Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | RICARDO COSTA | ||
| Descritores: | REFORMA DE ACÓRDÃO ERRO DE JULGAMENTO LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ DISPENSA DO REMANESCENTE DA TAXA DE JUSTIÇA RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA | ||
| Data do Acordão: | 12/19/2023 | ||
| Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | RECLAMAÇÃO INDEFERIDA; CONDENAÇÃO EM LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ DO RECLAMANTE. PARCIALMENTE PROCEDENTE O PEDIDO DE DISPENSA DE PAGAMENTO DA TAXA DE JUSTIÇA (REDUÇÃO 25%). | ||
| Sumário : | I- A “reforma” prevista na al. b) do art. 616º 2, admitida como excepção ao esgotamento do poder jurisdicional no art. 613º, 2, do CPC, constitui uma previsão destinada a incidir sobre o acórdão reclamado (neste caso, proferido em revista) quando, por manifesto lapso do juiz, «constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida» e que, por isso, não foram tidos em conta enquanto omissão ostensiva de apreciação de elementos probatórios qualificados. II- Tal “reforma”, uma vez invocada após ter sido proferido acórdão em revista no STJ, corresponde a uma impugnação sucedânea e de ultima ratio à que se prevê como admitida no art. 674º, 3, 2ª parte, tendo em vista ainda salvaguardar um resultado adequado na subsunção dos factos ao regime jurídico aplicável (nos termos do art. 682º, 1, do CPC), numa salvaguarda de último recurso, mas sem se confundir com mais um recurso admissível na hierarquia de impugnações contempladas pelo sistema. III- A “reforma” do art. 616º, 2, do CPC não pode ser usada como se fosse mais um grau de recurso, ao dispor da parte inconformada para expressar a sua discordância relativamente à solução jurídica que não lhe foi favorável, em especial relevando tão-só discordância do julgado ou tentando demonstrar um qualquer error in judicando (fundamento de recurso), quando apenas tem cabimento perante erro grosseiro e taxativamente previsto no art. 616º, 2, do CPC; assim é quando a autora e recorrente se limita a reiterar a sua argumentação anterior, agora alegando uma suposta omissão de descrição de factos relevantes para as suas teses de preenchimento do pedido, num puro e simples exercício de inconformismo sem base adjectiva, pois sem qualquer referência à desconsideração de prova com força plena em que se sustenta a respectiva al. b). IV- Se a recorrente usa claramente de forma ilegítima, inadequada e despropositada o incidente da reforma da decisão, infringindo o dever de não formular pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não podia nem devia ignorar, uma vez que toda a sua fundamentação não encontra qualquer arrimo na indicação do argumento legal para acudir à al. b) do art. 616º, 2, do CPC, antes reconhecendo que o expediente processual legítimo para reflectir a sua reacção seria outro (nulidade decisória), e prosseguindo dessa forma o fim ilegítimo de protelar, sem fundamento sério e com intuito dilatório, o trânsito em julgado e a exequibilidade da decisão, está verificada a culpa qualificada que a lei exige para condenação em litigância de má fé e respectiva multa (arts. 542º,1, 2, a) e d); 7º, 1, 8º, 9º, 1; CPC). V- A dispensa (isenção ou redução) do pagamento do remanescente da taxa de justiça, permitida pelo art. 6º, 7, do RCP para as causas de valor superior a € 275.000, pode ser apreciada e decidida pelo STJ, aquando do recurso de revista e suas vicissitudes, como competência exclusiva e restrita relativamente à actividade e tramitação processual correspondente ao recurso tramitado nesta instância, não a podendo conhecer nem decidir no que concerne aos recursos de apelação e às decisões de 1.ª instância, uma vez aplicado o princípio da autonomia das acções e dos recursos para efeitos de taxa de justiça. VI- A função correctiva dessa dispensa implica, de acordo com a proporcionalidade que se impõe, a ponderação de factores da situação concreta na instância recursiva que vão para além da magnitude do valor da causa, nomeadamente a complexidade técnico-jurídica (da tramitação e das questões) e a conduta processual da(s) parte(s). | ||
| Decisão Texto Integral: | Processo n.º 12927/94.2TVLSB.L1.S1 Revista – Tribunal recorrido: Relação de Lisboa, ... Secção Reclamação para reforma: arts. 616º, 666º, 685º, CPC; Dispensa do remanescente da taxa de justiça Acordam em Conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça I) RELATÓRIO 1. Notificada do acórdão proferido em 17/10/2023, que julgou improcedente a revista, a Autora e Recorrente «Caixa – Banco de Investimento, S. A.» deduziu Reclamação para a Conferência tendo em vista a Reforma do acórdão nos termos do art. 616º, 2, b), do CPC. Em síntese, a Autora considera que não foi descrita no acórdão materialidade factual que, a seu ver, se consideraria decisiva, em conjugação com a descrita, para a sorte da lide, em especial para a configuração da relação contratual de intermediação entre a Autora e a 1.ª Ré e para a cessação de funções do 3.º Réu; a Autora entende que tal permitiria concluir que a causa de pedir se enquadra num regime de responsabilidade contratual e que se encontraria verificado o nexo de causalidade pelo qual se bateu na instância, com alegada não aplicação do art. 463º do CCiv. Concluiu: “a consideração daquela matéria de facto elencada (…) implica alterar a decisão e, considerando a demais factualidade provada e as disposições legais invocadas acima, declarar a revista procedente”; “integrando-se nos factos provados (…), os quais foram omitidos da decisão e, na reapreciação jurídica do conjunto dos factos provados, à luz da responsabilidade contratual e do disposto no artigo 463.º do CVM, DL 142-A/9, deve reformar-se o acórdão em concordância”. ∗ «Banco Santander Totta, S. A.» e AA, 1.º e 2.º Réus e Recorridos apresentaram pronúncia no exercício do contraditório, pugnando pela insubsistência da al. b) do art. 616º, 2, do CPC, invocado pela Recorrente e Reclamante, para corresponder à impugnação da Recorrente, e correspondente indeferimento do pedido de Reforma. Também BB, 3.º Réu, assim como CC e Outros apresentaram pronúncias, igualmente pugnando pelo indeferimento da pretensão da Autora. O 3.º Réu BB (ponto 52.) requereu que a Autora e Reclamante fosse sancionada em multa adequada e/ou em taxa sancionatória excepcional. Em resposta a este requerimento, notificada para o efeito e no exercício do contraditório, a Autora, aqui Reclamante, veio pugnar pelo indeferimento do pedido de condenação em multa e/ou taxa sancionatória excepcional formulado, reiterando que este tribunal omitiu factos provados que conduziriam à procedência da revista (“Afinal, errare humanum est – e os recursos ou o pedido de reforma têm a função de (…) aperfeiçoar as decisões dos Magistrados – cujo objectivo ainda se acredita ser um dos que deva prevalecer em todas as instâncias.” – disse e acrescentou: “por haver pecado por não ter efectuado a discriminação concreta e o elenco dos factos apontados no pedido da reforma da decisão.”). 2. Numa outra pretensão, após a prolação do acórdão reclamado, veio a Autora e Recorrente requerer a Redução de Custas nos termos do art. 6º, 7, do RCP, solicitando ao tribunal que se faça uso do poder-dever legal para dispensar ou reduzir substancialmente o pagamento da taxa de justiça na parte remanescente (por ser causa com valor superior a € 275.000) O Réu BB apresentou pronúncia, batendo-se pela não aplicação do n.º 7 do art. 6º do RCP e pelo indeferimento do requerido: (i) não há insuficiência de meios económicos da Requerente; (ii) a causa não é de elevada complexidade; (iii) o deferimento do requerido implicaria uma flagrante violação do princípio da igualdade das partes (art. 13º, 2, da CRP), atenta a referida situação económico-financeira flagrantemente superavitária nos seus “resultados de exercício”. Os Réus CC e Outros vieram aderir na íntegra a esta pronúncia. Os Réus «Banco Santander Totta, S. A.» e AA vieram também responder pedindo o indeferimento de tal redução ou dispensa. Notificado para o efeito, veio o Ministério Público pronunciar-se sobre a pretensão da Autora, usando dos arts. 6º, 7, do RCP e 530º, 7, do CPC, nos seguintes termos conclusivos: “I – A pronúncia acerca da dispensa do pagamento da taxa de justiça remanescente não pode contemplar a atividade processual desenvolvida na 1.ª e 2.ª instâncias; II – Deve dispensar-se a recorrente do pagamento da taxa de justiça remanescente respeitante à presente instância recursória em 10% daquele valor.” ∗ Foram colhidos os vistos nos termos legais. Cumpre apreciar e decidir as questões identificadas e a submeter à conferência. II) APRECIAÇÃO DAS QUESTÕES E FUNDAMENTOS 1. Da “reforma” do acórdão baseada no art. 616º, 2, b), do CPC; litigância de má fé da Reclamante 1.1. Apreciando a pretensão da Recorrente e aqui Reclamante, importa ter presente que o art. 616º, 2, do CPC confere às partes, em manifesto desvio à regra do esgotamento do poder jurisdicional plasmado no art. 613º, 1, e no âmbito da excepção do n.º 2 do art. 613º, a faculdade de requererem a reforma do acórdão quando, por manifesto lapso do juiz, tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos e, ainda, quanto «constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida» e, por isso, não foram tidos em conta. Cabe destacar que, no seu todo, o art. 616º, 2, é uma válvula de escape que permite serem corrigidos erros notórios, manifestos e grosseiros que, por traduzirem imprecisões, inexactidões, desacertos ou enganos evidentes no regime jurídico aplicável à situação ou uma omissão ostensiva de apreciação de elementos probatórios qualificados, podem influenciar o sentido da decisão tomada ou dificultar a compreensão do respectivo alcance decisório. Claramente não se enquadra nesta reacção o ataque a erros de julgamento (que são fundamento do recurso que culmina no acórdão reclamado para reforma), em que o julgador resolve clara e expressamente a questão recursiva, querendo dizer e sustentar o que está fundamentado e decidido, sem desconhecimento ou incompreensão do regime legal, ainda que a solução jurídica do julgado não obtenha a concordância de quem fica vencido (total ou parcialmente) no recurso e com ela divirja1. Logo, o art. 616º, 2, enquadra as situações, como destacam a doutrina e a jurisprudência do STJ, em que, nomeadamente, se verifique que se aplicou norma revogada, omitiu aplicar norma existente, trocou com relevo a ordem dos algarismos dos normativos aplicados, qualificou os factos com ofensa de conceitos ou princípios elementares de direito ou não se valorou meios de prova com força plena que constassem do processo e levariam causalmente a decisão radicalmente diversa (e, por isso, “erro grosseiro”) da que deveria ter sido tomada2. Para ambas as situações das duas alíneas do art. 616º, 2, teremos que estar perante “lapso manifesto”, isto é, evidente e incontroverso, não se reconduzindo à mera discordância quanto ao decidido e a suposto “pecado” da ignorância ou superficialidade ou diletantismo do(s) julgador(es). Em detalhe, a al. b) do art. 616º, 2, uma vez invocada após ter sido proferido acórdão em revista no STJ, corresponde a uma impugnação sucedânea e de ultima ratio à que se prevê como admitida no art. 674º, 3, 2ª parte, tendo em vista ainda salvaguardar um resultado adequado na subsunção dos factos ao regime jurídico aplicável (nos termos do art. 682º, 1, do CPC). Uma salvaguarda de último recurso, mas sem se confundir com mais um recurso admissível na hierarquia de impugnações contempladas pelo sistema. Pois bem. 1.2. Tal como a Autora e Recorrente coloca as questões, invocando a al. b) do art. 616º, 2, do CPC, em nenhum momento se invoca a reforma do acórdão com (i) indicação de meios de prova com força probatória plena e a (ii) desconsideração de tais meios de prova na subsunção do direito aos factos que tais meios de prova impussem demonstrar como materialidade assente. Não basta, de todo em todo, que a parte se insurja pura e simplesmente quanto à fundamentação de facto e de direito da decisão reclamada. Não chega que a parte insurgente volte a defender os pontos de vista que usou nas alegações e conclusões da revista e não mereceram provimento na decisão da revista. Se assim fosse, aberta estaria a porta para se reponderar ou reexaminar novamente o que já foi decidido em escrutínio do acórdão de 2.ª instância ainda para mais em 3.º grau de jurisdição, sendo tal resultado absolutamente contrário ao princípio geral da imutabilidade da decisão tomada. A “reforma” do art. 616º, 2, do CPC não pode ser usada como se fosse mais um grau de recurso, ao dispor da parte inconformada para expressar a sua discordância relativamente à solução jurídica que não lhe foi favorável. Não pode ser usada para manifestar discordância do julgado ou para tentar demonstrar um qualquer error in judicando (fundamento de recurso), apenas tendo cabimento perante erro grosseiro e taxativamente previsto no art. 616º, 2, do CPC.3 A Autora e Recorrente limita-se a reiterar a sua argumentação anterior, agora alegando uma suposta omissão de descrição de factos relevantes para as suas teses de responsabilização dos Réus, num puro e simples exercício de inconformismo sem base adjectiva. Assim, usou claramente de forma ilegítima, inadequada e despropositada o incidente da reforma da decisão, o que implica sem mais a improcedência da pretensão reformatória da Ré, com a inevitável e adequada condenação nas custas do incidente. 1.3. Quanto ao conteúdo desta sua litigância após a prolação do acórdão, veio um dos Réus pedir a sua condenação em multa, por uso de “mero expediente dilatório, tendo em vista que o Acórdão aqui em causa não transite em julgado”, e/ou em taxa sancionatória especial. Estamos, por isso, no domínio de aplicação do art. 542º, 1 e 2, do CPC (a litigância de má fé da Autora com a dedução desta Reforma) ou do art. 531º do CPC. Apreciemos, restritos ao incidente desencadeado nesta instância em sede de Reclamação, em primeiro lugar, a possível litigância de má fé da Reclamante. O art. 542º do CPC determina: «1 – Tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir. 2 – Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.» A litigância de má fé censurável – com dolo ou negligência grave – não se confunde com a discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, a diversidade de versões sobre certos factos ou a defesa convicta de uma posição jurídica, ainda que diversa daquela que a decisão judicial acolhe e ampara, sem lograr que ela se imponha nas diversas instâncias judicativas4. Não se encaixa em qualquer destas situações a pretensão reformatória da Reclamante. Na verdade, afigura-se-nos com muita transparência que a Reclamante deduz a presente Reclamação infringindo o dever de não formular pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não podia nem devia ignorar, uma vez que toda a sua fundamentação não encontra qualquer arrimo na indicação do argumento legal para acudir à al. b) do art. 616º, 2, do CPC. Mais. Resulta por essa via com meridiana clareza que a Reclamante acaba por apenas utilizar um meio processual de desvio ao esgotamento do poder jurisdicional para o fim ilegítimo de protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado e a exequibilidade da decisão. Pois não se vê que outro objectivo tenha a Reclamante quando litiga instrumentalmente apenas para reiterar o antes alegado em revista e se prenda em desconsiderações de factos para gizar uma nova linha argumentativa para exibir o seu inconformismo, sem nenhuma adesão ao mecanismo excepcional da “reforma” do art. 616º, 2, ainda para mais quando o trilho seria o da desconsideração de prova com força plena, que de todo indica e problematiza. Alías, na resposta em contraditório ao pedido de condenação que agora se discute, é a própria Reclamante que reconhece que o seu arrazoado corresponderia a uma “ausência de especificação” que inquinaria de nulidade o acórdão (cfr. ponto 6.). Ora, neste trecho fica claro que a parte não desconhecia, a ser coerente e sabedora dos meios legítimos ao seu dispor para impugnar o acórdão proferido, que a nulidade do art. 615º, 1, do CPC seria o caminho para manifestar a sua reacção. Isto é, bem sabia a Reclamante qual o expediente processualmente legítimo para reflectir a sua reacção e não o fez tempestiva e legitimamente no tempo próprio da instância recursiva. Não o tendo feito, quando reconhece saber qual seria o fundamento legítimo, estamos, pois, perante a concretização processual de um objectivo ilegal, quando se quer – como se quis – atingir uma finalidade não tutelada por lei, em vez da correspondente à função que lhe é própria, utilizando meio processual para fim ilícito, designadamente invocando fundamentos inexistentes.5 Estamos ainda perante conduta que visa entorpecer a acção da justiça com meio dilatório e sem base sustentável para adiar o trânsito em julgado.6 Assim visto. Consideramos que a Reclamante litigou nesta sede e momento junto do STJ com a culpa qualificada que a lei exige, com violação grave dos deveres de cooperação, boa fé processual e correcção recíproca (arts. 7º, 1, 8º e 9º, 1, CPC) na sua relação com as partes e com o Tribunal: seja porque é de exigir sem qualquer dúvida conhecimento ou cognoscibilidade da falta do fundamento para a “reforma” pedida, tendo em conta a diligência exigível para a “pessoa média”, colocada nesta situação em concreto, quanto à pretensão deduzida em face da disciplina jurídica em causa (de acordo com a al. a) do art. 542º, 2, do CPC); seja porque é de entender que a presente Reclamação esteve apenas ao serviço da obtenção dos fins considerados ilegítimos na al. d) do art. 542º, 2, do CPC. É certo que a Recorrente e Reclamante não se conforma com as consequências jurídicas do acórdão recorrido e entendeu que ainda tinha ao seu dispor esta Reclamação como meio de acesso à jurisdição do STJ. Porém, aproveitar deste meio de impugnação, nos termos em que o fez, e até reconhecendo mais tarde nos autos que outro meio seria o adequado e legítmo (a arguição de nulidade), permite concluir por si só que foram violados os deveres processuais compatíveis com uma actuação eivada da promoção de expedientes censuráveis e dilatórios e, portanto, susceptível de desencadear a forte sanção punitiva que o CPC reserva para comportamentos abusivos em sede adjectivo-processual. Razão pela qual logra proceder o pedido do 3.º Réu e Recorrido, condenando-se a Reclamante em litigância de má fé7, ficando prejudicado o conhecimento do pedido relativo à aplicação do art. 531º do CPC. ∗ Resta determinar o montante da multa a aplicar à Reclamante, nos termos do disposto no n.º 1 do art. 542º do CPC e dos n.os 3 e 4 do art. 27º do RCP. Estabelece-se nesta última normatividade que, nos casos de condenação por litigância de má-fé, a multa é fixada entre 2 e 100 UCs, devendo ser fixada pelo juiz tendo em consideração os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correcta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste. A conduta processual revelada nos autos originou a tramitação patente nos autos, a saber, contraditório e decisão do colectivo em conferência. A gravidade da conduta e o elevado grau de ilicitude patenteia-se no conhecimento ou cognoscibilidade da falta de fundamento da impugnação e na utilização de um meio processual para um protelamento injustificado do trânsito em julgado. A dimensão económico-patrimonial da Reclamante e a susceptibilidade de uso de meios de recurso aos tribunais não são de todo compatíveis com desconhecimentos processuais que revelam ilegitimidades e ilicitudes processuais sem finalidades cobertas pelo sistema. A própria responsabilidade social da Reclamante, fazendo parte de um grupo financeiro a que tal responsabilidade não pode ser indiferente, colide com a utilização de meios processuais que, sem fundamento, apenas se vislumbram num quadro de adiamento da definitividade da decisão que lhe foi desfavorável. A situação económica da Reclamante e a repercussão patrimonial – que não foram arguidas como impedimento no contraditório exercido – não se demonstraram como contrárias a uma elevação da medida concreta da multa a fixar. A Reclamante agiu, pelo menos, com negligência grave, preenchendo manifestamente duas das tipificações do art. 542º, 2, do CPC, revelando uma especial indiferença para com o resultado da sua conduta processual, em especial no âmbito de um processo que se revelou extraordinariamente moroso até ter uma decisão no STJ, ainda mais contribuindo para o entorpecimento da acção da justiça. Tudo visto e ponderado, entende-se adequado e razoável a aplicação de uma multa no valor correspondente a 30 (trinta) UCs, com custas do incidente gerado a cargo da Reclamante. 2. Da dispensa do pagamento da taxa de justiça remanescente 2.1. A Autora, notificada do acórdão prolatado em 17/10/2023, veio abrigar-se no art. 6º, n.º 7, do RCP: «Nas causas de valor superior a (euro) 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento.» Requer a dispensa ou a redução substancial do pagamento das custas na parte que, na conta final de custas, exceder o valor de taxa de justiça superior a € 275.000» Alega, no essencial, o valor desproporcionado da taxa de justiça remanescente, se se confirmar que o valor processual da causa é de € 7.128.774,87, isto é, € 83.844 – o que daria um montante global de taxa de justiça correspondente a € 230.042,62 –, tendo em conta a normalidade da tramitação e a longevidade deste processo antes de chegar ao STJ em sede de revista (sem que para isso contribuíssem expedientes dilatórios ou requerimentos excessivos ou impertinentes das partes para uma inobervância de um prazo razoável nas duas instâncias antes da revista). Quid juris? 2.2. O n.º 7 do art. 6º do CPC permite, nas causas de valor superior a € 275.000, que se pondere, para dispensa (isenção ou redução) do pagamento do remanescente da taxa de justiça (o acréscimo de taxa de justiça que resulta do facto de o valor da causa ser fixado acima daquele montante, em função do qual se calcula a taxa de justiça inicialmente devida, considerado na conta final). Esta dispensa tem natureza excepcional, que vai para além da magnitude do valor da causa, e a sua função correctiva pressupõe, em especial, uma menor complexidade técnico-jurídica da causa, aferida pela simplificação da tramitação processual e da especificidade da situação substantiva e adjectiva em face da utilidade económica dos pedidos, assim como um comportamento das partes sem censura. Para aferir da complexidade da causa, deve ser convocado o art. 530º, 7, do CPC. Para ter em conta a conduta processual das partes, devem ser aplicados ao caso os arts. 7º, 1, e 8º do CPC.8 2.3. O STJ (em rigor, o colectivo de juízes deste tribunal superior), aquando do recurso de revista e suas vicissitudes, tem competência para apreciar a questão da dispensa ou não de pagamento do remanescente da taxa de justiça, em aplicação dos arts. 607º, 6, 663º, 2, e 679º, do CPC. Mas esta competência, em alternativa à da competência global e final da 1.ª instância, para ser assumida como tal ainda em sede de custas processuais (em sentido amplo: art. 529º, 1, CPC), é exclusiva e restrita relativamente à actividade e tramitação processual correspondente ao recurso tramitado nesta instância, não a podendo conhecer nem decidir no que concerne aos recursos de apelação e às decisões de 1.ª instância (salvo em via de recurso). Esta é a solução que – sabendo-se que não é consensual – se compatibiliza com “a autonomia das ações e dos recursos para efeitos de taxa de justiça, e com a conexão entre o decidido nessas espécies processuais e a questão da dispensa ou não do remanescente daquela taxa”, o que decorre sem mais do art. 1º, 2, do RCP («Para efeitos do presente Regulamento, considera-se como processo autónomo cada acção, execução, incidente, procedimento cautelar ou recurso, corram ou não por apenso, desde que o mesmo possa dar origem a uma tributação própria.»), em conjugação com os arts. 6º, 1 e 2, e 12º, 2, do RCP e, em geral, do art. 527º, 1, do CPC9. Em face desta autonomia, pode ser aplicado o art. 6º, 7, do RCP ao recurso de revista interposto em 2013, tendo em conta o estatuído pelo art. 27º, 1, do DL 34/2008, de 26 de Fevereiro, que aprovou o RCP vigente («processos iniciados a partir da entrada em vigor do presente decreto-lei, respectivos incidentes, recursos e apensos»), uma vez que a revista foi interposta em 7/12/2016 e autuada no STJ em 14/3/2017. 2.4. Por fim, o pedido de dispensa foi feito nos autos antes do trânsito em julgado do acórdão proferido para julgamento e decisão final do processo (neste caso, da revista) – o que respeita os termos uniformizadores de interpretação do art. 6º, 7, do RCP determinada pelo AUJ n.º 1/2022 (processo n.º 1118/16.3T8VRL-B.G1.S1-A)10. Posto isto, analisemos e ponderemos o que caracterizou esta instância. 2.5. A apreciação da revista revestiu complexidade diferenciada e acima do padrão médio de exigência, tendo em conta o valor económico dos interesses envolvidos, a especificidade técnica do regime jurídico aplicável, a necessidade de selecção da (vasta e prolixa) factualidade relevante e a extensão das decisões das instâncias que foi necessário ponderar para tomar posição sobre a questão decidenda em 3.º grau de jurisdição. Por outro lado, não é dispicienda a consideração da (atípica problemática que deu origem à) actividade processual e decisória motivada previamente pela necessidade de decidir sobre a admissibilidade da revista e conhecimento do respectivo mérito, questão unanimemente suscitada pelos Réus e Recorridos (cfr. ponto 7. do Relatório do aqui acórdão reclamado) e contrariada pela Autora e Recorrente (cfr. ponto 11. do mesmo Relatório). A conduta das partes, e da Recorrente em particular, não mereceu censura até esta fase, em face da cooperação, lealdade e da boa fé processual demonstrada nesta instância (como se acentuou no acórdão proferido em 17/10), ainda que se possa sustentar que, em face das decisões das instâncias e da fundamentação da revista, a instância do STJ foi activada pela Recorrente e aqui Requerente apenas para satisfazer um mero interesse de inconformismo perante as consequências jurídicas do acórdão recorrido e de consequente acesso à jurisdição do STJ para manifestar, de acordo com a sua visão dos factos e da disciplina legal que considera aplicável, tal discórdia; a Recorrente ficou vencida e responsável pelas custas da revista. De todo o modo, ainda nesta instância, não podemos olvidar e – ao invés, em sentido desfavorável ao intento pretendido no que toca à sua conduta processual – deixar de ter em conta o conteúdo da reclamação para a conferência deduzida pela Autora e Recorrente, aqui Requerente da dispensa, antes apreciada, que se integra numa litigância de “índole dilatória” claramente censurável e responsabilizante11. Por fim, não se pode ignorar que a Recorrente e aqui Requerente pertence a um grupo financeiro com amplos recursos, dominado pelo Estado, pelo que a taxa de justiça não tem o mesmo impacto que teria junto de outra parte com menos capacidade económica. Tudo visto e ponderado, sopesando todos aqueles factores que não justificam o valor elevado indicado pela Requerente, mas que também não vão ao ponto de valer uma redução assaz signicativa da taxa de justiça remanescente, muito menos a dispensa total como vem requerido a título principal, acompanhamos no essencial a pronúncia do Ministério Público, decidindo-se, no entanto, por entendermos como proporcional e equitativo12, a redução do pagamento do remanescente da taxa de justiça na proporção de 25% do que for devido em relação ao valor da causa. III) DECISÃO Pelo exposto, julga-se: i. indeferir o pedido de reforma, ficando as custas da Reclamação a cargo da Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em valor correspondente a 3 (três) UCs; ii. condenar a Reclamante em multa fixada no montante equivalente a 30 (trinta) UCs por litigância de má fé na dedução da presente Reclamação, ficando as custas do incidente a cargo da Reclamante, que se fixa em taxa de justiça correspondente a 5 (cinco) UCs; iii. julgar parcialmente procedente (em relação à isenção) o pedido do pagamento do remanescente da taxa de justiça, procedendo à sua redução em 25% do que for devido correspondente ao valor da causa, para além do valor de € 275.000, no que respeita à instância de recurso tramitada no STJ em face do recurso de revista interposto; incidente sem custas. STJ/Lisboa, 19 de Dezembro de 2023 Ricardo Costa (Relator) António Barateiro Martins (Com declaração de voto relativamente ao ponto (iii) do dispositivo) Luís Espírito Santo ____________ Votei parcialmente vencido quanto à aplicação da redução do remanescente da Taxa de Justiça circunscrita ao Supremo. Este Supremo, no AUJ n.º 1/2022, fixou a seguinte uniformização: “a preclusão do direito de requerer a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça tem lugar com o trânsito em julgado da decisão final do processo”; o que significa, a meu ver, que a tempestividade do exercício de tal direito é extensível e diz respeito a toda a tramitação processual (pode até dar-se o caso da parte que é condenada na totalidade das custas no Supremo ter sido vencedora nas Instâncias, não fazendo assim sentido e não lhe sendo exigível que aí, nas Instâncias, tivesse requerido tal dispensa). Tomei esta posição no Acórdão que relatei no Processo nº 49/11.8TVLSB.L1.S2 e mantenho-a, pelo que determinaria a aplicação da redução do remanescente da Taxa de Justiça às Instâncias e a este Supremo. L., 19/12/2023. António Barateiro Martins
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SUMÁRIO DO RELATOR (art. 663º, 7, 679º, CPC).
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1. V., por ex., os Acs. do STJ de 12/2/2009, processo n.º 08A2680, Rel. SEBASTIÃO PÓVOAS, in www.dgsi.pt, 4/5/2010, processo n.º 364/04.4TBPCV.C1.S1, Rel. GARCIA CALEJO, in www.dgsi.pt, 10/5/2016, processo n.º 1219/11.4TVLSB.L1.S1, Rel. GARCIA CALEJO, 19/5/2016, processo n.º 5429/11.6YYPRT-B.P2.S1, Rel. FERNANDA ISABEL PEREIRA, estes últimos in Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça – Secções Cíveis (https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/Civel2016.pdf), págs. 276-277 e 304, 28/1/2021, processo n.º 12380/17.4T8LSB.L1.S1, Rel. ROSA TCHING, e 9/6/2021, processo n.º 1035/10.0TYLSB-B.L1.S1, Rel. RICARDO COSTA, sempre in www.dgsi.pt.↩︎ 2. V. JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil anotado, Volume 2.º, Artigos 362.º a 626.º, 4ª ed., Almedina, Coimbra, 2019 (reimp. 2021), sub art. 616º, pág. 742 (“erro revelado por recurso a elementos que lhe [à decisão] são exteriores”, distinto do erro revelado pelo próprio contexto da sentença/decisão ou de peças do processo para que ela remete, previsto no art. 614º, 1, do CPC); com interesse neste detalhe, v. Acs. do STJ de 2/6/2020, processo n.º 2444/07.8TVLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt, e de 13/4/2021, processo n.º 5831/18.2T8VIS-A.C1.S1, in Sumários de Acórdãos das Secções Cíveis do STJ – Boletim anual de 2021 (https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2022/02/sumarios_civel_2020.pdf), pág. 307, sempre como Rel. MARIA OLINDA GARCIA, sendo nos Colectivos correspondentes Juízes Adjuntos os aqui Relator e 1.º Adjunto.↩︎ 3. V., consensualmente, Acs. do STJ de 26/1/2021, processo n.º 8963/16.8T8ALM-B.L1.S1, Rel. MARIA CLARA SOTTOMAYOR, 18/3/2021, processo n.º 1012/15.5T8VRL-AU.G1A.S1, Rel. ILÍDIO SACARRÃO MARTINS, 14/9/2021, processo n.º 3252/17.3T8OER-E.L1.S1, Rel. FERREIRA LOPES, 21/6/2022, processo n.º 1315/21.0T8VCT-A.G1.S1, Rel. RICARDO COSTA, in www.stj.pt, e 11/10/2022, processo n.º 638/19.2T8FND.C1.S1, Rel. JOSÉ RAINHO, sempre (com excepção do referido) in www.dgsi.pt.↩︎ 4. ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil anotado, Vol. I, Parte geral e processo de declaração. Artigos 1.º a 702.º, sub art. 542º, Almedina, Coimbra, 2018, pág. 593.↩︎ 5. JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil anotado, Volume 2.º cit., sub art. 542º, pág. 457.↩︎ 6. JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil anotado, Volume 2.º cit., sub art. 542º, ainda pág. 457.↩︎ 7. Ao invés do que se decidira em sede de revista, recorde-se, a absolvição da condenação em litigância de má fé da Recorrente de revista – cfr. ponto 3.8. do cap. II do acórdão aqui reclamado.↩︎ 8. V. SALVADOR DA COSTA, As custas processuais, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, págs. 140-141.↩︎ 9. Seguimos a posição de SALVADOR DA COSTA, “A apreciação pelo STJ da dispensa (ou redução) do remanescente da taxa de justiça (Acórdão do STJ de 30 de maio de 2023)”, 7/2023, págs. 4-5 e 9, ID., “Apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça da dispensa ou redução do remanescente da taxa de justiça – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de setembro de 2023”, 10/2023, págs. 4-5, 7-8, 9, sempre in Blog do IPPC, ; sublinhado nosso. Na jurisprudência do STJ, v. os Acs. de 31/1/2019, processo n.º 478/08, Rel. TOMÉ GOMES (aparentemente), 30/6/2020, processo n.º 2142/15, Rel. ANTÓNIO MAGALHÃES, 14/1/2021, processo n.º 6024/17, Rel. ROSA TCHING, e 18/1/2022, processo n.º 155/07, Rel. JORGE DIAS, sempre in www.dgsi.pt. V. ainda a fundamentação, em sentido compatível, do AUJ n.º 1/2022, a seguir aludido, em referência às págs. 42 e ss do DR onde se publicou.↩︎ 10. Publicado no DR, 1.ª Série, de 3/1/2022, págs. 31 e ss.↩︎ 11. SALVADOR DA COSTA, As custas processuais cit., pág. 141.↩︎ 12. V. por todos o Ac. do STJ de 12/12/2013, processo n.º 1319/12, Rel. LOPES DO REGO, in www.dgsi.pt (“A norma constante do nº 7 do art. 6º do RCP deve ser interpretada em termos de ao juiz ser lícito dispensar o pagamento, quer da totalidade, quer de uma fracção ou percentagem do remanescente da taxa de justiça devida a final, pelo facto de o valor da causa exceder o patamar de € 275.000, consoante o resultado da ponderação das especificidades da situação concreta (utilidade económica da causa, complexidade do processado e comportamento das partes), iluminada pelos princípios da proporcionalidade e da igualdade.”: ponto 2. do Sumário).↩︎ |