Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
199/15.1PEOER.L1.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: SOUTO DE MOURA
Descritores: RECURSO PENAL
HOMICÍDIO QUALIFICADO
INCÊNDIO
TOXICODEPENDÊNCIA
ALCOOLISMO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
CULPA
PREVENÇÃO ESPECIAL
PREVENÇÃO GERAL
INIMPUTABILIDADE
IN DUBIO PRO REO
Data do Acordão: 03/30/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Área Temática:
DIREITO CIVIL – FACTO / PRESSUPOSTOS DA PUNIÇÃO / FORMAS DO CRIME / CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS / PENAS DE PRISÃO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA / CRIMES CONTRA A VIDA EM SOCIEDADE / CRIMES CONTRA O RESPEITO DEVIDO AOS MORTOS / CRIMES DE PERIGO COMUM.
DIREITO PROCESSUAL PENAL – PROVA / MEIOS DE PROVA / PROVA PERICIAL – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / TRAMITAÇÃO.
DIREITO CONSTITUCIONAL – DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS.
Doutrina:
-Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, p. 574 e ss.;
-Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, Comares, 2002, p. 465;
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL: - ARTIGOS 13.º, 20.º, N.ºS 1 E 2, 22.º, N.ºS 1 E 2, ALÍNEAS B) E C), 23.º, N.º 1, 40.º, N.º 2, 41.º, N.º 1, 73.º, N.º 1, ALÍNEAS A) E B), 131.º, 132.º, N.ºS 1 E 2, ALÍNEAS A), C) E E), 254.º, N.ºS 1, ALÍNEA A) E 2 E 272.º, N.º 1, ALÍNEAS B) E C).
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 160.º E 410.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 32.º, N.º 2.
LEGISLAÇÃO DE COMBATE À DROGA, APROVADO PELO DL N.º 15/93, DE 22 DE JANEIRO: - ARTIGO 40.º, N.º 2.
Sumário :
I  -   O arguido foi condenado no acórdão recorrido pela prática de um crime de homicídio qualificado dos arts. 131.º e 132.º, n.º 1 e n.º 2 als. a), c) e e), todos do CP, na pena de 22 anos de prisão, de um crime de incêndio, explosão e outras condutas especialmente perigosas, na forma tentada, dos arts. 272.º, n.º 1, als. b) e c), 22.º, n.º 1 e 2, als. b) e c), 23.º, n.º 1 e 73.º, n.º 1. als. a) e b), e art. 41.º, n.º 1, todos do CP, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, de um crime de profanação de cadáver ou de lugar fúnebre, na forma tentada, dos arts. 254.º, n.º 1 al. a) e n.º 2, 22.º, n.º 1 e n.º 2 als.b) e c), 23.º, n.º 1, 73.º, n.º 1 als. a) e b) e art. 41.º, n.º 1, todos do CP, na pena de 5 meses de prisão, e de um crime de consumo, do art. 40.º, n.º 2, do DL 15/93, de 22-01, na pena de 40 dias de prisão. Em cúmulo foi condenado na pena de 23 anos de prisão.

II -  O recorrente é toxicodependente do álcool, tendo sido sujeito a tratamentos vários ao longo da vida tanto em regime ambulatório como em internamento, inclusive por sua iniciativa, certo que assume comportamentos violentos e agressivos quando etilizado. Foi sujeito a exame pericial psicológico nos termos do art. 160.º do CPP, no INML, e do relatório e conclusões resulta, entre o mais, que o arguido é portador de um psiquismo compatível com uma organização da personalidade de tipo "borderline", com traços depressivos e impulsivos, apresenta dificuldades relacionais ao nível da gestão de conflitos e de contenção da agressividade, revelando uma perigosidade penal elevada.

III -   Segundo o art. 40º, nº 2, do CP, "Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa", pelo que na escolha da medida da pena (e também da espécie de pena) o grau de culpa se apresenta como limite intransponível, assim se consagrando o "princípio da culpa" que informa todo o nosso direito penal.

IV -   A culpa analisar-se-á então, sob a forma de dolo ou de negligência (art. 13º, do CP), numa característica do agente quando agiu como agiu ou por ser como é, que provoca um juízo de censura alheio, de onde a culpa não ser, rigorosamente, a própria desaprovação, já que esta recai necessariamente sobre uma realidade que está para além de si mesma.

V - A possibilidade de se ser objeto dum juízo de censura tem por pressuposto a capacidade de culpa, de tal modo que só pode ser censurado o facto (ou também a personalidade) assentes numa "atitude interna juridicamente desaprovada", e só quem "alcançou uma determinada idade e não padeça de graves anomalias psíquicas possui o grau mínimo de capacidade de autodeterminação que é exigido pelo ordenamento jurídico para a responsabilidade penal" (cf. Jescheck in "Tratado de Derecho Penal – Parte General", Comares, 2002, pág. 465).

VI -   O art. 20º, do CP faz derivar a inimputabilidade, no seu nº 1, da dupla condição de o agente ser portador de anomalia psíquica, e ainda de, no momento da prática do facto, ser incapaz de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação. Certo que o conceito de anomalia psíquica é bem mais vasto do que o de "doença mental", abrangendo por exemplo, também as chamadas psicopatias, se e enquanto distúrbios "graves" ou "muito graves", equiparáveis "nos seus efeitos sobre o decurso da vida psíquica, a verdadeiras psicoses" (cf. Figueiredo Dias in "Direito Penal – Parte Geral", tomo I, 2ª edição pág. 574 e segs.).

VII - Do n.º 1 segunda parte do art. 20.º do CP, resulta que o juízo de inimputabilidade pressupõe necessariamente a impossibilidade de o agente poder agir de outra maneira na situação, chegando-se a esta conclusão através de perícia científica ou de factos concludentes que uma experiência empírica da vida nos revela.

VIII - Este "senso comum" não pode deixar de ser valorado e transposto normativamente, porque é ele que subjaz e é generalizadamente aceite em todo o relacionamento social. A comunidade só funciona porque tem na base a possibilidade de responsabilização dos seus membros, de tal modo que a liberdade (enquanto algum poder agir, de outra maneira), como característica do humano, tem que ser pressuposto de toda a política social e portanto criminal.

IX -   O art. 20º, do CP, no seu nº 2, contempla as situações em que, havendo anomalia psíquica que tem que ser grave, não acidental e com efeitos que o agente não domina, mas sem que por isso possa ser censurado, o agente apresente uma capacidade de avaliação e determinação "sensivelmente diminuída" no momento da prática do facto. Assim, surge como postulado incontornável do legislador a possibilidade de quantificação das capacidades. Não se é, ou não é livre, quando se atua, ponto final, já que a lei pressupõe que o agente possa ser mais ou menos livre quando atua. O sistema monista pelo qual o legislador enveredou leva a que, em tais casos, o julgador possa considerar o agente inimputável, sujeitando-o a uma medida de segurança, ou então manter o juízo de imputabilidade, traduzindo na medida da pena a consideração de um grau diminuído de culpa, e mesmo assim, não necessariamente.

X - Apesar do distúrbio da personalidade, concretamente "borderline", apresentado pelo arguido, nada existe nos autos que permita inferir dessa psicopatia um estado de inimputabilidade aquando dos crimes que cometeu. Pelo contrário, a sequência do comportamento e o discurso usado nas comunicações feitas, tudo decorrente do que se provou, mostram que o arguido estava no uso das suas capacidades. 

XI -    A ingestão de álcool associada a esse tipo de personalidade pode ter propiciado ou potenciado os contornos da conduta que assumiu, mas daí a dar-se por assente que o arguido não se apercebeu de que estava a cometer crimes e crimes graves, ou então que, tendo essa consciência, nada podia fazer para travar os seus impulsos, vai uma grande distância. Sobretudo se, como também se provou, o arguido "tinha conhecimento de que quando consumia álcool, e quando misturava o consumo de álcool com o consumo de produtos estupefacientes e medicamentos, tornava-se numa pessoa violenta, com o que se conformou".

XII - Por outro lado, em matéria de imputabilidade diminuída, não estão reunidos os pressupostos de que o nº 2 do art. 20º do CP faz depender a possibilidade de declaração de inimputabilidade, porque mesmo que se considerasse ser a personalidade "borderline" uma "anomalia psíquica grave", o que não se concede sem mais, faltava ter por assente que o arguido não dominava os efeitos dessa anomalia psíquica e sobretudo que, se tal tivesse ocorrido, não podia ser censurado por tal falta de domínio. É que se mostra incontornável a consciência que o arguido tinha, de que se bebesse álcool, como bebeu antes de cometer o crime, se tornava agressivo e violento, sendo também certo que, durante períodos da sua vida, conseguiu ser abstémio.

XIII - A invocação da violação do princípio in dubio pro reo arranca da consagração constitucional de outro princípio, a saber, da presunção de inocência, do art. 32.º, n.º 2, da CRP, sabendo-se que a principal incidência intra-processual deste último se reporta ao ónus da prova da culpa do arguido, formalmente, e à partida, a cargo da acusação, embora tudo temperado pelo princípio da investigação ou da verdade material a observar pelo juiz. E como corolário do princípio da presunção da inocência surge-nos o princípio in dubio pro reo, no sentido de que, se a acusação, e em última instância o próprio juiz, não conseguem reunir prova da culpabilidade do arguido, a ponto de o tribunal ter ficado numa situação de dúvida, então impor-se-á a absolvição.

XIV - Só que a situação de dúvida tem que se revelar de algum modo, e concretamente através da sentença, porque a dúvida é a dúvida que o tribunal teve, não a dúvida que o recorrente acha que, se o tribunal não teve, deveria ter tido. A esta outra problemática se responderia, eventualmente, com a invocação de eventuais vícios da matéria de facto do art. 410º, nº 2, do CPP. E no caso em apreço, o que se constata é que o tribunal, quer da primeira, quer da segunda instância, não revelaram dúvidas quanto à possibilidade de responsabilização do recorrente. 

XV - Muito embora o circunstancialismo em que o crime de homicídio foi praticado pudesse apontar para a aplicação de uma pena muito perto do limite máximo, a problemática aditiva e a personalidade "borderline" do arguido implicam que, não tanto ao nível cognitivo, mas no que respeita ao domínio da vontade, a capacidade de o arguido resistir aos impulsos para ações criminosas estava enfraquecida. Por outro lado, esta consideração tem que ser caldeada com o facto de que o recorrente tinha clara consciência dos efeitos provocados pelo álcool na sua pessoa.

XVI - Ponderadas as determinantes de sinal contrário em jogo, entendemos que a pena justa para o crime de homicídio se deve situar nos vinte anos de prisão, tanto mais que essa pena se mostra também suficiente para atender à perigosidade revelada, aplicando-se em cúmulo a pena de vinte e um anos de prisão.

Decisão Texto Integral:

AA, nascido em [...], foi julgado pelo tribunal do júri em processo comum, na Comarca de ..., Instância Central, ... Secção Criminal, Juiz ..., e condenado por acórdão de 10/5/2016, pela prática:
· do crime de homicídio qualificado dos arts. 131º e 132º, nº 1 e nº 2 als. a), c) e e), todos do CP, na pena de 22 anos de prisão,
· do crime de incêndio, explosão e outras condutas especialmente perigosas, na forma tentada, dos arts. 272º, nº 1, als. b) e c), 22º, nº 1 e 2, als. b) e c), 23º, nº 1 e 73º, nº 1. als. a) e b), e artº 41º, nº 1, todos do CP, na pena de 4 anos de prisão,
· do crime de profanação de cadáver ou de lugar fúnebre, na forma tentada, dos arts. 254º, nº 1 al. a) e nº 2, 22º, nº 1 e nº 2 als.b) e c), 23º, nº 1, 73º, nº 1 als. a) e b) e art. 41º, nº 1, todos do CP, na pena de 8 meses de prisão,
· de um crime de consumo, do art. 40º, nº 2, do DL 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 4 meses de prisão.

Em cúmulo jurídico foi condenado na pena conjunta de 25 anos de prisão.   

Recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, que por acórdão de 11/10/2016, para além de ter considerado improcedentes os recursos intercalares que haviam sido interpostos, alterou o decidido do modo que se segue:
· Foi aditado à matéria de facto provada que “O arguido é portador de personalidade de tipo “"borderline"” nos termos do relatório pericial do INML de fls 294 a 330, elaborado a 15 de Junho de 2015.”
· A pena parcelar pelo crime de incêndio, explosão e outras condutas especialmente perigosas, na forma tentada, foi reduzida para 2 anos e 6 meses de prisão.
· A pena parcelar aplicada pelo crime de profanação de cadáver ou de lugar fúnebre, na forma tentada, foi reduzida para 5 meses de prisão.
· A pena pelo crime de consumo foi reduzida para 40 dias de prisão.
 

Em cúmulo jurídico, mantendo-se inalterada a pena concreta fixada para o crime de homicídio qualificado (de 22 anos de prisão), foi aplicada a pena conjunta de 23 anos de prisão.

A  -  FACTOS

Deram-se por provados os seguintes factos:

" 1. AA e BB eram os pais do falecido CC.

2. Em Agosto de 2012, AA e BB iniciaram um relacionamento amoroso.

3. Em Dezembro de 2012, AA e BB passaram a viver na mesma casa, em comunhão de cama, mesa e habitação, na zona de ....

4. Na mesma casa residia também uma filha de BB, fruto de uma anterior relação amorosa desta, nascida em ....2002.

5. Devido a questões relacionadas com o consumo de álcool por parte do arguido, em Junho de 2013, BB e a filha desta saíram de casa.

6. AA realizou um tratamento à sua problemática com o álcool.

7. Durante o tratamento AA e BB reataram o seu relacionamento, com a condição de que caso o primeiro voltasse a consumir álcool, a relação terminaria de imediato.

8. Em Fevereiro de 2014, o arguido foi viver para a casa onde BB e a filha desta já residiam, sita na Rua....

9. Em Agosto de 2014 AA realizou um contrato de trabalho, por tempo indeterminado, tendo começado a trabalhar, como pintor da construção civil.

10. No dia 29 de Outubro de 2014, CC nasceu e BB passou a gozar a sua licença de maternidade, a fim de tomar conta da criança.

11. Em Dezembro de 2014, AA despediu-se do seu trabalho, devido a problemas relacionados com o pagamento dos seus salários.

12. Após gozar a licença de maternidade, BB regressou ao trabalho.

13. Na altura, AA e BB acordaram que o primeiro passaria a tomar conta de CC até arranjar trabalho, porque não tinham conseguido arranjar vaga numa creche para o bebé e a fim de pouparem o dinheiro que teriam de pagar a uma ama.

14. Quando BB se encontrava a trabalhar, AA era o responsável pela alimentação, saúde, bem-estar e segurança de CC, tendo o casal por hábito manter o contacto telefónico.

15. No dia 08 de Abril de 2015, em momento anterior às 09 horas e 00 minutos, BB e a filha desta ausentaram-se de casa, a primeira para trabalhar e a segunda para estudar, tendo o arguido e o filho ficado em casa.

16. No mencionado dia 08 de Abril de 2015, pouco antes das 15 horas e 26 minutos, o arguido ausentou-se de casa, deixando o seu filho sozinho e dirigiu-se à pastelaria “..., onde bebeu um cálice de vinho do Porto.

17. O arguido regressou a casa, deixando esquecido um saco de compras na pastelaria "...".

18. Em hora não concretamente apurada e no âmbito de conversação telefónica havida entre ambos, notando que o arguido havia ingerido bebidas alcoólicas, BB colocou termo à relação e disse-lhe que teria de sair de casa.

19. Encontrando-se BB a conduzir um veículo automóvel, na companhia da sua colega de trabalho EE, AA telefonou para o telemóvel da primeira que não atendeu de imediato.

20. Uma vez que estava a conduzir, BB solicitou a EE para que esta atendesse o seu telemóvel.

21. Tendo AA voltado a telefonar para o telemóvel de BB, EE atendeu o telemóvel desta.

22. AA disse a EE para que esta colocasse a chamada em “alta voz” e exigiu que BB estacionasse a viatura de imediato para falar com ela.

23. AA perguntou onde é que BB se encontrava e queria saber se esta o considerava um “baby-sitter” ou um “gigolô”.

24. Seguidamente, AA telefonou do seu telemóvel para o telemóvel de EE, com o número ... e tendo esta atendido, o arguido referiu que já havia telefonado para o filho mais velho e disse-lhe que o ia matar e, depois, ia matar o seu (do arguido) bebé.

25. Ainda no referido 08 de Abril de 2015, cerca das 16 horas e 00 minutos, BB estacionou a viatura e atendeu outro telefonema do arguido que lhe disse que ia matar o filho de ambos.

26. Na mesma data, encontrando-se o arguido e o filho no quarto do casal, o primeiro realizou videochamadas para o telemóvel de EE.

27. Durante as videochamadas, AA apontou a câmara do seu telemóvel, com o auxílio de uma das mãos, para CC, que se encontrava deitado na cama, e com a outra mão, o arguido manteve uma faca junto ao meio do corpo da criança.

28. Em simultâneo, AA disse “ ’Tás a ver? ‘Tás a ver? Eu vou matar o nosso filho!”.

29. Entre as 16 horas e 17 minutos e as 16 horas e 30 minutos, AA cravou a faca até ao punho, na face anterior do hemotórax esquerdo de CC.

30. Em consequência da conduta do arguido descrita em 29., CC sofreu uma ferida corto-perfurante transfixiva do coração e pulmão direito e, mais concretamente, as seguintes lesões: nas paredes do tórax, ferida corto-perfurante transfixiva do tecido subcutâneo e músculos da parede torácica anterior esquerda, subjacentes à referida ferida, no 4.º espaço intercostal anterior esquerdo com 1,5 cm; na zona do pericárdio e cavidade pericárdica, duas feridas corto-perfurantes no pericárdio, transfixivas, uma de entrada, na face anterior sobre o terço superior do ventrículo esquerdo e a outra (de saída), debaixo da aurícula direita, cavidade pericárdica com escasso sangue líquido; no coração, ferida corto-perfurante, transfixiva do coração, com início da ponta do ventrículo esquerdo e terminando na aurícula direita, interessando no seu trajecto as cordas tendinosas abaixo da válvula mitral na sua porção septal; na pleura parietal e cavidade pleural direita, ferida corto-perfurante da pleura parietal ao nível do 2.º espaço intercostal posterior, com 150 cc de sangue líquido na cavidade; na pleura parietal e cavidade pleural esquerda, ferida corto-perfurante da pleura parietal ao nível do 4.º espaço intercostal anterior, subjacente à mencionada ferida, com 100 cc de sangue líquido na cavidade; e no pulmão direito e na pleura visceral, ferida corto-perfurante transfixiva do lobo superior do pulmão.

31. As lesões descritas em 31. causaram a morte de CC.

32. A faca que o arguido exibiu durante as videochamadas e com a qual matou o seu filho, trata-se de uma faca de cozinha, com punho de madeira que mede dez centímetros, e com lâmina que mede onze centímetros de comprimento e cerca de dois centímetros de largura.

33. Neste circunstancialismo, o arguido deslocou-se à cozinha e rodou os quatro manípulos dos botões do fogão que accionaram a saída de gás dos bicos.

34. De seguida, o arguido saiu para o exterior do prédio e dirigiu-se, mais uma vez, à pastelaria “...”, onde ingeriu mais um cálice de vinho do Porto.

35. Tendo FF alertado o arguido para o facto de este ter deixado ficar um saco de compras naquele local, AA agarrou nesse mesmo saco, saiu da pastelaria e dirigiu-se no sentido do prédio em que residia.

36. Após dois minutos, o arguido regressou à pastelaria, pediu a conta e pagou, colocou um cigarro e um cartão SIM de telemóvel em cima do balcão e pediu que lhe cedessem um telemóvel, abandonando o local.

37. O arguido deslocou-se até à pastelaria "..., sita na ..., onde entrou e pediu emprestado um telemóvel.

38. GG emprestou o seu telemóvel, com o número ..., ao arguido.

39. Por volta das 16 horas e 54 minutos, AA saiu da pastelaria “...” e, através do telemóvel com o número ..., telefonou para o telemóvel de BB e disse-lhe que tinha matado o filho de ambos.

40. O arguido voltou a entrar na pastelaria "..." e devolveu o telemóvel a GG, dizendo que “Dentro de 5 minutos alguém vai ligar para esse número e se disseres que eu estou aqui, já matei o meu filho e venho aqui matar-te”.

41. O arguido abandonou o local, tendo sido detido pelos agentes da Polícia de Segurança Pública, pelas 17 horas e 30 minutos, nas proximidades da sua residência.

42. No dia 08 de Abril de 2015, entre as 09 horas e 00 minutos e as 16 horas e 30 minutos, na Rua ..., na área do município de Oeiras, AA guardava no saco plástico que colocou no interior da caixa de plástico, de cor azul, que se encontrava em cima de uma mesa que estava na marquise, canábis (resina), com o peso Br (g) de 8,171 e com o grau de pureza (%) de 12,7 (THC), o qual destinava ao seu consumo.

43. AA tinha conhecimento de que quando consumia álcool, e quando misturava o consumo de álcool com o consumo de produtos estupefacientes e medicamentos, tornava-se numa pessoa violenta, com o que se conformou.

44. O arguido sabia que CC era seu filho e que este se tratava de um bebé e que por isso, não tinha capacidade para afastar agressões praticadas por adultos e, assim, de se defender.

45. Mais sabia o arguido que a faca que utilizou para matar o seu filho, considerando que este ainda era um bebé, a natureza e dimensões dessa mesma faca, tratava-se de um objecto perigoso e apto a tirar-lhe a vida.

46. Não obstante, o arguido quis utilizar a referida faca, cravando-a na zona do tórax do seu filho, bem sabendo que esta parte do corpo da vítima alojava órgãos vitais e que uma vez estes atingidos, causariam a morte do bebé.

47. O arguido agiu da forma supra descrita, porque quis vingar-se da mãe da criança, pelo facto de esta, em momento anterior ao dos factos, lhe ter referido que queria terminar a relação e que ele teria de abandonar a casa.

48. Mais pretendeu AA actuar da forma supra descrita, valendo-se da tenra idade do seu filho e de ambos se encontrarem sozinhos em casa, com o propósito concretizado de tirar a vida a CC.

49. AA sabia que ao rodar os manípulos do fogão iniciava a propagação de gás para a atmosfera e que esta substância se espalharia pela casa onde se encontrava – que não lhe pertencia - e, eventualmente, pelas casas dos vizinhos, tudo o que o arguido pretendeu fazer.

50. Mais sabia o arguido que a inalação de gás podia ser feita por outras pessoas, o que lhes poderia causar mau estar ou até a morte, resultado com o qual ele se conformou.

51. AA tinha também conhecimento de que o gás espalhado na atmosfera, em contacto com fontes de ignição, tal como fogo ou qualquer outra fonte de faísca, provocaria a libertação abrupta de energia e, em consequência poderia causar a morte de outras pessoas e danificar a casa em que se encontrava e, eventualmente, as casas e os pertences de terceiros, resultados com os quais o arguido também se conformou.

52. Mais previu o arguido que em virtude de ter ligado o gás dos bicos do fogão, caso fosse accionada uma fonte de ignição por terceiros e ocorresse a libertação abrupta de energia, ocorreria a destruição do cadáver de CC, resultado este que o arguido aceitou.

53. O arguido tão-somente não logrou atingir a vida e a integridade física de outras pessoas, nem danificar a casa onde se encontrava e as casas e os pertences de terceiros, nem destruir o cadáver do seu filho, devido à rápida intervenção policial que fez com que se impedisse a concentração de maior quantidade de gás no local, fechando os dispositivos de libertação de gás e arejando a casa.

54. AA conhecia as características e natureza estupefaciente do produto que detinha, bem como os seus efeitos, a proibição legal de o deter e o facto de não ter qualquer autorização que o possibilitasse a detê-lo.

55. Não obstante, o arguido quis ter na sua posse canábis e na quantidade supra indicada, tal como efectivamente detinha, destinando-o ao seu consumo.

56. O arguido agiu sempre de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo ser todo o seu comportamento proibido e punido por lei.

Condições pessoais e antecedentes criminais do arguido

57. AA é o mais velho de uma fratria de 2 irmãos tendo o seu processo de desenvolvimento decorrido, até à adolescência, sobretudo sob a orientação da tia paterna/madrinha do arguido, na mesma morada onde residia também a avó paterna, pelo que o arguido estabeleceu maior vinculação afectiva a estas figuras em detrimento dos pais.

58. Com estes permanecia no período da noite e fins-de-semana, ainda que com a mãe, cabeleireira de profissão e com actividade laboral também aos fins de semana, tivesse menos proximidade afectiva.

59. Esta forma de funcionamento familiar não se revelou problemática para o arguido durante a sua infância e enquanto permaneceu com um apoio mais directo desta tia e avó, como figuras maternas substitutas.

60. Até completar a 4ª classe, num colégio particular, AA terá feito uma evolução normal para a idade, adaptada do ponto de vista social e familiar e com bom aproveitamento escolar.

61. Com a mudança para o ciclo preparatório AA foi deslocado para outra escola e passou a ficar apenas em casa dos progenitores.

62. Ainda completou com sucesso o 5º e 6º ano, sem problemas de comportamento significativos na escola, mas em casa, onde a mãe estava frequentemente ausente por motivos de trabalho, permanecia sobretudo a cargo do pai.

63. O arguido e o pai tinham dificuldades de relacionamento nessa época, devido ao carácter disciplinador e rígido do pai face ao desinteresse e faltas à escola que começava a caracterizar o seu quotidiano.

64. A desmotivação pela aprendizagem e a assunção de comportamentos de rebeldia em contexto escolar agravou-se no ensino secundário, período em que AA começa a reprovar consecutivamente por faltas, a acompanhar colegas com condutas desviantes e a ter com estes experiências de consumo de haxixe e álcool.

65. Os pais não se aperceberam, aparentemente, da problemática de consumo do arguido, mas face à sua conduta irreverente e reactiva relativamente à escola, optaram por mudar de residência para ..., e colocá-lo numa escola afastada do anterior meio residencial.

66. No novo contexto, AA voltou a ter condutas mais adaptadas e a frequentar o ensino regularmente.

67. Não obstante, aos 17 anos, quando se encontrava no 11º ano de escolaridade, na sequência de uma relação afectiva com uma colega de escola ocorreu uma gravidez não planeada, situação que não foi bem aceite pelos pais da jovem e levou AA a ter de assumir a relação, designadamente contraindo matrimónio, ficando a viver o casal na morada dos pais do arguido.

68. Paralelamente, teve de abandonar os estudos para começar a trabalhar.

69. Iniciou vida profissional no serviço de refeitório do Hospital de Coimbra, onde trabalhou aparentemente de forma regular e posteriormente numa empresa de desinfestação, onde passou a efectivo ao fim de 2 anos.

70. Contudo, no âmbito do relacionamento com o cônjuge revelava maior instabilidade e com o tempo surgiram conflitos entre o casal.

71. Os progenitores apenas tiveram conhecimento desta situação através da vizinhança.

72. Os pais do arguido optaram por encontrar uma habitação para AA e cônjuge e, nos meses que antecederam a sua separação conjugal, que ocorreu quando AA tinha 21 anos, o casal vivia de forma autónoma, e sem apoios ou controlo por parte de familiares.

73. O arguido manteve, não obstante, consumos regulares de álcool no período que vivia independente da família de origem, facto que a nível profissional acarretou instabilidade laboral e a nível pessoal e familiar uma vida desregrada e conflituosa com o cônjuge.

74. Após a separação conjugal, ocorrida em 2003, AA permaneceu a viver sozinho na residência, uma vez que a ex-mulher foi com o filho para casa dos pais dela.

75. O arguido, por iniciativa própria, iniciou acompanhamento em 2004 na unidade de Alcoologia de ... no Hospital ..., onde apenas compareceu a duas consultas e não voltou a contactar o serviço.

76. Conheceu nova companheira em 2004 e da relação estabelecida vieram a nascer dois filhos.

77. No decurso desta nova união de facto o arguido começou a trabalhar na área de construção civil, por conta própria como pintor, mas nem sempre dispunha de rendimentos que lhe permitissem fazer face às despesas domésticas.

78. Na época, a companheira permanecia desempregada pelo que o arguido recorria regularmente a apoios por parte da família colateral, tia e avó paternas, que lhe forneciam géneros alimentícios ou davam dinheiro.

79. Com os pais mantinha uma relação de algum distanciamento, físico e afectivo.

80. O arguido teve acidentes de viação motivados por condução sob efeito de álcool.

81. É descrito pela companheira como uma pessoa violenta e agressiva, sempre que se etilizava.

82. Em Novembro de 2007 ocorreu a primeira rotura do casal.

83. No âmbito do proc. de Inqº. Nº. 2643/07.2PCCBR dos serviços do Ministério Publico na ...o arguido foi alvo de injunções, designadamente continuar o tratamento ao alcoolismo.

84. O casal esteve separado cerca de 3 meses, no decurso dos quais AA terá retomado acompanhamento à sua problemática aditiva no Hospital ... com consultas de alcoologia.

85. Aderiu ao tratamento e comparecia regularmente às referidas consultas.

86. No decurso de 2008 AA voltou a ter contactos com o sistema de administração da justiça, no âmbito dos quais foi condenado, pelo proc 145/07.6GBLSA do Tribunal Judicial da ..., por um crime de condução sem habilitação legal, e um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, a uma pena de multa convertida em trabalho a favor da comunidade.

87. Na sequência do acompanhamento desta medida pela DGRSP, foi igualmente verificado que mantinha, àquela data, um apoio regular no Hospital ..., com consultas de alcoologia, mas consumia paralelamente bebidas alcoólicas.

88. Em 11/09/2008 o casal voltou a separar-se e o arguido foi internado entre 16/09/2008 e 11/10/2008, na Unidade de Alcoologia do .... por opção do próprio, para tratamento à sua dependência.

89. A companheira, grávida do 2º filho, decidiu, contudo, dar nova oportunidade ao arguido, pelo empenhamento demonstrado por este na decorrência do tratamento, e por este ter abandonado tanto os consumos de álcool, como as pessoas do meio que acompanhava, condição que possibilitou a reconciliação do casal.

90. Sob acompanhamento da DGRSP, passou por um novo período de abstinência, o qual terá durado cerca de 4 anos.

91. Durante o mesmo levou um modo de vida adaptado, investido no trabalho e na família, onde a relação entre o casal se pautou pela concórdia e respeito mútuos.

92. Cumpriu integralmente a prestação de trabalho a favor da comunidade a que fora condenado em 2008, com uma avaliação positiva e valorizada quanto ao cumprimento de horários, disponibilidade, desempenho funcional e relacionamento com os colegas.

93. Após ter terminado o cumprimento da medida a entidade beneficiária de trabalho - Junta de Freguesia de ... - integrou-o laboralmente através de um Plano Ocupacional de Emprego (POC).

94. Em Março de 2011, quando terminou o acompanhamento pela DGRSP, o arguido encontrava-se bem inserido familiar e profissionalmente, tinha cumprido as injunções impostas e evidenciava ter feito um esforço efectivo no sentido de se harmonizar com a companheira.

95. Todavia, alguns meses após o término da medida probatória, ocorreu uma nova separação da companheira e AA, após passar um curto período em casa dos progenitores, deixou a casa destes para viver como sem abrigo até ser acolhido no Centro de Acolhimento do ....

96. Foi sujeito a novo internamento na Unidade de Alcoologia de ..., entre 14/03/2012 e 06/04/2012, na sequência de uma condenação, no proc. nº. 50/12.4GBLSA, do Tribunal Judicial da ..., por um crime de condução em estado de embriaguez, a 6 meses de prisão, suspensas na sua execução por 12 meses, com regime de prova, com obrigação de tratamento da sua dependência alcoólica.

97. Desempregado desde Outubro de 2012 por ter sido despedido da empresa para a qual trabalhava, subsistia na época, exclusivamente, com o apoio da “Caritas”.

98. No Centro do ..., onde foi acolhido, conheceu a terceira e última companheira e iniciou com aquela um relacionamento afectivo.

99. Conseguiu entretanto uma colocação laboral na empresa “...”, com o salário de 590 euros mensais.

100. Este contexto permitiu-lhe autonomizar-se e iniciar vida marital com a nova companheira.

101. João Barata fez novo tratamento de desintoxicação com internamento, no Hospital ..., entre 17/06/2013 e 06/07/2013 e prosseguiu subsequentemente com consultas regulares externas, as quais manteve até 29/01/2014.

102. De acordo com uma informação clinica datada de Fevereiro de 2013 elaborada pela Dra. ..., médica que acompanhava o arguido no Hospital ..., na especialidade de alcoologia, foi diagnosticado a AA um Síndrome de Dependência Alcoólica.

103. Segundo a mesma informação, o mesmo já fora sujeito a internamentos após comportamentos para suicidários e na sequência de problemas familiares.

104. AA, após o 2º internamento, em 2012, passou por uma fase clinicamente estável, ainda que registasse dois curtos períodos de consumo, com comportamentos de reactividade e agressividade e que terá motivado o internamento mais recente.

105. Não voltou desde então a ter acompanhamento pela Unidade de Alcoologia de ....

106. Em Fevereiro de 2014, após reintegrar o agregado com esta nova companheira e a enteada, AA manteve um modo de vida socialmente e familiarmente ajustado.

107. A nível laboral, conseguiu trabalho durante alguns meses na construção civil, ao fim dos quais ficou na situação de desempregado, apesar de continuar a ter uma postura dinâmica relativamente à procura de emprego.

108. A companheira encontrava-se à data profissionalmente activa e conseguiu garantir a sustentabilidade da família, com algum apoio de familiares, como a tia e avó paterna do arguido, e as questões económicas não se constituíram como um problema significativo na época, embora o orçamento exigisse alguma contenção.

109. A nível relacional constatou-se que manteve um relacionamento distante com os progenitores e não estabeleceu, na nova morada, uma outra rede de amizades.

110. O arguido despendia o tempo disponível com tarefas caseiras e à procura de trabalho, e tinha com a vizinhança apenas contactos pontuais.

111. Na comunidade onde se inseria era visto como um indivíduo pacato e caseiro, não associado a condutas associais.

112. No âmbito familiar, a gravidez da companheira ocorrida em 2014, terá sido planeada e desejada por ambos.

113. No que respeita à conduta do arguido quanto ao papel parental desempenhado, nomeadamente com os filhos das anteriores relações, AA era considerado um pai presente e afectuoso.

114. Com o filho recém-nascido o arguido evidenciou uma atitude cuidadosa e carinhosa, assegurando o acompanhamento e cuidados necessários ao menor.

115. O arguido não tem projectos de vida futuros e da parte da família próxima, ainda há grande indefinição quanto ao tipo de suporte que lhe poderão vir a dar futuramente.

116. O arguido foi condenado por decisão transitada em julgado em 20.01.2004, pela prática em 03.01.2004, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, numa pena de 75 dias de multa à razão diária de € 4. A pena declarada extinta pelo cumprimento. [P. Sum. 5/04.2GTCBR do 2.º Juízo Criminal de Coimbra].

117. O arguido foi condenado por decisão transitada em julgado em 04.04.2008, pela prática em 22.04.2007, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, numa pena de 110 dias de multa à razão diária de € 6 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 8 meses. A pena de multa foi substituída por dias de trabalho a favor da comunidade e posteriormente declarada extinta pelo cumprimento. A pena acessória foi declarada extinta pelo cumprimento [PCS 145/07.6GBLSA do Tribunal Judicial da Lousã].

118. O arguido foi condenado por decisão transitada em julgado em 20.03.2012, pela prática em 02.02.2012, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, numa pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por 12 meses e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 12 meses. A pena de prisão suspensa foi declarada extinta, nos termos do disposto no artigo 57.º, nº 2 do Código Penal. A pena acessória foi declarada extinta pelo cumprimento [P. Sum. 50/12.4 GBLSA do Tribunal Judicial da ...]."

Facto acrescentado pelo Tribunal da Relação:

"119. O arguido é portador de personalidade de tipo "borderline" nos termos do relatório pericial do INML de fls. 294 a 330, elaborado a 15 de Junho de 2015".

B  -  RECURSO

As conclusões da motivação do recurso de arguido AA foram:

"1. O Tribunal recorrido, tendo aditado à matéria de facto um ponto do qual consta que “O arguido é portador de personalidade de tipo "borderline" nos termos do relatório pericial do INML de fls 294 a 330, elaborado a 15 de Junho de 2015.” e considerado que esse facto não deve ser indiferente, contradiz-se, no sentido em que, analisando o remanescente texto do acórdão, constata-se que o ponto da personalidade "borderline" foi completamente indiferente na consideração da situação jurídico-penal do recorrente.

2. Sofrer de personalidade "borderline" significa que o arguido sofre, em virtude da sua doença, profundas limitações ao nível da sua capacidade de discernimento.

3. Da descrição da doença, também resulta que o arguido é, passe o pleonasmo, doente! Aliás, é incompreensível que o acórdão diga que o relatório do INML não conclui que o arguido seja doente mental. Com o devido respeito, é o mesmo que olhar para um diagnóstico de cancro e dizer-se que o diagnóstico não conclui que o paciente seja doente oncológico! Só se lamenta que o relatório não tenha sido mais explicito porque assim se abriram portas para que, tal como sucedeu, leigos opinassem que "borderline" é uma personalidade, e não uma doença.

4. A personalidade "borderline" não é uma característica de personalidade. É uma doença mental universalmente reconhecida, descrita no DSM IV, DSM V, e na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID-10). Assim, e, mais uma vez, ressalvando-se o respeito devido, não tem o Tribunal da Relação qualquer autoridade para afirmar que a personalidade "borderline" não é uma doença mental. O Tribunal deve limitar-se a reconhecer os factos e aceitar a ciência, abstendo-se de entrar em discussões para as quais não está minimamente habilitado, como se a personalidade "borderline" é ou não uma doença. Senão, segue-se o quê? Tribunais a decidirem que a SIDA não é doença? Tribunais a decidirem que a homossexualidade é doença?

5. Com o devido respeito, é importante que cada um se cinja à sua área de especialidade. Se o DSM e o CID-10 definem a personalidade "borderline" como doença, os leigos só têm que acatar, especialmente quando estão colocados em posições oficiais nas quais essas classificações são relevantes. Na vida privada podem ter a opinião que quiserem. No tribunal, têm que colocar a opinião de leigo no “saco” e dar lugar à ciência. Lamentavelmente, assim não foi feito neste caso.

6. A personalidade "borderline" do arguido não foi tida em conta de forma alguma na sentença proferida, designadamente na medida das penas ou na ponderação sobre o que seria mais adequado à situação do arguido – prisão ou medida de segurança.

7. A Relação considera que a personalidade "borderline" não teve necessariamente influencia na culpa do arguido. Ora, tal consideração viola, ostensivamente, o principio “in dubio pro reo”. É que enquanto existe prova de que o arguido tem doença mental, inexiste prova de que essa doença não tenha tido impacto na culpa do arguido. É, portanto, uma afirmação arbitrária a feita no acórdão.

8. Na ponderação das penas a aplicar ao arguido, sobre a personalidade "borderline", não se escreveu uma linha na decisão da 1ª instância. Ora, se sobre isso não se escreveu uma linha em primeira instância, como pode a Relação afirmar que sem essa personalidade "borderline" o arguido mereceria ainda uma pena mais elevada do que os 22 anos no homicídio? A incongruência é, quanto a nós, flagrante. Obviamente que a pena não seria mais elevada sem a personalidade "borderline", uma vez que esta foi irrelevante na fixação da pena!

9. Parece-nos pacífico aceitar que não é justo punir quem não tem culpa, porquanto a pena deve corresponder à culpa, constituindo esta um seu limite, pelo que, se se entender que a pena se destina a punir um crime e assim realizar justiça, para que cada um sofra um mal pelo mal que provocou, então não faz sentido que se aplique uma pena àquele que é incapaz de compreender o significado do mal que praticou.

10. De acordo com jurisprudência assente “A imputabilidade constitui o primeiro elemento sobre que repousa o juízo de culpa. Só quem tem determinada idade e não sofre de graves perturbações psíquicas possuí aquele mínimo de capacidade de autodeterminação que o ordenamento jurídico requer para a responsabilidade jurídico-penal. Depende da existência de dois pressupostos, um biológico (...) um psicológico”.

11. A lei portuguesa, relativamente à culpa, afastou-se das teorias retributivas e instituiu, enquanto Estado de Direito, o princípio nulla poena sine culpa.

12. No artigo 40º do C.P. o nº 2 determina que a pena não poderá nunca ultrapassar a medida da culpa, funcionando esta como um limite que garante o indivíduo contra eventuais abusos aos seus direitos e à sua dignidade, constitucionalmente consagrados. Também do mesmo número decorre que, se não há pena sem culpa, os inimputáveis não podem ser punidos.

13. Assim, o acórdão recorrido viola o art. 40º nº2 do CP e nº3 do art. 20 do CP, o qual deveria ser aplicado no sentido de ser aplicada ao arguido pena inferior pelos crimes pelos quais foi condenado.

14. Quanto ao tratamento que devem receber os inimputáveis, a lei portuguesa prevê o internamento de inimputáveis, enquanto medida de segurança aplicável, quando a perigosidade e as exigências de defesa social o imponham, ao abrigo do artigo 91º do C.P., estabelecendo o nº 1 a conexão entre medidas de segurança e o facto praticado, introduzindo-se a gravidade como factor a ponderar na perigosidade, excluindo-se aqueles factos que não sejam considerados como seriamente lesivos de bens jurídicos protegidos ou interesses de especial relevância, traduzindo-se desta forma em letra os princípios da proporcionalidade e da intervenção mínima.

15. Na medida em que o arguido foi condenado a pena de prisão, também o artigo 91º do CP foi violado, uma vez que ao arguido deveria ser aplicada medida de internamento.

16. AA não fez tudo para matar o filho. Cometeu um acto de elevado perigo para a vida deste, que infelizmente foi suficiente. Podia não ter sido. A forma como AA comete o hediondo crime reflecte o quão dividido ele se encontrava entre a sua parte saudável e a sua parte doente, num braço de ferro infelizmente ganho pelo lado da doença, não sem antes causar no arguido enorme angústia, que o levou a cometer o crime como quem, o cometendo, não o quer verdadeiramente cometer. CC faleceu não porque o seu pai procurou de forma desvariada a sua morte, mas porque o seu pai foi tomado de assalto pelos demónios da sua doença, potenciados pelo álcool e pela droga, e estes demónios conseguiram forçar o arguido a encravar de forma pouco convicta e superficial a faca no peito de CC, que teve a infelicidade de ser mortalmente atingido em órgão vital.

17. O arguido é um homem doente. Considerar que este homem era livre de ditar os seus actos naquele momento de loucura é um insulto a todos os homens e mulheres saudáveis, a quem nunca passaria pela cabeça espetar uma faca num bebé. A liberdade que AA não teve na hora em que matou o seu filho, é a mesma liberdade que nós não temos na nossa opção de tratar os nossos filhos o melhor que sabemos e podemos. A diferença, é que a nossa “prisão” emocional com os nossos descendentes é algo de saudável, necessário à sobrevivência da espécie humana. AA, para mal dos seus pecados, não tem a capacidade de sentir esse elo emocional que um humano com um cérebro saudável tem. Dizer que AA decidiu, em liberdade, matar o seu filho, equivale a afirmar que nós, em liberdade, decidimos amar os nossos filhos. Ora, ambas as afirmações são falsas. Nem o homicídio do pequeno CC foi um acto de liberdade de AA, nem nenhuma das noites em branco passadas pelo signatário a cuidar dos seus filhos o foi. Um cérebro em bom funcionamento obriga os pais a cuidar dos filhos o melhor que sabem e podem. O homicídio de um bebe de meses pelo pai, por outro lado, é, por si só, sintomático de um cérebro doente.

18. O lugar de AA não é, pois, o ficar 23 anos numa prisão comum. O lugar de AA é junto de doentes como ele, com acompanhamento médico continuado, com medicação que melhore a sua condição, e garantindo-se que ele não é devolvido à sociedade enquanto for considerado uma ameaça, ao mesmo tempo que se garante a sua libertação assim que, por avanço na sua doença ou da ciência, essa ameaça desaparece.

19. A tendência de colocar em prisões as pessoas com perturbações mentais tem que terminar. É hora de limpar o pó do art. 20º do Código Penal e revogar a decisão, quanto a nós, pouco corajosa e injusta, de enviar este doente 23 ano para a prisão, antes aplicando-lhe as medidas de segurança previstas no Código Penal e fornecendo tratamento médico adequado. É que por mais que os tribunais o neguem, há inimputáveis no país. Já é tempo de reconhecermos que nem todos os portugueses estão aptos a responder criminalmente pelas suas acções. Que alguns de nós são doentes mentais, esquizofrénicos, "borderline" ou de outro foro.

20. Assim, impõe-se, face aos factos provados 6, 18, 43, 64, 75, 80, 81, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 96, 101, 102, 103 e ao facto aditado relativo à doença de personalidade "borderline", que se considere que o arguido ou é inimputável, ou tinha a sua imputabilidade fortemente diminuída aquando da prática dos crimes, encontrando-se em estado de demência causado pela síndrome de dependência alcoólica associada à personalidade "borderline" e ao consumo de haxixe.

21. Haja coragem para aplicar o art. 20º!"

O Mº Pª respondeu e disse a certa altura:

 " (…) No essencial, o recorrente insurge-se quanto ao facto de o tribunal não ter tirado as devidas ilações do aditamento que fez á matéria de facto dada como provada, designadamente considerando que o arguido é inimputável ou tem imputabilidade diminuída, invocando a violação dos art.ºs 20º e 40º do Código Penal.

Ora, a este propósito diz-se no acórdão recorrido, o seguinte: " ...dizer por aqui da existência de uma clara doença mental é manifestamente excessivo, mas não deixa de ser correcta a afirmação de que o arguido é portador de uma situação clinica de dependência alcoólica e de uma personalidade bordeline, nos termos descritos.

De todo o modo, em nenhum momento é mencionado com segurança e inequivocidade e que o mesmo fosse inimputável."

Ainda a este propósito, e na parte da medida da pena respeitante ao crime de homicídio, escreveu-se ainda o seguinte: " Ela foi uma circunstância que, não sendo embora de todo irrelevante, não assumiu influência comprovadamente decisiva na menor imputabilidade da acção típica e ilícita, já que o arguido foi sempre capaz de tomar as suas decisões, de modo livre e consciente, ainda que num limite, é certo, "bordeline", tocante de uma eventual psicopatia.

Não encontramos contudo razões, face á elevada censura exigente, para alterar esta medida. Aliás, cremos até que, sem essa personalidade bordeline e dependência alcoólica, o arguido mereceria ainda uma pena mais elevada do que aquela"

Na verdade, a coberto do referido aditamento, o arguido limita-se a retomar e a repetir, no essencial, toda a argumentação que expendeu ingloriamente na 1ª instância - diga-se, aliás, que nem sequer se dignou apresentar novos argumentos rebatendo, desta feita, os argumentos e fundamentação do acórdão de que ora recorre.

Assim e ao reeditar os argumentos com que não logrou convencer o Tribunal da Relação, apenas nos resta dizer que no acórdão recorrido contém-se, ponto por ponto, a mais clara e proficiente resposta às teses do recorrente.

Com efeito - e seria fastidioso proceder à transcrição da fundamentação que consta do texto da decisão - o acórdão analisa, em todos os seus aspectos, a natureza, sentido e extensão de cada uma das questões suscitadas pelo recorrente, o que faz de forma detalhada, profunda e exaustiva, pelo que nada mais nos resta do que para ela remeter.

Pelo que, somos do parecer que o recurso não merece provimento.

Termos em que, mantendo a decisão recorrida - e, obviamente, com o devido respeito por melhor e superior apreciação - será feita a Justiça do caso agora submetido à apreciação desse Supremo Tribunal."

A seu turno, a assistente disse nas conclusões da sua resposta:

"1. Vem o Arguido invocar que tendo o Tribunal da Relação de Lisboa, aditado à matéria de facto um ponto do qual consta que “O arguido é portador de personalidade de tipo "borderline" nos termos do relatório pericial do INML de fls. 294 a 330, elaborado a 15 de junho de 2015” e considerando que esse facto não deve ser indiferente, contradiz-se, no sentido em que, analisando o remanescente texto do acórdão, constata-se que o ponto da personalidade "borderline" foi completamente indiferente na consideração da situação jurídico-penal do recorrente.

2. Quanto aos factos invocados pelo aqui recorrente, é do entender da Assistente, que não lhe assiste qualquer razão, pois ao contrário do alegado, os doutos acórdãos proferidos, quer pelo tribunal de 1ª instância quer pelo Tribunal da Relação de Lisboa, tiveram em consideração a personalidade "borderline" do arguido.

3. Tal se alcança pela leitura do Douto Acórdão recorrido.

4. O Tribunal em 1ª instância aquando da fundamentação da sua convicção, atendeu ao relatório pericial psicológico elaborado pelo INML, o qual refere que face às conclusões alcançadas e que não refletem, pelo menos de forma direta, que o arguido padecesse de qualquer anomalia psíquica à partida excludente da sua capacidade de se determinar, ainda que se refira ter-se apurado uma organização de personalidade imatura, egocêntrica, num registo de uma personalidade com um funcionamento do tipo "borderline" (estado limite), com traços depressivos e impulsivos.

Tendo inclusive feito referência ao Ac. do STJ de 19.03.2009 para fundamentar a sua decisão.

5. Também o Tribunal da Relação teve em consideração a personalidade "borderline" pois conforme consta do douto Acórdão: “…aliado certamente à sua dificuldade de maior controle de frustração e de impulsos assente na sua personalidade "borderline" mas não por isso necessariamente inibidor da consciência do ilícito e do desvalor da acção ou da sua liberdade de agir. Potencialmente condicionante ou influenciador sim, mas não excludente.

6. Vêm ainda o douto Acórdão referir que “ Ao contrário do que diz o recorrente, o relatório pericial elaborado pelo INML, de 15 de junho de 2015, não conclui que, do ponto de vista psicológico, o arguido seja doente mental, mas releva um registo apreciativo que não é indiferente na apreciação da culpa e das exigências de prevenção.

Releva também relato dos factos de forma defensiva imatura, mas aparentemente com consciência integra e tendência para a desculpabilização e deflexão de responsabilidades, com ausência de sentimentos de culpabilidade.

Ao nível cognitivo, apresenta inteligência global considerada normativa quando comparado com sujeitos da sua idade revelando uma razoável capacidade de raciocínio, de organização percetiva, de estruturação espacial, pensamento lógico e sequencial, capacidade de concentração, sem dificuldades de focalização na atenção, sendo que estes dados traduzem uma razoável organização ao nível dos processos intelectuais com pensamento cognitivo integro não existindo indicadores de detioração mental ou nemésica. (…)”

7. Ou seja, dizer por aqui da existência de uma clara doença mental é manifestamente excessivo, mas não deixa de ser correta a afirmação de que o arguido é portador de uma situação clinica de dependência alcoólica e de uma personalidade "borderline".

8. De todo o modo, em nenhum momento é mencionado com segurança e inequivocidade que o mesmo fosse inimputável.

9. Ainda no douto Acórdão da Relação está expresso que acrescentando-se embora à matéria de facto provada o mencionado quanto á sua personalidade "borderline", a qual foi considerada na fundamentação de convicção.

10. O Tribunal da Relação de Lisboa, aquando da determinação da medida da pena teve em consideração a personalidade "borderline" do arguido, pois o Tribunal A Quo fundamenta e bem a aplicação de 22 anos de prisão pela prática do crime de homicídio qualificado, vejamos:

(…) Tendo em conta a média da moldura abstracta, fixável entre os 18 e 19 anos de prisão, a intensa culpa revelada, ainda que inerente a uma personalidade "borderline", mas não de todo necessariamente por causa dela, a pena fixada em 22 anos foi bem ponderada e assume-se num padrão de censura e de exigências de prevenção elevados.

(…)Ela foi uma circunstância que, não sendo embora de todo irrelevante, não assumiu influência comprovadamente decisiva na menor imputabilidade da acção típica e ilícita, já que o arguido foi sempre capaz de tomar as suas decisões, de modo livre e consciente, ainda que num limite, é certo, "borderline", tocante de um eventual psicopatia.

(…) Aliás, cremos até que, sem essa personalidade "borderline" e dependência alcoólica, o arguido mereceria ainda uma pena mais elevada do que aquela.

11. Não procede pois, aqui, a argumentação do recorrente no sentido de uma menor imputabilidade causada pela sua situação psicológica e adictiva

12. Vem ainda o recorrente, alegar que o Tribunal da Relação não tem qualquer autoridade para afirmar que a personalidade "borderline" não é uma doença mental, porém não foi o Tribunal que afirmou, mas sim o INML através de um exame pericial efetuado por profissionais isentos e idóneos.

E atendendo que os Julgadores, não possuem conhecimentos técnicos, têm os mesmos de se auxiliar nestas perícias para poderem tomar as suas doutas decisões.

13. Em momento algum, ficou provado que o recorrente era doente e não tivesse consciência e autodeterminação quando praticou aquele ato hediondo, tentando fazer crer que não se lembrava de nada, e imputar a prática daquele crime a terceiros, chegando mesmo ao cúmulo de imputar a morte do seu filho de 5 meses ao auxílio prestado pelos bombeiros.

14. O recorrente vem ainda, de forma displicente dizer que espetou a faca da forma menos convicta possível, não a enterrando, tendo-a espetado uma única vez, porém a lâmina da faca foi cravada no peito de um bebé de 5 meses pelo próprio pai, e atingiu-o no coração, o que demonstra que não foi feito da forma menos convicta nem foi superficial, ao contrário do que quer fazer crer o ora recorrente, confessando deste modo a prática do crime, o que não foi capaz de o fazer em sede de discussão e julgamento.

15. Deve-se ainda atender ao seguinte: O Código permite que a uma imputabilidade diminuída não corresponda obrigatoriamente uma pena atenuada, nada obstando até o contrário “...pode haver casos em que a diminuição da imputabilidade conduza à não atenuação ou até mesmo ao agravamento da pena. Isto poderá suceder quando as qualidades pessoais do agente que fundamentam o facto se revelem, apesar da diminuição da imputabilidade, particularmente desvaliosas e censuráveis, ex. em casos como os de brutalidade e de crueldade que acompanham muitos factos dos psicopatas insensíveis, os de inconstância dos lábeis ou os da pertinácia dos fanáticos.” (Figueiredo Dias cit in Cordeiro, 2003,p. 105).

Bem como o facto de que Não basta que exista doença mental, pois ela não dita de forma soberana que exista inimputabilidade, sendo necessário que se prove que esta torna o agente incapaz de uma avaliação/determinação perante o ilícito.” ( cit. in Cordeiro, 2003, p.103).

16.Ao contrário das pretensões do ora recorrente, os argumentos esgrimidos por este, conjugados com o exame pericial efetuado pelo INML, que conclui que não existe Doença mental, não se alcança poder por em causa o Douto Acórdão proferido.

Nestes termos e nos melhores de Direito, deve o Recurso interposto pelo Arguido ser considerado Improcedente, mantendo-se na íntegra o douto Acórdão proferido pelo Tribunal A Quo."

Por último, o Mº Pº sediado no STJ emitiu douto parecer referindo:

"Essencialmente, o recorrente visa o reexame da decisão sobre a sua imputabilidade, posto que possui uma personalidade "borderline".

II A Ex. mo Procuradora-Geral Adjunta na Relação de Lisboa, na sua resposta (1590-1592), defendeu a improcedência do recurso, considerando que o acórdão recorrido «analisa em todos os aspectos, a natureza, sentido e extensão de cada uma das questões suscitadas...»

III De igual modo, respondeu a assistente (1593-1601), concluindo, também, pela improcedência do recurso.

IV Nossa perspectiva

a) Sempre que a apreciação de determinado facto exigir especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos há lugar a perícia.

 É esta a disciplina consagrada no artigo 151.º do Código de Processo Penal.

 Foi o que sucedeu.

 Foi realizada uma perícia médico-legal pelo INML que concluiu que o arguido possui «uma organização de personalidade imatura, egocêntrica, num registo de uma personalidade com um funcionamento do tipo "borderline" (estado limite), com traços depressivos e impulsivos».

 E, uma vez que tal matéria não ficou expressa na matéria de facto provada, a Relação, em recurso, acrescentou tal conclusão factual à matéria de facto provada: - O arguido é portador de personalidade do tipo “borderline" nos termos do relatório pericial do INML de fls. 294 a 330. Elaborado a 15 de Junho de 2015.

 Ora, como foi apreciado e decidido pelo acórdão recorrido, o referido relatório não concluiu que o arguido seja doente mental, isto é, que seja um psicopata, e por via dessa perturbação da personalidade tivesse que ser considerado inimputável.

 Pelo contrário, considerou que «dizer por aqui da existência de uma clara doença mental é manifestamente excessivo…».

 E, para efeitos de determinação da existência de um estado de imputabilidade, deve-se anotar que uma personalidade do tipo "borderline" não implica, como efeito necessário, uma diminuição ou até completo afastamento da capacidade consciente de avaliação e de determinação.

 Aliás, esta questão já foi específica e detalhadamente tratada no acórdão deste Supremo Tribunal de 19 de Março de 2009, processo n.º 392/09 – 3ª, onde se expressou que ter uma personalidade do tipo "borderline" não significa que, aquando da prática dos factos dados como provados, não tivesse capacidade para agir como agiu e para determinar a sua conduta de forma livre e consciente, pois das características daquele tipo de personalidade, por si só, não resulta sempre e desde logo uma diminuição da capacidade de discernimento e de determinação do agente.

Resolvida a questão da imputabilidade, por se ter considerado que o tipo de personalidade do arguido, no caso, não lhe afectou a capacidade de avaliação e determinação, não se vislumbra o fundamento da alegada violação ostensiva do princípio in dubio pro reo.

 Com efeito, perante a perícia e prova produzida, os julgadores (1.ª Instancia e Relação) não manifestaram qualquer dúvida sobre a ausência de reflexo daquele tipo de personalidade na culpa do arguido, nem se lhes impunha que caíssem num estado de incerteza sobre tal questão.

 Finalmente, deve-se acrescentar que o referido tipo de personalidade também não impõe uma diminuição da pena (por culpa menor).

 Na verdade, como já se decidiu no acórdão desta Alta Instância atrás mencionado, citando Figueiredo Dias, «pode haver casos em que a diminuição da imputabilidade conduza à não atenuação ou até mesmo à agravação da pena. Isto sucederá, do meu ponto de vista, quando as qualidades pessoais do agente que fundamentam o facto se revelem, apesar da diminuição da imputabilidade, particularmente desvaliosas e censuráveis, v.g. em casos como os da brutalidade e da crueldade que acompanham muitos factos dos psicopatas insensíveis, os da inconstância dos lábeis ou os da pertinácia dos fanáticos.»

 Ora, no caso, o arguido que agiu contra o seu indefeso filho de cerca de 5 meses de idade, revelou total insensibilidade pela vida deste, agindo com especial censurabilidade, justificando-se, inteiramente, que, dentro do tipo qualificado de homicídio, a pena se situe no sector superior da moldura.

 Não vislumbramos, pois, qualquer violação dos critérios que devem presidir à fixação da medida da pena, que se adequa à culpa do arguido e exigências de prevenção, não merecendo, de igual modo, censura a pena única encontrada.

Pelo exposto, entendemos que o recurso não merece provimento".

Colhidos os vistos os autos foram levados à conferência.

C  -  APRECIAÇÃO

1. Tanto quanto se alcança da motivação do recurso do arguido, densificada nas conclusões, insurge-se o mesmo contra o acórdão recorrido, em primeiro lugar, por não ter tirado do facto acrescentado, “O arguido é portador de personalidade de tipo “borderline”, nos termos do relatório pericial do INML de fls. 294 a 330, elaborado a 15 de Junho de 2015”, as devidas conclusões. E assim, para o recorrente, o acórdão deveria considerar que o mesmo é doente mental em virtude dessa perturbação, e tirar daí as consequências, em sede de medida das penas encontradas. Mais corretamente, para considerar o arguido inimputável e decidir aplicar-lhe uma medida de segurança e não uma pena, como mais adiante acaba por pretender sem margem para dúvidas (conclusões 1 a 6). 

2. Depois, entende que foi violado o princípio in dubio pro reo já que, se foi provado que o arguido era portador de personalidade de tipo "borderline", não foi provado que a doença não tenha tido impacto no comportamento do arguido e, no entanto, considerou-se que a personalidade de tipo "borderline" não teve necessariamente influência na sua culpa (conclusão 7).

3. Tecem-se de seguida considerações tendentes a demonstrar que foram violados os arts. 40º, nº 2 e 20º, nº 3 do CP e ainda o art. 91º do CP, relativo ao internamento de inimputáveis, tudo porque a condenação violou a medida da culpa que o arguido pode suportar (conclusões 8 a 14).

4. As conclusões seguintes revelam alguns pontos de vista pessoais da defesa, tendentes, no seu conjunto, a fundar a pretensão de que o recorrente venha a ser declarado inimputável e como tal sujeito a medida de segurança.

Vejamos então.

1. A QUESTÃO DA IMPUTABILIDADE

Consta de fls. 293 e segs. o Relatório Pericial Psicológico elaborado nos termos do art. 160º do CPP, pelo Serviço de Clínica e Patologia Forense do Instituto Nacional de Medicina Legal, nos termos do qual, em sede de "AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA" (fls. 320 e segs.), o arguido foi sujeito aos vários testes usuais no condicionalismo, e de que se retiram a nosso ver elementos importantes para a decisão, assim expressos:

"(…) comparativamente aos indivíduos da sua idade, o examinando revelou um nível de funcionamento intelectual global situado ao nível da chamada «inteligência normal corrente», com um Q.I. total de 100" (fls. 320).

"(…) revela ainda um contacto interpessoal pouco empático e desinvestido, com um baixo grau de aculturação social, não atribuindo grande importância à internalização da cultura, das normas e dos valores sociais e morais, denotando acentuada tensão e impulsividade, baixa tolerância ao stress e pouca preocupação sobre as consequências dos seus actos. (…) Evidencia uma baixa capacidade analítica, de flexibilidade e de precisão, associada com impulsividade e precipitação nas tarefas, que dá conta que o examinado se encontra mais virado para a ação do que para a introspecção, podendo existir frequentemente momentos de acumulação de energia, que não sendo organizada mentalmente se irá manifestar em comportamentos facilmente disruptivos" (fls. 321 e 322).

"(…) O teste projetivo da personalidade de Rorschach fornece elementos extremamente objectivos e fidedignos sobre a estrutura e organização da personalidade, da afetividade e do pensamento humano. (…) apuramos tratar-se de uma personalidade intratensiva quanto à sua ressonância íntima, comum em sujeitos mais reservados, que tendem a adaptar-se à realidade de uma forma retraída e com recurso aos processos de racionalização, mas que em momentos de maior tensão pode observar-se um incremento de impulsividade. (…) Em suma, este protocolo remete para um funcionamento psíquico compatível com uma organização da personalidade de tipo borderline (estado limite) com traços depressivos e impulsivos." (fls. 324).

"(…) Na perícia psicológica foram usados ainda três instrumentos que a literatura científica aponta como importantes para a avaliação do risco de violência, ou extrapolando para diferente linguagem, para a denominada prognose da perigosidade. Os instrumentos em causa são a Escala de Avaliação de Psicopatia de Hare (PCL-R), a Escala do Risco de Violência (HCR-20) e a checklist de Avaliação de Fatores de Proteção para o Risco de Violência (SAPROF). Importa ter em linha de conta que com estes instrumentos pretende-se pois avaliar a perigosidade independentemente de processo psicológico, sem prejuízo que a PCL-R utilize o constructo Psicopatia, que ainda que assimilável a alteração de personalidade não é em sentido estrito doença ou classificável como tal, e mesmo que alguns fatores do HCR-20 possam, em abstrato, relevar a existência de eventual patologia, conferindo esta quando presente, um dado peso relativo.

A Checklist de Psicopatia Revista (PCL-R) (originalmente designada Psychopathy Checkist - Revised, de Hare, 1991), é um instrumento composto por 20 itens (…) que pretendem avaliar o grau do que se convencionou designar psicopatia, através de uma escala que varia de 0 a 40 pontos. A psicopatia surge aqui entendida como um constructo de ordem superior que combina aspectos relacionados com traços de personalidade que se identificam ao egoísmo, frieza afectiva e ausência de remorsos, com comportamentos que reflectem um estilo de vida anti-social. A cotação de cada item é feita com base no funcionamento típico do sujeito e não tanto no seu estado actual (avaliação de traços e não de estado). Segundo as indicações de Hare, um resultado igual ou superior a 30 pontos é indicador da existência de psicopatia, considerando-se ainda como não psicopatas todos os indivíduos que pontuam abaixo de 20 e moderadamente psicopatas os que se situam entre os 20 e 29 pontos.

De acordo com a aplicação da PCL-R verifica-se uma pontuação total de 30 compatível com presença de psicopatia.

A Checklist de Avaliação do Risco de Violência - Versão 2 (HCR-20, Assessing Risk for Violence - Version 2, da autoria de Webster, Douglas, Eaves, & Hart, 1997) procura analisar o risco de violência, (…) Utilizando o HCR-20, o examinando foi avaliado tendo em conta a sua actual situação de reclusão e uma eventual colocação na comunidade. Em ambos os casos, o risco de violência foi considerado moderado a alto (cotado em 33 em eventual colocação na comunidade e em 30 na actual situação de reclusão).

O SAPROF (Structured Assessment of Protective Factors For Violence Risk) é um instrumento que avalia fatores de proteção para o comportamento violento. (…) Para o caso em análise, uma cotação individual dos itens remete para a existência de escassos factores de proteção que possam colmatar de forma eficaz os riscos de violência evidenciados.

Assim, numa avaliação final integrativa de risco em relação à violência futura (integração dos resultados do HCR-20 e do SAPROF) o parecer é de risco elevado.

8. DISCUSSÃO / CONCLUSÕES

8.1. AA revela, à data da observação um humor distímico (leia-se, sub-depressivo). O seu relato dos factos é efectuado de forma extremamente defensiva imatura mas aparentemente com consciência integra e tendência para a auto- desculpabilização e para a deflexão de responsabilidades, com ausência de sentimentos de culpabilidade.

8.2. Ao nível cognitivo, o examinado apresenta uma inteligência global considerada normativa quando comparado com outros sujeitos da sua idade, revelando uma razoável capacidade de raciocínio, de organização perceptiva, de estruturação espacial, de pensamento lógico e sequencial. Constata-se ainda, alguma resistência às tarefas e à avaliação psicológica, proposta, ainda que em nenhum momento tenha negado expressamente a colaboração.

Revela capacidade de concentração, sem dificuldades na focalização da atenção, sendo que estes dados traduzem uma razoável organização ao nível dos processos intelectuais, com processamento cognitivo íntegro não existindo indicadores de deterioração mental ou de deterioração mnésica.

8.3. Na avaliação psicológica realizada apura-se também uma organização de personalidade imatura, egocêntrica, num registo de uma personalidade com um funcionamento do tipo borderline (estado limite), com traços depressivos e impulsivos. Revela ainda, uma importante instabilidade e inquietação, com alterações de humor e a presença de sentimentos de vazio e desamparo que não são devidamente elaborados na sua estrutura psíquica, visto serem considerados fraquezas.

Assim, constata-se que o examinado procura negar e usar as emoções de uma forma selectivamente manipulativa e adaptável - ainda que não necessariamente num registo consciente e intencional - consoante o contexto e o seu objectivo, oscilando entre a postura de vitimização e desculpabilização.

O examinado demonstra um baixo limiar de tolerância a situações frustrantes e stressantes, situações nas quais o seu padrão de funcionamento tende a desencadear impulsos agressivos maciços sem qualquer modulação nem contenção emocional, decorrente de um sistema de defesas psicológicas precárias, escassas e ineficazes, regendo-se essencialmente pela pura descarga comportamental com pouca preocupação pelas consequências para os outros.

8.4. Ao nível dos relacionamentos interpessoais e de socialização, o examinado apresenta acentuado comprometimento e desajustamento, uma vez que tende a isolar os seus afectos de forma egocêntrica, com grandes dificuldades relacionais ao nível da gestão de conflitos e de  contenção da agressividade.

8.5. No que concerne à perigosidade, independente de quadro psicopatológico, não pode pois deixar de ser tido em conta que a personalidade descrita revela acentuada agressividade e instabilidade, frieza emocional e baixo limiar de tolerância a situações de stress e de ansiedade, o que nos remete para um risco de violência alto, corroborado pelos instrumentos de risco de violência, pela avaliação de personalidade e pelas entrevistas clínicas."

Importa então ter em conta que, do exame pericial efetuado, resulta que o arguido apresenta um psiquismo com traços "compatíveis" com uma organização da personalidade de tipo "borderline". A impulsividade e agressividade estão presentes e a perigosidade penal é elevada.

Por outro lado, em lado algum se considera ser o arguido um inimputável ou portador de uma imputabilidade diminuída, certo que se fosse esse o caso por certo não deixaria de ser mencionado. Aliás, o próprio arguido não requereu a feitura de mais nenhum exame e discorreu sempre,  só a partir daquele que foi feito e que considerou suficiente.

1.1. O acórdão recorrido tomou posição sobre a questão da personalidade do arguido e sua imputabilidade, ainda em sede de matéria de facto, dizendo a dado passo (fls. 1552 verso e 1553):

"(…) As declarações do arguido foram dissecadas e tidas como inexplicáveis nas suas contradições em determinados pontos, cabendo ao tribunal a quo total liberdade de avaliação do alcance e significado de tais hiatos e contradições.

Não lemos naquela a impressividade de exagero ou arbítrio que o recorrente aponta, antes pelo contrário, dali se alcança que o tribunal teve detalhada preocupação em explorar o sentido de tais contradições do arguido, o qual, apesar de todas as provas em contrário, ainda se debate a tentar demonstrar que até poderia haver falsas memórias da sua parte sobre a autoria da morte da criança, quando os factos provados são mais do que claros em como foi o arguido quem matou o filho bebé nas circunstâncias de oposição relacional à mãe desta e que o conflito entre ambos foi decisivo para o desencadear das acontecimentos, aliado certamente à sua dificuldade de maior controle de frustração e de impulsos assente na sua personalidade borderline mas não por isso necessariamente inibidor da consciência do ilícito e do desvalor da acção ou da sua liberdade de agir. Potencialmente condicionante ou influenciador sim, mas não excludente. [realce nosso].

Porém, o recorrente entende que deve a matéria de facto dada como provada ser ampliada e acrescentado o seguinte ponto, com base na conclusão 8.3 do relatório pericial do INML, constante de fls. 293 e segs:

O arguido tem doença mental prevista no Manual Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais (DSM), sendo portador de personalidade de tipo borderline.

Muito embora o tribunal aluda a este aspecto e não o exclua, cf. se retira de fls 39, penúltimo parágrafo, da decisão, é verdade que este diagnóstico foi efectuado e não deve ser indiferente.

Na matéria de facto provada não consta mas cremos adequado acrescentar na dita matéria o aludido facto, embora nos seguintes termos:

O arguido é portador de personalidade de tipo "borderline" nos termos do relatório pericial do INML de fls 294 a 330, elaborado a 15 de Junho de 2015.

Ao contrário do que diz o recorrente, o relatório pericial elaborado pelo INML, de 15 de Junho de 2015, não conclui que, do ponto de vista psicológico, o arguido seja doente mental, mas revela um registo apreciativo que não é indiferente na apreciação da culpa e das exigências de prevenção ao afirmar que este possui "uma organização de personalidade imatura, egocêntrica, num registo de uma personalidade com um funcionamento do tipo borderline (estado limite), com traços depressivos e impulsivos. Revela ainda, uma importante instabilidade e inquietação, com alterações de humor e a presença de sentimentos de vazio e desamparo que não são devidamente elaborados na sua estrutura psíquica, visto serem considerados fraquezas.

Assim, constata-se que, o examinado procura negar e usar as emoções de uma forma selectivamente manipulativa e adaptável ainda que não necessariamente num registo consciente e intencional - consoante o contexto e o seu objectivo, oscilando entre a postura de vitimização e desculpabilização. O examinado demonstra um baixo limiar de tolerância a situações frustrantes e stressantes, situações nas quais o seu padrão de funcionamento tende a desencadear impulsos agressivos maciços sem qualquer modulação nem conteúdo emocional, decorrente de um sistema de defesas psicológicas precárias, escassas e ineficazes, regendo-se essencialmente pela pura descarga comportamental com pouca preocupação pelas consequências para os outros. "

Revela também relato dos factos de forma defensiva imatura, mas aparentemente com consciência íntegra e tendência para a desculpabilização e deflexão de responsabilidades, com ausência de sentimentos de culpabilidade.

Ao nível cognitivo, apresenta "inteligência global considerada normativa quando comparado com sujeitos da sua idade revelando uma razoável capacidade de raciocínio, de organização perceptiva, de estruturação espacial, pensamento lógico e sequencial... capacidade de concentração, sem dificuldades de focalização na atenção, sendo que estes dados traduzem uma razoável organização ao nível dos processos intelectuais com pensamento cognitivo íntegro não existindo indicadores de deterioração mental ou mnésica.) "

Ou seja, dizer por aqui da existência de uma clara doença mental é manifestamente excessivo, mas não deixa de ser correcta a afirmação de que o arguido é portador de uma situação clínica de dependência alcoólica e de uma personalidade borderline, nos termos antes descritos.

De todo o modo, em nenhum momento é mencionado com segurança e inequivocidade que o mesmo fosse inimputável.

B) Em conclusão do exposto, acrescentando-se embora à matéria de facto provada o mencionado quanto à sua personalidade borderline, a qual foi considerada na fundamentação de convicção, não procede em toda a alinha a impugnação de facto argumentada."

1.2. O art. 40º, nº 2, do CP, diz-nos que "Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa". Significa isso que na medida da pena (e também na escolha da pena) o grau de culpa se apresenta como limite intransponível, assim se consagrando o "princípio da culpa" que informa todo o nosso direito penal. A culpa analisar-se-á então, sob a forma de dolo ou de negligência (art. 13º do CP), num atributo do agente quando agiu como agiu ou por ser como é, que provoca um juízo de censura alheio. A culpa "não será" rigorosamente o juízo de censura, porque recai necessariamente sobre uma realidade que está para além desse juízo, antes se analisa numa situação que despoleta como reação o juízo de censura.

Ora, a possibilidade de se ser objeto desse juízo de censura arrasta evidentemente a capacidade de culpa como o primeiro elemento sobre que esta se baseia. Só o facto (ou também a personalidade) assente numa "atitude interna juridicamente desaprovada" (a expressão é de Jescheck in "Tratado de Derecho Penal – Parte General", Comares, 2002, pág. 465), pode ser censurado. "Unicamente quem alcançou uma determinada idade e não padeça de graves anomalias psíquicas possui o grau mínimo de capacidade de autodeterminação que é exigido pelo Ordenamento jurídico para a responsabilidade penal" (idem).

O art. 20º do CP faz derivar a inimputabilidade, no seu nº 1, como se sabe, da dupla condição de o agente ser portador de anomalia psíquica, e ainda de, no momento da prática do facto, ser incapaz de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.

Quanto àquela, que Figueiredo Dias apelida de "conexão biopsicológica" (in "Direito Penal, Parte Geral", tomo I, 2ª edição, sobretudo pág. 574 e segs. que aqui seguiremos), entende-se que o conceito de anomalia psíquica é bem mais vasto do que o de "doença mental", abrangendo "todo e qualquer transtorno ocorrido ao inteiro nível do psíquico, adquirido ou congénito". Aí se incluem pois as chamadas psicopatias, enquanto "desvios de natureza psíquica relativamente ao «normal» que se não baseiem em uma «doença» ou «enfermidade corpórea»", e que apresentam "peculiaridades do caráter devidas à própria disposição natural, e que afetam de forma sensível, a capacidade de levar uma vida social ou de comunicação normal ".

O autor que referimos acrescenta depois que a enorme extensão do campo das psicopatias e a ambiguidade, afinal, do conceito de normalidade, impõem uma "fortíssima restrição". Esta realizar-se-á através da ideia de que temos que estar perante distúrbios "graves" ou "muito graves", equiparáveis "nos seus efeitos sobre o decurso da vida psíquica, a verdadeiras psicoses". Nestas últimas se incluem, consabidamente, por exemplo, a esquizofrenia ou a loucura maníaco-depressiva.

Quanto ao segundo elemento, apelidado de "conexão normativo-compreensiva", entende-se que, se "a anomalia psíquica destrói as conexões reais e objectivas de sentido de actuação do agente, de tal modo que os actos deste podem porventura ser «explicados», mas não podem ser «compreendidos» como factos de uma pessoa ou de uma personalidade", então estar-se-á perante um inimputável.

Entendemos que, por um lado, o juízo de inimputabilidade não pode deixar de pressupor que o agente não pôde agir de outra maneira na situação. É a nossa lei que claramente o impõe.

Para ser considerado inimputável o agente tem que atuar como pessoa completamente não livre, do ponto de vista intelectivo, volitivo ou de ambos.

Ora, para se chegar a esta conclusão, ou à inversa, sempre teremos que recorrer a factos concludentes que uma experiência empírica da vida nos revela. Aliás, este "senso comum" não pode deixar de ser valorado e transposto normativamente, porque é ele que subjaz e é generalizadamente aceite em todo o relacionamento social. A comunidade só funciona porque tem na base a possibilidade de responsabilização dos seus membros, de tal modo que a liberdade (enquanto poder agir de outra maneira), como característica do humano, deve ser pressuposto de toda a política social e portanto criminal, sem necessidade de prova científica ou demonstração filosófica.

Mas, por outro lado, e consequentemente, o comportamento do inimputável deve constituir, para o julgador, um desafio à compreensão. Compreensão que se mostrará impossibilitada quando se revela uma falta absoluta de sentido na atuação do agente, a falta de "apreensão da conexão objetiva de sentido entre a pessoa e o seu facto" (ibidem).    

Dir-se-ia, nesta linha de raciocínio, que perante uma personalidade "bad" se censura porque se entende. Face a uma personalidade "mad", a total incompreensibilidade da atuação do agente abre caminho à não censura.

O art. 20º citado, no seu nº 2, contempla as situações em que, havendo anomalia psíquica que tem que ser grave, não acidental e com efeitos que o agente não domina, mas sem que por isso possa ser censurado, o agente apresente uma capacidade de avaliação e determinação "sensivelmente diminuída" no momento da prática do facto. Assim, surge como postulado incontornável do legislador a possibilidade de quantificação das capacidades. Não se é, ou não é livre, quando se atua, ponto final. A lei pressupõe que o agente pode ser mais ou menos livre quando atua.

 O sistema monista pelo qual o legislador resolveu enveredar leva a que, em tais casos, o julgador possa considerar o agente inimputável, sujeitando-o a uma medida de segurança, ou então manter o juízo de imputabilidade, traduzindo na medida da pena a consideração de um grau diminuído de culpa, e mesmo assim, não necessariamente.

1.3. É tempo de abordarmos os contornos do caso concreto e tirar conclusões.

Recorde-se que o arguido se iniciou cedo no consumo de haxixe e álcool (facto 64) o que contribuiu, até, para que os progenitores o tenham afastado do ambiente em que ele vivia, propício a tais consumos. E foi por isso que mudaram de residência.

Aos 21 anos, o consumo de álcool, da sua parte, criou problemas ao nível laboral e a uma rutura conjugal (factos 65 e 73). Com uma nova companheira a partir de 2004, o arguido veio a protagonizar novas ruturas em novembro de 2007, setembro de 2008, em 2011 e junho de 2013 (factos 82, 88, 95 e 5). Tudo porque quando se etilizava era pessoa violenta e agressiva (facto 81).

O arguido teve acidentes de viação em virtude de condução sob o efeito do álcool (facto 80).

Sofreu três condenações por condução de veículo automóvel em estado de embriaguez (factos 116, 117 e 118).

Inclusive, por sua iniciativa, o arguido inúmeras vezes recorreu a consultas de alcoologia e sujeitou-se a três internamentos para combater a sua dependência do álcool, com as consequências conhecidas, derivadas do seu consumo (factos 83, 84, 87, 88, 96 e 101).

Serve para dizer que se está perante uma problemática aditiva, que estragou a vida do arguido ao longo de anos mas de que este tinha plena consciência. Também sabia que após a última rutura do casal, o reatamento da relação que de facto viria a ter lugar, ficou condicionado pelo facto de o arguido não voltar a beber (facto 7).

Em dezembro de 2014 o arguido despediu-se do emprego e passou a ser ele a tomar conta do filho que nascera em outubro. A 8 de abril de 2015 a companheira rompeu mais uma vez com o AA porque percebeu que este voltara a beber, e foi a partir de aí que os factos se desencadearam.

Sabido que o arguido ingeriu álcool e detinha resina de canábis para seu consumo (facto 42), vivia numa situação em que era percetível o seu descontentamento porque desempregado, permanecendo em casa a tomar conta do filho (queria saber se a companheira o considerava um "baby-sitter" ou um "gigolo" – facto 23). Em que fica clara, também, a não-aceitação de mais uma separação do casal e o propósito de se vingar sobre a companheira servindo-se do filho bebé. Por tudo isto, a sua atuação, embora altamente reprovável, não é desprovida de sentido.

 

1.3.1. A peritagem do Instituto de Medicina Legal revelou que o arguido apresenta um distúrbio da personalidade, concretamente, um psiquismo compatível com uma personalidade "borderline". No entanto, nada existe nos autos que permita inferir dessa psicopatia um estado de inimputabilidade aquando dos crimes que cometeu. Pelo contrário, a sequência do comportamento e o discurso usado nas comunicações feitas, decorrentes do que se provou, mostram que o arguido estava no uso das suas capacidades. 

A ingestão de álcool associada a esse tipo de personalidade pode ter propiciado ou potenciado os contornos da conduta que assumiu, mas daí a dar-se por assente que o arguido não se apercebeu de que estava a cometer crimes e crimes graves, ou então que, tendo essa consciência nada podia fazer para travar os seus impulsos, vai uma grande distância. Sobretudo se, como se provou, o arguido "tinha conhecimento de que quando consumia álcool, e quando misturava o consumo de álcool com o consumo de produtos estupefacientes e medicamentos, tornava-se numa pessoa violenta, com o que se conformou" (facto 43).

O sentido de atuação do comportamento do agente não oferece dúvidas. Usando a expressão cara ao autor a que atrás nos referimos, não existe uma rutura na compreensão da conexão entre a pessoa e a sua atuação (diferentes seriam as coisas se por exemplo, em vez de matar o filho tivesse morto um qualquer cidadão ou tivesse tentado pegar fogo a outra casa).

Como se referiu no acórdão deste STJ de 19-03-2009 (Pº 315/09 - 3.ª Secção),         

      "I - O Manual Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais (DSM-IV-TR) define o transtorno de personalidade “borderline” como «um padrão inerente de instabilidade dos relacionamentos interpessoais, autoimagem e afectos e acentuada impulsividade».

      II - «O quadro engloba algumas manifestações típicas de vários transtornos psiquiátricos como esquizofrenia, depressão, transtorno bipolar, mas em geral os pacientes não saíram totalmente do estado considerado normal para serem enquadrados em tais classificações. A síndrome "borderline" é, portanto, um mosaico de sintomas menos acentuados de diversos transtornos» (cf. Arch. Gen. Psychiatry, 2001 58(6): 590-596 – The Prevalence of Personality Disorders in a Community Sample – Torgersen Svenn, in www.cienciasecognição.org).

      III - O mesmo DSM-IV (4.ª ed., XXIII e XXIV), a propósito da utilização do diagnóstico clínico de uma perturbação mental para fins forenses, ensina que «Na maior parte das situações, o diagnóstico clínico de uma perturbação mental…não é suficiente para estabelecer a existência para fins legais de uma «perturbação mental», uma «incapacidade mental», uma «doença mental» ou um «defeito mental». Na determinação de quando um sujeito está dentro de uma determinada norma legal específica (por exemplo, competência, responsabilidade criminal ou incapacidade), é geralmente necessária informação adicional para além da contida no diagnóstico…. Isto pode incluir informação sobre incapacidades funcionais individuais e como estas incapacidades afectam aquelas capacidades particulares postas em questão. É precisamente porque incapacidades, capacidades e diminuições das capacidades variam amplamente dentro de cada categoria diagnóstica que a indicação de um diagnóstico particular não implica um nível específico de diminuição da capacidade ou incapacidade».

     IV - O facto de o arguido ter uma personalidade de estrutura "borderline" não significa que, aquando da prática dos factos dados como provados, não tivesse capacidade para agir como agiu e para determinar a sua conduta de forma livre e consciente, pois das características daquele tipo de personalidade, por si só, não resulta sempre e desde logo uma diminuição da capacidade de discernimento e de determinação do agente (…). [do Sumário do acórdão].

Em matéria de imputabilidade diminuída, dir-se-á, a finalizar, que não estão reunidos os pressupostos de que o nº 2 do art. 20º do CP faz depender a possibilidade de declaração de inimputabilidade.

Mesmo que se considerasse que a personalidade "borderline" era de classificar "anomalia psíquica grave", o que não se concede sem mais, faltava ter por assente que o arguido não dominava os efeitos dessa anomalia psíquica e sobretudo que, sendo esse o caso, não podia ser censurado por tal falta de domínio. É que se mostra incontornável a consciência que o arguido tinha, de que se bebesse álcool se tornava agressivo e violento, sendo também certo que, durante períodos da sua vida, conseguiu ser abstémio.

Significa, então, que os dados dos autos levam a considerar o recorrente imputável aquando do cometimento dos factos, devendo a ponderação da adição ao álcool e da personalidade "borderline" ser ponderadas em sede de medida da pena.

2. A QUESTÃO DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO "IN DUBIO PRO REO"

Para o recorrente, a violação do princípio derivaria do facto de ele ser portador de personalidade "borderline", não ter ficado provado que a doença não tenha tido impacto no seu comportamento e daí que, ao se considerar que a personalidade de tipo "borderline" não teve necessariamente influência na culpa do arguido, se tenha feito uma afirmação arbitrária.

A questão está manifestamente deslocada se se pretender situá-la no âmbito da violação do princípio "in dubio pro reo".

É que a invocação da violação desse princípio arranca da consagração constitucional de outro princípio, a saber, da presunção de inocência, do art. 32º nº 2 da CR. Sabendo-se que a principal incidência intra-processual deste último se reporta ao ónus da prova da culpa do arguido, formalmente, e à partida, a cargo da acusação, embora tudo temperado pelo princípio da investigação ou da verdade material a observar pelo juiz. O que o princípio nos diz, é que não recai, sobre quem é considerado inocente, a obrigação de ilidir a presunção dessa mesma inocência.

Ora, como corolário do princípio da presunção da inocência surge-nos o princípio “in dubio pro reo”. Se a acusação, e em última instância o próprio juiz, não conseguem reunir prova da culpabilidade do arguido, a ponto de o tribunal ficar numa situação de dúvida, então impor-se-á a absolvição. O tribunal não pode decidir-se por um “non liquet”: ou absolve ou condena. As limitações com que se debateu o funcionamento do “jus puniendi” não poderão prejudicar o arguido.

Só que a situação de dúvida tem que se revelar de algum modo, e sobretudo através da sentença. A dúvida é a dúvida que o tribunal teve, não a dúvida que o recorrente acha que, se o tribunal não teve, deveria ter tido. A esta outra problemática se responderia eventualmente com a invocação do vício da matéria de facto da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, o qual, porém, no caso, também não teria sustentação (art. 410º, nº 2, al. a) do CPP).

No caso em apreço, o que se constata é que o tribunal, quer da primeira, quer da segunda instância, não revelaram dúvidas quanto à possibilidade de responsabilização do recorrente. Entendeu o acórdão recorrido que a personalidade "borderline" "foi uma circunstância que, não sendo embora de todo irrelevante, não assumiu influência comprovadamente decisiva na menor imputabilidade da acção típica e ilícita, já que o arguido foi sempre capaz de tomar as suas decisões, de modo livre e consciente, ainda que num limite, é certo, «borderline», tocante de uma eventual psicopatia" (fls. 1560). Se o tribunal não teve dúvidas, como é que se pode dizer que esteve "in dubio"?

3. MEDIDA DAS PENAS PARCELARES E ÚNICA

Afastada a qualificação do arguido como inimputável ou a emanação de uma declaração de inimputabilidade, por força de imputabilidade diminuída, à luz do art. 20º, nº 2 do CPP, todas as considerações que o arguido tece, relacionadas com a aplicação de penas para além da culpa que pode suportar, terão que ser abordadas unicamente em sede de ponderação da medida das penas aplicadas.

3.1. Penas parcelares

Retomando considerações já constantes doutras decisões, sem que tenhamos motivo para alterar o ponto de vista expresso, dir-se-á que na escolha da pena concreta a aplicar, não pode deixar de se prender com o disposto no art. 40.º do CP, nos termos do qual toda a pena tem como finalidade “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. E, em matéria de culpabilidade, diz-nos o nº 2 do preceito que “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Com este preceito, fica-nos a indicação de que a pena assume agora, entre nós, um cariz utilitário, no sentido de eminentemente preventivo, não lhe cabendo, como finalidade, a retribuição qua tale da culpa. Ao julgador não compete retribuir a culpa o que não impede o legislador de agravar um ilícito típico por força de circunstâncias inerentes à culpa. De todo o modo, a avaliação da culpa do agente fica ao serviço, fundamentalmente, de finalidades garantísticas, e só do interesse do arguido.

Quanto aos fins utilitários da pena, importa referir que, se o artº 40º do C.P. optou por cumular a defesa dos bens jurídicos com a reintegração do agente na sociedade, não podemos deixar de ver, nesta última, uma finalidade especial preventiva, em versão positiva, e, na dita defesa de bens jurídicos, um fim último que se há de socorrer do instrumento da prevenção geral.
Quando, pois, o art. 71.º do CP nos vem dizer, no seu nº 1, que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, não o podemos dissociar daquele art. 40.º. Daí que a doutrina venha a defender, sobretudo pela mão de Figueiredo Dias, (Cf. “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2005, págs. 227 e segs.) que, se as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos, e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade, então, o processo de determinação da pena concreta a aplicar, por um lado, excluirá que a expressão “em função da culpa do agente” possa ser vista, como uma recuperação de propósitos retributivos enquanto tais. Por outro lado, refletirá, de um modo geral, a seguinte lógica:
A partir da moldura penal abstrata procurar-se-á encontrar uma “sub-moldura” para o caso concreto, que terá como limite superior a medida ótima de tutela dos bens jurídicos com atenção às expectativas comunitárias, e, como limite inferior, o “quantum” abaixo do qual “já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar.” (Cf. Idem pág. 229).
Ora, será dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva que deverão atuar os pontos de vista da reinserção social. Quanto à culpa, para além de suporte axiológico- normativo de toda e qualquer repressão penal, compete-lhe, como se viu já, estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a aplicar. A prevenção geral negativa ou intimidatória surgirá como uma consequência de todo este procedimento.
A jurisprudência deste STJ tem-se orientado quase unanimemente num sentido igual ao que acaba de se referir.
O nº 2 do artº 71º do CP manda atender, na determinação concreta da pena, “a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele”. Enumera a seguir, a título exemplificativo, circunstâncias referentes à ilicitude do facto, à culpa do agente, à sua personalidade, ao meio em que se insere, ao comportamento anterior e posterior ao crime.

3.1.1. O arguido foi condenado por um crime de homicídio qualificado dos arts. 131º e 132º, nº 1 e nº 2 als. a), c) e e), todos do CP, na pena de 22 anos de prisão, numa moldura abstrata que vai de 12 a 25 anos de prisão, situando-se o meio da moldura nos 18 anos e 6 meses de prisão.
O arguido era o pai da vítima, esta tinha 5 meses, sendo pois um ser altamente vulnerável e indefeso. Quis-se vingar da mãe da criança que queria pôr fim à relação que tinham de marido e mulher. Só uma destas circunstâncias chega para se qualificar o crime do art. 131º do CP, revelada a especial perversidade ou censurabilidade, funcionado as restantes como agravantes gerais.
Mas o arguido era também quem cuidava do filho diariamente, e tal não impediu que o matasse de forma brutal. Acresce que o modo de execução do crime, com a realização de videochamadas para a companheira (factos 27 e 28), levando-a a assistir "em direto" ao crime, denuncia uma crueldade enorme. 
O grau de ilicitude do crime é portanto muito elevado bem como o grau de intensidade dolosa.  
O impacto na comunidade de um comportamento como este é devastador e daí serem muito grandes as necessidades de prevenção geral positiva. Quando à prevenção especial colocam-se também exigências elevadíssimas. Já se sublinhou a dependência do álcool como um fator de agressividade e violência que tem sempre acompanhado ao arguido, e a perícia realizada dá-nos conta da elevada perigosidade do mesmo. O registo criminal do recorrente mostra-nos três condenações por condução de veículo, alcoolizado.
Este quadro levaria a que a pena a aplicar tivesse que se situar muito perto do limite máximo, não fora a problemática aditiva e a personalidade "borderline" do arguido. Mas tendo em conta uma e outra, importará entrar em linha de conta com mais considerações.
Não nos oferece dúvida que, não tanto ao nível cognitivo, mas no que respeita ao domínio da vontade, a capacidade de o arguido resistir aos impulsos para ações criminosas estava enfraquecida.
Por um lado, quando bebe álcool, o arguido fica violento e agressivo. Por outro lado, a sua personalidade psiquicamente anómala despoleta emoções violentas de controlo mais difícil do que para o comum das pessoas. 

Mas esta situação tem que ser caldeada com a consideração de que o recorrente tinha clara consciência dos efeitos provocados pelo álcool na sua pessoa.

E quanto à prática do crime repentinamente, na sequência de um impulso emocional súbito, a diminuição do controlo sobre essas emoções diminuiria necessariamente a responsabilidade e a culpa. Isto, no entanto, segundo uma tese tradicional, própria de uma postura simplesmente mecanicista.

Acontece é que o efeito das emoções na responsabilidade penal tem que ver, não tanto com a intensidade da emoção e sim com o seu conteúdo. O relevante é saber se as emoções expressam juízos de valor adequados ou não. Se a indignação e revolta do agente se explicam por terem sido atingidos valores comunitariamente bem aceites ou, pelo contrário, se o agente atuou por se sentir ferido no seu ego empolado ou nos seus interesses exclusivamente egoístas.

E J. Curado Neves diz-nos mesmo, em consonância, que “não é, ou pelo menos não é só, a intensidade da emoção associada, mas a sua compatibilidade com o “código de valores individual” que dita a sua [do agente] passagem à acção (in “A Problemática da Culpa nos Crimes Passionais”, pag. 663).

Esta postura, que reputamos de acolher sem mais, fora de qualquer contexto psiquicamente anómalo, perde evidentemente força, estando como estamos perante uma personalidade "borderline".

É por isso que no caso, e apesar de tudo, terá que se ter em conta um fator atenuativo com relevo derivado da psicopatia do arguido.

Depois de todo o exposto, e ponderadas as determinantes de sinal contrário em jogo, entendemos que a pena justa a aplicar por este crime se deve situar nos vinte anos de prisão, tanto mais que essa pena se mostra também suficiente para atender à perigosidade revelada.

 3.1.2. O recorrente foi condenado ainda por mais três crimes:

De incêndio, explosão e outras condutas especialmente perigosas na forma tentada, com a pena de 2 anos e 6 meses de prisão. De profanação de cadáver ou de lugar fúnebre, também na forma tentada, com a pena de 8 meses de prisão. E de consumo de estupefacientes na pena de 4 meses de prisão.

 Nesta parte, a decisão do Tribunal da Relação não é suscetível de recurso, nos termos da al. e) do nº 1 do art. 400º do CPP. Razão pela qual tais penas parcelares se manterão.

3.2. Pena única  
À luz do nº 1 do art. 77º do CP, para escolha da medida da pena única, importará ter em conta, como se sabe, “em conjunto, os factos e a personalidade do agente”. E é apenas isto que diretamente a lei nos dá como critérios de individualização da pena única.
Vem-se entendendo que com tal asserção se deve ter em conta, no dizer de Figueiredo Dias, “a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão, e o tipo de conexão, que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).” (In “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2005, pág. 291).
Não nos esqueçamos que a opção legislativa por uma pena conjunta pretendeu, por certo, traduzir, também a este nível, a orientação base ditada pelo artº 40º do CP, em matéria de fins das penas. Daí que essa orientação base, nos termos do entendimento largamente dominante, considere como fins da pena, só propósitos de prevenção (geral e especial). Ficando para a culpa uma função apenas garantística, de medida inultrapassável da medida da pena, para além de representar o fundamento ético de toda a punição penal, como aliás já se viu acima. Essa orientação continuará a ser pano de fundo da escolha da pena conjunta.
Sem que nenhum destes vetores se constitua em compartimento estanque, é certo que para o propósito geral-preventivo interessará antes do mais a imagem do ilícito global praticado, e para a prevenção especial contará decisivamente o facto de se estar perante uma pluralidade desgarrada de crimes, ou, pelo contrário, perante a expressão de um modo de vida.
À pena parcelar aplicada pelo crime de homicídio (20 anos de prisão) haverá que acrescentar as penas parcelares de 2 anos e 6 meses, 8 meses e 4 meses de prisão. O total perfaz 23 anos e 6 meses de prisão.
Se excluirmos o crime de consumo, todos os restantes três surgem interligados e numa relação de causa e efeito. No passado criminal do recorrente encontramos três crimes de condução de veículo automóvel sob o domínio do álcool, o que revela, mais do que qualquer carreira criminosa a já sobejamente assinalada dependência aditiva do arguido. 
O concurso destes crimes, para efeito de pena conjunta, é dominado pela pena muito elevada aplicada pelo crime de homicídio qualificado, ao lado das outras, aplicadas pelos restantes crimes. Só uma parte reduzida destas parcelares deverá acrescer à pena mais elevada. Assim, deverá aplicar-se em cúmulo a pena conjunta de vinte e um anos de prisão.


D  -  DELIBERAÇÃO

Por todo o exposto se decide em conferência da 5ª secção do STJ conceder parcial provimento ao recurso e condenar o arguido na pena de vinte anos de prisão pela prática do crime de homicídio qualificado dos arts. 131º e 132º, nº 1 e nº 2 als. a), c) e e), todos do CP, e em cúmulo com as restantes penas parcelares aplicadas pelos crimes em que também foi condenado, na pena conjunta de vinte e um anos de prisão. Em tudo o mais se mantendo o decidido no acórdão recorrido.

Sem custas.
                                                                  
Lisboa, 30 de Março de 2017

Souto de Moura (Relator)

Isabel Pais Martins