Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
618/17.2T8ETR.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: NULIDADE DE ACÓRDÃO
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
NOVOS MEIOS DE PROVA
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DOMÍNIO PÚBLICO HÍDRICO
DOMINIALIDADE
PRESUNÇÃO
PROPRIEDADE PRIVADA
REGISTO PREDIAL
ÓNUS DA PROVA
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA DEFESA
Data do Acordão: 03/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - A questão de saber se a matéria de facto provada impunha decisão diversa, não integra a nulidade prevista na al. c) do art. 615.º do CPC, respeitante à existência de contradição lógica entre os fundamentos, mas situa-se em sede de erro de julgamento.
II - A nulidade por omissão de pronúncia apenas se verifica nos casos em que a omissão de conhecimento, relativamente a cada questão, é absoluta; não, quando seja meramente deficiente, quando se tenham descurado razões e/ou argumentos invocados pelas partes ou quando a apreciação de certas questões mostre prejudicada a solução a dar a outras.
III - A Relação, enquanto tribunal de instância, deve proceder à reavaliação da matéria de facto impugnada, formando, com total autonomia, a partir de todos os meios probatórios produzidos no processo (não limitada aos indicados pelas partes), a sua própria convicção. Tal reponderação não belisca o respeito pelo princípio do dispositivo, pois a limitação dele decorrente restringe-se ao âmbito de conhecimento da matéria de facto, (apenas quanto aos pontos que tenham sido especificamente impugnados pela parte), não sendo, pois, extensiva aos meios probatórios.
IV - A intervenção fáctica do STJ, condicionada aos limites previstos pelo art. 674.º, n.º 3, do CPC, mostra-se vedada nas situações em que o tribunal da Relação, na apreciação que fez da prova, concluiu que os depoimentos testemunhais não eram suficientes para adquirir uma convicção certa e segura por se terem debruçado sobre matéria técnica que as mesmas não possuíam, porquanto tal conclusão se insere no campo da valoração da prova sujeita à livre apreciação.
V - Para afastar a presunção de dominialidade pública que vigora em matéria de recursos hídricos, impendia sobre a autora o ónus de demonstrar que o imóvel compreendido pelas margens da Ria de Aveiro era, por título legítimo, objecto de propriedade particular ou comum antes de 31-12-1864, mantendo-se nessa situação até à data actual. Nessa medida, não podia beneficiar da presunção de titularidade do art. 7.º, do CRgP, por a mesma não abarcar as áreas, confrontações e demais elementos físicos.
VI - A exigência dessa demonstração probatória pelo tribunal da Relação não corresponde à imposição de uma prova diabólica não se encontrando, por isso, violados os princípios constitucionais da proporcionalidade e da proibição de indefesa.
Decisão Texto Integral:




Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,




I – Relatório

1. Riabela - Iniciativas Turísticas da Ria de Aveiro, Lda. propôs acção contra o Estado Português deduzindo os seguintes pedidos:

Ser reconhecido:

- que a Autora é dona e legítima proprietária do prédio sito nas …, da freguesia da …, do concelho da ….[1], descrito na conservatória do registo predial da …., ficha n.º …. da …, inscrito a seu favor pelas inscrições AP …. de 1964/11/04, AP …. de 2001/06/07, AP …. de 2001/06/12, AP … de 2001/07/12 e AP …. de 2003/10/21;

- que a parte do prédio que corresponde ao artigo urbano n.º …73 da … e se encontra delimitada na planta junta com o doc. n.º 20, que correspondia ao prédio que esteve descrito na Conservatória do Registo Predial … sob a ficha …, é propriedade da Autora , tendo vindo à sua propriedade e posse por sucessivas transmissões, estando na posse e propriedade de privados desde, pelo menos, Janeiro de 1864, pelo que não faz parte do domínio público;

Subsidiariamente

- condenação do Réu a reconhecer que o indicado prédio é propriedade da Autora e a parte do mesmo onde se encontra construída a estalagem R..... e que corresponde ao artigo urbano n.º … da …. e se encontra delimitada na planta junta como doc. 20, não se encontra compreendida no domínio público, uma vez que anteriormente a 1950 a faixa do prédio em causa distava mais de 50 metros da margem da ria na sua preia-mar e mesmo em caso de cheia média.

Alegou fundamentalmente para o efeito:

- o prédio com a descrição … resultou da anexação de vários - com as descrições …, …,  …., … e …. – encontrando-se o …80 (artigo urbano …73) na sua posse e de particulares desde data anterior a 31-12-1864;

- ter adquirido o referido prédio comprando como ruínas de casa e terreno agrícola e nele edificou estalagem, piscina, campo de ténis, jardim e estacionamento;

- ter existido naquele imóvel uma casa e terreno de cultivo, achando-se a Ria … recuada, distando a faixa que lhe pertence mais de 50 metros relativamente à preia-mar, mesmo quando de cheias médias, tendo os campos sido invadidos pela água da Ria quando, na década de 50 e posteriormente, foram efetuadas obras no Porto ...…;

- existir, na altura, entre o referido imóvel e a Ria, terrenos a junco, tendo sido pela atuação humana que as águas subiram e invadiram o referido terreno.

Defendendo que, ao contrário do que entende a Agência Portuguesa do Ambiente (APA), o prédio registado em seu nome não se encontra no domínio público marítimo, mas no domínio privado, concluiu pela procedência da acção.

                 

2. Na contestação o Réu, invocando a presunção de domínio público referente às margens das águas do mar e das águas interiores sujeitas às influências das marés, impugna o domínio privado quanto ao imóvel de que a Autora se arroga, alegando que por parte do mesmo se encontra numa parcela da margem das águas da Ria ….., e a outra parte (62%) se encontrava submersa e teve origem num aterro realizado no leito da Ria, configurando um fenómeno de recuo das águas, com enquadramento no artigo 13.º da Lei n.º 54/2005, de 15-11.

 

3. Após vicissitudes processuais relacionadas com a fixação do valor da causa, distribuídos os autos ao juízo central cível …., por despacho 23-01-2019, o tribunal dispensou audiência prévia, proferiu despacho saneador, delimitou o objecto do litígio[2] e enunciou os temas de prova[3].

4. Realizado julgamento, foi proferida sentença (em 06-05-2019), que julgou a acção procedente, decidindo nos seguintes termos:

reconheço que a autora é proprietária do imóvel que se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial da … (freguesia da …) sob n.º ….., imóvel esse que, por ser objecto de propriedade particular desde data anterior a 31 de Dezembro de 1864, não integra o domínio público hídrico.”.

5. O Réu apelou da sentença, impugnando a matéria de facto fixada pela 1ª instância. O Tribunal da Relação …., por acórdão de 02-12-2019, deu procedência ao recurso e, alterando a matéria de facto, revogou a sentença e julgou a acção improcedente.

6. Pretendendo a repristinação da sentença, Autora interpôs revista, concluindo nas suas alegações (transcrição):

1- O acórdão recorrido faz uma incorrecta aplicação do n.º 2, do artigo 15.º, da Lei n.º 54/2005, ao julgar a acção improcedente, uma vez que a matéria de facto provada prova a propriedade da autora por sucessivas transmissões desde, pelo menos, 1862.Não considerar tal matéria suficiente é ainda violar o principio da proporcionalidade.

2- Mesmo que assim não se entendesse, sempre tal matéria de facto (pontos 1.º a 17.º da matéria provada na douta sentença da 1.ª instância) era suficiente para provar a posse de tal prédio de um modo continuo, por particulares desde pelo menos 1862, pelo que nos termos do n.º 3, do artigo 15.º, da Lei n.º 54/2005, se deveria julgar a acção procedente.  

3- A Relação alterou a decisão da matéria de facto desconsiderando a prova em que se baseou para tal a 1.ª instância, não se baseou para tal nos elementos de prova indicados pelo então recorrente (o M.P.), tal constitui uma decisão surpresa, uma vez que o fundamento invocado pela Relação para alterar a decisão de facto (imprestabilidade das testemunhas e necessidade de produção de prova pericial), não fora invocado pelo M.P. nas suas alegações. Violou assim o principio do contraditório e o disposto no artigo 640.º n.º 2 do CPC.

4- O acórdão recorrido é nulo ao não ter facultado à aqui recorrente o direito ao contraditório face à nova abordagem feita pelo acórdão.

5- O acórdão recorrido é nulo nos termos do disposto nas alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, uma vez que julga improcedente a acção quando a matéria de facto provada impõe outra decisão.

6- O acórdão recorrido viola o princípio da proibição da indefesa, que emana do direito constitucional ao acesso ao direito e aos tribunais (artigo 20.º da CRP), ao exigir uma prova diabólica à recorrente e viola ainda o princípio constitucional da proporcionalidade, que determina uma menor exigência probatória por parte do aplicador do direito, dando relevo a provas menos relevantes e convincentes que as que seriam exigíveis se tal dificuldade não existisse, aplicando a máxima latina «iis quae difficilioris sunt probationis leviores probationes admittuntur».

7- Na petição a autora invocou a sua posse desde 1862 e no entanto a relação não apreciou esta questão da posse cingindo-se tão só à questão do direito de propriedade, incorreu desse modo na nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.

8- A autora tem o prédio objecto dos autos registado na conservatória do registo predial a seu favor e aí consta expressamente que em 1983 se iniciou nesse prédio a construção duma estalagem no mesmo local onde existia uma casa que entretanto ruiu. A descrição desse prédio data de 1937 beneficiando deste modo a autora da presunção do seu direito de propriedade, atento o disposto no artigo 7.º do Código do Registo Predial.

9- Para além de tal presunção, que remonta a 1937, a autora juntou documentos autênticos, que não foram impugnados e que provam a propriedade e posse de tal prédio desde 1862 por particulares, através de sucessivas transmissões todas elas documentadas, pelo que a acção deve ser julgada procedente.

10- Ao não se entender assim está a ser exigida uma prova diabólica à autora, uma prova impossível.

11- O acórdão recorrido viola o direito à prova consagrado no artigo 20.º da CRP e o artigo 15.º da Lei n.º 54/05, ao considerar imprescindível a prova pericial ou intervenção dum técnico e não valorando o depoimento de testemunhas com conhecimentos técnicos. Ao exigir um meio de prova que não é imposto por lei o acórdão recorrido coloca-se na situação prevista na parte final do n.º 3 do artigo 674.º do CPC (a contrario) pelo que pode este Supremo Tribunal apreciar a questão de erro na apreciação da prova.

12- Viola ainda o acórdão recorrido o disposto no artigo 392º do CC ao reduzir a admissibilidade da prova testemunhal, e ao ignorar a sua importância para a prova de factos instrumentais que são relevantes para a boa decisão da causa e que devem ser apreciados pelo tribunal (artigo 5-2-a) e b) do CPC) o que neste caso, atenta a dificuldade de prova, se mostram essenciais.

13- Os documentos juntos pela autora não foram impugnados pelo réu. A sua leitura e interpretação atenta a sua especificidade recomendavam que fossem completadas pelos esclarecimentos de testemunhas que revelaram específicos conhecimentos do local, sua morfologia, evolução e história. A desconsideração de tais testemunhas pela Relação viola o direito à prova consagrado no artigo 20.º da CRP.”.

7. Em contra alegações o Ministério Público pugna pela improcedência do recurso.


II – APRECIAÇÃO DO RECURSO
De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil – doravante CPC), mostram-se submetidas à apreciação deste tribunal as seguintes questões:
ð Da nulidade do acórdão (por contradição entre os fundamentos e a decisão e por omissão de pronúncia)
ð  Da violação do princípio do contraditório (prolação de decisão-surpresa) e violação do disposto no artigo 640.º, n.º 2, do CPC
ð Do erro de julgamento da matéria de facto
ð Do erro de julgamento na interpretação do artigo 15.º, da Lei 54/2015, e violação dos princípios da proporcionalidade e da proibição de indefesa.

1. Dos factos
1.1 Provados
1. A Autora é dona de um prédio sito nas …, da freguesia da …, do concelho da …., inscrito na matriz urbana sob o artigo n.º …..73 e rústica sob os artigos n.ºs …..41, …38, …40 e ….39, composto de edifício de r/c e 1.º andar, destinado a serviços, com a área coberta de 1.722m2, com logradouros com 10278 m2 e terrenos de cultura, tendo o artigo rústico …. a área de 1296 m2 e os restantes artigos rústicos 850 m2 cada um, a confrontar de norte com Dr. AA, do sul e nascente com a Ria e do poente com Estrada Nacional n.º …., descrito na Conservatória do Registo Predial da …. na ficha n.º …., da …, e aí inscrito a seu favor pelas inscrições AP … de 1964/11/04, AP … de 2001/06/07, AP … de 2001/06/12, AP … de 2001/07/12 e AP …. de 2003/10/21- (artigo 1.º da petição inicial).
2. Tal imóvel resultou da anexação de vários prédios, nomeadamente os descritos na Conservatória do Registo Predial da …. nas fichas n.ºs. …, …, ...,  …., e …., novo prédio este que passou a estar descrito numa nova ficha, a n.º ….., da Conservatória do Registo Predial da …… - (artigo 2.º da petição inicial).
3. Em 3 de Janeiro de 1864, BB e sua mulher deram de arrendamento a CC, por contrato de arrendamento celebrado por escritura pública lavrada pelo notário DD do cartório notarial de …., no livro de notas para escrituras diversas n.º …, a fls. 74 verso a 75 verso, a chamada Quinta …., na área do Mar da …. com uns palheiros, mediante contrato de arrendamento escrito, sendo que tal quinta confrontava a nascente com a Ria, do poente com o Mar, do norte com EE e do sul com FF - (artigo 6.º da petição inicial).
4. O referido FF era dono de uma “fazenda”, ou seja, uma quinta, na …., que confrontava com a aludida Quinta …., desde uma data não exactamente apurada, mas pelo menos desde 1862, sendo que a essa data o FF e sua mulher, GG, defendiam tal propriedade junto das autoridades locais - (artigo 7.º da petição inicial).
5. Em 23 de Agosto de 1862, foi lavrado um edital pela Câmara Municipal de
…. no qual anunciava que HH, o H…., do lugar do …., da freguesia de …, havia requerido à Câmara o aforamento de quarenta mil metros quadrados de terreno do areal da costa da …, no sítio da …., em direcção ao canto da …. - (artigo 13.º da petição inicial).

6. O FF e esposa apresentaram na Câmara Municipal de ….. um requerimento, em 1862 ou 1863, através do qual vieram reclamar contra o propósito de aforamento referido em 5, alegando terem comprado a dita fazenda a II e mulher JJ, pela quantia de 72$000 reis, nos termos que resultam (documento de fls. 28 e 29, cujo teor se considera integralmente reproduzido) - (artigos 15.º, 16.º e 17.º da petição inicial).
7. FF vem a falecer a 21 de Setembro de 1876 - (artigo 20.º da petição inicial).
8. No respectivo inventário, consta descrita a verba n.º 12 como sendo “Quinta na Costa da ….. toda ela parte do nascente com a Ria com os maninhos, norte com LL e do sul com o Arrais T……, sendo a porção que fica desde o caminho em linha recta ao palheiro de palha de MM para o lado do sul avaliada juntamente com os ares das casas e demais edifícios em seiscentos milreis”, imóvel este que foi adjudicado à referida GG, cônjuge do inventariado - (artigos 21.º e 22.º da petição inicial).
9. Por escritura de doação lavrada a 29 de Junho de 1886, GG doou o referido imóvel aos seus filhos e netos, designadamente aos netos NN e OO, filhos da pré-falecida filha PP (documento de fls. 73 e 74, cujo teor se considera integralmente reproduzido) - (artigos 25.º e 26.º da petição inicial).
10. GG vem a falecer em 13 de Fevereiro de 1887 - (artigo 23.º da petição inicial).
11. Em 23 de Junho de 1907, por escritura pública lavrada no …...º Cartório Notarial de …., sito na Rua …., em …, OO, neto da referida GG, vendeu a QQ a décima quarte parte da referida Quinta, que havia adquirido por doação (documento de fls. 93 a 95 vº, cujo teor se considera integralmente reproduzido) - (artigo 30.º da petição inicial).
12. Em 31 de Outubro de 1916, por escritura lavrada no Cartório Notarial de RR, sito em …, o supra referido QQ e mulher, NN, vendem a SS o dito prédio - (artigo 31.º da petição inicial).
13. Em 16 de Março de 1951, faleceu no lugar das … o supra aludido SS e em 15 de Abril de 1962, faleceu no lugar das Quintas do …., a sua esposa TT, tendo deixado como herdeiros os seus filhos UU, VV, XX, ZZ, AAA, BBB, CCC e DDD - (artigo 32.º da petição inicial).
14. Aqueles supra indicados herdeiros, em 26 de Outubro de 1964, por escritura pública de compra e venda lavrada no Cartório Notarial da …, a fls. 43 verso a 46 verso, do Livro n.º …., vendem o indicado prédio à Autora - (artigo 33.º da petição inicial).
15. A Autora Riabela regista a seu favor na Conservatória do Registo Predial de … em 04-11-1964 tal prédio, o qual se mostrava então descrito sob o n.º …., a fls. 95 verso do Livro …. - (artigo 34º da petição inicial).
16. Em 1 de Setembro de 1983, é lavrada a seguinte descrição/anotação na respectiva descrição, ainda em livro: “O assento de casa referido no prédio supra n.º ….. ruiu com o decorrer do tempo, tendo por isso sido eliminado o respectivo artigo urbano; agora está em construção no mesmo prédio um edifício destinado a estalagem, composto por dois pisos, com a área de 2.600 m2, com 35 quartos com quarto de banho, sala para preparação de pequenos almoços, no primeiro andar; e no rés do chão tem um hall, bar, restaurante, sala de estar, cozinha, lavandaria, 2 armazéns, vestíbulos, 4 corpos de sanitários para o público, recepção, gabinete de director, sala de reuniões e salão de festas, passando o referido prédio a ser misto” - (artigo 41.º da petição inicial).
17. A Autora entretanto adquiriu outros terrenos aí confinantes pelo poente que constituíam outros prédios distintos, concretamente os descritos nas fichas da Conservatória do Registo Predial da ….. sob o números ….74, …..60, …61. e ….23. - (artigo 42.º da petição inicial).
18. O Estado Português, através da Agência Portuguesa do Ambiente, entende que parte do prédio descrito sob o nº …. se encontra no chamado domínio público hídrico, concretamente a parte que se interpõe entre a Ria …. e o edifício principal da Estalagem ....., explorada pela Autora, bem como uma parte da parte lateral de uma construção a norte, nos termos que resultam do documento de fls. 44, cujo teor se considera integralmente reproduzido - (artigo 48.º da petição inicial).

1.2 Não provados
ü Parte da parcela de terreno objecto da presente acção teve origem num aterro realizado no leito da Ria …., ocorrendo um fenómeno de recuo das águas - (artigos 9.º e 10.º da contestação).
ü A parcela de terreno em causa nos autos constituía leito da ria que se encontrava submersa - (artigo 13.º da contestação).
ü O recuo das águas resultou da deposição de materiais na sequência de dragagens efectuadas entre a década de 50 e 1999 (artigo 25.º da contestação).
ü O prédio onde hoje está instalada a Estalagem R..... correspondia a uma exploração agrícola com casa e terreno de cultivo, nomeadamente milho, estando em meados do século passado a Ria ….., nesse local, mais recuada (artigo 50.º da petição inicial) - (matéria que correspondia ao ponto 19. dos factos provados na sentença, alterada pelo tribunal a quo, passando a não provada).
ü Aquando das obras no porto de ….., em medos do século passado (década de 50), a água salgada passou a entrar na Ria …. em maiores quantidades e começou a invadir os campos agrícolas adjacentes à Ria, tal como era o caso do prédio da autora - (artigo 51.º da petição inicial) - (matéria que correspondia ao ponto 20. dos factos provados na sentença, alterada pelo tribunal a quo, passando a não provada).
ü Antes de tais obras, a Ria estava mais afastada, ou seja, a faixa de cinquenta metros a contar da preia mar estava mais para nascente, distando a faixa de terreno hoje ocupada pela autora mais de 50 metros da referida preia mar (artigo 52.º da petição inicial) - (matéria que correspondia ao ponto 21. dos factos provados na sentença, alterada pelo tribunal a quo, passando a não provada).
ü Foi só após as referidas obras que a Ria avançou, invadindo parte do prédio da Autora (artigo 52.º da petição inicial) - (matéria que correspondia ao ponto 22. dos factos provados na sentença, alterada pelo tribunal a quo, passando a não provada).

2. O direito
Através da presente acção a Autora pretende ver reconhecida a propriedade de um imóvel compreendido na margem da Ria ……, que, segundo alega, veio à sua propriedade e posse por sucessivas transmissões. Pretende, assim, demonstrar que o referido imóvel está na posse e propriedade de privados desde, pelo menos, Janeiro de 1864; como tal, não faz parte do domínio público.
Na sentença, o tribunal de 1.ª instância julgou a acção procedente e, em consequência, reconheceu a Autora como proprietária do imóvel descrito nos autos (por ser objecto de propriedade particular desde data anterior a 31-12-1864), concluindo que o mesmo não integrava o domínio público hídrico.
Considerou, para o efeito, que havia sido demonstrado que o prédio teve origem num imóvel já objecto de propriedade privada antes de 31-12-1864. Entendeu ainda que, ao invés do alegado pelo Réu quanto ao recuo das águas, ficou provado o fenómeno inverso, ou seja, a subida do nível da água e, nessa medida, não se mostrava aplicável a limitação ou exclusão decorrente do artigo 13.º, da Lei n.º 54/2005, de 15-11.

O tribunal a quo, alterando a matéria de facto[4], revogou a sentença e julgou a acção improcedente com fundamento não ausência de demonstração dos requisitos de que dependia a prova da propriedade da Autora sobre a área de terreno que corresponde legalmente a domínio público.

Considerou, pois, que a factualidade fixada não permitia concluir pela propriedade da Autora, nem fazer retroagir a posse até à época em que a lei estabeleceu a natureza pública do espaço em causa. Nessa medida e segundo o acórdão, não podia a Autora beneficiar da presunção de titularidade do artigo 7.º, do Código do Registo Predial, por a mesma não abarcar as áreas, confrontações e demais elementos físicos. 

1. Da nulidade do acórdão recorrido (conclusões 5. e 7.)

A Recorrente imputa ao acórdão recorrido o vício de nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alíneas c) e d), do CPC, por ter julgado a acção improcedente em presença de matéria fáctica que impunha a solução contrária, e por não ter apreciado um dos fundamentos em que sustentou a sua pretensão - a sua posse desde 1862 – apenas se tendo cingido ao direito de propriedade.

Não lhe assiste razão.

Dispõe o artigo 615.º, n.º 1, do CPC, que “É nula a sentença quando: (…) c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões que de que não podia tomar conhecimento (…)”.

1.1 A nulidade prevista na alínea c) do referido preceito, respeitante à existência de contradição lógica entre os fundamentos e a decisão e reporta-se às situações em que na fundamentação da sentença o julgador segue determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, acabando, ao invés, por decidir no sentido oposto ou divergente.

O STJ tem entendido, a este propósito, de modo uniforme, que a oposição em causa não se confunde com o erro na subsunção dos factos às normas jurídicas e nem com o erro na interpretação destas. Se o juiz entender, ainda que de forma errada, que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento for expresso na fundamentação, ou dela decorrer, estar-se-á perante um erro de julgamento e não perante a oposição que constitui causa de nulidade[5].

No caso, o acórdão recorrido não enferma de qualquer contradição lógica entre a fundamentação e a decisão conforme se evidencia da sua leitura.

Resulta do que se mostra alegado pela Autora que a mesma discorda da interpretação que o tribunal a quo fez dos factos dados como provados e das consequências que deles retirou, bem como da solução de direito a que chegou por aplicação das normas jurídicas que entendeu serem aplicáveis ao caso.

Porém, a questão de saber se a matéria de facto impunha decisão diversa – como defende a Recorrente – e se, consequentemente, ao ter decidido julgar a acção improcedente, o tribunal decidiu ou não acertadamente, situa-se no âmbito do erro de julgamento e não nulidade da decisão[6].

1.2 No que toca à alegada nulidade por omissão de pronúncia (o fundamento invocado na petição quanto à sua posse desde 1862 não ter sido objecto de apreciação no acórdão, que se cingiu à questão do direito de propriedade) igualmente não tem verificação no caso.

A omissão de pronúncia, geradora de nulidade da decisão decorre do dever imposto ao juiz de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outra (artigo 608.º, n.º 2, do CPC), dever que não significa a apreciação de todas as considerações, argumentos ou razões tecidas pelas partes.

Por outro lado, a nulidade por omissão de pronúncia apenas se verificará nos casos em que a omissão de conhecimento, relativamente a cada questão, é absoluta; não, quando seja meramente deficiente ou quando se tenham descurado as razões e argumentos invocados pelas partes e nem quando a apreciação das questões fundamentais à justa decisão da lide tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras.

No caso, e não obstante não ter sido a Autora, agora Recorrente, que interpôs recurso de apelação (sendo que também não requereu a ampliação do âmbito do recurso)[7], o tribunal recorrido, contrariamente ao invocado, pronunciou-se expressamente sobre a posse, entendendo que os factos dados como provados, mesmo recorrendo às presunções da posse resultantes do Código Civil, não eram suficientes para se terem como preenchidos os requisitos previstos no artigo 15.º, n.º 3, da Lei n.º 54/2005, de 15-11, conforme se evidencia pelo seguinte excerto da decisão recorrida:

Na eventualidade de o interessado não dispor de documentos que comprovem a sua propriedade, nos termos do critério geral, poderá o mesmo obter o reconhecimento do seu direito mediante a prova da posse em nome próprio de particulares ou a fruição conjunta de certos indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa, antes das datas de referência (artigo 15.º, n.º 3).

A prova da posse não dispensa as presunções de prova que resultam do Código Civil, designadamente as previstas nos n.ºs 1 e 2 do art. 1254.º CC."

Ora, na situação dos autos, a posse atual da A. sobre o trato do terreno que vai desde a estalagem até à Ré não permite se considere retroagir tal situação até à época em que a lei estabeleceu a natureza pública do espaço em causa. Apenas a posse actual que correspondeu a posse em tempo remoto faz presumir a posse intermédia (n.°l).

Por outro lado, apesar de titulada, a posse actual não faz presumir a anterior porque o título de 1964 se limita a descrever uma confrontação genérica com a Ria, a nascente, mas sem que daí resulte qualquer referência à limitação legal de 50 metros que já vigorava cerca de 100 anos antes.

Por outro lado, não vale aqui a regra do art. 7.º do Código do Registo Predial, pois a presunção registral apenas abrange a demonstração da titularidade, mas não as áreas, confrontações e demais elementos físicos aí constantes

Improcede, por isso, a nulidade arguida.


2. Da violação do princípio do contraditório (decisão-surpresa) e do disposto no artigo 640.º, n.º 2, do CPC (conclusões 3. e 4.)
Alega a Recorrente que ao ter desconsiderado a prova em que se baseou a 1.ª instância, mas fundando-se na imprestabilidade das testemunhas e na necessidade de prova pericial para alterar a decisão de facto – o que não tinha sido invocado pelo Ministério Público na apelação –, a Relação proferiu uma decisão surpresa, violando o princípio do contraditório, bem como o disposto no artigo 640.º, n.º 2, do CPC, já que não lhe facultou o direito ao contraditório face a essa nova abordagem. Considera, por isso, o acórdão nulo.
Ainda quanto a este aspecto a Recorrente carece de razão.
Na verdade, não se vislumbra em que medida é que o acórdão recorrido possa constituir uma decisão-surpresa proibida pelo princípio do contraditório e muito menos se vê que, ao ter reapreciado a matéria de facto, a Relação tenha violado o artigo 640.º, n.º 2, do CPC, conforme passaremos a justificar.
Dispõe o artigo 662.º, n.º 1, do CPC, que A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (sublinhado nosso).
Pretendeu-se deixar claro com a nova redacção do citado preceito que quando esteja em causa a impugnação da matéria de facto, que tenha sido sustentada em meios de prova submetidos à livre apreciação do tribunal, a Relação deve alterar a decisão sempre que, no seu juízo próprio e autónomo, os elementos de prova que estejam acessíveis determinem uma solução diversa, nomeadamente através da reponderação dos depoimentos, documentos, relatórios periciais, complementados ou não pelas regras da experiência comum.
Mantém-se, assim, desde então, com maior firmeza e clareza, a possibilidade de sindicar a decisão da matéria de facto quando esta assente em prova que tenha sido oralmente produzida e que tenha ficado gravada, afastando-se, desta forma, o argumento, que era recorrente no anterior sistema de que a modificação da decisão da matéria fáctica deveria ser reservada para casos de “erro manifesto” ou de não ser permitido à Relação contrariar a convicção da 1.ª instância relativamente a meios de prova que tinham sido objecto de livre apreciação.
Pelo que, constituído a decisão do tribunal a quo o resultado da valoração de meios de prova sujeitos à livre apreciação, desde que, naturalmente, a parte interessada cumpra o ónus de impugnação prescrito pelo artigo 640.º do CPC, a Relação, assumindo-se como verdadeiro tribunal de instância, pelo que se encontra em condições de proceder à sua reavaliação, formando (e devendo formar), a partir daqueles meios e com total autonomia, a sua própria convicção[8].
Impõe-se, pois, à Relação [lançando mão dos deveres e poderes legalmente consagrados, nomeadamente os que decorrem dos princípios da livre apreciação (artigo 607.º, n.º 5, do CPC) e da aquisição processual (artigo 413.º do mesmo Código)] que repondere, face aos meios probatórios a que tem acesso, os pontos de facto impugnados, expressando de modo autónomo o seu resultado (confirmando a decisão, decidindo em sentido contrário ou alterando-a em sentido restritivo ou explicativo).
Este entendimento de modo algum belisca o respeito pelo princípio do dispositivo (em função do qual é ao recorrente que cabe delimitar o objecto do recurso, na parte concernente à impugnação da matéria de facto, através da observância dos ónus prescritos pelo artigo 640.º do CPC, ou seja, fundamentar as razões por que discorda da decisão recorrida, apontar com precisão os meios de prova que impõem decisão diversa e indicar a resposta que pretende obter) pois a limitação dele decorrente mostra-se reportada ao âmbito de conhecimento da matéria de facto que deve ser limitada aos pontos que tenham sido especificamente impugnados. Tal limitação, porém, não poderá ser extensiva aos meios probatórios, posto que, neste aspecto, a Relação deverá atender a todos os meios de prova que constem do processo, independentemente da sua proveniência e sem exclusão sequer da possibilidade de efectuar a audição de toda a gravação caso esta se revele oportuna para a decisão[9].
Assim, conforme tem vindo a ser reiteradamente afirmado por este tribunal, desde que não haja fundamento para rejeitar o recurso na parte atinente à impugnação da matéria de facto, impõe-se à Relação que reaprecie os meios probatórios especificados pelo recorrente através da efectiva audição da gravação, que os conjugue com outros que se mostrem acessíveis e que, dessa conjugação, forme uma convicção própria e autónoma relativamente à matéria de facto impugnada, introduzindo na decisão que considere erradamente julgada as alterações que se mostrem pertinentes[10].
Na situação dos autos, a questão colocada em sede de apelação e na parte que para aqui assume relevância, consistia em saber se decisão da matéria de facto devia ser alterada no sentido de serem dados como não provados os factos que haviam sido dados como provados sob os pontos 19., 20., 21. e 22., tendo o ali Recorrente (Réu) invocado nas conclusões do recurso que essa alteração se impunha por força dos meios probatórios que aí indicou – documentos e depoimentos testemunhais (de EEE, FFF e GGG) –, justificando a impugnação com base no facto de o tribunal de 1.ª instância não ter procedido à análise crítica desses depoimentos, não os ter confrontado com as outras provas, designadamente com os documentos por forma a aferir da sua credibilidade e valia técnica, não tendo igualmente valorado esses documentos, nem procedido à sua análise crítica, em face da matéria em discussão, também ela essencialmente técnica.
Na reapreciação da matéria de facto que se lhe impunha, o tribunal a quo apreciou quer os documentos juntos aos autos, quer os depoimentos testemunhais indicados pelo recorrente (depoimentos de EEE, FFF e GGG), quer ainda um outro depoimento em que o tribunal de 1.ª instância se tinha alicerçado para dar como provada a matéria impugnada (depoimento de HHH), analisando-os conjugada e criticamente, para formar a sua própria convicção. Fê-lo, portanto, no uso dos poderes-deveres que lhe estão cometidos pelo artigo 662.º, do CPC.
Repare-se, de resto, que o depoimento de HHH foi indicado pela própria Recorrente, Recorrida na apelação, para infirmar as conclusões daquele a propósito da matéria de facto impugnada, não se vislumbrando, portanto, motivo para a invocada surpresa na apreciação e valoração dos ditos meios de prova.
Se é certo que o princípio do contraditório plasmado no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, impõe que o juiz, salvo caso de manifesta desnecessidade, conceda às partes a possibilidade de se pronunciarem antes de decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, não é menos certo que, tal como vem sendo uniformemente entendido na doutrina e na jurisprudência, as decisões-surpresa são apenas aquelas que assentam em fundamentos que não foram ponderados pelas partes, ou seja, aquelas com que as partes não podiam razoavelmente contar, não sendo exigível que as tivessem perspectivado[11].
Sucede que, no caso, tendo sido impugnada na apelação a decisão da matéria de facto com fundamento na falta de apreciação crítica, pelo tribunal de 1.ª instância, da prova produzida (testemunhal e documental), a Recorrente, que aí era Recorrida, não só teve a oportunidade de exercer o contraditório – o que fez em sede de contra-alegações, indicando os meios de prova que, no seu entender, infirmavam as conclusões da apelação - como ainda tinha, necessariamente, de contar que, nessa reapreciação da prova, o tribunal da Relação era livre de apreciar toda a prova produzida para formar a sua própria convicção[12].
Não se mostra, pois, violado o princípio do contraditório, nem o disposto no artigo. 640.º, n.º 2, do CPC, pelo que também, nesta parte, improcedem as conclusões da revista.

3. Erro de julgamento da matéria de facto (conclusões 11. a 13.)

Invoca a Recorrente, a este propósito, que, ao exigir um meio de prova (pericial) que não é imposto por lei, o tribunal colocou-se na situação prevista na parte final do n.º 3 do artigo 674.º do CPC (a contrario), o que permite que o STJ aprecie o erro na apreciação da prova, sendo que, ao não valorar os depoimentos das testemunhas, que eram essenciais para completar os documentos juntos, o acórdão recorrido violou o disposto no artigo 392.º do Código Civil e o direito à prova consagrado no artigo 20.º, da Constituição da República Portuguesa.
Entendemos não merecer acolhimento tal entendimento.

Dispõe o artigo o artigo 682.º, n.º 1, do CPC, que “Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado”, acrescentando o n.º 2, do mesmo normativo, que “A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674.º”.

Preceitua, por sua vez, o n.º3 do artigo 674.º que “O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

Conforme decorre destas disposições legais, o STJ, enquanto tribunal de revista, em regra, apenas conhece de matéria de direito, não lhe cabendo sindicar a matéria de facto apurada pelas instâncias, a não ser que se verifique algum dos casos excepcionais expressamente previstos na lei.

Como refere, a este propósito, Teixeira de Sousa, a actividade do Supremo não se preocupa com as possíveis alternativas sobre o julgamento dos factos relevantes, mas exclusivamente com a determinação da solução jurídica adequada para os factos apurados pelas instâncias, já que na função atribuída ao Supremo prevalecem os interesses gerais de harmonização na aplicação do direito sobre a averiguação dos factos relativos ao caso concreto e a concentração dos seus esforços na determinação da norma aplicável e no controlo da sua interpretação e aplicação pelas instâncias[13].

Ainda que, face ao disposto no artigo 674º, n.º 3, do CPC, o Supremo não fique totalmente paralisado no que concerne ao controlo da decisão da matéria de facto, a verdade é que a sua intervenção se circunscreve a aspectos em que se tenha verificado a violação de normas de direito probatório material (por, nessa hipótese, estarem em causa verdadeiros erros de direito), já não abrangendo, porém, questões inerentes à decisão da matéria de facto quando esta foi precedida da formulação de um juízo assente na livre apreciação da prova formulado pela 1.ª instância ou até pela Relação[14].

A Recorrente, porém, não indicou qualquer ofensa a uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (prova vinculada ou tarifada) – único caso em que o STJ poderia sindicar o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa – mas antes que o tribunal a quo exigiu um meio de prova que a lei não impõe.

Contudo, o que decorre do acórdão recorrido é que o tribunal, no âmbito da apreciação crítica e conjugada que fez da prova produzida (testemunhal e documental), entendeu que, apesar de duas das testemunhas inquiridas terem deposto como se de peritos ou técnicos se tratassem, “laborando sobre outras provas”, não tinham essa qualidade e que, como tal, não tendo sido feita perícia, os depoimentos por si prestados não tinham essa valor, não sendo, consequentemente, suficientes para formar uma convicção segura acerca da matéria em causa nos autos.

Por outro lado, contrariamente ao que a Recorrente pretende fazer crer, também não decorre do acórdão posto em crise que o tribunal tenha entendido que a prova testemunhal era, no caso, inadmissível, mas antes, tão só e apenas que, na apreciação que fez da prova, concluiu que os depoimentos testemunhais não eram suficientes para adquirir uma convicção certa e segura.

Tal conclusão inseriu-se, sem margem para dúvidas, no campo da valoração da prova, sujeita à livre apreciação, sendo que, nessa valoração, o tribunal apreciou igualmente a prova que havia sido indicada pela aqui Recorrente nas contra-alegações da apelação, sem que, por isso, tenha sido violado o direito à prova consagrado no artigo 20.º, da Constituição.

No quadro do direito ao processo equitativo, enquanto corolário do direito de acesso aos tribunais e estruturante do princípio do Estado de direito, plasmado no citado preceito constitucional, exige-se que o processo garanta o direito de defesa e o direito ao contraditório traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da outra parte, pronunciar-se sobre o valor e resultado destas provas[15].

Como o Tribunal Constitucional tem sublinhado em inúmeros acórdãos, o direito ao contraditório em sentido amplo (que não coincide, necessariamente, com a sua interpretação processual civil), enquanto concretização prática do princípio do processo equitativo e corolário do princípio da igualdade, traduz-se essencialmente na possibilidade concedida à parte de deduzir as suas razões (de facto e de direito), de oferecer as suas provas, de controlar as provas do adversário e de discretear sobre o valor e resultados de umas e de outras; daí que se fale num direito constitucional à prova[16].

Não restam dúvidas de que a Autora teve a possibilidade de contraditar a prova apresentada pela contraparte para procurar infirmar, desse modo, as conclusões vertidas por aquela no recurso de apelação. O que sucedeu foi que o tribunal fez uma valoração dessa prova diferente daquela que a mesma pretendia, sendo que essa discordância não serve de fundamento para que o STJ se possa imiscuir na matéria de facto, em relação à qual, em regra, é a Relação que tem a última palavra.

Por conseguinte, não se verificando a invocada violação do direito constitucional à prova e também não se estando perante qualquer dos casos excepcionais de violação do direito probatório material previstos na lei, arredada está a possibilidade de o STJ sindicar, em sede de revista, o eventual erro na apreciação da prova e na fixação dos factos materiais da causa.

Improcedem, assim, nesta parte, as conclusões do recurso.

4. Do erro de julgamento na interpretação do artigo 15.º, da Lei 54/2015, e violação dos princípios da proporcionalidade e da proibição de indefesa (conclusões 1., 2., 6. e 8. a 10.)

Sustenta a Recorrente que foi feita uma incorrecta aplicação do artigo 15.º, n.º 2, da Lei n.º 54/2005, de 15-11, uma vez que apesar de a matéria de facto provar a sua propriedade por sucessivas transmissões desde, pelo menos, 1862, o tribunal a quo considerou que essa matéria não era suficiente, violando os princípios da proporcionalidade e da proibição da indefesa, exigindo-lhe uma prova diabólica.

Acrescenta, que mesmo que assim não se entendesse, sempre tal matéria de facto seria suficiente para provar a posse do prédio de modo contínuo, por particulares, desde, pelo menos, 1862, pelo que a acção devia ter sido julgada procedente nos termos do artigo 15.º, n.º 3, da referida Lei n.º 54/2005.

Vejamos.

Pretende a Recorrente o reconhecimento do direito de propriedade sobre um imóvel, compreendido na margem da Ria …, através da consequente demonstração de que essa faixa de terreno não integra o domínio público hídrico por ser objecto de propriedade privada desde a indicada data.

Prevê o artigo 84.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, que “Pertencem ao domínio público: a) As águas territoriais com os seus leitos e os fundos marinhos contíguos, bem como os lagos, lagoas e curso de água navegáveis ou flutuáveis, com os respectivos leitos (…)”, acrescentando o n.º 2, do mesmo preceito, que “A lei define quais os bens que integram o domínio público do Estado, o domínio público das regiões autónomas e o domínio público das autarquias locais, bem como o seu regime, condições de utilização e limites”.

Esta disposição assenta na convicção de que as águas, pela sua importância e afectação públicas, devem estar fora do comércio jurídico privado, sendo, portanto, inalienáveis, impenhoráveis e imprescritíveis[17].

Conforme se encontra referido no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 326/2015 “Na verdade, o domínio público hídrico, na medida em que se ache funcionalmente ligado à “circulação” de bens, pessoas e ideias, diz respeito a coisas tidas por vitais para a comunidade, ou seja, dotadas de um «grau de utilidade pública primordial», circunstância que explica a integração dominial de que são objeto na generalidade dos ordenamentos jurídicos (cfr., neste sentido, José Pedro FERNANDES, “Domínio Público”, Dicionário Jurídico da Administração Pública, Volume IV, pp. 166 e ss.)[18].

Dispõe o artigo 1.º, n.º 1, da citada Lei n.º 54/2005 – que estabelece a titularidade dos recursos hídricos – que os recursos hídricos, a que se aplica esta lei, compreendem não apenas as águas, mas também os respectivos leitos e margens, zonas adjacentes, zonas de infiltração máxima e zonas protegidas.

Como se afirma no acórdão recorrido, o domínio público marítimo compreende, além das águas e leitos das águas, as margens das águas costeiras e das águas interiores sujeitas à influência das marés (art. 3.º), sendo que o domínio público lacustre e fluvial engloba, entre o mais, cursos de águas, leitos e margens (art. 5.º).

No que para o caso releva e de acordo com a definição ínsita na Lei n.º 54/2005, entende-se por margem uma faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas, sendo que, no caso das águas do mar, bem como das águas navegáveis ou flutuáveis, essa faixa tem a largura de 50 metros, que se conta a partir da linha limite do leito ou, caso esta linha atinja arribas alcantiladas, a partir da crista do alcantil (artigo 11.º, n.ºs 1, 2 e 6).

Embora, em matéria de recursos hídricos, a regra seja a da dominialidade, prevê-se na citada Lei n.º 54/2005 que as margens de águas navegáveis e flutuáveis que tenham sido, ou venham a ser, reconhecidos como privadas por força de direitos adquiridos anteriormente, ao abrigo de disposições expressas desta lei, podem ser objecto de propriedade particular (artigo 12.º, n.º 1, alínea a)).

Tal reconhecimento ocorre no seio da ação disciplinada no art. 15.º, sendo que, como salientado no acórdão recorrido, o critério geral adoptado para obter esse reconhecimento da propriedade privada sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis é o seguinte: como o Decreto de 31 de dezembro de 1864 foi o primeiro instrumento legal a estabelecer a dominialidade dos leitos e margens das águas públicas, sendo secundado pelo Código de Seabra que reconhece também as arribas alcantiladas como bens públicos, admite-se que se mantêm, ainda hoje, os direitos de propriedade privada sobre tais parcelas que tenham sido constituídos antes da entrada em vigor dos dois diplomas, uma vez que estes não afetavam direitos adquiridos.

Preceitua, assim, o artigo 15.º, n.º 2, da Lei n.º 54/2005, que “Quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis deve provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868 (negrito e sublinhados nossos).

Conforme se colhe dos ensinamentos de José Miguel Júdice e de José Miguel Figueiredo[19], é sobre o autor que recai o ónus de demonstrar que o terreno cuja propriedade privada agora reclama já era objecto de propriedade privada antes de 31 de Dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868, demonstração essa que se fará mediante prova de que a propriedade privada foi adquirida por título legítimo antes daqueles marcos temporais.

Assim sendo, para afastar a presunção de dominialidade que vigora, terá o autor de provar não só que o imóvel estava na propriedade particular quando, em 1864 e 1868, se estabeleceram as referidas presunções, como também que o imóvel se manteve nessa condição (propriedade privada) até à data actual. Em suma, competirá ao autor demonstrar que o bem foi e continua a ser propriedade privada, posto que a presunção de dominialidade terá de ser afastada relativamente a toda a “história” do bem[20].

Ora, analisando a factualidade dada como provada – tal como foi fixada pela Relação – a Autora não logrou fazer a prova que se lhe impunha, não merecendo, portanto, censura o acórdão recorrido.

Embora a Autora tenha feito prova de que tem registado a seu favor o prédio sito em …, freguesia da …, descrito sob o n.º …. na Conservatória do Registo Predial da …, bem como que esse imóvel resultou da anexação de vários prédios, que se encontravam descritos sob os n.ºs …80, …61, …60, …23 e ….74, já não logrou provar que a parcela desse imóvel que constitui, especificamente, margem da Ria ….. já era, por título legítimo, objecto de propriedade particular ou comum antes de 31-12-1864, sendo que esta era, verdadeiramente, a prova que se lhe impunha para obter a procedência da sua pretensão ao abrigo do disposto no artigo 15.º, n.º 2, da Lei n.º 52/2005, de 15-11.

Com efeito e conforme se observou no acórdão recorrido, do contrato de arrendamento dado por provado sob o ponto 3. nada se extrai de relevante, já que dele não decorre onde se localiza o imóvel aí referido e nem sequer se, de facto, confrontava a sul com um imóvel de FF, e muito menos daí se retira que esse imóvel seja aquele a que referem os factos dados como provados nos pontos seguintes, posto que não consta aí qual a sua localização, área e real configuração.

Também não decorre da referida factualidade por que título teria sido adquirida a “fazenda” a que se alude no ponto 4. dos factos provados (uma vez que não vem aí referido qualquer documento que constituísse, a essa data, “título legítimo”), sendo certo que a referência que consta no ponto 6. desses factos a uma suposta compra, se trata de mera alegação que à data foi sido feita (conforme aí se refere expressamente).

Por outro lado, não resulta da factualidade provada que o imóvel que vem descrito no ponto 8., que correspondia à verba n.º 12 do inventário de FF, falecido em 21-09-1876 (e, portanto, já depois de 1864), corresponda à mencionada “fazenda” descrita no ponto 4., já que apenas se sabe que esta se situava na …. e que confrontava com uma suposta “Quinta ….”, referência essa que nem sequer consta do facto provado sob o ponto 8.

Em consequência, não é possível concluir que a “fazenda” de que o referido FF era “dono” desde, pelo menos, desde 1862, corresponda ao imóvel descrito em 14. que veio a ser adquirido, por compra e venda, pela Recorrente (ou sequer a parte dele), porquanto da localização concreta e real configuração dessa “fazenda” nada se sabe, sendo que tal é quanto basta para que conclua que a Recorrente não cumpriu o ónus da prova que sobre si recaía.

Importa sublinhar, tal como mencionado no acórdão recorrido, que, mesmo considerando o imóvel descrito sob a verba n.º 12 no inventário de FF (falecido, como se disse, em 21-09-1876) adjudicado a GG (cônjuge daquele), e, posteriormente, doado aos seus filhos e netos, ignora-se como é que um dos netos vendeu, em 23-06-1907, apenas a sua parte (“décima quarta parte”) a QQ, sendo que este, em 31-10-1916, vende a SS um prédio integral (as explicações que a Recorrente avança na sua alegação recursória para justificar essa circunstância não constam da factualidade dada como provada).

Desconhecendo-se a real configuração dos prédios, não se mostra possível concluir qual o imóvel ou os imóveis a que correspondia o prédio com a descrição … (que substituiu a descrição …), que se mostra registado, a favor da Recorrente, desde 04-11-1964, e muito menos se pode ter por adquirido que esse prédio, antes de 31-12-1864, incluísse já a parcela que constitui a margem da Ria …. e que fosse já então, por título legítimo, objecto de propriedade particular.

Por conseguinte e em face da matéria de facto apurada, assume cabimento a conclusão retirada pelo acórdão recorrido no sentido de não ter sido feita prova sobre a configuração do prédio, que ora pertence à Recorrente, desde 1864 e, nem sequer, em bom rigor, da sua configuração actual, designadamente do que possa considerar-se leito e margem da Ria …...

Consequentemente, há que concluir no sentido de que não se mostram preenchidos os pressupostos de que dependia o reconhecimento do direito da Recorrente ao abrigo do artigo 15.º, n.º 2, da Lei n.º 54/2005, de 15-11.

Igualmente no que toca à demonstração da situação prevista no artigo 15.º, n.º 3, da citada Lei 54/2005, carece a Recorrente de razão.

Dispõe tal preceito que “Na falta de documentos suscetíveis de comprovar a propriedade nos termos do número anterior, deve ser provado que, antes das datas ali referidas, os terrenos estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa”.

Nesta hipótese e ciente da eventual dificuldade da prova documental, o legislador já não exige que o autor prove que a propriedade privada existia antes das datas supra referidas, bastando que demonstre, que antes dessas datas, os terrenos estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de certos indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa.

Porém, a factualidade dada como provada também não o demonstra.

Conforme vem sendo pacificamente entendido, a posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício de um direito real (artigo 1251.º, do Código Civil), sendo integrada por:

- um elemento material – o corpus – que se traduz na actuação material praticada sobre a coisa;

- um elemento intelectual – o animus –, isto é, a intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados, sendo que, em caso de dúvida, se presume o animus naquele que exerce o poder de facto (artigo 1252.º, n.º 2, do Código Civil).

A matéria de facto provada não revela a prática de quaisquer actos materiais, em data anterior a 31-12-1864, sobre os terrenos que constituíam a margem da Ria e que, actualmente, corresponderiam ao prédio que é propriedade da Autora.

Na verdade, da mesma apenas se extrai que a Autora explora uma estalagem que construiu numa parte do prédio que se encontra, actualmente, registado a seu favor sob o n.º …., sendo que a posse, mesmo titulada, apenas faria presumir que há posse desde a data do título e o certo é que este é de 1964 e, portanto, muito posterior a 1864 (artigo 1254.º, n.º 2, do Código Civil).

Consequentemente, a falta de prova dos actos materiais a que se fez referência sobre a área de terreno que constitui a margem da Ria …., importa a conclusão de que não se mostram preenchidos os pressupostos enunciados no artigo 15.º, n.º 3, da Lei n.º 54/2005, de 15-11, de que dependia o direito que a recorrente pretendia fazer valer, não merecendo, portanto, censura o decidido no acórdão sob censura.

Cabe realçar que, ao invés do que afirma a Autora, não se vislumbra que, ao ter assim decidido, o tribunal a quo lhe tenha exigido uma prova diabólica e, consequentemente, que tenham sido violados os princípios constitucionais da proporcionalidade e da proibição de indefesa que traz à colação.

Na verdade, a resolução desta questão está substancialmente facilitada, posto que sobre ela já expressamente se pronunciou o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 326/2015[21], decidindo não julgar inconstitucional a norma do artigo 15.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, na redação conferida pela Lei n.º 78/2013, de 21 de novembro, quando interpretada no sentido de a obrigatoriedade da prova a efetuar pelos autores se reportar a data anterior a 31 de dezembro de 1864.

Para tanto, relevou o facto de ter considerado que, ingressando as margens de águas públicas, pelo relevo público que lhes é natural e na ausência de direitos de propriedade privada, no domínio público, a necessidade de oferecer prova documental desse direito, de que um particular se arrogue, ou de oferecer prova da posse privada dos bens, em momento anterior a 31-12-1864, justifica-se em razão da necessidade de dar estabilidade à base dominial, visto estarem em causa coisas que o legislador, em cumprimento do mandato constitucional inscrito no artigo 84.º, n.º 1, alínea f), considera proporcionarem utilidade pública merecedora de um estatuto e de uma proteção especiais. Vale isto por dizer que as exigências vertidas nas normas em crise - que só valem, recorde-se, para as margens de águas navegáveis ou flutuáveis - encontram o seu fundamento último na proteção de interesses constitucionais a que esse tipo de águas se acha indissociavelmente ligado.

Partindo deste pressuposto e ponderando os interesses que se visam alcançar, entendeu o Tribunal Constitucional que a dita exigência não institui uma probatio diabólica, que seja susceptível de colidir com a garantia de acesso ao direito e com o direito de propriedade privada, com base em dois argumentos que se revelaram decisivos para esse juízo e que aqui se acompanham:

O primeiro respeita à explicação da relevância da data de 31 de dezembro de 1864 para efeitos da prova da propriedade privada. É que foi nesta data, como se disse já, que as margens de águas públicas foram objeto de declaração de dominialidade, através do decreto régio então publicado. Nada houve de arbitrário na escolha de tal data, que sendo aquela em que as margens de águas públicas passaram a estar excluídas do comércio jurídico privado, apresenta uma evidente credenciação racional – era mesmo a única data que faria sentido considerar para o efeito.

O segundo recorda a já mencionada jurisprudência constitucional em matéria de distribuição do ónus da prova (cfr. o Acórdão n.º 596/09): ela exige que tal ónus seja alocado à parte que se encontra em melhores condições para antecipadamente poder lançar mão dos meios ou instrumentos materiais aptos à prova dos factos. Ora, não é contestável que o particular é, à partida, quem preenche melhor – ou, pelo menos, menos mal - esta exigência.

Pelas enunciadas razões, cabe referir, na sequência do entendimento do Tribunal Constitucional, que, constituindo as margens das águas publicas condição de acesso a vias de comunicação – leia-se a curso de água navegáveis ou flutuáveis –, apresentando impacto evidente no exercício de liberdades fundamentais, as eventuais dúvidas que pudessem subsistir não se afiguram suficientes para pôr em causa a conformidade constitucional da norma em apreciação quando interpretada no sentido da obrigatoriedade da prova a efectuar pelos autores se reportar a data anterior a 31 de dezembro de 1864, quando confrontada com o direito de acesso ao direito e o direito a uma tutela jurisdicional efetiva, consagrados no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição.

Os apontados argumentos valem, igualmente, para se concluir que não assiste razão à Recorrente ao imputar ao acórdão recorrido a violação do princípio da proporcionalidade.

Com efeito, o regime jurídico que se vem analisando e, em concreto, a citada norma visa precisamente um equilíbrio entre, por um lado, o princípio do respeito pelos direitos adquiridos dos particulares, e, por outro, a conveniência de que as margens de águas públicas, por condicionarem a utilização destas, integrem o domínio público, ou seja, estejam sujeitas a um regime especial de direito público caracterizado por um reforço das medidas de protecção das coisas que o integram[22].
Improcedem, pois, na sua totalidade as conclusões das alegações.

IV. DECISÃO
Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela Autora.
           
Lisboa, 23 de Março de 2021

Graça Amaral (Relatora)

Henrique Araújo

Maria Olinda Garcia

Tem voto de conformidade dos Senhores Conselheiros Adjuntos (artigo 15ºA, aditado ao DL 10-A/2020, de 13/3, pelo DL 20/2020, de 1/5).

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1]Inscrito na matriz urbana sob o artigo n.º …73 e rústica sob os artigos n.ºs …41, …38., …40 e ….39, composto de Edifício de r/c e 1.º andar, destinado a serviços, com a área coberta de g.pt 1.722m2, com logradouros com 10278 m2 e terrenos de cultura, tendo o artigo rústico …. a área de 1296 m2 e os restantes artigos rústicos 850 m2 cada um, a confrontar de norte com Dr. AA, do sul e nascente com a Ria e do poente com Estrada Nacional n.º …….
[2]  Reconhecimento da propriedade privada sobre uma parcela da margem de um curso de água navegável (Ria …..) ao abrigo do disposto no artigo 15.º, n.º 2, da Lei n.º 54/2005, de 15-11.
[3] 1) Aquisição pela Autora de um imóvel que veio a ser destacado de um prédio que já era propriedade particular desde, pelo menos, Janeiro de 1864; 2) Localização, a mais de 50 metros da margem da ria (na sua preia-mar e mesmo em caso de cheia), em data anterior a 1950, da faixa de terreno em causa nos autos.
[4] Dando como não provada a matéria provada fixada pela 1ª instância sob os n.ºs 19 a 22.
[5] Cfr. entre outros acórdão do STJ de 30-06-2020, Processo n.º 3007/16.2T8LRA.C1.S1, a que se pode aceder em https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:3007.16.2T8LRA.C1.S1/.
[6] Conforme o STJ vem, repetidamente, afirmando, o regime das nulidades destina-se apenas a remover aspectos de ordem formal que, eventualmente, inquinem a decisão, não sendo adequado para manifestar discordância e pugnar pela alteração do decidido – cfr. acórdão do STJ de 09-01-2019, Processo n.º 4175/12.8TBVFR.P1.S1, com sumário disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2020/04/civel_sumarios_2019.pdf
[7] E é pelas conclusões da alegação – e não pelas contra-alegações -, que se delimita o objecto do recurso (artigo 635.º, n.º 4, do CPC).
[8] Estando agora garantida a possibilidade de aceder a todos os meios de prova (posto que as audiências finais passaram a ser gravadas – artigo 155.º do CPC), as circunstâncias em que se insere a actuação da Relação, ressalvados os factores de imediação e oralidade, são praticamente idênticas às que se verificavam quando o tribunal de 1.ª instância proferiu a decisão impugnada.
[9] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2014, p. 245 e ss.
[10] Cfr. entre outros acórdão de 09-02-2017, Processo n.º 8228/03.5TVLSB.L1.S2, a cujo sumário se pode aceder em https://www.stj.pt/?page_id=4471.
[11] Neste sentido, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, 3.ª edição, Coimbra, p. 9;  Paulo Ramos de Faria e Ana Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, volume I, Almedina, Coimbra, pp. 27-28.
[12] Para além de tal poder resultar da redacção do artigo 662.º, do CPC, também o artigo 640.º, n.º 2, alínea b), do mesmo Código, alude expressamente aos poderes de investigação oficiosa do tribunal.
[13] Estudos sobre o Processo Civil, 2.ª edição, p. 398.
[14] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2.ª edição, 2014, p. 337 e ss. e, entre outros acórdão de 19-01-2017, Processo n.º 841/12.6TBMGR.C1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.
[15] Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Anotada, p. 415 apud Acórdão do TC n.º 221/2019, acessível em www.tribunalconstitucional.pt.
[16] Cfr., entre outros, os Acórdãos do TC n.º 186/2010, n.º 286/2011, n.º 350/2012, n.º 383/2012, 273/2015 e 565/2018, citados no referido Acórdão n.º 221/2019 e disponíveis através de www.tribunalconstitucional.pt.
[17] Cf. Acórdãos do STJ de 01-03-2018, Processo n.º 248/15.3T8FAR.E1.S1, e de 05-06-2018, Processo n.º 1339/16.9T8FAR.E1.S1, ambos disponíveis através das Base Documentais do ITIJ.
[18] Acessível em www.tribunalconstitucional.pt.
[19] Acção de reconhecimento da propriedade privada sobre recursos hídricos, 2013, Almedina, Coimbra, p. 80.
[20] Cf. José Miguel Júdice e outro, obra citada, p. 81.
[21] Disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
[22] Cf. Acórdão do TC n.º 326/2015, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.