Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
15919/16.9TSLSB-B.L2.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ISABEL SALGADO
Descritores: CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
AÇÃO EXECUTIVA
EMBARGOS DE EXECUTADO
LIVRANÇA
OBRIGAÇÃO CARTULAR
RELAÇÃO JURÍDICA SUBJACENTE
AVALISTA
RELAÇÕES IMEDIATAS
RELAÇÕES MEDIATAS
DEFESA POR EXCEÇÃO
NULIDADE
CLÁUSULA PENAL
RESOLUÇÃO DE NEGÓCIO
INCUMPRIMENTO
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
DANO
Data do Acordão: 07/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. O tratamento da oposição pelo avalista das excepções do contrato fundamento do título de crédito, conheceu tal amadurecimento na jurisprudência, que na actualidade, cremos dominante, a solução da admissão, nos casos em que esteja demonstrada a intervenção do avalista na relação imediata com o portador, ultrapassando-se a literalidade da regra adversativa do artigo 32º da LULL.

II. Quanto ao avalista da subscritora do título, por via de regra, posiciona-se fora das relações imediatas que se estabelecem entre o emitente da livrança e a subscritora, encontrando-se apenas numa relação de imediação com a subscritora avalizada.

III. Estará no domínio das relações imediatas, se, tendo assinado o título em branco, for envolvido pelo emitente no pacto de preenchimento, podendo o embargante avalista opor ao exequente portador o preenchimento injustificado da livrança, como seja a inscrição em valor superior ao devido, por nulidade da cláusula penal estabelecida no contrato de locação financeira subjacente.

IV. Na locação financeira imobiliária, por definição, objecto de investimento rentável dada a valorização do preço de mercado dos imóveis, ficam diluídos os danos advindos para o locador da resolução por incumprimento do locatário.

Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. Da acção

No âmbito da execução para pagamento de quantia de 113.259,83 €, fundada em livrança, que o Novo Banco, S.A intentou, contra AA, BB e CC, na qualidade de avalistas, o primeiro deduziu oposição mediante embargos, reclamando a extinção da execução.

Invocou em fundamento sintetizado: nulidade do aval por indeterminabilidade do objeto; preenchimento abusivo da livrança; nulidade da cláusula contratual geral inserta na alínea b) do n.º 3 do art. 13.º do contrato de locação financeira; não estar a totalidade da quantia exequenda abrangida pelo aval.

Por fim, alega que no preenchimento da livrança o exequente incluiu juros, que não estavam previstos, nem podiam ter sido calculados juros de mora sobre rendas vincendas.

Na contestação a Exequente , pugnando pela total improcedência da Oposição à execução, sustentando que face à mora da locatária no pagamento das rendas, interpelou a locatária e os avalistas para o pagamento das quantias em atraso; como se manteve a situação de incumprimento, comunicou a resolução do contrato de locação de financeira à locatária através de carta registada com a/r remetida em 19-02-2015; posteriormente, preencheu a livrança ao abrigo do clausulado contratual, tendo enviado cartas aos avalistas, comunicando a referida resolução contratual e do preenchimento da livrança.

O tribunal anunciou o propósito de conhecer do mérito da causa, juntas as alegações da exequente e o requerimento de discordância do embargante, seguidamente prolatou sentença, julgando improcedente a Oposição.

Inconformado com esta decisão, o Executado-Embargante interpôs recurso de apelação, que procedeu, e revogada a decisão recorrida, na parte em que dispensou a audiência prévia, determinando-se que o processo prosseguisse os seus termos normais.

Convocada audiência prévia, na qual, além do mais, os mandatários das partes usaram da palavra para alegações, de facto e de direito, por se afigurar que o processo continha todos os elementos necessários para conhecer do mérito da causa, o tribunal proferiu sentença, julgando improcedente a oposição do embargante.

2. Da apelação

Inconformado, o embargante interpôs recurso de apelação, que obteve provimento em parte, conforme o dispositivo - « Pelo exposto, decide-se conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, julgando-se, em substituição da mesma, parcialmente procedentes os embargos deduzidos pelo ora Apelante, declarando-se nula a cláusula penal estabelecida na cláusula 13.º, n.º 3, al. b), das condições gerais do contrato de locação financeira (formalizado no doc. 2 junto com o requerimento executivo) e absolvendo-se, assim, o Embargante do pedido de pagamento da quantia de 101.505,60 € (atinente à indemnização com juros de mora), prosseguindo os autos para pagamento do restante valor peticionado de 9.045,28 € - correspondente às rendas vencidas e não pagas (8.272,49 €), respetivos juros de mora sobre tais rendas (222,79 €) e valor da selagem da livrança (550,00 €) -, e respetivos juros de mora vencidos e vincendos, calculados desde a data do vencimento da livrança.

Mais se decide condenar o Embargante-Apelante e a Embargada-Apelada no pagamento das custas dos embargos e do presente recurso, na proporção do respetivo decaimento.»

3. Da Revista

Inconformado, agora, o embargado interpôs recurso de revista, terminando as suas alegações com as conclusões que se transcrevem:

1 – O Recorrente não se conforma com o douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que julgou parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pelo Recorrido e, em consequência, declarou a nulidade da cláusula penal estabelecida na cláusula 13ª, n.º 3, alínea b) das condições gerais do contrato de locação financeira imobiliária, celebrado entre a, então, BES leasing e Factoring – Instituição Financeira de Crédito, S.A. e, a sociedade J..., Lda

2 – Idêntico entendimento foi o perfilhado, quer pelo Tribunal de 1ª instância, quer pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no apenso de embargos de executado movidos pelo avalista BB, no qual se discutiram, exatamente, as mesmas questões suscitadas pelo Recorrido.

3 – O Tribunal da Relação de Lisboa entendeu que era lícito ao Recorrido AA invocar o preenchimento abusivo da livrança, em concreto a nulidade da cláusula 13ª, n.º 3, alínea b) das condições gerais do contrato de locação financeira imobiliária, nos termos da qual, “Em caso de resolução do contrato, a LOCADORA tem direito à restituição imediata do imóvel por parte da LOCATÁRIA, livre de ónus ou encargos e conservar as rendas vencidas e pagas e, ainda: b) A receber uma indemnização a título de perdas e danos, de montante igual a trinta por cento da soma das rendas vincendas e do valor residual, sem prejuízo da integral reparação de todos os prejuízos causados”.

4 –No entanto, sendo a obrigação do avalista uma obrigação autónoma e independente da obrigação do avalizado, não era lícito ao Recorrido invocar a excepção de preenchimento abusivo da livrança.

5 – Este argumento tem suporte legal no artigo 32º, aplicável ex vi artigo 77º do mesmo diploma legal, nos termos do qual “O dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada”. De acordo com o parágrafo segundo do mesmo preceito legal, “A sua obrigação mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nulo por qualquer razão que não seja um vício de forma”.

6 –Assim, decidiu bem a 1ª Instância, tendo-se socorrido de abundante jurisprudência que se pronunciou largamente sobre o tema.

7 – É certo que o Tribunal da Relação de Lisboa também se socorre de jurisprudência que contraria o entendimento do Recorrente.

8 – No entanto, o Recorrente entende que a sua posição, sustentada, reitera-se, em abundante jurisprudência dos Tribunais Superiores, é a que melhor se coaduna ao regime do aval.

9 – Pelo exposto, deve proferir-se douto acórdão que revogue o decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, mantendo-se a posição manifestada pela 1ª Instância, nos termos da qual não era lícito ao Recorrido invocar a excepção de preenchimento abusivo da livrança.

10 – Caso assim não se entenda, o que se admite por dever de patrocínio, o Recorrente entende que a cláusula 13ª, n.º 3, alínea b) das condições gerais do contrato de locação financeira imobiliária não é desproporcional.

11 – Com efeito, a aferição da eventual desproporção das cláusulas contratuais gerais insertas em contratos de locação financeira só poderão ser realizadas mediante a análise singular do contrato em concreto.

12 – Tendo por base os factos assentes pelas instâncias, é manifesto a mencionada cláusula não é desproporcional.

13 – Mediante aquela cláusula, a responsabilidade do avalista ficou limitada (artigo 810º, do Código Civil), ao contrário do que sucederia, caso não tivesse expressamente prevista a indemnização.

14 – Concluindo-se, assim, pela validade da cláusula, deve revogar-se o doutamente decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa e, em consequência, determinar a improcedência total dos embargos de executado.

15 – Por todo o exposto, o Recorrente entende que houve violação de lei substantiva por erro de interpretação e aplicação do disposto no artigo 19º, alínea c) do Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais, o que fundamenta a presente revista.

Nestes termos e nos melhores de direito, o presente Recurso de Revista deve ser julgado totalmente procedente, revogando-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa e mantendo-se na íntegra a sentença proferida pela 1ª instância.»


*


Na resposta, o embargante, acolhendo-se na fundamentação do acórdão da Relação, pugnou pela improcedência da revista.

II. Admissibilidade e Objecto do recurso

Estão reconhecidos os pressupostos gerais de recorribilidade e atestados os fundamentos da admissibilidade da revista, conforme ao que dispõem os artigos 629º, nº1, 671º, nº1, e 673, nº1, al) a do CPC.

Percorrendo as conclusões do recorrente, em interface com o acórdão impugnado, haverá a decidir:

- Se é legítimo ao embargante, avalista na livrança exequenda, invocar a nulidade proveniente do contrato subjacente de locação financeira imobiliária;

-Se a indemnização prevista na cláusula penal pelo incumprimento do locatário não se revela desproporcionada.

III. Fundamentação

A. Os Factos

Vem assente das instâncias que:

1. O Embargado deu à execução uma livrança, emitida no valor de 110.550,88 €, onde consta, como data de emissão, 2007-01-10 e, como data de vencimento, 2015-11-13, na qual surge como subscritora a sociedade J..., Lda., e, como avalista, o ora embargante – cf. original da livrança junta a fls. 37 dos autos de execução, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

2. A livrança [que havia sido entregue à Exequente em branco, isto é, por preencher nos espaços da “Importância” em euros e data de “Vencimento”] destinou-se a garantir o cumprimento das obrigações emergentes do contrato de locação financeira imobiliária n.º .....70, no valor de 345.600 E, formalizado no dia 17-01-2007, através do qual a BES leasing e Factoring – Instituição Financeira de Crédito, S.A. declarou dar de locação a J..., Lda, que por sua vez declarou aceitar, o imóvel melhor identificado no ponto I das Condições Particulares [isto é, a fração autónoma designada pela letra “K”, a que corresponde um pavilhão no rés do-chão, no Edifício Nascente, também designado por n.º 21, destinado a atividades industriais (produtos transformados não poluentes), armazenagem, restauração, ramo alimentar, prestação de serviços ou outras atividades que não necessitem de alvará sanitário ou de indústria, composta por zona ampla, duas instalações sanitárias e um compartimento, no exterior cinco lugares de estacionamento, pertencente ao prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito em Casal de ... ..., freguesia do ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ...... sob a ficha n.º .78 e inscrito na matriz predial urbana n.º ..66 daquela freguesia.

3.Nos termos acordados [o “valor de aquisição” / “valor do financiamento” foi de 345.600 € (cláusula II) e] o prazo do contrato seria por quinze anos, as rendas seriam pagas com periodicidade mensal e seriam no montante de 180, sendo a primeira no valor de 34.560,00 €, e as restantes 179 rendas no valor de 2.189,56 €, cada uma [e o valor residual de 34.560 €] (cláusulas III e IV das Condições Particulares [constando mais precisamente da cláusula III “Prazo do contrato: quinze anos” e da cláusula IV o seguinte “Renda Periodicidade: Mensal Modalidade de cálculo: Constante Modalidade de pagamento: Antecipada Número de rendas: cento e oitenta Valor das rendas: Primeira renda no valor de trinta e quatro mil quinhentos e sessenta euros, e as restantes cento e setenta e nove rendas no valor de dois mil cento e oitenta e nove euros e cinquenta e seis cêntimos, cada uma; Indexação da renda: As rendas serão indexadas à Euribor Mensal sendo a taxa implícita arredondada 1/8 superior Vencimento das rendas no dia dois se a escritura for assinada entre o dia um e o dia quinze do mês e no dia vinte se a escritura for assinada depois do dia quinze Pagamento das rendas: Salvo se a Locadora opte por outro meio, os pagamentos serão efectuados por débito da conta da Locatária n.º (…) a crédito da conta da Locadora n.º (…)Valor residual: trinta e quatro mil quinhentos e sessenta euros”]

4. Nos termos da cláusula X das Condições Particulares, foi acordado que o ponto IV das presentes condições particulares poderiam ser alteradas por acordo e simples troca de correspondência das partes.

5. Nos termos da cláusula décima terceira das Condições Gerais, as partes acordaram o seguinte quanto a uma eventual resolução do contrato:“1-Para além de outros casos previstos na lei e no presente contrato, este poderá ser resolvido por iniciativa da locadora, havendo incumprimento definitivo pela locatária, de qualquer das cláusulas.2 - Considera-se que existe incumprimento definitivo quando a locatária se apresente em mora no pagamento de uma prestação de renda por um prazo superior a sessenta dias.3 - Em caso de resolução do contrato, a locadora tem direito à restituição imediata do imóvel por parte da locatária, livre de ónus ou encargos e a conservar as rendas vencidas e pagas e, ainda: a) A receber as rendas vencidas e não pagas, acrescidas dos juros de mora devidos, bem como de todos os encargos suportados pela locadora, por força da resolução do contrato; b) A receber uma indemnização a título de perdas e danos, de montante igual a trinta por cento da soma das rendas vincendas e do valor residual, sem prejuízo da integral reparação de todos os prejuízos causados”.

6. No dia 10-01-2007,o embargante assinou um documento a que chamaram “Autorização”, cujo conteúdo é o seguinte: “Para garantia e segurança do bom e pontual cumprimento das obrigações decorrentes da operação do contrato de locação financeira imobiliária (processo n.º .....70 ) referente a bem imóvel à data do seu vencimento, ou das suas eventuais prorrogações, compreendendo o montante das rendas vencidas, das rendas vincendas, juros moratórios, indemnizações e quaisquer outras despesas que a BEASEALING E FACTORING tenha sido obrigada a realizar para cobrança do seu crédito, junto remetemos livrança subscrita por J..., Lda. e avalizada por AA, BB e CC. Livrança essa (...) com o montante e data de vencimento em branco, para que a BESLEASING E FACTORING os fixes, completando o preenchimento do título, quando considerar oportuno proceder ao seu desconto o que, desde já, e por esta, se autoriza. O subscritor e os avalistas acima identificados dão o seu assentimento aos termos e condições de remessa desta livrança e declaram conhecer os termos do contrato de locação financeira cujo cumprimento aqui e por este modo garantem (...)”.

7. No dia 16-12-2010, a Exequente locadora e a sociedade locatária, nesse ato representada por BB, na qualidade de gerente com poderes para o acto, prevalecendo-se da cláusula X das Condições Particulares do contrato em questão, fizeram um acordo escrito que faz fls. 16 e ss. dos autos de execução, a que chamaram “Aditamento ao contrato de locação financeira nº .....70, através do qual decidiram aumentar o prazo de locação financeira de 15 anos para 17 anos e consequentemente o número de rendas passaram de cento e oitenta rendas, para duzentas e quatro rendas mantendo-se a data do início do contrato de locação financeira celebrado em 17 de Janeiro de 2007”.

8. A locatária deixou de pagar as rendas 91.ª a 93.ª, vencidas a 20-07-2014, 20-08-2014 e 20-09-2014, pelo que, no dia 26-09-2014, a Exequente remeteu à locatária a carta registada com a/r que faz fls. 18 verso dos autos de execução, que esta recebeu conforme cópia do a/r de fls. 19 dos autos de execução, cujo teor é o seguinte: “(...) Encontrando-se o contrato em referência em mora por prazo superior a 60 dias, por força do não pagamento das rendas 91ª, 92ª, 93ª vencidas e não pagas de 20/07/2014, 20/08/2014, 20/09/2014, da Cont. Autárquica e respectivas despesas, vencidas e não pagas em 11/09/2014, no valor total de 2.641,61€, acrescido de juros de mora, consideramos o contrato resolvido ao abrigo da cláusula 13ª das Condições Gerais do supracitado contrato (...) “

9. E em 06-02-2015, tendo em conta o facto de ainda se encontrarem por pagar os 94.ª a 97.ª termos de renda, vencidos em 20-10-2014, 20-11-2014, 20-12-2014 e 20-01-2015, a Contribuição Autárquica e respetivas despesas, vencidas em 20-10-2014, 20-11-2014 no valor total de 8.231,93 € ( juros de mora incluídos à data de 03-02-2015 ), devidas por força do referido contrato, foram enviadas cartas informando do atraso no pagamento do contrato de locação financeira, registadas com aviso de receção, em 06-02-2015, para pagamento das quantias em atraso no prazo de 8 (oito) dias úteis, acrescidas dos juros de mora contratuais, para a sociedade locatária e para os três avalistas, dando sem efeito a missiva a que se alude no número anterior [ou seja, a comunicação efetuada em 26-09-2014], nos termos de fls. 19 verso a fls. 25 dos autos de execução, tendo essa carta sido recebida pela locatária conforme o teor de fls. 20.

10. Nessa carta a locatária foi informada que caso não liquidasse os valores em dívida a locadora aplicaria o estipulado na Cláusula 13.ª das Condições Gerais do contrato.

10-A) A Exequente comunicou a resolução do contrato de locação financeira através da carta registada com a/r (junta com a Contestação como doc. 4, cujo teor se dá por reproduzido) remetida à locatária em 19-02-2015].

11. Como as quantias em causa não foram liquidadas, a Exequente ainda remeteu aos avalistas as cartas juntas aos autos de execução, através das quais os informou do preenchimento da livrança e dos valores que nelas colocou [designadamente carta datada de 22-10-2015 em que comunicou ao Executado AA, na qualidade de avalista, que o contrato foi resolvido, tendo sido considerado definitivamente incumprido, de acordo com a cláusula 13.ª das Condições Gerais do contrato de locação financeira, e com as consequências indicadas no n.º 3 dessa cláusula, tendo sido efetuado, ao abrigo do clausulado contratual, o preenchimento da livrança de caução com o montante de 110.550,88 €, encontrando-se esse valor a pagamento até 13-11-2015 (data de vencimento da livrança), referindo-se o valor em dívida às seguintes “parcelas vencidas: - Rendas vencidas e não pagas 8.272,49 EUR - Juros de mora sobre rendas 222,79 EUR- Indemnização com juros de mora 101.505,60 EUR - Selagem da livrança 550,00 EUR”.]

12. As cláusulas insertas no contrato de locação financeira referido em 2., na parte intitulada “B-Condições Gerais” não foram previamente negociadas com a locatária, nem com os Executados.

13.O imóvel mencionado no ponto 2, cuja propriedade pertence ao Exequente, foi avaliado em 2015 pela Autoridade Tributária e Aduaneira, em 286.237,95 €.

B. O Direito

1. Em sinopse, o desenvolvimento do litígio.

O banco recorrente deu à execução a livrança junta, em ordem a obter a satisfação coerciva do crédito , proveniente do incumprimento do contrato de locação financeira imobiliária, que celebrou no ano de 2007 com a sociedade J..., Lda, contemporâneo com a entrega daquele título que tem aposto o aval do embargante( e outros), como garantia do cumprimento das obrigações contratuais da locatária, subscritora do título e entretanto declarada insolvente.

O ora recorrido declinou o pagamento da quantia exequenda, opondo por embargos variegadas excepções quanto à subscrição do título e pacto de preenchimento e também ao contrato subjacente, v.g., a nulidade do convencionado quanto aos efeitos da resolução por incumprimento da locatária.

A primeira instância decidiu pela improcedência da oposição, assentando de ordinário, na abstração e autonomia, que caracterizam as obrigações cambiárias e, na aplicação linear da regra da inoponibilidade ao portador de excepções pelo avalista (artº 32º LULL), distanciada, diga-se, das condições concretas das relações contratuais entre as partes que se apuraram.

A Relação, dando o enfoque devido à circunstância da subscrição pelo avalista-embargante da autorização de preenchimento do título, que remete expressamente para os termos do contrato subjacente, considerou que o embargante participou nas “relações imediatas”, viabilizando a oposição deduzida contra o exequente.

Em apreciação judiciosa das excepções invocadas, concluiu pela declaração da nulidade da cláusula 13ª b) inserta no contrato, relativa à indemnização fixada na situação de resolução pelo locador, e na procedência parcial dos embargos, limitou o prosseguimento da execução ao pagamento do valor de 9.045,28 € e juros de mora.

O banco, inconformado, persiste na tese da responsabilidade “incondicional” do avalista, e inoponibilidade da sua defesa , ou, na hipótese de entendimento diferente, diverge, ainda, do acórdão recorrido quanto à declaração da nulidade, uma vez que a indemnização estabelecida na citada cláusula contratual não é desproporcional, representando até uma limitação da responsabilidade do avalista, em relação ao regime legal da impossibilidade culposa da prestação e previsto no artigo 801º do Código Civil.

2. Em pano de fundo para a apreciação, temos o título executivo em que se funda a acção executiva, a que foi deduzida oposição pelo embargante, constituída por uma livrança aceite pela sociedade identificada, avalizada pelo opoente (e outros) e sacada pelo banco exequente.

Assente ficou que estamos perante uma livrança emitida em branco, subscrita pela dita sociedade comercial, e aval do embargante, entregue ao exequente para garantir o cumprimento das obrigações que assumiu, enquanto locatária no contrato de locação financeira imobiliária que celebrou com o banco e portador, a preencher de acordo com as condições convencionadas no pacto de preenchimento contemporâneo.

Resultou também em definitivo que a locatária incumpriu o contrato subjacente à subscrição da livrança, pela falta de pagamento das rendas; conferida a licitude da resolução do contrato pelo exequente (ante a cláusula resolutiva expressa) e, a sua eficácia quanto ao embargante na sequência da notificação admonitória que lhe foi dirigida.

De igual modo, está assente que o banco procedeu ao preenchimento da livrança no tocante à data de vencimento e condições, respeitando o pacto de preenchimento, e os montantes inscritos correspondem ao total das rendas em dívida, e acréscimos estabelecidos no contrato, no caso de resolução e incumprimento da locatária.

Posto isto, as questões trazidas à revista e retro enunciadas, convocam ao debate os seguintes tópicos recursivos:

- A regra da inoponibilidade pelo avalista das excepções da relação material subjacente à emissão do título de crédito – artigo 32º da LULL comporta desvios?

- Não sendo regra absoluta, é de admitir a defesa da oposição no caso de o avalista integrar a relação fundamental – relação imediata?

- Configurada como tal ao subscrever a prestação do aval por remissão expressa para os termos do contrato celebrado com a subscritora da livrança?

- As especificidades da locação financeira imobiliária, mormente, a tendencial valorização do preço de mercado do imóvel e os danos do locador na falta de pagamento das rendas pelo locatário e resolução do contrato, evidenciam manifesta desproporcionalidade no montante indemnizatório estabelecido na cláusula 13ªn º3, b) em referência que afronta o disposto no artigo 19º RGCC?

O tratamento da oposição pelo avalista das excepções do contrato fundamento do título de crédito, conheceu tal amadurecimento na jurisprudência, que na actualidade, cremos dominante, a solução da admissão, nos casos em que esteja demonstrada a intervenção do avalista na relação imediata com o portador, ultrapassando-se a literalidade da regra adversativa do artigo 32º da LULL.1

Consolidação jurisprudencial que o douto acórdão recorrido ilustra na resenha dos arestos dos tribunais superiores, para a qual remetemos, que sucessivamente identificaram as hipóteses típicas, em que o avalista do título se mantém no núcleo da relação contratual subjacente, ditas “relações imediatas”, legitimando a invocação das excepções do avalizado, além do pagamento.2

Como pronunciou o recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.05.2023, constando do sumário - «I - Intervindo no pacto de preenchimento de título de crédito e estando o título no domínio das relações imediatas, o executado/embargante/subscritor ou avalista pode opor ao exequente/embargado a violação desse pacto de preenchimento.

II - No domínio da relação imediata tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstrata, ficando sujeita às exceções que nessa relação contratual se fundamentem. (...)»3

De maneira que, seguindo nós a orientação porfiada no acórdão recorrido, que corresponde à jurisprudência firme do Supremo Tribunal, estribada na dicotomia entre as relações imediatas e as relações mediatas quanto à defesa do avalista, resguardado o respeito pela bondade do entendimento do banco recorrente, cabe apenas sublinhar algumas notas alusivas à casuística provada.4

Pacífico que o título de crédito tem como obrigação inicial a do emitente do título - o sacador, que promete ao sacador - tomador – e portadores subsequentes que pague a letra ou a livrança, obrigando-se o sacador, a pagá-la se, o sacado a não aceitar ou se, tendo-a aceitado, não a pagar, que fica obrigado pelo aceite, a pagar no seu vencimento.

Obrigação que pode coexistir com a obrigação de garantia através do aval prestado por um terceiro que garante-cauciona o pagamento do título por parte do subscritor (ou algum deles).

A obrigação cartular pressupõe uma relação jurídica anterior que constitui a relação jurídica subjacente ou fundamental, determinativa da obrigação cambiária, que pela natureza da abstração do título, separa-se do negócio jurídico cambiário.

A livrança -letra em branco não apresenta limitações, bastando que seja susceptível de ser completada sem a intervenção do emitente, e a sua entrega acompanhada por uma autorização de preenchimento pelo subscritor ao credor - artº 10 da LULL.

Quanto ao avalista da subscritora do título, por via de regra, posiciona-se fora das relações imediatas que se estabelecem entre o emitente da livrança e a subscritora, encontrando-se apenas numa relação de imediação com a subscritora avalizada.

Já, contudo, estará no domínio das relações imediatas, se, tendo assinado o título em branco, for envolvido por esse emitente no pacto de preenchimento.5

Tal como sucedeu no caso ajuizado, do aval prestado pelo embargante, ao subscrever a livrança em branco, e também o pacto de preenchimento, aqui correspondente ao documento junto “autorização de preenchimento”, ciente e vinculado nos termos expressados das obrigações decorrentes do contrato de locação financeira.

Na situação que se julga, não podemos deixar de surpreender a relação triangular assim estabelecida, como base comum das obrigações cambiárias do sacador, do aceitante e do avalista, i.e, no plano das relações imediatas entre todos os intervenientes.6

Ora, no domínio das relações imediatas com o sacador, dentro da relação que deu causa à emissão do título de crédito, não valem os princípios cambiários da literalidade e abstração.

Pelo que a solução adoptada é exacta - o avalista, nas condições descritas, poderá opor ao exequente- portador e credor do título, os meios pessoais de defesa do avalizado e filiadas na relação causal existente entre eles.

Na livrança exequenda e o contrato causal – configura -se a situação prototípica do sócio da sociedade comercial subscritora, que presta aval na livrança em branco, entregue em garantia do cumprimento do contrato de locação financeira celebrado com o banco (anterior BES leasing) sacador. 7

Neste alinhamento, o embargante avalista pode opor ao exequente o denominado preenchimento injustificado da livrança, mormente, a alegada inscrição ilegítima em valor superior ao devido, atenta a nulidade da cláusula penal estabelecida na clª 13º do contrato de locação.


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Soçobram as conclusões do recorrente neste segmento do recurso.

3. Sobre a cláusula penal incluída no contrato da locação financeira imobiliária- declarada nula pelo tribunal a quo, em consequência de manifesta desproporção do valor da indemnização ali fixada em relação aos danos advindos da resolução por incumprimento para o locador.8

O recorrente sustenta que tal não se verifica.

Reiteramos o sentido decisório e fundamentação do acórdão da Relação sobre a questão, apoiado ademais em firmada jurisprudência do Supremo Tribunal.

Sintetizando, com utilidade.

Como decorre dos artigos 12º e 19º al. c) da LCCG, são proibidas, e como tal nulas, as cláusulas contratuais gerais que “consagrem cláusulas penais desproporcionadas aos danos a ressarcir.”

Estando em presença um conceito indeterminado - desproporcionalidade de uma cláusula penal- a concretizar pelo julgador, através de um juízo objetivo e abstrato, no quadro negocial padronizado do contrato e na sua economia, alheio às circunstâncias do caso concreto, logo fica sem suporte o argumento do recorrente, que defende ( sem demonstrar) que no caso do avalista, o valor da indemnização fixada em situação de resolução por incumprimento é inferior à que resultaria da aplicação do regime da impossibilidade culposa.

Nas palavras síntese Ana Filipa Morais Antunes - «O ordenamento jurídico português não é indiferente à ideia de equilíbrio negocial, seja no contexto de relações estabelecidas entre particulares seja com contraentes públicos. A exigência de equilíbrio negocial corresponde a um afloramento do princípio da proporcionalidade no Direito dos contratos, e dirige-se a apreciar a congruidade das prestações, isto é, o nexo estabelecido ao abrigo do regulamento contratual, e que se expressa, designadamente, na equação económica considerada pelas partes, no momento da sua celebração. Reclama-se, por esta via, a razoabilidade do vínculo obrigacional e a necessidade de uma certa correspondência entre as vantagens a as desvantagens fundadas no contrato9

Como vem sendo relevado na jurisprudência, é importante a sindicância judicial das cláusulas nos contratos de adesão, em vista a restabelecer o equilíbrio material entre as vantagens auferidas e a penalização do inadimplente, na tutela da parte que aderiu sem poder de negociação, em particular nas cláusulas penais, dentro do ratio do RGCC e o disposto no seu artigo 19.º, al. c).

Tema amplamente versado na doutrina, com base no modelo contratual padronizado da locação financeira, balizando a indemnização devida pelo locatário em caso de resolução no correspondente ao total dos valores das rendas vencidas e não pagas, acrescidas de 20% da rendas vincendas e valor residual. 10

Na situação em análise - a cláusula penal / clª13º, nº3, al) b- do contrato de locação financeira imobiliária subjacente, como se adiantou, perante o quadro factual apurado, e os valores atingidos na indemnização, apresenta-se manifestamente desproporcionada aos danos do incumprimento do locatário.

A salientar que na locação financeira imobiliária, por definição objecto de investimento rentável dada a valorização do preço de mercado dos imóveis, ficam diluídos os danos advindos para o locador da resolução por incumprimento do locatário.

Colocadas estas diretrizes, não podemos deixar de concluir que o valor da indemnização que obriga o locatário inadimplente e o avalista embargante, calculada nos termos da referida cláusula, revela-se manifestamente desproporcional aos danos do locador e exequente, considerando o quadro factual apurado; ou seja, é patente a assimetria entre as desvantagens para o locador ela resolução contratual e penalidade fixada ao locador inadimplente.

E, nessa medida implicará a sua nulidade, como acertadamente ajuizou a Relação, partilhando as razões aduzidas no acórdão, assentes na seguinte factualidade provada: - «(…) a Exequente, locadora, continuou a ser proprietária da fração. Mais se provou que o valor dessa aquisição/financiamento foi de 345.600 €, tendo o imóvel sido avaliado em 2015 pela Autoridade Tributária e Aduaneira em 286.237,95 €.

A Exequente recebeu da locatária a 1.ª renda no valor de 34.560 € e as rendas seguintes até à 94.ª (que, face ao valor indicado nas cartas referidas em 4.9. e 4.11, terá sido paga em parte), perfazendo, assim, o valor total das rendas que foram pagas, pelo menos, 235.999,52 €. A que acrescerá o valor das rendas vencidas de 8.272,49 € (e respetivos juros de mora), tudo somando 244.272,01 €. Esta quantia monetária, somada ao valor (da avaliação) do imóvel, que nada indica se tenha desvalorizado, antes pelo contrário (sendo facto notório a existência de inflação e uma tendência de subida de preços no imobiliário em anos recentes), significa que a Exequente teve um “ingresso” no seu património (em imobiliário e rendas) que deverá ultrapassar os 530.510 €, não se descortinando, no confronto com o valor do financiamento, que tenha sofrido um efetivo prejuízo decorrente do incumprimento do contrato em apreço (…)

Neste contexto, a atribuição de uma indemnização e respetivos juros que ascendem a 101.505,60 € em virtude do incumprimento e resolução do contrato, mostra-se manifestamente desproporcionada ao montante de quaisquer (eventuais) danos a reparar.»

Por consequência, sendo nula a cláusula, a execução prosseguirá apenas para pagamento do restante valor, nos termos definidos pelo julgado a quo.

Improcede o recurso neste segmento.


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IV. Decisão

Pelo exposto, acorda-se em negar revista, confirmando o acórdão recorrido.

Vencido, o recorrente suportará as custas, na modalidade de custas de parte.

Lisboa, 4.07.2024

Isabel Salgado (relatora)

Maria da Graça Trigo

Afonso Henrique

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1. Segundo a qual, a obrigação do avalista subsiste independentemente da obrigação do avalizado, mantendo-se mesmo que seja nula a obrigação garantida, salvo se a nulidade desta provier de vício de forma.

2. De resto, acompanhada em vasta doutrina, cfr,.com interesse, Carolina Cunha, in Manual de Letras e Livranças, 2016, Almedina e da mesma autora “Letras e Livranças, Paradigmas Actuais e Recompreensão de um Regime, Almedina, Coimbra, 2012; e Rui Pinto, A execução do aval – algumas notas com ilustração jurisprudencial, Revista Julgar On Line, 2019.

3. No proc. nº 529/21.7T8GMR-A. G1.S1, in www.dgsi.pt.

4. Subsiste ainda alguma divergência quanto aos critérios de distinção das relações mediatas e imediatas, como relata o acórdão do STJ de 07-03-2023, no proc. n.º 31515/12.7T2SNTA.L1. S1, também citado no acórdão recorrido e disponível em www.dgsi.

5. Ensina, Pais de Vasconcelos in Aval em branco, in www.revistadedireitocomercial.com, em 9.03.2018 “O pacto pode conter uma autorização, que permite o preenchimento, mas sem obrigar ao mesmo, ou um mandato que obriga ao preenchimento. O pacto de preenchimento é, pois, um facto legitimador positivo com efeitos sobre a titularidade. Como tal, em ambos o caso atribui legitimidade para proceder ao preenchimento, que decorre da titularidade de um poder potestativo de preencher.”

6. Além de poder invocar o pagamento contra o beneficiário da livrança em branco o preenchimento abusivo do título de crédito ou a nulidade do aceite.

7. Não se mostra controvertido que a previsão na clª13, nº2, al) b) do contrato expressa na letra da cláusula, corresponde a uma verdadeira cláusula penal, no sentido que estipula antecipadamente que o locador pagará a quantia indemnizatória para o caso de vir a pagar a prestação principal de pagamento das rendas a que se vinculou.

8. In Equilíbrio negocial, «A força maior e o (des)equilíbrio contratual», in Catolica Talks: Direito e Pandemia, coord.: Elsa Vaz de Sequeira, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2022, págs. 9 e segs., e idem, Equilíbrio negocial, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2024.

9. Cfr. Rui Pinto Duarte- Locação Financeira, Algumas questões, I Congresso de Direito Bancário, 2015. Na jurisprudência - cfr. Inter alia, o AC.STJ de 21 maio 1998, proc- 98A0494, de 23-04-1998, Revista n.º 11/97; de 11-01-2001, Revista n.º 3622/00; de 01-02-2001, Revista n.º 3137/00; de 03-06-2003, Revista n.º 2973/02, todos in As Cláusulas Contratuais Gerais na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça (Sumários de Acórdãos de 1996 a outubro de 2012).