Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
Relator: | GRAÇA AMARAL | ||
Descritores: | GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS CRÉDITO PRIVILEGIADO CREDITO LABORAL BEM IMÓVEL INSOLVÊNCIA | ||
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Data do Acordão: | 04/05/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA (COMÉRCIO) | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
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Sumário : | I - O privilégio imobiliário especial previsto no art. 333.º, n.º 1, al. b), do CT, abrange os imóveis da entidade patronal que integram a organização produtiva a que os trabalhadores pertencem em termos de ligação funcional, a qual não se reconduz à localização física onde é exercida a actividade laboral. II - A ligação funcional dos imóveis com os trabalhadores visada pelo preceito reporta-se à actividade produtiva da entidade patronal. Nesta perspectiva, ficam arredados do privilégio creditório imobiliário os imóveis pertencentes à entidade empregadora que não estejam, de qualquer forma, adstritos a essa actividade produtiva onde o trabalhador se encontra inserido. III - O destino visado pela insolvente para num seu terreno rústico serem construídas as novas instalações da empresa não assume relevância para a caracterização do referido elo funcional com os trabalhadores, se não for demonstrada a ligação do terreno à actividade da empresa, designadamente por nele terem sido apreendidos bens da insolvente, por ter ficado apurado que os seus trabalhadores tinham nele desempenhado qualquer actividade laboral (na construção das instalações) e/ou que servisse de apoio à respectiva actividade empresarial. IV - Fora do âmbito do art. 333.º, n.º 1, al. b), do CT, encontram-se os prédios rústicos da insolvente onde, em tempos, funcionou a sua fundição, uma vez que, arredados da respectiva organização produtiva, foi quebrada a indispensável ligação funcional laboral. V - Encontra-se igualmente excluído da previsão do citado preceito o terreno rústico contíguo aos imóveis onde a insolvente tinha as suas instalações, por não ter sido demonstrado que o mesmo estava, por qualquer forma (que não a mera localização) ligado à actividade produtiva da empresa. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,
I – Relatório 1. Nos autos de reclamação de créditos apensos ao processo de insolvência referente a FUNDIÇÃO DE DOIS PORTOS, SA. declarada Insolvente, o Sr. Administrador da Insolvência (AI) veio juntar a lista dos créditos a que se refere o artigo 129.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE). Apresentadas várias impugnações as mesmas foram objecto de decisão no saneador.
2. Após reconhecimento e verificação de créditos, foi proferida sentença de graduação de créditos, que para o que neste âmbito assume relevância, decidiu nos seguintes termos: “Graduação especial, quanto à verba imóvel 6: 1º. Créditos laborais, na parte não paga pelo Fundo de Garantia Salarial 2º. Créditos do Fundo de Garantia Salarial 3º. Crédito garantido por direito de retenção da sociedade DST 4º. Créditos garantidos por hipoteca 6º. Créditos comuns 7º. Créditos subordinados Quanto aos demais imóveis: 1º. Créditos laborais, na parte não paga pelo Fundo de Garantia Salarial 2º. Créditos do Fundo de Garantia Salarial 3º. Créditos garantidos por hipoteca 5º. Créditos comuns 6º. Créditos subordinados Quanto às verbas móveis 11, 12, 20, 126, 134 e 136: 1º. Créditos privilegiados do ISS, IP 3º. Crédito privilegiado da sociedade ICC - IMP. Comércio Carvões, Lda. 4º. Créditos laborais, na parte não paga pelo Fundo de Garantia Salarial 5º. Créditos do Fundo de Garantia Salarial 6º. Créditos privilegiados da Fazenda Nacional emergentes de impostos 7º. Créditos comuns 8º. Créditos subordinados. Quanto às demais verbas móveis: 1º. Crédito privilegiado da sociedade ICC - IMP. Comércio Carvões, Lda. 2º. Créditos laborais, na parte não paga pelo Fundo de Garantia Salarial 3º. Créditos do Fundo de Garantia Salarial 5º. Créditos comuns 6º. Créditos subordinados.”
3. DST – DOMINGOS DA SILVA TEIXEIRA, SA e MISTLEGROVE ISSUER HOLDINGS DESIGNATED ACTIVITY COMPANY apelaram da sentença.
4. Após prolação da sentença de verificação e graduação de créditos, o tribunal de 1.ª instância proferiu despacho (de 28-05-2021) de indeferimento da arguição de nulidade processual (por falta de notificação aos credores de despacho judicial de 26-04-2021) por parte da credora DST – DOMINGOS DA SILVA TEIXEIRA, SA.
5. Deste despacho a referida credora interpôs apelação.
6. O Tribunal da Relação ..., conhecendo dos recursos, proferiu acórdão que decidiu: - julgar improcedente o recurso de apelação referente ao despacho de indeferimento da arguição de nulidade processual suscitada pela credora DST – DOMINGOS DA SILVA TEIXEIRA, SA; - julgar procedente o recurso de apelação referente à sentença de graduação de créditos por parte da credora DST – DOMINGOS DA SILVA TEIXEIRA SA, alterando a mesma nos seguintes termos: “a. relativamente à graduação especial, quanto à verba nº 6, gradua-se, em primeiro lugar, o crédito garantido por direito de retenção da sociedade DST, SA, e, em segundo lugar, os créditos garantidos por hipoteca; b. no mais, mantém-se na íntegra a graduação constante da sentença.” - julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pela MISTLEGROVE ISSUER HOLDINGS DESIGNATED ACTIVITY COMPANY, alterando a sentença de verificação e graduação de créditos, nos seguintes termos: “a. quanto aos imóveis das verbas nºs 3, 4, 5, 7, 8, 9 e 10, gradua-se, em primeiro lugar, os créditos garantidos por hipoteca; b. no mais, mantém-se na íntegra a graduação constante da sentença.”
7. Inconformado o credor AA recorre para este tribunal, concluindo nas suas alegações: “1.ª A graduação especial realizada pelo Tribunal recorrido quanto à verba nº 6 não pode proceder, já que foi graduado, em primeiro lugar, o crédito garantido por direito de retenção da sociedade DST – DOMINGOS DA SILVA TEIXEIRA, SA, e, em segundo lugar, os créditos garantidos por hipoteca. 2.ª Mais improcede, ainda, a graduação especial levada a efeito pelo Tribunal “a quo” no que respeita aos imóveis das verbas nºs 3, 4, 5, 7, 8, 9 e 10, dado que graduou, em primeiro lugar, os créditos garantidos por hipoteca, na sequência do recurso apresentado pela empresa MISTLEGROVE ISSUER HOLDINGS DESIGNATED ACTIVITYCOMPANY 3.ª Ora, o douto Acórdão recorrido não teve em consideração que o privilégio imobiliário especial previsto no artigo 333.º, n.º 1, al. b) do Código do Trabalho incide sobre todos os imóveis apreendidos nos autos (verbas n.ºs 1 a 10). 4.ª Consequentemente, os créditos do aqui recorrente devem ser graduados em primeiro lugar sobre todos os imóveis apreendidos no processo, nomeadamente sobre as verbas aqui em causa n.ºs 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10, devidamente identificadas nos autos. 5.ª O privilégio em causa prefere à hipoteca e ao direito de retenção, conforme o disposto no artigo 751.º do Código Civil. 6.ª A douta Decisão proferida pelo Tribunal “a quo” restringiu o privilégio imobiliário especial laboral às verbas n.ºs 1 e 2, o que fez sem fundamento legal. 7.ª Tal decisão colide com os seus direitos e legítimos interesses e com uma Decisão de direito completa e justa que a presente causa impõe. 8.ª O recorrente tem créditos reclamados e reconhecidos, nos presentes autos, como ex-trabalhador da Insolvente, no valor de € 39.471,33, conforme consta da lista definitiva de créditos reclamados e reconhecidos rectificada apresentada pelo Senhor Administrador de Insolvência no apenso da reclamação de créditos. 9.ª O pagamento da referida quantia se encontra em risco face ao decidido pelo Venerando Tribunal da Relação ... 10.ª O atendimento e reconhecimento do privilégio imobiliário especial, previsto no artigo 333.º, n.º 1, al. b), do Código do Trabalho, é um imperativo de justiça material e moral, assumindo igualmente uma dimensão económico-social muito importante. 11.ª In casu, é de aplicar uma concepção ampla consentânea com a razão de ser da atribuição do privilégio creditório aos créditos laborais, que é a especial protecção que devem merecer esses créditos, em atenção à sua relevância económica e social. 12.ª No âmbito dos privilégios imobiliários só se deve excluir o património do empregador não afecto à sua organização empresarial, o que no presente caso não se verifica relativamente aos imóveis das verbas em causa n.ºs 3 a 10, devidamente identificados nos autos, dado que estavam afectos à actividade industrial e empresarial da Insolvente Fundição de Dois Portos, S.A., constituindo o seu suporte organizacional. 13.ª Resulta expressamente dos autos que as verbas n.ºs 1, 2 e 8 são contíguas e compõem a totalidade da unidade fabril – anúncio junto ao apenso de liquidação a 25-06-2015 e 26-01-2017. 14.ª Pelo que não se vislumbra qualquer fundamento válido para afastar o reconhecimento ao aqui recorrente e aos demais trabalhadores da Insolvente do privilégio imobiliário especial previsto no artigo 333.º, n.º 1, al. b) do Código do Trabalho relativamente ao imóvel da verba n.º 8. 15.ª Com o devido respeito, ao não aplicar o referido privilégio à mencionada verba n.º 8, o douto Tribunal da Relação ... incorreu em claro erro de apreciação. 16.º O mesmo se diga no tocante à verba n.º 6, devendo ser reconhecido ao aqui recorrente o privilégio imobiliário especial laboral sobre essa verba, com as legais consequências. 17.ª Efectivamente, resultados autos que a verba n.º 6 era onde a empresa DST – DOMINGOS DA SILVA TEIXEIRA, SA estava a construir as novas instalações da Insolvente. 18.ª Tanto mais que a douta Decisão proferida pelo Tribunal “a quo” observou que: “(…) a verba nº 6 corresponde a terreno rústico sobre o qual se encontra implantado pavilhão industrial (em fase de construção da nova Fundação, como referiram alguns trabalhadores reclamantes, quando se pronunciaram sobre o despacho de 28/05/2021, refª ...). Quer dizer, a verba nº 6 trata-se de um prédio rústico pertencente à Insolvente, onde se situa uma construção industrial inacabada, construção essa realizada pela ora Recorrente, e que se destinaria às novas instalações daquela” (sublinhados nossos). 19.ª É indiscutível que a verba n.º 6 visava permitir à Insolvente Fundição de Dois Portos, S.A. o exercício da sua actividade, constituindo o seu suporte físico, pelo que não poderá deixar de ser considerada como um bem integrante da organização empresarial da Insolvente. 20.ª O mesmo se diga no que tange às demais verbas, concretamente as verbas n.ºs 3, 4, 5, 7, 8, 9 e 10 devidamente identificadas nos autos, pois que o estabelecimento da Insolvente compreendia todas as verbas imóveis apreendidas. 21.ª Sendo certo que não se apurou nos autos destino de arrendamento ou comercialização, fundamento para o afastamento do privilégio. 22.ª Com o devido respeito, mal andou o Tribunal recorrido ao alterar a graduação de créditos constante da douta Decisão proferida pela primeira instância. 23.ª Na interpretação do preceito legal em apreço, a jurisprudência dominante tem entendido que o privilégio em apreço abrange todos os imóveis existentes na massa Insolvente que estavam afetos à atividade empresarial do Insolvente, independentemente de uma qualquer conexão específica ou imediata entre o imóvel e a concreta atividade do trabalhador reclamante(neste sentido cfr. Ac. STJ de 30/05/2017, relatado pela Cons. Ana Paula Boularot e Ac. TRC de 12/06/2012, relatado pelo Desemb. Jaime Carlos Ferreira, ambos disponíveis em www.dgsi.pt). 24.ª O recorrente e os demais trabalhadores da Insolvente integram a organização empresarial da Insolvente e estão, todos eles, funcionalmente ligados aos imóveis que, constituindo património da empresa, servem de suporte físico a essa atividade. 25.ª No caso em apreço, os imóveis apreendidos correspondem a locais onde a Insolvente Fundição de Dois Portos, S.A. exercia a sua actividade industrial ou estavam afectos aos fins prosseguidos por aquela sociedade. 26.ª Pelo que importa concluir que os créditos laborais reclamados pelo recorrente gozam de privilégio imobiliário especial sobre os ditos imóveis, já que os mesmos estavam afectos à actividade empresarial da Insolvente, à qual o recorrente estava funcionalmente ligado. 27.ª Face ao exposto, os créditos laborais em causa beneficiam de privilégio imobiliário especial sobre todos os imóveis apreendidos nos autos, nos termos do art. 333º nº 1 b) do Código de Trabalho. E consequentemente, 28.ª Devem ser graduados em primeiro lugar sobre todos os imóveis apreendidos no processo. 29.ª O douto Acórdão proferido pelo Tribunal “a quo” julgou em desconformidade com o direito, para além de colidir com a realidade material dos factos e com os elementos constantes dos autos. 30.ª Pelas razões expostas, o douto Acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 333.º, n.ºs 1, alínea b) e 2, alíneas a) e b) do Código do Trabalho, 751.º do Código Civil e 140.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. 31.ª Mais violou o douto Acórdão recorrido o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º, n.ºs 1 e 2 e o direito à remuneração tutelado no artigo 59.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3, ambos da Constituição da República Portuguesa.”.
8. Não foram apresentadas contra-alegações.
II – APRECIAÇÃO DO RECURSO De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do CPC) mostra-se submetida à apreciação deste tribunal a seguinte questão:
1.Os factos provados (realce relativamente aos imóveis em causa na revista)
1. Após processo Especial de Revitalização, foi declarada a insolvência da sociedade Fundição De Dois Portos, S.A., com sede em Conquinha, 2560-307 freguesia de (São Pedro e Santiago), Torres Vedras, por sentença datada de 20-03-2013. 2. A Devedora tem por objeto social a produção e comercialização de produtos fundidos ferrosos e não ferrosos. 3. O Sr. Administrador da Insolvência apresentou a relação de créditos prevista no artigo 129.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas a 18-09-2013, Ref.ª ..., que se considera reproduzida. Integra: 3.1. Créditos garantidos por hipoteca da CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A. e da Cessionária M... no montante global de € 11 547 653.72. 3.2. Crédito garantido por penhor da sociedade BNP PARIBAS FORTIS -SUCURSAL EM PORTUGAL € 13 007,61. 3.3. Créditos privilegiados laborais, no montante global de € 2 003 508,722. 3.4. Créditos privilegiados da FAZENDA NACIONAL 3.4.1. IVA 3.4.2. IRS 3.4.3. “DÍVIDAS FISCAIS (PER)” 3.5. Crédito privilegiado do ISS, IP 4. Decididas as impugnações, julgaram-se verificados os seguintes créditos: 4.23. Apenso G - WEGEURO – Indústria Eléctrica., S.A.: € 8.213,71 comum. 4.24. Apensos H e I Créditos laborais:
5. Sub-rogações e habilitações.
6. Foram apreendidos: Bens sujeitos a registo.
7. Estabelecimento.
8. Penhor.
9. Os credores VVV e HHHHH declararam aos autos a retirada dos créditos 190 e 207, mantendo-se apenas os créditos 39 e 76, privilegiados laborais.
10. Vendas de imóveis:
2. O direito Encontra-se submetida à apreciação deste tribunal a questão de saber se os créditos laborais reconhecidos nos autos gozam de privilégio imobiliário especial sobre os imóveis referentes às verbas 3 a 10 (imóveis apreendidos para a massa Insolvente). O acórdão recorrido, contrariamente ao decidido pela sentença, considerou que os referidos imóveis ficavam excluídos do âmbito da garantia prevista no artigo 333.º, n.º 1, alínea b) do Código do Trabalho, pelo que alterou a graduação dos créditos dos trabalhadores decidida pela 1ª instância, que os havia colocado em primeiro lugar, ou seja, com prioridade relativamente aos créditos garantidos por direito de retenção e por hipoteca, que incidiam sobre tais imóveis (verbas n.º 6 e 3 a 5, 7 a 10, respectivamente). O tribunal a quo justificou a sua decisão no facto dos imóveis não integrarem a organização empresarial da Insolvente por falta de demonstração da existência de conexão funcional com a actividade dos trabalhadores (reportada à produção e comercialização de produtos fundidos ferroso e não ferrosos). Insurge-se o Recorrente perante tal posicionamento defendendo que a realidade fáctica impõe concluir que os imóveis em causa estavam afectos à actividade industrial e empresarial da Fundição de Dois Portos, SA, constituindo o seu suporte organizacional. Invoca para o efeito que: - a verba n.º 6 constituía terreno onde estava a ser construído o suporte físico do exercício da actividade da Fundição de Dois Portos, SA; - as verbas n.ºs 3, 4, 5, 7, 8, 9 e 10 compreendiam o estabelecimento da Insolvente; - não foi apurado nos autos o destino de arrendamento ou comercialização das referidas verbas. Entendemos, porém, que o tribunal recorrido decidiu com acerto perante a realidade fáctica apurada e as regras do ónus da prova[1], conforme passaremos a justificar.
1. Em matéria de garantia dos créditos laborais, designadamente no que toca aos privilégios creditórios, mostra-se aplicável, no caso, o disposto no artigo 333.º, do Código do Trabalho (aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro),[2] o qual dispõe (no que para a situação assume relevância) que: - “Os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam (…) b) Privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade. 2 - A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte: (…) b) O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes de crédito referido no artigo 748.º do Código Civil e de crédito relativo a contribuição para a segurança social”. Tratando-se de privilégio creditório[3], definido legalmente (artigo 733.º, do Código Civil), como a “faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros” e, mostrando-se classificado como imobiliário (atenta a natureza do bem sobre que incide) e especial (abrangendo determinados bens imóveis do devedor)[4], assume as características próprias da natureza jurídica dos direitos reais, designadamente, o direito de sequela, sendo pois oponível ao terceiro que, posteriormente à sua constituição, venha a adquirir o bem onerado ou qualquer outro direito real sobre o mesmo, e prefere à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que tais garantias sejam anteriores à sua constituição – artigo 751.º, do Código Civil. A definição do âmbito de protecção dos créditos dos trabalhadores atribuído no citado artigo 333.º, n.º 1, alínea b), do Código do Trabalho, impõe delimitar o objecto sobre o qual incide o privilégio creditório imobiliário ali previsto, que de acordo com os termos da lei se reporta ao imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade. Não oferece dúvida que só os imóveis pertencentes à entidade patronal são objecto da garantia. Porém, o alcance do conceito legal imóvel no qual o trabalhador presta trabalho não se mostra linear[5], permitindo que tivessem sido delineadas duas posições interpretativas: uma de cariz restritivo; outra, numa acepção ampla do conceito. A primeira, fazendo preponderar o elemento literal na interpretação do preceito e tendo subjacente um critério naturalístico (espaço físico ligado à prestação de trabalho – posto ou local de trabalho), considera o privilégio incidente sobre o imóvel onde o trabalhador preste ou tenha prestado efectivamente a sua actividade[6]. A interpretação ampla, actualmente firme nos tribunais da Relação e unânime neste STJ[7], defende que o privilégio imobiliário consagrado no preceito abrange todos os imóveis da entidade patronal afectos à actividade empresarial a que os trabalhadores estejam funcionalmente ligados. Nesta perspectiva, a incidência do privilégio reporta-se aos imóveis da entidade patronal que integram a organização produtiva a que os trabalhadores pertencem em termos de ligação funcional, que não se reconduz ao espaço físico onde é exercida a actividade laboral, mas tem a ver com a conexão do imóvel com a actividade do trabalhador no âmbito da organização empresarial do empregador, ficando, nessa medida, arredados do referido privilégio os imóveis que não se encontrem adstritos à organização produtiva do empregador onde o trabalhador se encontra inserido.
2. Partilhando desta interpretação ampla (que se mostra mais consentânea com a protecção conferida constitucionalmente à retribuição e com os princípios da igualdade dos trabalhadores e da confiança dos restantes credores[8]), importará avaliar se os imóveis indicados pelo Recorrente, podem ser considerados, como os que das verbas n.ºs 1 e 2 (onde se situava as instalações da unidade fabril da Insolvente composta pela fábrica, escritórios, refeitórios, balneários, laboratórios, etc - n.ºs 6.1. e 6.2. da matéria de facto provada), integrados na estrutura empresarial da Insolvente para efeitos do artigo 333.º, n.º 1, alínea b), do Código de Trabalho. Atendendo às especificidades dos imóveis em causa procede-se à abordagem da questão, separadamente, da seguinte forma: - verba n.º 6, terreno alegadamente para construção das novas instalações da Insolvente; - verbas n.ºs 9 e 10, terrenos referentes às primeiras instalações da Insolvente (antes da mudança para Torres Vedras); - verbas n.º 8, terreno rústico adjacente às instalações da Insolvente; - verbas n.ºs 3, 4, 5 e 7, terrenos rústicos adjacentes ao terreno que constitui a verba n.º6, alegadamente destinado às novas instalações da Insolvente.
2.1 verba n.º 6 Afastando-se do entendimento da 1.ª instância, que considerou que o imóvel em causa integrava o estabelecimento da Insolvente por corresponder a edifícios destinados à laboração ou adjacente a tais edifícios, refere o acórdão recorrido: - “Mas, nada disto resulta da sentença e, nomeadamente, dos factos provados. Contrariamente, dos factos provados resulta que “a verba nº 6 corresponde a terreno rústico sobre o qual se encontra implantado pavilhão industrial” (em fase de construção da nova Fundação, como referiram alguns trabalhadores reclamantes, quando se pronunciaram sobre o despacho de 28/05/2021, refª ...). Quer dizer, a verba nº 6 trata-se de um prédio rústico pertencente à Insolvente, onde se situa uma construção industrial inacabada, construção essa realizada pela ora Recorrente, e que se destinaria às novas instalações daquela. Por isso, não foi alegado, nem resulta de qualquer documento junto aos autos, que algum dos trabalhadores da Insolvente tivesse alguma vez desempenhado alguma das suas funções naquele pavilhão industrial inacabado. Assim, entre o imóvel da verba nº 6 (correspondente ao prédio ..., prédio rústico, composto por eucaliptal) e a actividade dos trabalhadores da Insolvente (que seria a produção e comercialização de produtos fundidos ferroso e não ferrosos) não existia nenhuma conexão funcional, desde logo porque, apesar de aquele terreno ser propriedade da Insolvente, não integrava (ainda) a sua organização empresarial, não estando adstrito à sua actividade e empreendimentos. Passaria, eventualmente a integrar a empresa, a partir do momento em que as instalações em construção estivessem terminadas, prontas a usar e devidamente licenciadas. Isso, não aconteceu, porque, entretanto, sobreveio a insolvência da empresa. Acresce que também não se provou que, durante a construção das novas instalações, a Insolvente lhe tivesse dado algum uso ou nelas tivesse desempenhado alguma tarefa ou função relacionada coma sua actividade industrial.” Resulta provado quanto a esta verba: - Consta do anúncio junto ao apenso de liquidação que a verba 6 “corresponde a terreno rústico sobre o qual se encontra implantado pavilhão industrial” – ponto 7.9 . Atenta a factualidade apurada, a apreciação feita no acórdão não pode deixar de ser mantida. Com efeito, trata-se de um prédio rústico (composto por pinhal e eucaliptal), onde não consta que tenham sido apreendidos quaisquer bens móveis pertencentes à Insolvente. Ao invés da leitura dos factos feita pela 1.ª instância[9], ainda que se encontrasse apurado[10] o destino visado pela Insolvente para o referido terreno (para as novas instalações da empresa), tal demonstração, por si só, não assumiria relevância para a caracterização da ligação funcional porquanto, como bem salientou o tribunal a quo, está-se em presença de um imóvel que ainda não fazia parte da organização produtiva, ou seja, a referida verba não se encontrava ligada à actividade da empresa, sendo que não resultou provado que os trabalhadores tivessem desempenhado (na construção e/ou no respectivo terreno) qualquer actividade laboral ou que servisse de apoio à actividade desenvolvida pela Insolvente[11]. Assim sendo, não se encontra demonstrado o indispensável nexo com a prestação de trabalho, conforme exige a interpretação mais ampla do citado artigo 333.º do Código de Trabalho.
2.2 verbas n.ºs 9 e 10 Conforme resulta da matéria de facto provada (pontos 6.9, 6.10) as verbas em referência reportam-se a dois prédios rústicos (... e ...) compostos por terreno para edificação, situados em Dois Portos[12], onde se localizavam as anteriores instalações da Insolvente (antes da transferência para Torres Vedras). O acórdão recorrido apreciou a situação destes imóveis juntamente com os restantes (3, 4, 5, 7 e 8), referindo: - “(…) consta da sentença, designadamente dos pontos 6.3., 6.4., 6.5., 6.6., 6.7., 6.8., 6.9., e 6.10. que os prédios aí descritos e apreendidos são todos rústicos, compostos, respectivamente, por pinhal e eucaliptal, pinhal e cultura arvense, pinhal, eucaliptal, pinhal e cultura arvense, cultura arvense, terreno para edificação sito em Dois Portos e terreno para edificação sito em Dois Portos. Já os demais (pontos 6.1. e 6.2.) são prédios urbanos, destinados a armazém e actividade industrial, um composto por bloco de rés-do-chão e primeiro andar e outro por lote de terreno para depósito de matéria-prima. Assim, quanto aos prédios rústicos vale a mesma argumentação que expendemos para a verba nº 6 supra: entre a actividade dos trabalhadores da Insolvente (que seria a produção e comercialização de produtos fundidos ferroso e não ferrosos) não existia nenhuma conexão funcional, desde logo porque, apesar de aqueles terrenos serem propriedade da Insolvente, não integravam (ainda) a sua organização empresarial, não estando adstritos à sua actividade e empreendimentos. E, o facto de os imóveis serem contíguos, não legitima que se conclua, sem mais, pela existência do privilégio imobiliário especial, sendo certo que nenhuma prova foi feita pelos trabalhadores de que exerciam, ou exerceram alguma vez, actividade profissional naqueles prédios. Aliás, os trabalhadores que se pronunciaram “no sentido de a garantia legal abranger todos os imóveis apreendidos nos autos” (ponto 7.10 da sentença), apenas invocaram, em relação às verbas nºs 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10, que são terrenos, alguns deles adjacentes à Fundição, sendo que nalguns deles estariam a ser construídas as instalações da nova Fundição. Nada se refere, no entanto, quanto às actividades que, porventura, aí teriam sido realizadas pelos trabalhadores. Aliás, são os próprios a referir que a unidade fabril da Insolvente, constituída pela fábrica, escritórios, refeitórios, balneários, laboratórios, etc, se situava apenas nos imóveis das verbas nºs 1 e 2 (correspondentes aos pontos 6.1. e 6.2. da sentença). Por esta razão, porque não se encontravam afectos à actividade industrial e comercial da Insolvente, também não poderá manter-se a graduação de créditos efectuada na sentença recorrida quanto aos bens imóveis das verbas nºs 3, 4, 5, 7, 8, 9 e 10 (correspondentes aos descritos nos pontos, 6.3., 6.4., 6.5., 6.7., 6.8., 6.9. e 6.10 da sentença)” Assume pleno acerto a fundamentação expendida pelo tribunal a quo face à matéria de facto provada. Estão em causa dois prédios rústicos onde em tempos (até 1960) funcionou a fundição da Insolvente. Esta circunstância, contudo, em nada altera a conclusão de que se está perante terrenos que deixaram de estar ligados à actividade da empresa (nada foi provada nesse sentido) pois, embora tivessem permanecido na titularidade da mesma, foram arredados da respectiva organização produtiva e, nessa medida, deixou de ser mantida a ligação funcional dos mesmos com os trabalhadores.
2.3 verba n.º 8 De acordo com os factos provados a referida verba corresponde a um prédio rústico (...) composto por cultura arvense, que confronta com os prédios onde está instalada a unidade fabril da Insolvente. Embora se trate de um terreno contíguo às instalações da Insolvente, não foi demonstrado que o mesmo estivesse, por qualquer forma (que não a mera localização) ligado à actividade empresarial da Insolvente; só assim seria legítimo concluir que integrava (como as verbas n.ºs 1 e 2) a sua estrutura organizacional produtiva (produção e comercialização de produtos fundidos ferrosos e não ferrosos), sendo irrelevante para o efeito a referência aludida no anúncio junto ao apenso de liquidação a 25-06-2015 e 26-01-2017 de que “A s verbas n.ºs 1, 2 e 8 são contíguas e compõem a totalidade da unidade fabril” - ponto 7.1 da matéria de facto. Tal como relativamente aos demais imóveis rústicos, não só não consta que nele tivessem sido apreendidos bens pertencentes à Insolvente, como não foi feita prova da existência de um qualquer nexo com a prestação de trabalho dos trabalhadores/credores da Devedora. Assim, contrariamente ao pugnado pelo Recorrente, não foi demonstrado que o referido imóvel se encontrava, por qualquer forma de utilização, adstrito à actividade desenvolvida pela Insolvente em termos de se poder considerar que os seus trabalhadores tinham com ele uma conexão funcional.
2.4 - verbas n.ºs 3, 4, 5 e 7 Reportam-se as referidas verbas a terrenos rústicos adjacentes ao imóvel onde alegadamente seriam construídas as novas instalações da Insolvente (verba n.º 6). Tratam-se de prédios compostos por pinhal e eucaliptal (verba n.º 3), pinhal e cultura arvense (verba n.º 4 e 7 ) e pinhal (verbas n.º 5) – pontos n.ºs 6.3, 6.4, 6.5 e 6.7 dos factos provados. Na sequência do concluído quanto ao imóvel referente à verba n.º 6, também relativamente a estes terrenos não foi demonstrada a indispensável ligação à actividade da empresa, designadamente terem os trabalhadores ali desempenhado qualquer actividade laboral ou que servisse de apoio à actividade desenvolvida pela Insolvente. Sem a demonstração da indispensável conexão funcional laboral mostra-se gorada a pretensão de sobre os mesmos incidir o privilégio imobiliário especial previsto no artigo 333.º, n.º 1, alínea b), do Código do Trabalho. Cabe sublinhar que a afirmação do Recorrente de que os imóveis integravam os estabelecimento da Insolvente constitui uma leitura incorrecta do ponto 7. da matéria de facto provada já que a expressão “Estabelecimento” nele utilizada, conforme evidencia o teor dos pontos 7.1 a 7.10, encontra-se utilizada num sentido impróprio, que não é confundível com a de estrutura organizacional económico-produtiva da Insolvente (correspondente ao conjunto de bens e elementos corpóreos e incorpóreos devidamente organizada para o exercício da sua actividade industrial e comercial); nessa medida, sem relevância para a caracterização dos imóveis para efeitos do artigo 333.º n.º 1, alínea b), do Código de Trabalho. Importa, ainda referir que, em contrário do que defende o Recorrente, a circunstância de não ter sido demonstrado que os terrenos não estavam destinados a arrendamento ou a comercialização não permite, sem mais, concluir pela pretendida afectação funcional dos mesmos. Impõe-se, por fim, salientar que não tendo sido demonstrado que tais imóveis correspondiam a locais onde a Insolvente Fundição de Dois Portos, S.A. exercia a sua actividade ou que se encontravam afectos aos fins prosseguidos pela mesma no contexto e desenvolvimento da sua actividade, uma vez que não apresentam o nexo funcional com os trabalhadores exigido pela alínea b) do n.º 1 do artigo 333.º do Código de Trabalho, não se vislumbra em que medida se mostram violados os artigos 13.º, n.ºs 1 e 2 e 59.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3, da Constituição da República Portuguesa. Improcedem, por isso, as conclusões da revista.
IV. DECISÃO
Lisboa, 5 de Abril de 2022
Graça Amaral (Relatora) Maria Olinda Garcia Ricardo Costa
Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC). ___________________________________________________
[8] Já que adequa melhor a coexistência de dois interesses conflituantes: a igualdade dos direitos de todos os trabalhadores da empresa, sem descurar a tutela da confiança de outros credores que disponham de garantia real anterior, como seja a hipoteca (face ao carácter oculto do privilégio creditório). [9] Na qual foi concluído que os imóveis apreendidos “correspondem a edifícios destinados à laboração, ou são adjacentes a tais edifícios” e, nessa medida, sem mais, inferiu que os imóveis adjacentes se destinariam “a armazém ou depósito, construção de acessos, futuro alargamento das instalações, etc”. |