamento incompatível com a vontade de compensar, para o que basta uma declaração unilateral do devedor. DECISÃO (19).: Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em negar a revista, confirmando o douto acórdão recorrido. Custas, a cargo do réu Município de Castro Marim. Notifique. Lisboa, 04 de Maio de 2010 Helder Roque (Relator) Sebastião Póvoas Moreira Alves __________________________ (1) STJ, de 25-2-2003, CJ (STJ), Ano XI (2003), T1, 109; STJ, de 30-1-97 (Processo nº 751/96, 2ª secção); STJ, de 14-1-97 (Processo nº 605/96, 1ª secção). (2) Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, III, 1970, 358 e 359. (3) Remédio Marques, Acção Declarativa À Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 2007, 312 a 314. (4) Alberto dos Reis, Breve Estudo, 2ª edição, 371 e 372. (5)Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, III, 3ª edição, reimpressão, 1981, 55. (6) Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, III, 3ª edição, 2001, 39 e 40. (7) Romano Martinez e Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, 4ª edição, Almedina, 2003, 234 a 237. (8) Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4ª edição, revista e actualizada, 1987, 599; Pessoa Jorge, Direito das Obrigações, II, 1968/69, 28. (9) Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª edição reelaborada, 2006, 819 e 820. (10) Vaz Serra, Cessão de Créditos ou de Outros Direitos, 318, BFDUC, Volume XXX (1954), 310 a 312; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 2ª edição, 1974, 286; Maria Helena Brito, O «Factoring» Internacional e a Convenção do Unidroit, Cosmos, 1998, 60. (11) Vaz Serra, Cessão de Créditos ou de Outros Direitos, 318, BFDUC, Volume XXX (1954), 318; Paulo Mota Pinto, Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, Coimbra, 1995, 119 e ss. e 438 e ss. (12) Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 2ª edição, 1974, 287 e nota (1); Vaz Serra, Cessão de Créditos ou de Outros Direitos, BMJ, número especial (1955), 130; Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, II, 2ª edição, Coimbra, 2001, 539. (13) Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4ª edição, revista e actualizada, 1987, 601. (14) Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4ª edição, revista e actualizada, 1987, 601; Luís Pestana de Vasconcelos, Dos Contratos de Concessão Financeira (Factoring), Studia Ivridica, 43, BFDUC, Coimbra Editora, 1999, 314. (15) Luís Pestana de Vasconcelos, Dos Contratos de Concessão Financeira (Factoring), Studia Ivridica, 43, BFDUC, Coimbra Editora, 1999, 315 e nota (791). (16) STJ, de 27-5-2004, CJ (STJ), Ano XII (2004), T2, 75. (17) Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, IV, Lisboa, 1995, 42. (18) Meneses Leitão, Cessão de Créditos, Coimbra, 2005, 526. (19) Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Sebastião Póvoas; 2º Adjunto: Conselheiro Moreira Alves |