Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
13951/22.2T8LSB-A.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: ARBITRAGEM VOLUNTÁRIA
CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA
CONVENÇÃO DE ARBITRAGEM
TERCEIRO
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
ACÇÕES
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
PRETERIÇÃO DO TRIBUNAL ARBITRAL
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
COMPETÊNCIA MATERIAL
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
Data do Acordão: 03/13/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - A cláusula compromissória inserta em contrato de compra e venda de acções em que se estabeleceu que “Qualquer desacordo, controvérsia ou reclamação decorrente de, ou relacionado com este Contrato será resolvida pela Câmara de Comércio Internacional (CCI), por um ou mais árbitros indicados de acordo com as referidas regras, e o local da arbitragem será Lisboa, Portugal é vinculativa para as partes outorgantes do contrato, podendo ser invocada a excepção de incompetência absoluta dos tribunais judiciais em razão da matéria, por preterição do tribunal arbitral, em acção proposta nos tribunais estaduais.

II - O facto de as Autoras invocarem uma responsabilidade solidária de uma outra entidade- a 2.ª Ré- não subscritora do contrato de venda de acções, e não abrangida pela cláusula compromissória, mas outorgante de outro contrato designado de “acordo escrow”, cujo incumprimento também é invocado, não impede que a A. tenha de respeitar a cláusula compromissória em relação à parte incumpridora vinculada contratualmente ao tribunal arbitral.

III - Quanto á parte não vinculada à cláusula compromissória, para obter reconhecimento da sua pretensão contra aquela, são competentes os tribunais judiciais comuns, nada impedindo que o litígio se distribua entre o tribunal arbitral, em relação a um dos codevedores, e o tribunal judicial, quanto ao outro.

Decisão Texto Integral:

I - RELATÓRIO

REDITUS GESTÃO, S.A., sociedade anónima com sede em Lisboa, e

GREENDRY LDA, sociedade por quotas, com sede em Lisboa, intentaram ACÇÃO DECLARATIVA DE CONDENAÇÃO, sob a forma de processo comum, contra:

INETUM TECH PORTUGAL S.A., sociedade anónima, com sede em Lisboa e

HAITONG BANK, S.A., sociedade anónima, com sede em Lisboa, todas melhor identificadas nos autos, formulando os seguintes pedidos:

A condenação da 1.ª Ré a pagar:

(i)À 1ª Autora, da quantia global de €3.656.138,63 por incumprimento contratual, acrescida de juros vencidos, à taxa legal aplicável, computados à data da petição, no montante de €562.557,57, e ainda de juros vincendos, à mesma taxa legal, até efectivo e integral pagamento;

(ii)À 2ª. Autora, da quantia global de €595.185,36, por incumprimento contratual, acrescida de juros vencidos, à taxa legal computados à data da petição inicial, no montante de €91.579,40, e ainda de juros vincendos, à mesma taxa legal, até efectivo e integral pagamento;

A condenação da 2ª Ré, solidariamente com a 1ª Ré, a pagar:

(iii)À 1ª Autora, o montante global de €3.656.138,63, por incumprimento contratual, acrescido de juros vencidos, à taxa legal aplicável computados à data da petição inicial no montante de €562.557,57, e ainda de juros vincendos, à mesma taxa legal, até efectivo e integral pagamento;

(iv)À 2ª Autora, o montante global de €595.185,36, por incumprimento contratual, acrescido de juros vencidos, à taxa legal aplicável, computados à data da petição inicial, no montante de €91.579,40, e ainda de juros vincendos, à mesma taxa legal, até efectivo e integral pagamento;

Ou a assim não se entender,

A condenação da 1.ª Ré na restituição:

À 1ª Autora, do montante de €3.656.138,63, por consubstanciar um enriquecimento sem causa, acrescida de juros vencidos, à taxa legal aplicável computados no montante de€562.557,57, e ainda de juros vincendos, à mesma taxa legal, até efectivo e integral pagamento.

À 2ª Autora, do montante de €595.185,36, por consubstanciar um enriquecimento sem causa, acrescida de juros vencidos, à taxa legal aplicável, computados no montante de €91.579,40, e ainda de juros vincendos, à mesma taxa legal, até efectivo e integral pagamento.


*

Regularmente citadas, vieram ambas as Rés apresentar a sua contestação.

A INETUM TECH PORTUGAL S.A., invocou a excepção dilatória de preterição de tribunal arbitral alegando que, no âmbito do ACORDO - Contrato de Compra e Venda de Ações - de 4 de novembro de 2016, celebrado, entre as AA e a Ré INETUM, foi inserida uma cláusula/convenção de arbitragem , a qual atribui a competência para julgar qualquer diferendo dali emergente a tribunal arbitral a constituir nos termos das regras da Câmara de Comércio Internacional. Com efeito, pode ler-se na cláusula 19.2. do Contrato, que: “Qualquer desacordo, controvérsia ou reclamação decorrente de, ou relacionado com este Contrato será resolvida pela Câmara de Comércio Internacional (CCI), por um ou mais árbitros indicados de acordo com as referidas regras, e o local da arbitragem será Lisboa, Portugal (…)”.

As Autoras responderam, pugnando pela improcedência da excepção.

Argumentaram, no essencial, que não pode, nos presentes autos, prevalecer a cláusula arbitral constante do contrato exclusivamente celebrado entre a primeira Ré e as AA, não só porque a matéria dos presentes autos não se restringe ao “desacordo, controvérsia ou reclamação decorrente de, ou relacionado com este Contrato”, mas também porque a cláusula arbitral - constante apenas do contrato de compra e venda de acções celebrados entre AA e 1ª Ré - não foi subscrita pela 2ª Ré, nem a esta a mesma aderiu por qualquer via, sendo indiscutível que a convenção de arbitragem só vincula e produz efeitos entre as partes que a subscreveram (cfr. art.º 406º do Cód. Civil).

Ademais, e no que respeita ao Acordo de escrow, todas as partes na presente acção (AA. e RR) convencionaram o foro do tribunal de Lisboa como o foro exclusivamente competente para qualquer acção decorrente ou relacionada com o mesmo, pelo que, atendendo ao exposto, ao objecto do litígio e às partes que o compõem, é este o Tribunal competente, devendo, por consequência, improceder a excepção alegada pela 1ª Ré .

Realizada audiência prévia foi no âmbito da mesma proferida a seguinte decisão:

O tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.

A 1ª R. contestante suscita a excepção de preterição de tribunal arbitral, porquanto ficou convencionado no contrato de compra e venda de acções, especificamente na cláusula 19.2, que ‘’Qualquer desacordo, controvérsia ou Reclamação decorrente de, ou relacionado com este Contrato será resolvida pela Câmara de Comércio Internacional (CCI), por um ou mais árbitros indicados de acordo com as referidas regras, e o local da arbitragem será Lisboa, Portugal’’

Considerando que as autoras demandam ambas as rés, com fundamento em incumprimento do contrato de compra e venda de acções e, conexo com este, o intitulado Acordo Escrow, não contendo este qualquer cláusula quanto ao deferimento da decisão a tribunal arbitral, nem versando a acção exclusivamente sobre o incumprimento do primeiramente referido, não tendo a 2ª ré outorgado este, como tal não lhe sendo oponível a convenção de recurso a tribunal arbitral.

Assim, desatende-se a excepção invocada, declarando-se o tribunal competente.”


*

Inconformada com esta decisão, a Ré INETUM TECH PORTUGAL S.A., da mesma, interpôs recurso de apelação que veio a ser julgado procedente, por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 06-06-2024, que revogou a decisão apelada, e consequentemente, julgou procedente a excepção de incompetência absoluta do tribunal a quo em razão da matéria para apreciar e julgar a acção, o que forçosamente implica a absolvição da ré INETUM TECH PORTUGAL S.A. da instância e o prosseguimento da acção apenas contra a Ré HAITONG BANK, S.A.

*

Inconformadas as Autoras com a decisão proferida vêm interpor recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, formulando, no essencial, as seguintes conclusões:

A-O recurso ora interposto pelo Recorrente versa sobre o Acórdão proferido pelos Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa a fls. …, o qual decidiu conceder provimento à apelação de INETUM TECH PORTUGAL S.A., e, consequentemente decidiu:

“6.1. - Revogar a sentença apelada no tocante à decidida improcedência da excepção

dilatória da Incompetência Absoluta do Tribunal;

6.2.- Julgar procedente a excepção de incompetência absoluta do tribunal a quo em razão da matéria para apreciar e julgar a acção, o que forçosamente implica a absolvição da ré INETUM TECH PORTUGAL S.A. da instância (art.º 99.º/1 do C.P.C.), e prosseguimento esta última apenas contra a ré HAITONG BANK, S.A.”

B.Versa o presente recurso sobre matéria de Direito, uma vez que, houve aspectos, os quais , salvo melhor entendimento, foram incorrectamente apreciados, merecendo o Acórdão recorrido censura, na medida em que não fez quer uma válida apreciação doDireito, pelo que deverá ser substituído.

C. A decisão do Tribunal de 1ª instância, recorrida em sede de Apelação, patente no Despacho saneador de 23.2.2024, pronunciou-se no seguinte sentido: (…)1

D.Atendendo aos pedidos elaborados pelas AA., aqui Recorrentes, nos autos, o Acórdão sob recurso veio fazer constar e transcrever em sede de Relatório do Acórdão a fundamentação tecida pelas AA. e que determina que o objecto dos autos respeita primordialmente ao incumprimento do Acordo Escrow, celebrado entre AA. e RR. e aos prejuízos daí decorrentes para as AA.

E. Ditando o Acórdão sob recurso

(…)

F. Ou seja, remetendo o Acórdão sob recurso, explicitamente, para o Acordo Escrow, celebrado entre todas as partes da acção e não para o Contrato de compra e venda de

acções e deixando que esse Acordo ou Contrato Escrow, que regula a relação entre as partes o que respeita à movimentação da conta Escrow, não contém convenção de arbitragem antes convencionando como competentes os Tribunais do foro de Lisboa.

G.Porém, sem prejuízo do Relatório e respectiva Motivação de facto, e ainda que especificando que o Acordo Escrow integra a causa de pedir, vem o Acórdão sob recurso determinar o seguinte em sede de Motivação de Direito:

(…)2

H.E, em sede de Decisão, veio determinar que:

(…)

Ora,

I. O Acórdão sob recurso reconhece:
d) a existência de dois negócios jurídicos distintos (a saber, o Contrato de Compra e Venda de Acções e o Contrato Escrow;

e) que os negócios são celebrados e subscritos entre intervenientes diversos, sendo o Contrato Escrow com ambas as RR;

e
f) que, no Contrato Escrow, as partes (incluindo AA. e 1ª Ré) estipularam expressamente entre si que “Cada uma das partes do presente Acordo submete-se irrevogavelmente à jurisdição exclusiva dos Tribunais de Lisboa, para efeitos de qualquer acção decorrente ou relacionada com o presente Acordo.”,

J. Pelo que não se entende como pode, diversamente, vir entender que até mesmo expressamente e por acordo de todas as partes) não se encontra afastada a aplicabilidade da convenção de arbitragem estipulada no Contrato de Compra e Venda de acções (celebrado exclusivamente entre AA. e 1ª Ré) e pelo contrário, vir até fazer uma interpretação extensiva da aplicabilidade da convenção de arbitragem de um negócio jurídico ao outro, que lhe é independente (ainda que subsequente ou relacionado).

K. Tal interpretação, e consequentemente a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, de que agora se recorre, consubstancia em si a nulidade prevista no art. 615º, nº 1 al. c) do CPC, porquanto os fundamentos de facto estão em profunda oposição com a decisão, nulidade que aqui se invoca para todos os devidos e legais efeitos.

L. Ademais, a decidir como o faz também faz, o Tribunal a quo errada interpretação e aplicação do Direito,

M. Na verdade, veio a presente acção interposta com base na responsabilidade civil das RR. por factos ilícitos, dolosos e reiteradamente praticados pelas mesmas, com prejuízo patrimonial efectivo para as AA., incluindo, e particularmente, pelo incumprimento do acordo de escrow.

N. Nomeadamente, quanto à 1ª R, nomeadamente (cfr. art. 177.º da petição inicial):

a) por via da violação das condições de sub-rogação (e falta da própria sub-rogação) dos activos da sociedade R... para as AA.

f) Por via da violação das regras estipuladas para a emissão de notas de créditos a clientes cujos saldos se encontravam por receber à data da compra e venda;

g) pela não restituição, imediata, de valores recebidos de saldos clientes, provisionados à data da compra e venda;

h) pela não interpelação/notificação, mediante cumprimento de pré-aviso de 10 dias úteis, quanto a pedidos de pagamento por si efectuados junto da 2ª Ré;

i) pelos bloqueios da conta “escrow” e respectivos pedidos de pagamento junto da 2ª Ré sem o devido fundamento contratual, em incumprimento das formalidades essenciais estipuladas em Contrato, de forma unilateral e ilícita.

O. E, quanto à 2.ª Ré (art.º 178.º da petição inicial)

P. Contrariamente ao alegado pela 1ª Ré (Apelante para o Tribunal da Relação), não pode, nos presentes autos prevalecer a cláusula arbitral constante do contrato exclusivamente celebrado entre esta e as AA, não só porque a matéria dos presentes autos não se restringe a “desacordo, controvérsia ou reclamação decorrente de, ou relacionado com este Contrato”, como também, por outro lado, porque a cláusula arbitral (constante do contrato de compra e venda de acções celebrados entre AA e 1ª Ré) não foi subscrita pela 2ª Ré, nem a esta a mesma aderiu por qualquer via.

Q. É indiscutível que a convenção de arbitragem só vincula e produz efeitos entre as partes que a subscreveram (cfr. art.º 406º do Cód. Civil),

Porém,

R. Certo é que, a responsabilidade das RR. é invocada nos presentes autos a título solidário, na mesma medida sendo solidário o pedido de condenação efectuado pelas AA, quanto a ambas as RR., não se podendo, para efeitos do pedido e causa de pedir, perante os factos invocados na petição inicial, dissociar (pelo menos parcialmente) as acções da 1ª Ré das acções da 2ª Ré.

S. Pelo que se mostra necessária a instauração de acção pela via judicial nos meios comuns, relativamente a todas as RR, sob pena de, por absurdo, caso se seguisse por via diferente para cada uma das RR. se vir a obter decisão diversa para cada uma das RR, em totalmente incumprimento dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança.

T. Sendo certo que, não tendo a 2ª Ré subscrito a convenção arbitral, não sendo parte contratante, é evidente que, caso tal convenção fosse invocada para efeitos de demanda da mesma, por parte das AA (isto é, se tivessem seguido pela via arbitral), sempre a 2ª Ré iria (validamente) invocar a sua não aplicação (ou até mesmo a nulidade), o que certamente mereceria a concordância do tribunal Arbitral, ficando, então, as AA. destituídas de instância para salvaguarda dos seus legítimos direitos e interesses, o que, mais não fosse, configuraria manifestamente uma violação do art.º 20º da Constituição da República Portuguesa.

Doutrossim,

U. No que respeita ao Acordo de escrow, todas as partes na presente acção (AA. e RR) convencionaram o foro do tribunal de Lisboa como o foro exclusivamente competente para qualquer acção decorrente ou relacionada com o mesmo (Cf. Secção 14 do Acordo de escrow, junto à petição inicial como Doc. nº. 3 e conforme consta do Relatório do Acórdão ora sob recurso).

V. Pelo que, atendendo ao exposto, ao objecto do litígio e às partes que o compõem, é o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa o competente.

W. Na verdade, não colhe, nem pode colher o argumento tecido pela 1ª Ré/Apelante e acolhido pelo Acórdão sob recurso que: “A não se sufragar [ como o fazemos ] o entendimento acabado de expor, e como bem avisa a apelante, como que estaria criada/achada a escapatória à sujeição de partes a uma convenção de arbitragem à qual se vincularam, para tanto intentando também a acção contra um terceiro – em litisconsórcio voluntário – alegadamente também responsável mas não submetido a uma cláusula compromissória.”

X. É que, uma vez mais, recorda-se que o Contrato Escrow vincula todas as RR, e que todas as RR, incluindo a Ré Apelante, quanto ao Contrato Escrow quiseram vincular-se não a foro arbitral, mas sim a foro judicial!

Y. Pelo que, sujeitar o litígio a Tribunal judicial não consubstancia qualquer manobra de escapatória à convenção de arbitragem, mas sim a mera aplicação da estipulação do próprio Contrato Escrow e das cláusulas a que as partes se vincularam!

Z. Não cabe ao Tribunal a quo afastar a convenção de foro estipulada pelas partes,

AA. Nem, salvo melhor opinião, fazer uma interpretação extensiva de convenção de arbitragem estendendo os seus efeitos a negócio jurídico diverso, como o faz com a decisão sob recurso.

BB. Querendo o douto Tribunal da Relação aplicar a convenção de arbitragem constante do Contrato de compra e venda de acções celebrado entre AA. e 1ª Ré, aos presentes autos, sempre tal teria que limitar-se aos litígios respeitantes ao contrato em si mas nunca a negócio jurídico diverso (ainda que subsequente ou relacionado) como o Contrato escrow.

CC. Devendo, quanto ao Contrato Escrow e questões com o mesmo relacionadas, e consequentemente quanto aos autos, aplicar-se o disposto no art.º 94º do CPC, porquanto a cláusula de foro, estipulada livre e expressamente entre as partes no Contrato Escrow, as vincula e deverá aplicar-se,

DD. Uma vez que a competência fundada na estipulação é tão obrigatória como a que deriva da lei, conforme estipula o art.º 95º nº 3 CPC.

EE. Sob pena de se subverter ou mesmo infringir a autonomia privada das partes.

FF. E até mesmo, sob pena de denegação de Justiça às AA., e consequente violação do art.º 20º da Constituição da República Portuguesa, ao impedir que, quanto aos mesmos factos e ao mesmo negócio jurídico, lhes seja permitido recorrer aos tribunais judiciais a fim de obter uma tutela efectiva e em tempo útil dos seus direitos, designadamente por forma a lograr a condenação das RR. Por responsabilidade solidária pela actuação que (no seu entender) configura uma acção ilícita e concertada de ambas as RR,

GG. Em que a avaliação do caso concreto e da prova não poderá de forma alguma ocorrer em jurisdições diversas, devendo o caso ser julgado numa única acção.

HH. Pelo que deveria o Tribunal da Relação de Lisboa ter declarado totalmente improcedente o recurso da 1ª Ré, o que, erradamente, não fez.

JJ. Por conseguinte, não colhem os fundamentos do Tribunal recorrido, sendo obrigatória a conclusão de que o Tribunal a quo errou na apreciação que fez sobre esta matéria.

KK. Na verdade, face à errada aplicação do direito pelo Tribunal recorrido, que deverá ser sanada por via do presente recurso, apenas se poderá concluir que a Recorrente tem direito a que o Supremo Tribunal de Justiça decida favoravelmente o alegado pela Recorrente no seu Recurso de Revista, assim se revogando a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa.

Normas violadas: as citadas no presente recurso, designadamente os arts. 615º a contrario, 607º, nºs 3 e 4, 94º e 95º todos do CPC, e art.º 20º da CRP.

Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. mui doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser revogada a decisão recorrida e a mesma substituída por outra, nomeadamente a decidida em Primeira Instância, declarando-se competente o Tribunal Judicial da comarca de Lisboa.

A Recorrida INETUM TECH PORTUGAL SA apresentou contra-alegações na quais pugnou pela improcedência do recurso e consequente confirmação do acórdão recorrido.

II - OS FACTOS

Os elementos relevantes para a decisão são os que constam do relatório supra, sendo ainda relevante a matéria que vem seleccionada das instâncias:

1. No dia 4 de Novembro de 2016, foi outorgado o contrato de compra e venda de acções (adiante “o contrato”), pelo qual a 1ª Autora vendeu, à 1ª Ré, 1.000.000 (um milhão) de acções de valor nominal de €1 cada, representativas da totalidade do capital social da sociedade comercial R..., S.A., pessoa colectiva nº .......87 (adiante abreviadamente designada por “R...”), tendo a sociedade GFI Informatique como “Agente do Comprador”.

2. Pelo mesmo contrato, também a 2ª Autora, vendeu à R... as acções que detinha nas subsidiárias desta (R... Asia, R... Nordic, R... Covilhã e R... Suíça) e que constituíam, todas elas, participações minoritárias, tendo a 1ª Ré assumido a obrigação de pagar o preço do negócio celebrado entre a R... e a 2ª autora.

3. Do mesmo documento – subscrito pela Autoras e 1ª Ré – constam, de entre outras, as seguintes cláusulas:

“(…)

19.1 Lei Aplicável

Este Contrato será regido e interpretado de acordo com a Lei Portuguesa.

19.2 Jurisdição

Qualquer desacordo, controvérsia ou Reclamação decorrente de, ou relacionado com este Contrato será resolvida pela Câmara de Comércio Internacional (CCI), por um ou mais árbitros indicados de acordo com as referidas regras, e o local da arbitragem será Lisboa, Portugal.

A língua de arbitragem será o Inglês e a lei aplicável à arbitragem será a Lei Portuguesa.

Não obstante o acima exposto, no caso de matérias que não possam legalmente ser submetidas a arbitragem e que devam ser resolvidas por um juiz ou tribunal, as Partes renunciam irrevogavelmente a qualquer jurisdição que lhes possa corresponder, submetendo- se aos Tribunais da cidade de Lisboa, Portugal.”

4.Para garantia do reembolso à 1ª Ré de valores que as vendedoras (aqui Autoras), tivessem de restituir, em virtude de eventual quebra do contrato ou de violação de garantias, foi depositado o valor de €5.000.000,00 (cinco milhões de euros) numa conta Escrow (“conta-caução’’), conta que ficou sob gestão e responsabilidade da 2ª Ré Haitong Bank, S.A. nos termos (…)

5. Do contrato outorgado a 4 de Novembro de 2016, e identificado em 1., consta a seguinte cláusula:

15. ESCROW

Para garantir qualquer quantia devida ao Comprador como indemnização por qualquer Infracção das Garantias dos Vendedores, as Partes deverão constituir uma conta escrow (a “Conta Escrow") nos termos do Contrato de Escrow, e os Vendedores deverão depositar nessa Conta Escrow um montante de até EUR 5.000.000,00 (o “Depósito Escrow"), substancialmente sob a forma do ANEXO 15 junto.

O Depósito Escrow será composto por:

• EUR 1.500.000,00 a serem depositados em escrow pelos Vendedores na Data de Conclusão (o “Depósito Escrow"), e

• um valor de até EUR 3.500.000,00 a ser depositado em escrow pelos Vendedores no Ajustamento do Preço, caso tal Ajustamento do Preço seja devido aos Vendedores com, em qualquer caso, um mínimo de EUR 500.000,00 (o “Depósito Escrow”), na data em que o Ajustamento ao Preço é pago.

O Depósito Escrow irá sendo reduzido, de acordo com as disposições estabelecidas no Acordo de Escrow e conforme previsto no ANEXO 15.”

6. No seguimento do referido em 5. Foi, em 4/11/2016, outorgado um “ACORDO ESCROW”, por e entre:

I. REDITUS GESTÃO,S.A., uma sociedade de responsabilidade limitada constituída de acordo com as leis de Portugal, com sede na Rua Pedro Nunes, n° 11, 1050-169, Lisboa, Portugal, Contribuinte no. 503 800708, com um capital social de € 58.000.000 (“Reditus Gestão” actuando em seu nome e também como “Agente dos Vendedores”);

II. GREENDRY - SGPS, LDA., uma sociedade de responsabilidade limitada constituída de acordo com as leis de Portugal, com sede na Avenida Duque d’Ávila, n° 185, 5o andar, 1050-082, Lisboa, Portugal, Contribuinte n°. 508 725941, com um capital social de 5.000 euros (“Greendry” e, juntamente com a Reditus Gestão, os “Vendedores”); e

III. Gfi PORTUGAL TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO, S.A3, uma sociedade de responsabilidade limitada constituída de acordo com as leis de Portugal, registada na Conservatória do Registo Comercial sob o n°. 502 726 890, com sede em D. João II, n° 44C - 4o andar, 1990-095 Lisboa, (“Comprador”).

IV. HAITONG BANK, S.A., uma instituição de crédito constituída de acordo com as leis de Portugal, com sede na Rua Alexandre Herculano, n° 38, Lisboa, Portugal, registada na Conservatória do Registo Comercial e Pessoa Colectiva número 501 385 932, com um capital social de € 426.269.000,00 (“Haitong Bank” ou “Agente de Escrow”).

7. Do acordo identificado em 6. constam os seguintes CONSIDERANDOS :

A. Comprador e Vendedores firmaram um Contrato de Compra e Venda de Ações, datado de 4 de Novembro de 2016 (o “Contrato de Compra e Venda”), segundo o qual o Comprador adquirirá na Data de Conclusão (i) diretamente da Reditus Gestão todas as ações da R..., S.A. sociedade de responsabilidade limitada constituída de acordo com as leis de Portugal, com sede na Rua ..., ..., Portugal, Contribuinte no. ... ... .87 (a “Companhia”) e (ii) indiretamente, através da Companhia, as Ações Minoritárias detidas pela Greendry nas Subsidiárias Alvo.

O Agente de Escrow não é parte do Contrato de Compra e Venda e não tem obrigação de rever o Contrato de Compra e Venda ou de interpretar de qualquer modo os termos do Contrato de Compra e Venda.

B. O Contrato de Compra e Venda contempla o estabelecimento de um acordo de Escrow para assegurar os direitos do Comprador a indemnização, compensação e reembolso, nos termos do Contrato de Compra e Venda.

8. Do acordo identificado em 6. constam, de entre outras, as seguintes cláusulas:

(…)

SECÇÃO 14. Lei Aplicável; Jurisdição

Este Acordo será construído de acordo com, e regido em todos os aspectos pelas leis de Portugal. Cada uma das partes do presente Acordo submete-se irrevogavelmente à jurisdição exclusiva dos Tribunais de Lisboa, para efeitos de qualquer acção decorrente ou relacionada com o presente Acordo.

SECÇÃO 15. Diversos

As partes entendem e acordam que, caso surja qualquer disputa em relação à entrega, propriedade, direito de posse e/ou disposição de quaisquer fundos na Conta Escrow, ou se qualquer reinvidicação for feita sobre Conta Escrow por um terceiro, o Agente de Escrow, mediante recebimento de notificação por escrito de tal disputa ou reinvidicação pelas partes ou por um terceiro, é autorizado e instruído a manter, sem responsabilidades, em sua custódia e na Conta Escrow, os fundos sob disputa ou reivindicação até que tal disputa ou reivindicação tenham sido resolvidas por mútuo acordo escrito das partes envolvidas, ou por uma ordem executiva, decreto ou sentença de um tribunal de jurisdição competente, ou o prazo para a perfeição do apelo de tal ordem, decreto ou sentença tenha expirado. O Agente de Escrow poderá, mas a tal não é obrigado, iniciar ou defender qualquer processo judicial relacionado com a Conta Escrow.

Este Acordo e todos os documentos com ele relacionados, incluindo sem limitação (i) consentimentos, renúncias e modificações que possam ser posteriormente executadas, e (ii) certificações e outras informações anteriormente ou posteriormente fornecidas, podem ser reproduzidos por qualquer processo fotográfico, fotostático, microfilme, disco óptico, micro-cartão, miniaturização fotográfica ou similar.

As Partes concordam que, na medida em que permitido por qualquer lei aplicável, tal reprodução seja admissível como evidência tal como o próprio original, em qualquer procedimento judicial ou administrativo relacionado com este Acordo, quer o original exista ou não e tal reprodução tenha ou não sido feita por uma das partes no curso regular dos negócios, e que qualquer ampliação, fac-símile ou reprodução adicional de tal reprodução será igualmente admissível como evidência.”

III - O DIREITO

Corridos os vistos, cumpre decidir, tendo presente que são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o objeto do recurso, estando vedado ao tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, com excepção daquelas que são de conhecimento oficioso (cfr. art. 635º nº 4, 639º nº 1, 608º nº 2, ex vi art. 679º, todos do CPC).

Assim, tendo em conta as conclusões de recurso formuladas, as questões a apreciar são as seguintes:

1 - Nulidade do acórdão recorrido com base na oposição entre os fundamentos e a decisão (art.º 615.º n.º 1 c) do CPC;

2 - Saber se o Tribunal da Relação procedeu a uma errada interpretação e aplicação do Direito ao julgar procedente a invocada excepção da incompetência absoluta do Tribunal por preterição do tribunal arbitral voluntário.

Questão prévia da admissibilidade do recurso:

Apesar de , em princípio, não admitirem recurso de revista os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias da 1ª instância sobre questões de natureza adjectiva (como é o caso da decisão recorrida), a lei processual civil abre, no entanto, as duas excepções previstas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 671º. Admitem, por conseguinte, revista os acórdãos da Relação que, incidindo sobre decisões interlocutórias de conteúdo adjectivo, integrem alguma das previsões constantes do n.º 2 do artigo 629º do CPC, em que o recurso é sempre admissível.

Uma dessas situações de excepção é a que se reporta à violação das regras de competência internacional, das regras de competência em razão da matéria ou da hierarquia, ou na ofensa de caso julgado – alínea a), do n.º 2 do artigo 629º.

Nos termos do artigo 96º, alínea b), do CPC, a preterição do tribunal arbitral determina a incompetência absoluta do tribunal.

No caso em análise, as Autoras, na presente revista, impugnam a decisão do Tribunal da Relação que julgou procedente a invocada excepção da incompetência absoluta do tribunal, por preterição do tribunal arbitral.

Estando em causa a invocada violação das regras de competência em razão da matéria, nenhuma dúvida se levanta quanto à admissibilidade da revista.


*

1 - As Autoras/Recorrentes invocam a nulidade do acórdão recorrido com base na contradição entre os fundamentos e a decisão.

Com efeito, nos termos do disposto no art.º 615.º n.º 1c) do CPC, a sentença/acórdão será nula/o quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão”.

Para tal ocorrer, é necessário que se verifique uma contradição lógica entre esses fundamentos e a decisão. Ou seja, “se na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se.”4

Ora, da leitura do acórdão recorrido ressalta à evidência que o raciocínio constante da respectiva fundamentação, em nenhum momento, apontou para solução diversa daquela que veio a constar da decisão. Limitou-se a descrever as especificidades fácticas do caso em análise, para explicar que as mesmas não obstam à procedência da excepção de preterição do tribunal arbitral e à luz das normas legais aplicáveis e orientações jurisprudenciais, encontrar a solução jurídica entendida por adequada.

Não se vislumbra, pois, qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão, pelo que necessariamente terá de improceder a invocada nulidade.

2 - Afastada a verificação da nulidade invocada pelas Recorrentes, importa agora apreciar se o Tribunal da Relação terá procedido a uma errada interpretação e aplicação do Direito, ao julgar procedente a invocada excepção da incompetência absoluta do Tribunal por preterição do tribunal arbitral voluntário.

Comecemos por acentuar as já referidas especificidades deste caso concreto e que, por via delas, a abordagem jurídica tem necessariamente de imprimir à solução final, um cambiante diverso daquele que é comum.

Na verdade, habitual é a existência de um contrato em que as partes acordam em incluir uma cláusula compromissória (cfr. art.º 1º, nº 3, da Lei da Arbitragem Voluntária -Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro)5, mediante a qual atribuem a um tribunal arbitral a competência para julgar eventuais litígios emergentes dessa relação jurídica contratual.

Ora, no presente caso, não temos um contrato, mas sim dois contratos celebrados no mesmo dia e com uma profunda interligação entre eles, mas em que as partes não são totalmente coincidentes.

Acresce que, para além de num dos contratos intervir a HAITONG BANK SA que não é parte no outro contrato, num dos contratos existe uma cláusula compromissória e no outro contrato existe uma cláusula segundo a qual as partes se submetem à jurisdição exclusiva dos Tribunais de Lisboa, nos termos consentidos pelo disposto no art.º 94.º do Código de Processo Civil(CPC).

E é neste contexto que surge o presente litígio: as Autoras e Recorrentes esgrimem argumentos jurídicos no sentido de dar prevalência ao acordo que atribuiu competência aos tribunais estaduais. Por sua vez, as Recorridas argumentam com a força vinculativa da cláusula compromissória constante de um dos contratos celebrados pelas partes.

Quid juris?

Importa, antes de mais, focar atenção na cláusula compromissória constante do contrato de compra e venda de acções, outorgado em 04-11-2016, entre as Autoras e a 1.ª Ré, com o seguinte teor:

“19.2 Jurisdição

Qualquer desacordo, controvérsia ou reclamação decorrente de, ou relacionado com este Contrato será resolvida pela Câmara de Comércio Internacional (CCI), por um ou mais árbitros indicados de acordo com as referidas regras, e o local da arbitragem será Lisboa, Portugal.”

Estabelece o art.º 5.º n.º 1 da LAV o seguinte:

O tribunal estadual no qual seja proposta acção relativa a uma questão abrangida por uma convenção de arbitragem deve, a requerimento do réu deduzido até ao momento em que este apresentar o seu primeiro articulado sobre o fundo da causa, absolvê-lo da instância, a menos que verifique que, manifestamente, a convenção de arbitragem é nula, é ou se tornou ineficaz ou é inexequível.

E prevê o art.º 18.º n.º 1 da LAV que:

O tribunal arbitral pode decidir sobre a sua própria competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela se insira, ou a aplicabilidade da referida convenção”.

Ou seja, da conjugação das referidas disposições legais, resulta que o tribunal estadual só poderá julgar improcedente a excepção de preterição do tribunal arbitral se a convenção de arbitragem for manifestamente nula, ineficaz ou inexequível.

Ainda que não seja esse o caso, caberá ao tribunal arbitral apreciar a sua competência, “mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela se insira, ou a aplicabilidade da referida convenção” (cfr. art.º 18.º da LAV).

É esta a solução consagrada na lei, ultrapassadas divergências doutrinais sobre a matéria.

E, assim, em conformidade, tem vindo a ser considerado pelo Supremo Tribunal de Justiça que o princípio constante do art.º 18.º da LAV tem como corolário lógico a prioridade do tribunal arbitral no julgamento da sua própria competência6.Por consequência, antes de o tribunal arbitral se pronunciar, os tribunais estaduais devem abster-se de intervir.7

Em caso de dúvida, deve considerar-se plausível que o litígio em análise corresponde a litígio relacionado com o contrato e, por conseguinte, em caso de dúvida, deve julgar-se procedente a excepção dilatória de incompetência absoluta, por preterição do tribunal arbitral voluntário.8

Revertendo ao caso dos autos, importa colocar a questão de saber se a convenção de arbitragem em análise é manifestamente nula, ineficaz ou inexequível. Claramente não estamos perante tal situação, nem nenhuma das partes suscitou tal possibilidade.

Por outro lado, afigura-se não existir margem para dúvidas de que o litígio em análise corresponde a litígio relacionado com o contrato em que foi introduzida a cláusula compromissória. De qualquer modo, ainda que dúvidas houvesse, ainda assim, deveria julgar-se procedente a excepção dilatória de incompetência absoluta, por preterição do tribunal arbitral voluntário, como supramencionado.

Mas basta ler a petição inicial para verificar que o litígio radica no alegado incumprimento das obrigações que, para a 1.ª Ré, decorrem da celebração do contrato de compra e venda de acções:

Vejamos:

Conforme se pode ler na petição inicial, designadamente: “em conformidade com as cláusulas 9 e 10 do contrato9 é inequívoco que a conta “escrow” foi estabelecida com a estrita finalidade de prevenir o reembolso à 1.ª Ré quanto a montantes que viessem a ser-lhe devolvidos ou: (i) pela eventual verificação de que os activos contabilísticos da R... não existiam na realidade; ou (ii) pelo surgimento de especificadas contingências que onerassem a R... e lhe diminuíssem o valor. É manifesto que a utilização da conta “escrow” não poderia ser subvertida pela 1.ª Ré ao ponto de fazer reverter a seu favor valores a que inequivocamente não tinha nem tem direito. Nem poderia ser movimentada discricionariamente a seu bel prazer por mera indicação à 2.ª Ré, designadamente estando-lhe vedado socorrer-se de falsos pretextos, movimentos contabilísticos entre empresas e outros expedientes, para sucessivamente receber fundos da conta “escrow” e dessa forma diminuir o preço da compra, em detrimento das vendedoras.”10

Decorre, pois, da leitura da petição inicial, nomeadamente do excerto transcrito, que as Autoras atribuem à 1.ª Ré um comportamento violador do contrato de compra e venda de acções, arrogando-se o direito a receber montantes que tinham sido depositados em garantia de valores que viessem a ser devidos à 1.ª Ré, em conformidade com as condições estipuladas, mas que, no caso, não se verificaram, pelo que o recebimento desses montantes pela 1.ª Ré redundou numa diminuição do preço de compra das acções, em detrimento das Autoras, traduzindo-se num incumprimento do contrato.

Ora, em conformidade com o que ficou exposto, perante o cláusula compromissória constante do contrato de compra e venda de acções cujo incumprimento é invocado pelas Autoras, não podiam estas desvincular-se de tal cláusula, pelo que não podia deixar de ser julgada procedente a invocada excepção da preterição do tribunal arbitral, tal como foi decidido pelo Tribunal da Relação.11

É, assim, o tribunal arbitral o competente para dirimir o litígio em causa que consiste em saber se a 1.ª Ré tinha ou não direito ao reembolso de quaisquer valores em função das condições contratualmente previstas.

Porém, aqui chegados, tem necessariamente de colocar-se a questão de saber se a esta decisão não obsta o facto de ser demandada a 2.ª Ré – HAITONG BANK SA – que não é parte no contrato de compra e venda de acções pelo que não subscreveu a clausula compromissória do mesmo constante, sendo antes parte contratante do “acordo escrow” em que foi convencionada a competência dos Tribunais da Comarca de Lisboa.

Como consta do acordado “o Agente de Escrow[leia-se a 2.ª Ré] não é parte do Contrato de Compra e Venda e não tem obrigação de rever o Contrato de Compra e Venda ou de interpretar de qualquer modo os termos do Contrato de Compra e Venda.

O Contrato de Compra e Venda contempla o estabelecimento de um acordo de Escrow para assegurar os direitos do Comprador a indemnização, compensação e reembolso, nos termos do Contrato de Compra e Venda”.

E este contrato de “escrow” destinava-se, tal como previsto no contrato de compra e venda, a constituir uma garantia do reembolso à 1ª Ré de valores que as vendedoras (aqui Autoras), tivessem de restituir, em virtude de eventual quebra do contrato ou de violação de garantias, tendo sido depositado, para tal efeito, o valor de €5.000.000,00 (cinco milhões de euros) numa conta Escrow (“conta-caução’’), conta que ficou sob gestão e responsabilidade da 2ª Ré Haitong Bank, S.A. 12

Já se vê, por conseguinte, a profunda interligação entre os dois contratos.

Contudo e apesar disso, as partes acordaram um regime diverso em termos de competência para dirimir os eventuais litígios que viessem a surgir no âmbito dos mesmos. E quanto a este “contrato escrow”, as partes acordaram submeter-se “irrevogavelmente à jurisdição exclusiva dos Tribunais de Lisboa,13 para efeitos de qualquer acção decorrente ou relacionada com o presente Acordo”.

Assim sendo e face ao que dispõe o art.º 406.º n.º 2 do Código Civil, a 2.ª Ré não pode ser abrangida pela cláusula compromissória, estando outrossim sujeita à convenção atributiva de jurisdição aos tribunais de Lisboa.

Nestas condições, nada parece obstar a que seja o tribunal arbitral a apreciar o incumprimento do contrato de compra e venda de acções e o tribunal estadual a apreciar a violação dos deveres contratuais de ambas as Rés quanto ao “acordo escrow”.

E nem se diga que existe qualquer risco de decisões contraditórias, pois tal não ocorre.

Na verdade, saber se a 1.ª Ré tem direito ou não a receber o reembolso de determinada quantia ao abrigo do contrato de compra e venda de acções constitui questão a decidir previamente à averiguação da violação de ambas as Rés do acordo escrow. Com efeito, caso se venha a apurar que a 1.ª Ré tinha direito à quantia que é objecto do pedido, nessa medida fica prejudicado o conflito acerca do incumprimento do “acordo escrow”.

Em qualquer caso, qualquer que venha a ser a decisão do tribunal arbitral, ficando definido o direito ou não da 1.ª Ré, tal constitui uma questão prévia ao julgamento sobre o incumprimento do contrato escrow. Por conseguinte, não se verifica o perigo de ocorrerem decisões contraditórias.

Poderá invocar-se, como invocam as Rés que, sendo invocada a responsabilidade solidária destas, não é possível ou conveniente o prosseguimento da acção no tribunal estadual contra uma delas e, simultaneamente, dirimir o litígio no Tribunal arbitral quanto à outra.

Mas tal não obstaculiza a solução jurídica encontrada pelo Tribunal da Relação e que se nos afigura mais conforme com os princípios legais como vem exposto.

Assim, já este Supremo Tribunal de Justiça decidiu num caso semelhante14, o seguinte:

“A cláusula compromissória inserta no contrato de subempreitada em que se estabeleceu que “qualquer controvérsia, reclamação ou litígio entre elas decorrente ou relacionada com aquele contrato ou o seu incumprimento, que não possa ser resolvida amigavelmente, deverá ser submetida a arbitragem de acordo com as regras de conciliação e arbitragem da Câmara Internacional de Comércio em Portugal (Porto)” é vinculativa para as partes do contrato e pode ser invocada a exceção de incompetência dos tribunais judiciais quando não se deu cumprimento ao acordado.

O facto de a A. invocar que uma outra entidade, não subscritora do contrato de empreitada, é responsável solidária pelas obrigações assumidas por uma das partes, por ter ocorrido transmissão de dívida, acordada entre as Rés, mas sem exoneração do primitivo devedor, não impede que a A. tenha de respeitar a cláusula compromissória em relação à parte incumpridora vinculada contratualmente ao tribunal arbitral e tenha de se socorrer dos tribunais judiciais para obter reconhecimento da sua pretensão face a outra Ré, não subscritora do contrato.”

Neste acórdão, o STJ entendeu que apesar de reconhecer que o julgamento conjunto seria mais eficiente e poderia evitar decisões contraditórias, ainda assim considerou que “estes motivos não são suficientemente fortes para afastar a intervenção do tribunal arbitral, que foi querido pela Autora e pela Ré (…)”.

Ora, já vimos que atentas as especificidades próprias do caso sub judice, nem sequer se verifica o risco de decisões contraditórias, uma vez que a questão a decidir no tribunal estadual pressupõe a decisão da questão a decidir pelo tribunal arbitral.

Também, no mesmo sentido, o acórdão do Tribunal da Relação15 decidiu que “I - A convenção arbitral celebrada com uma sociedade integrada num grupo de sociedades apenas vincula a outorgante, sem embargo de acordo posterior com outras sociedades. II - Não existe obstáculo a que as pretensões deduzidas sejam apreciadas pelo tribunal arbitral, quanto à sociedade que se vinculou à arbitragem, e pelo tribunal judicial, quanto a outra sociedade do grupo.(…)”.

Ali se argumenta de forma muito clara que “uma eventual relação de solidariedade passiva que se verifique em relação a tal obrigação não implica a concentração do litígio num só tribunal, nada impedindo que o litígio se distribua entre o tribunal arbitral, em relação a um dos codevedores, e o tribunal judicial, quanto ao
outro.”

E prossegue na demonstração de que nada impede essa distribuição da resolução do litígio por dois tribunais diferentes:

“Acresce que a possibilidade de um mesmo litígio ser discutido e dirimido em processos e tribunais distintos não constitui uma realidade estranha ao ordenamento jurídico-processual.

Com efeito, em litígios com pluralidade de sujeitos submetidos a jurisdições diversas é comum a distribuição da competência entre dois tribunais, como sucede quando a obrigação de indemnização decorrente de responsabilidade civil extracontratual é imputada, em regime de solidariedade, a uma pessoa colectiva de direito público (v.g. Município responsável pela manutenção da via pública) e a sujeitos de direito privado (v.g. proprietário do veículo causador de acidente e respectiva seguradora).
Em tais circunstâncias, sendo a apreciação da responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito público da competência dos
tribunais administrativos, nos termos do art.º 4º, nº 1, al. g), do ETAF, tal não afasta a competência residual dos tribunais judiciais para a acção interposta contra outros sujeitos responsáveis.”16.

Sufragamos, inteiramente, este entendimento.

Em suma, pelas razões expostas, improcedem as conclusões recursórias, confirmando-se o acórdão recorrido.

III - DECISÃO

Em face do exposto, acordamos na 7.ª secção do Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, con
Revista, confirmando o acórdão recorrido.

Custas pelas Recorrentes.

Lisboa, 13 de março de 2025

Maria de Deus Correia (relatora)

José Maria Ferreira Lopes

Maria de Fátima Gomes

_______

1. Já transcrito supra.

2. Dispensamo-nos de fazer a transcrição por razões técnicas.

3. Posteriormente designada por INETUM TECH PORTUGAL. SA

4. José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado, Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 2.ª edição, p.704, em anotação ao art.º 668.º n.º1 c) cuja redacção corresponde ao actual art.º 615.º n.º1 c).

5. Doravante designada por LAV

6. Cf. acórdãos do STJ de 20 de Janeiro de 2011, processo n.º 2207/09.6TBSTB.E1.S1; de 10 de Março de 2011 processo n.º 5961/09.1TVLSB.L1.S1; de 28 de Maio de 2015, processo n.º 2040/13.0TVLSB.L1.S1; de 2 de Junho de 2015,processo n.º 1279/14.6TVLSB.S1; de 26 de Abril de 2016; processo n.º 1212/14.5T8LSB.L1.S1; de 21 de Junho de 2016, processo n.º 301/14.0TVLSB.L1.S1; de 8 de Fevereiro de 2018, processo n.º 461/14.0TJLSB.L1.S1; de 20 de Março de 2018, processo n.º 1149/14.8T8LRS.L1.S1 ou de 12 de Novembro de 2019 processo n.º 8927/18.7T8LSB-A.L1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt

7. Acórdão do STJ, desta mesma 7.ª secção, de 07-03-2023, Processo 3868/20.0T8PRT-A.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt

8. Vide acórdão do STJ de 20-03-2018, Processo 1149/14.8T8LRS.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt

9. Leia-se “contrato de compra e venda de acçõs”

10. Vide artigos 21.º a 24.ºda petição inicial

11. Também na doutrina encontramos respaldo para este entendimento. Vide designadamente: Manuel Pereira Barrocas, Lei de Arbitragem Comentada, 2.ª edição, Almedina, 2018.p.52; Dário Moura Vicente, Lei da Arbitragem Voluntária Anotada, 3.ª edição, Almedina, 2017, p.39.

12. Vide ponto 4.º dos factos provados.

13. Destaque nosso.

14. Acórdão do STJ de 23-03-2021, Processo 38/18.1T8VRL-A. E1.S1, disponível em www.dgsi.pt

15. Acórdão do TRL de 11-01-2011, Processo 3539/08.6TVLSB.L1-7, disponível em www.dgsi.pt

16. Idem.