Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | ALBERTO SOBRINHO | ||
| Descritores: | APREENSÃO DE VEÍCULO RESERVA DE PROPRIEDADE LEGITIMIDADE | ||
| Nº do Documento: | SJ200809160021817 | ||
| Data do Acordão: | 09/16/2008 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | AGRAVO | ||
| Decisão: | NAGADO PROVIMENTO | ||
| Sumário : | 1. A cláusula de reserva de propriedade constitui excepção à regra de que a transferência de direitos reais sobre coisas determinadas se dá por mero efeito do contrato -n° l do art. 408° C.Civil. Mediante esta cláusula, consistente na possibilidade do transmitente reservar para si a propriedade da coisa (art. 409° C.Civil), a transferência do direito para a esfera do adquirente só se verificará após o pagamento do preço ou depois de preenchido o evento a que as partes a subordinaram. O efeito real do contrato fica dependente de uma condição suspensiva. 2. O Dec-Lei 54/75 não previa aquelas situações que as novas realidades económico-financeiras e do crédito ao consumo colocaram. Foi arquitectado para conferir apenas ao vendedor a possibilidade de apreensão do veículo, já que a propriedade lhe continua a pertencer até ao pagamento integral do preço. Mas mesmo numa interpretação actualista não se pode omitir o texto da lei e apenas há que ajustar o sentido da norma à evolução sócio-jurídica do ordenamento em que se integra, sem violação dos princípios imanentes a esse mesmo ordenamento. 3. O regime específico de apreensão de veículos automóveis apenas convive com a princípio de que essa faculdade radica na esfera do vendedor com reserva de propriedade e já não com a entidade financiadora, mesmo que lhe tenha sido transmitida a titularidade dessa reserva. Aliás, não seria compatível esta faculdade com a instauração da acção, a propor obrigatoriamente pela financiadora, para resolução do contrato de alienação, sendo que apreensão do veículo integra precisamente o primeiro passo no caminho da resolução desse contrato. 4. São realidades distintas e de efeitos diferentes o contrato de alienação com reserva de propriedade, que implica a transferência, sob condição suspensiva, da propriedade do veículo, e o contrato de mútuo que produz apenas a transferência para o mutuário da quantia entregue e em que a sua resolução implica o vencimento das prestações convencionadas, mas já não a restituição do veículo. Por isso, a expressão outro evento referida no n° l do art. 409° C.Civil tem de se reportar a um acontecimento que, para além de ter uma ligação directa com o contrato de alienação, se contenha dentro do objectivo e das finalidades próprias desse específico contrato. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I. Relatório F... BANC P.L.C., com sucursal em Portugal, instaurou procedimento cautelar comum para apreensão de viatura automóvel e seus documentos contra P. M... - TRANSPORTES UNIPESSOAL, LDª, requerendo a apreensão do veículo automóvel com a matrícula ...-DA-11, bem como dos respectivos documentos, sem prévia audição da requerida, com fundamento em ter financiado a aquisição a crédito deste veículo, ter-lhe sido cedida a reserva de propriedade constituída a favor da vendedora e não terem sido pagas as prestações contratualmente estabelecidas. Logo no despacho inicial, foi indeferida liminarmente a pretensão da requerente por se entender carecer ela de legitimidade para a presente providência cautelar. Inconformada, agravou a requerente, mas sem sucesso, porquanto o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou o despacho recorrido. Ainda irresignada, recorre agora para o Supremo Tribunal de Justiça, invocando oposição deste acórdão com os acórdãos da mesma Relação de 2005.10.20 e 2008.01.25. Não foram apresentadas contra-alegações. *** Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.II. Âmbito do recurso A- De acordo com as conclusões, a rematar as respectivas alegações, o inconformismo da recorrente radica, em síntese, no seguinte: 1. A cláusula de reserva de propriedade foi estipulada como acessória do contrato de compra e venda celebrado entre a vendedora F... Lusitana, S.A. e a compradora, ora agravada. 2. Pela interligação do contrato de compra e venda e do contrato de mútuo, a transferência da propriedade ficou dependente do pagamento integral do preço à agravante, enquadrando-se tal situação no conceito de “outro evento”, ao abrigo do disposto no artigo 409°, n° 1 do CC. 3. Posteriormente foi o direito de reserva de propriedade cedido pela vendedora F... Lusitana à agravante, situação legalmente admissível, ao abrigo do disposto nos artigos 577° e 582.° do CC, aplicável ex vi artigo 588.° do mesmo diploma. 4. Permitindo a lei que funcione como condicionante à transferência da propriedade qualquer outro evento futuro que não apenas o cumprimento das obrigações do contrato de compra e venda, é de todo defensável que se constitua uma reserva de propriedade com vista a garantir direitos de crédito emergentes de um contrato de mútuo, cuja finalidade última é a de assegurar o pagamento do preço da coisa ao seu alienante. 5. A fórmula ampla utilizada pela lei – “…até à verificação de qualquer outro evento..” não impede que esse evento se prenda com a satisfação de crédito de terceiro que não o reservatário incial, neste caso o vendedor registado. 6. Constituída a reserva de propriedade prevista no Decreto-Lei 359/91, de 21 de Setembro, para que o procedimento de apreensão de veículo seja decretado, ao reservatário cumpre, apenas, “ demonstrar que a propriedade do veículo se encontra registada a seu favor e que não se operou o evento de que depende a transmissão da propriedade, o que foi feito. 7. Acresce que a referência efectuada a “contrato de alienação”” que consta do art. 18°, n° 1 do Dec. Lei 54/75, de 12 de Dezembro, tem de ser objecto de uma interpretação actualista, concertada com o disposto no art 409°, n° 1 do Código Civil, devendo entender-se que o contrato ali em causa é aquele cujo regular cumprimento das obrigações se encontra garantido pela reserva de propriedade, in casu, o contrato de financiamento. 8. Deste modo, a referência no art. 18°, nº 1 do DL n” 54/75, ao «contrato de alienação» pode ser entendida como referindo-se também ao contrato de mútuo conexo com o da compra e venda e que esteve na origem da reserva de propriedade”. 9. Impõe-se assim concluir que a agravante, enquanto entidade que financiou a aquisição à agravada da viatura objecto desta providência cautelar, nos termos do contrato de financiamento, tem legitimidade activa para requerer a presente providência. 10. Decidindo nos termos da sentença, o Tribunal a quo violou, entre outras disposições legais, os artigos 405°, 409°, 577, 582.° e 588° do Código Civil, bem como os arts. 15° e 18° do Decreto-Lei 54/75 de 12.02. B- Face à posição dos recorrente, vertida nas conclusões das alegações, delimitativas do âmbito do recurso, a verdadeira questão controvertida a dilucidar reconduz-se a averiguar se a entidade financiadora dispõe de legitimidade para requerer a apreensão do veículo objecto da cláusula de reserva de propriedade. III. Fundamentação A- Os factos Foram considerados, no acórdão recorrido, os seguintes factos, alegados no requerimento inicial: 1- A Requerente dedica-se ao financiamento para aquisição a crédito de veículos automóveis. 2. No exercício dessa sua actividade, financiou a requerida na aquisição do veículo automóvel de marca F..., modelo Transit, com a matrícula ...-DA-11, vendido a esta pela sociedade F... Lusitana S.A. 3. Para garantia do reembolso do valor financiado, foi constituída reserva de propriedade a favor da requerente F... Lusitana, S. A. 4. A F... Lusitana cedeu à requerente, com o consentimento da requerida, a titularidade da referida reserva de propriedade. 5. A reserva de propriedade encontra-se registada na Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa a favor da requerente. 6. O preço total da viatura foi de € 23.500,00. 7. A requerida, não podendo ou não querendo desembolsar a totalidade do valor da aquisição, recorreu ao financiamento para aquisição a crédito o que a requerente se dispôs a fazer-lhe, tendo-lhe financiado a quantia acima referida. 8. No contrato de financiamento para aquisição a crédito celebrado entre a requerente e a requerida estipulou-se na cláusula 8ª das suas Condições Particulares que o valor total a reembolsar ao financiamento era de € 29 802,60. 9. Na cláusula 9ª das condições particulares do mencionado contrato, o prazo do reembolso foi fixado pelas partes em 60 meses, mediante 60 prestações, no valor de € 496,71, cada uma. 10. O contrato em questão foi assinado em 09.03.2007 e entrou em vigor nesse mesmo dia. 11. A requerida deixou de proceder ao pagamento das prestações contratualmente estabelecidas a partir de 10.05.2007, correspondente à 2ª prestação. 12. Por ser assim, a requerente endereçou uma carta à requerida, com data de 18.09.2007, através da qual lhe dirigiu uma interpelação para pôr termo à mora no prazo de oito dias, considerado razoável para o efeito. 13. Uma vez que a requerida não pôs termo à mora, a requerente, por carta datada de 03.10.2007, notificou-a da resolução do contrato de financiamento. 14. Até à presente data a requerida não entregou à requerente o mencionado veiculo automóvel, apesar do convencionado na cláusula F do contrato de financiamento. 15. A requerente desconhece o estado em que o veículo se encontra, sendo, no entanto de presumir, face à sua ocultação, que se encontra desvalorizado. B- O direito No caso vertente e segundo a factualidade alegada no requerimento inicial, está-se em presença de uma compra e venda financiada, coexistindo dois contratos autónomos, mas com uma ligação funcional entre si: um contrato de compra e venda e um contrato de crédito. Os dois contratos como que se unem em vista da prossecução de uma finalidade económica comum, mantendo, todavia, estrutural e formalmente cada um deles a sua autonomia (1) Assim se promove, de acordo com o princípio da liberdade contratual, o consumo, facilitando-se de um modo expedito o recurso ao crédito e se conciliam as necessidades do consumidor que deseja adquirir determinado bem mas não tem disponibilidades económicas para suportar o pagamento do preço de uma só vez, com as necessidades do vendedor que está interessado na venda a pronto pagamento. Como garantia do pagamento do crédito concedido, a entidade financiadora reservou para si (mediante cedência da vendedora, com o consentimento da compradora) a titularidade da reserva de propriedade da viatura vendida. A cláusula de reserva de propriedade constitui excepção à regra de que a transferência de direitos reais sobre coisas determinadas se dá por mero efeito do contrato –nº 1 do art. 408º C.Civil. Mediante esta cláusula, consistente na possibilidade do transmitente reservar para si a propriedade da coisa (art. 409º C.Civil), a transferência do direito para a esfera do adquirente só se verificará após o pagamento do preço ou depois de preenchido o evento a que as partes a subordinaram. O efeito real do contrato fica dependente de uma condição suspensiva. Se reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento das obrigações da outra parte ou à verificação de qualquer outro evento, afirma Antunes Varela (2), pág. 305 , é sinal de que a alienação é feita sob condição suspensiva - e não sob condição resolutiva da falta de cumprimento ou da não verificação do evento. Segundo o art. 15º do Dec-Lei 54/75, de 12 Fevereiro, vencido e não pago o crédito hipotecário ou não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade, o titular dos respectivos registos pode requerer em juízo a apreensão do veículo e do certificado de matrícula (nº 1), para o que exporá na petição o fundamento do pedido e indicará a providência requerida (nº 2). Acrescentando-se no art. 16º, nº 1, que provados os registos e o vencimento do crédito ou, quando se trate de reserva de propriedade, o não cumprimento do contrato por parte do adquirente, o juiz ordenará a imediata apreensão do veículo. E no art.18º, nº 1 (parte final) estabelece-se que efectuada a apreensão do veículo, o titular do registo da reserva de propriedade dispõe de 15 dias para propor a acção de resolução do contrato de alienação. Com o desenvolvimento do crédito ao consumo a que correspondeu a adopção de novas formas de crédito, designadamente no campo da venda de veículos automóveis, passou a ser prática comum haver uma tripla intervenção em que, ao lado dos outorgantes do contrato de compra e venda do veículo, intervém uma entidade para financiar essa compra, mediante a celebração do competente contrato de mútuo. E caminhou-se também no sentido, cada vez mais usual, do vendedor ceder ao financiador da aquisição do veículo a titularidade da cláusula de reserva de propriedade. Apesar da entidade financiadora nada ter alienado, limitando-se a conceder crédito ao consumidor para lhe possibilitar a compra de um veículo automóvel vendido por um terceiro, passou mesmo assim a ver constituída a seu favor uma reserva de propriedade sobre esse bem com vista a garantir direitos de crédito emergentes de um contrato de mútuo. O aludido Dec-Lei 54/75 não previa aquelas situações que as novas realidades económico-financeiras e do crédito ao consumo colocaram. Foi arquitectado para conferir apenas ao vendedor a possibilidade de apreensão do veículo, já que a propriedade lhe continua a pertencer até ao pagamento integral do preço. Para justificar a legalidade da cessão da posição do vendedor e legitimar o pedido de apreensão cautelar do veículo pela entidade financiadora vem-se argumentando que deve ser feita uma interpretação actualista do regime preconizado por este diploma. Mas mesmo numa interpretação actualista não se pode omitir o texto da lei e apenas há que ajustar o sentido da norma à evolução sócio-jurídica do ordenamento em que se integra, sem violação dos princípios imanentes a esse mesmo ordenamento. Segundo Baptista Machado (3) , uma perspectiva actualista impõe que se trata, por um lado, de transpor para o condicionalismo actual aquele juízo de valor (identificação do ponto de vista que presidiu à feitura da lei) e, por outro lado, de ajustar o próprio significado da norma à evolução entretanto sofrida (pela introdução de novas normas ou decisões valorativas) pelo ordenamento em cuja vida ela se integra. Ora, o art. 15º deste diploma apenas ao titular do registo confere legitimidade para requerer a apreensão cautelar do veículo. Por outro lado, o mesmo titular deve, no prazo de 30 dias após a apreensão do veículo, propor acção de resolução do contrato de alienação. Quando este diploma foi elaborado o que essencialmente se impunha regular era a compra e venda a prestações em que o vendedor reservava para si a propriedade até que o preço estivesse totalmente pago. O regime específico de apreensão de veículos automóveis apenas convive com a princípio de que essa faculdade radica na esfera do vendedor com reserva de propriedade e já não com a entidade financiadora, mesmo que lhe tenha sido transmitida a titularidade dessa reserva. Aliás, não seria compatível esta faculdade com a instauração da acção, a propor obrigatoriamente pela financiadora, para resolução do contrato de alienação, sendo que a preensão do veículo integra precisamente o primeiro passo no caminha da resolução desse contrato. E a requerente limita-se a invocar o não pagamento das prestações do contrato de mútuo, tendo precisamente resolvido o contrato de financiamento mediante carta dirigida ao comprador. Acresce que o nº 1 do art. 409º C.Civil tão só ao alienante, nos contratos de alienação, atribui a faculdade de reservar para si a propriedade da coisa. Este normativo apenas contempla os contratos translativos de um direito, mas já não o contrato de mútuo ou financiamento mesmo que a eles associado (4). Sustenta, todavia, a agravante que expressão utilizada neste art. …até à verificação de qualquer outro evento... não impede que esse evento se prenda precisamente com a satisfação de crédito de terceiro que não o reservatário incial, neste caso o vendedor registado. São realidades distintas e de efeitos diferentes o contrato de alienação com reserva de propriedade, que implica a transferência, sob condição suspensiva, da propriedade do veículo, e o contrato de mútuo que produz apenas a transferência para o mutuário da quantia entregue e em que a sua resolução implica o vencimento das prestações convencionadas, mas já não a restituição do veículo. Por isso, o outro evento a que se reporta este preceito legal tem de se reportar a um acontecimento que, para além de ter uma ligação directa com o contrato de alienação, se contenha dentro do objectivo e das finalidades próprias desse específico contrato. Neste mesmo sentido se pronunciou o ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 2007/10/02 (5) , ao considerar que a lei quis fazer depender a estipulação da reserva de propriedade, até ao cumprimento ou à verificação de outro evento, apenas no âmbito da relação contratual protegida pela cláusula de reserva de propriedade celebrada, e não fora dela. Atentos os fins específicos da cláusula de reserva de propriedade -função de garantia de pagamento do preço e de devolução da coisa-, a apreensão do veículo visa salvaguardar os efeitos da resolução do contrato de alienação. Mas uma vez que a restituição do veículo não pode decorrer da resolução do contrato de mútuo, o terceiro financiador não pode socorrer-se dos direitos inerentes à cláusula de reserva de propriedade (6). Daí que a recorrente não disponha de legitimidade para lançar mão da providência cautelar de apreensão de veículos automóveis conferida pelo Dec-Lei 54/75 e, como tal, seja de manter o acórdão recorrido. IV. Decisão Perante tudo quanto exposto fica, acorda-se em negar provimento ao agravo. Custas pela recorrente. Lisboa, 16 de Setembro de 2008 Alberto Sobrinho (Relator) Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Lázaro Faria ______________________ (1) cfr. Ana Isabel Afonso, in Contratos de Instalação de Lojistas em Centros Comerciais, pág. 113. (2) in Das Obrigações em Geral, I, 10ª. ed. (3) in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pág. 191. (4) cfr., neste sentido, Gravato Morais, in Cadernos de Direito Privado, nº 6, pág. 49-53 . (5) proc. nº 07A2680, in www.dgsi.pt/jstj. (6) neste sentido se pronunciou o ac. S.T.J., de 2005/05/12, pro. nº 05B538, in www.dgsi.pt/jstj . |