Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2160/20.5T8ALM-A.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE LEAL
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
LIVRANÇA
RELAÇÃO JURÍDICA SUBJACENTE
RELAÇÕES IMEDIATAS
AVALISTA
DEFESA POR EXCEÇÃO
OBRIGAÇÃO CAMBIÁRIA
RELAÇÃO CAMBIÁRIA
EMBARGOS DE EXECUTADO
Data do Acordão: 09/20/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
Permanecendo a livrança dada à execução no domínio das relações imediatas, é permitido ao executado avalista, fiador na relação jurídica subjacente à obrigação cambiária, invocar a exceção inominada da sua falta de integração em PERSI, posto que ao crédito garantido seja aplicável esse regime.
Decisão Texto Integral:

Acordam os juízes no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. A Caixa Económica Montepio Geral, Caixa Económica Bancária, S.A., instaurou ação de execução para pagamento de quantia certa contra AA e BB.

A exequente apresentou como título executivo uma livrança, no valor de € 73 723,41, subscrita pela primeira executada e avalizada pelo segundo executado. Alegou que a livrança garantia o bom pagamento de todas as obrigações emergentes de um contrato de crédito pessoal, concedido pela exequente, no qual a primeira executada figurava como principal devedora e o segundo executado como fiador. A executada entrou em incumprimento e, apesar de os ora executados terem sido interpelados para o pagamento da dívida, nunca lograram fazê-lo, pelo que a exequente resolveu o contrato e procedeu ao consequente preenchimento da livrança, que deu à execução.

2. Em 21.9.2020 os executados deduziram embargos de executado, nos quais alegaram que a exequente não havia promovido as diligências necessárias à integração dos devedores no procedimento extrajudicial de regularização das situações de incumprimento (PERSI), em conformidade com o Dec.-Lei n.º 227/2012, de 25.10, a que estava obrigada, uma vez que o incumprimento respeitava a um contrato de crédito pessoal. A prévia integração dos devedores num PERSI constitui uma condição objetiva de procedibilidade da execução. A sua omissão constitui uma exceção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, o que acarreta a extinção da execução.

3. Os embargos foram liminarmente rejeitados quanto à executada AA, por extemporaneidade, e admitidos quanto ao executado BB.

4. A exequente apresentou contestação, na qual, após salientar que o executado era demandado na qualidade de avalista, sujeito cambiário autónomo face à relação jurídica subjacente, alegou que tanto a devedora, ora primeira executada, assim como o fiador, ora segundo executado e embargante, haviam sido preliminarmente integrados em PERSI, na sequência do incumprimento de um antecedente contrato de mútuo. No âmbito do PERSI procedeu-se à consolidação das responsabilidades da mutuária, tendo a consolidação dos créditos dado origem ao contrato junto ao requerimento executivo, onde o embargante figura como fiador e que foi garantido pela livrança dada à execução. Celebrado o aludido contrato, de novo a mutuária entrou em incumprimento. Os executados foram interpelados para regularizarem a situação, através de inúmeros contactos telefónicos e reuniões com o embargante, e, depois, por interpelação formal. Ora, o embargante, fiador, nunca solicitou a sua integração no PERSI, sendo certo que já anteriormente havia sido integrado em tal sistema.

A embargada concluiu pela improcedência dos embargos.

5. Os autos seguiram os seus termos, tendo sido realizada audiência final.

6. Em 01.7.2022 o tribunal proferiu sentença na qual os embargos foram julgados improcedentes e se determinou o prosseguimento da execução.

7. O embargante apelou da sentença e a Relação de Lisboa, por acórdão proferido em 16.3.2023, julgou a apelação improcedente e manteve a decisão recorrida.

8. O embargante interpôs recurso de revista desse acórdão, tendo apresentado alegação em que formulou as seguintes conclusões:

I- Ab initio a presente lide encerrou discussão sobre a integração ou não dos executados no PERSI, tendo a 2ª instância acabado a decretar no presente apenso que não houve integração, não obstante tenha determinado o prosseguimento dos autos quanto ao avalista aqui recorrente.

II- E fê-lo com base em fundamentação diversa da 1ª instância, que havia proclamado que não obstante o PERSI não tivesse sucedido, teria ocorrido uma consolidação de créditos, com finalidade análoga.

III- Por sua vez, a douta Relação concordou com o recorrente, quando este alegou que essa pretensa consolidação de modo algum teria ficado provada, porém, acaba a ordenar o prosseguimento dos autos, por entender que em todo o caso, a posição do avalista não encontra eco no D.L. 227/2012.

IV- Esta tramitação e consequente decisão são supervenientes ao trânsito em julgado no Apenso B e nos autos principais, sendo que nestes foi a devedora principal absolvida, pela sua falta de integração no PERSI.

V- Sem prejuízo da Jurisprudência carreada pela douta 2ª instância, crê o ora recorrente que o caso concreto comporta vicissitudes diferentes das patentes nos citados acórdãos, desde logo o facto de nos autos em tratamento existir uma outra decisão tomada, transitada em julgado e que contende com a decisão ora alvo de recurso.

VI- Nos autos principais determinou-se a absolvição da instância, sendo de prever a integração da devedora em PERSI para retoma da obrigação contratual e no presente apenso, é determinado o prosseguimento dos autos quanto ao avalista, após resolução contratual.

VII-Sendo o contrato subjacente o mesmo, será inconciliável que a devedora fique sob a égide do PERSI e o avalista fique na contingência de responder pela execução, quando ele próprio legitimamente beneficiaria da integração primitiva da executada no PERSI, em momento prévio à instauração da lide.

VIII- Deste modo não poderia ter sido instaurada uma acção judicial contra ambos, sem o preenchimento deste pressuposto, sendo que a omissão de prova da integração da devedora principal ao abrigo do PERSI, impediria sempre, uma acção judicial, nos termos em que esta foi configurada.

IX- Expressa-o o artigo 18.º, n.º1 do D.L. 227/2012 e expressa-o a Jurisprudência, citando-se aqui o Ac. do Trib. da Rel. Porto de 07/03/2022, Proc. 121/20.3T8VLG-A.P1, que diz, “…a falta de integração do cliente bancário no PERSI constitui impedimento legal a que a instituição de crédito instaure acção executiva destinada a obter a cobrança coerciva de crédito abrangido por esse regime legal.”

X- Com relevância para os presentes autos, conclui, “Sendo a acção executiva intentada com preterição dessa obrigação, estar-se-á perante uma excepção dilatória inominada, a qual é insuprível e de conhecimento ofícioso, acarretando a absolvição da instância dos executados.”

XI- No caso concreto determinou-se a continuidade da execução apenas quanto ao avalista, porém tal estatuição esbarrará na ilegalidade primitiva que subjaz à interposição da acção, nomeadamente a falta de uma condição objectiva de procedibilidade.

XII-Coexistem assim duas decisões que o ora recorrente crê inconciliáveis, pois o contrato ou é alvo de restruturação ou é alvo de resolução, e no caso em apreço a executada absolvida beneficiará da restruturação e o executado avalista, não.

XIII- Pelo que as dúplices decisões tomadas nos autos, provêm de um facto primitivo ilegal, resultante da interposição de uma acção contra a devedora não integrada em PERSI, sendo que o avalista que teoricamente, solidariamente responde, não deverá responder, quando é conjuntamente demandado, e a devedora principal não beneficiou da integração num instituto que é imperativo.

XIV- Sob pena de ficar o avalista numa posição iníqua, na medida em que seria chamado a responder, sem que a devedora principal tivesse sido alvo de medida de restruturação da qual o avalista também beneficiaria, pois não seria chamado à acção, antes desse pressuposto ser verificado.

XV- Defende-se como legitima a expectativa do avalista, quando crê que previamente a responder pela obrigação da avalizada, terá o direito de ver esta devedora principal ser integrada em PERSI, sob pena de poder ser ilegalmente responsabilizado em face da omissão de pressupostos primitivos.

Termos em que se requer junto de V. Exas seja o presente recurso e alegações aceite por estar em tempo, podendo conceder os Colendos Conselheiros, provimento à presente Revista e assim determinar a revogação do acórdão da douta Relação de Lisboa com a inerente absolvição do executado/recorrente da presente instância, por se entender que só assim se fará a tão costumada JUSTIÇA!

9. Não houve contra-alegações.

10. A revista foi recebida, na medida em que o acórdão recorrido foi proferido em oposição deduzida contra a execução (art.º 854.º do CPC) e assentou em fundamentação essencialmente diversa daquela que sustentou a sentença recorrida (art.º 671.º n.º 3 do CPC).

11. Foram colhidos os vistos legais.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. A questão objeto do recurso é a seguinte: o embargante deverá ser isento da presente execução, por não lhe ter sido proporcionada a aplicação do procedimento preliminar comummente designado por PERSI?

2.1. As instâncias (após alteração introduzida pela Relação) deram como provada a seguinte

Matéria de facto

1. A embargada é portadora de livrança subscrita pela executada e avalizada pelo embargante, emitida em 23-01-2014, com data de vencimento em 19-02-2020, no valor de 73.723,41 euros, dada à execução.

2. A livrança foi entregue em branco à embargada para garantir o pagamento das obrigações emergentes no “Contrato de Crédito” celebrado em 28-02-2014, no qual o embargante interveio como fiador.

3. (Eliminado pela Relação)

4. A executada deixou de cumprir o “Contrato de Crédito” em 28-04-2014, pelo que a exequente, por carta de 22-06-2019, interpelou a executada e o embargante, cada um na sua qualidade, de devedora e de fiador, para pagarem o montante total em dívida.

5. Apesar de interpelados, a executada e o embargante não realizaram o pagamento em dívida, razão pela qual, a exequente declarou perante os executados resolver o contrato e proceder ao preenchimento da livrança, por carta de 20-01- 2020.

6. A livrança não foi paga na data do vencimento – 19-02-2020 –, nem posteriormente.

As instâncias (com alteração introduzida pela Relação) enunciaram os seguintes

Factos não provados

A embargada integrou a executada e o embargante, através de cartas que lhes foram enviadas, em PERSI, e foi, nessa sequência, que teve lugar a celebração do contrato de crédito referido em 3.

O embargante solicitou à embargada a sua integração em PERSI.

O referido “Contrato de Crédito” foi celebrado para consolidar créditos anteriormente concedidos à executada e ao embargante (adicionado pela Relação, que retirou este facto do n.º 3 dos factos provados).

2.2. O Direito

Em 25.10.2012, com entrada em vigor a 01.01.2013, foi publicado o Dec.-Lei n.º 227/2012, que tem por objeto, conforme se exara no respetivo art.º 1.º, estabelecer os princípios e as regras a observar pelas instituições de crédito:

a) No acompanhamento e gestão de situações de risco de incumprimento;

b) Na regularização extrajudicial das situações de incumprimento das obrigações de reembolso do capital ou de pagamento de juros remuneratórios por parte dos clientes bancários, respeitantes aos contratos de crédito referidos no n.º 1 do artigo seguinte.

Os clientes bancários aqui tidos em vista são os consumidores (art.º 3.º al. a) do Dec.-Lei n.º 227/2012), e os contratos aqui considerados são os contratos de crédito por aqueles celebrados, nessa qualidade (cfr. art.º 2.º do diploma).

Nos termos dos princípios gerais consignados no art.º 4.º, as instituições de crédito devem, no cumprimento das disposições deste diploma, proceder com diligência e lealdade e, nos casos em que se registe o incumprimento das obrigações decorrentes desses contratos, envidar “os esforços necessários para a regularização das situações de incumprimento em causa” (n.º 1 do art.º 4.º).

Assim, nos termos do n.º 2 do art.º 5.º, “Quando se verifique o incumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito, as instituições de crédito mutuantes devem providenciar pelo célere andamento do procedimento previsto nos artigos 12.º a 21.º, de modo a promover, sempre que possível, a regularização, em sede extrajudicial, das situações de incumprimento.

Nos termos do art.º 13.º, “no prazo máximo de 15 dias após o vencimento da obrigação em mora, a instituição de crédito informa o cliente bancário do atraso no cumprimento e dos montantes em dívida e, bem assim, desenvolve diligências no sentido de apurar as razões subjacentes ao incumprimento registado.

E o art.º 14.º estipula, no n.º 1, que “mantendo-se o incumprimento das obrigações decorrentes do contrato de crédito, o cliente bancário é obrigatoriamente integrado no PERSI entre o 31.º dia e o 60.º dia subsequentes à data de vencimento da obrigação em causa”.

Por outro lado, este regime confere ao cliente bancário as seguintes garantias:

No período compreendido entre a data de integração do cliente bancário no PERSI e a extinção desse procedimento, a instituição de crédito está impedida de:

a) Resolver o contrato de crédito com fundamento em incumprimento;

b) Intentar ações judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito;

c) Ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito; ou

d) Transmitir a terceiro a sua posição contratual.

É o que está estipulado no n.º 1 do art.º 18.º do Dec.-Lei n.º 227/2012.

A integração do devedor no PERSI, o seu acompanhamento e a extinção do PERSI devem ser formalizados através de comunicações ao devedor efetuadas em “suporte duradouro”, conforme o disposto nos artigos 14.º a 17.º do Dec.-Lei n.º 227/2012.

O incumprimento destas obrigações por parte do banco inibe-o de instaurar execução contra o devedor, figurando-se a falta de uma condição objetiva de procedibilidade, exceção dilatória inonimada que obsta à prossecução da execução, com a consequente absolvição do executado da instância executiva (art.º 278.º n.º 1, al. e) do CPC; neste sentido, cfr., v.g., STJ, 16.11.2021, processo 21827/17.9...e STJ, 13.4.2021, processo 1311/19.7...).

Por outro lado, é consensual na jurisprudência o entendimento de que é sobre a entidade financeira que incide o ónus de alegação e prova de que procedeu ao cumprimento do regime do PERSI junto do devedor incumpridor, nomeadamente que procedeu às comunicações exigidas por aquele regime jurídico (cfr., v.g., acórdão da Relação de Lisboa de 17.02.2022, proc. 29942/20.5...).

O PERSI também é aplicável àqueles que, nos contratos de créditos abrangidos por este regime, tenham a posição de fiador.

Assim, sob a epígrafe “Fiador”, o art.º 21.º do Dec.-Lei n.º 227/2012 estipula, sob o n.º 1, que “Nos casos em que o contrato de crédito esteja garantido por fiança, a instituição de crédito deve informar o fiador, no prazo máximo de 15 dias após o vencimento da obrigação em mora, do atraso no cumprimento e dos montantes em dívida”.

E o n.º 2 do mesmo artigo dispõe que “A instituição de crédito que interpele o fiador para cumprir as obrigações decorrentes de contrato de crédito que se encontrem em mora está obrigada a iniciar o PERSI com esse fiador sempre que este o solicite através de comunicação em suporte duradouro, no prazo máximo de 10 dias após a referida interpelação, considerando -se, para todos os efeitos, que o PERSI se inicia na data em que a instituição de crédito recebe a comunicação anteriormente mencionada”.

Sendo certo que a instituição de crédito deve informar o fiador da faculdade, que lhe assiste, de ser abrangido pelo PERSI. Veja-se o estipulado no n.º 3 do citado artigo 21.º:

Aquando da interpelação para o cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de crédito que se encontrem em mora, a instituição de crédito deve informar o fiador sobre a faculdade prevista no número anterior, bem como sobre as condições para o seu exercício”.

O procedimento de PERSI aplicável ao fiador é autónomo relativamente ao PERSI desenvolvido com o cliente bancário, sendo-lhe aplicáveis, com as devidas adaptações, as regras aplicáveis ao cliente bancário: é o que resulta do disposto no n.º 4 do art.º 21.º.

É também entendimento jurisprudencialmente assente o de que a omissão da informação ao fiador (fiador de contratos abrangidos pelo regime do PERSI) de que este pode solicitar a sua integração no PERSI, bem como sobre as condições para o seu exercício, e a falta de integração do fiador no PERSI quando solicitada por este à instituição de crédito, constituem violação de normas de caráter imperativo, que configuram, também, exceções dilatórias atípicas ou inominadas, por falta de pressuposto (antecedente) da instauração da ação (vide, v.g., acórdão da Relação de Évora, de 06.10.2016, processo n.º 4956/14.8... e acórdão da Relação de Lisboa, de 20.6.2023, processo n.º 3708/22.6...).

Revertamos ao caso dos autos.

Tanto as instâncias quanto as partes assentaram que o contrato subjacente à livrança dada à execução constitui um contrato de crédito bancário concedido a pessoa singular, consubstanciando um crédito pessoal concedido a consumidor.

Assim, não há nos autos controvérsia quanto à aplicabilidade, a tal contrato, do regime do PERSI. A própria embargada o defendeu, tendo alegado, na contestação aos embargos, ter aplicado esse regime aos ora executados.

Na sentença recorrida a primeira instância considerou que por a livrança dada à execução se encontrar no domínio das relações imediatas, era legítimo ao executado avalista invocar as exceções fundadas na relação causal. Assim, era possível ao executado/embargante invocar a falta de condições necessárias ao exercício da ação, entre as quais se incluía e inclui a falta de integração do embargante, fiador no contrato de mútuo subjacente à emissão da livrança executada, no PERSI.

Contudo, a primeira instância deu como provado que o contrato de crédito garantido pela livrança dada à execução havia sido celebrado “para consolidar créditos anteriormente concedidos à executada e ao embargante” (facto dado como provado na sentença sob o n.º 3). E, a partir daí, o tribunal de primeira instância entendeu que a invocação da exceção dilatória decorrente da não aplicação ao fiador do PERSI constituía abuso de direito.

Com efeito, na sentença expendeu-se o seguinte:

Com efeito, a concessão ao embargante de, por via de integração em PERSI, ver novamente possibilitada a reestruturação ou consolidação do crédito concedido em Fevereiro de 2014 para consolidar créditos anteriores e incumprido em Abril de 2014, atenta contra a boa fé porque o embargante nunca demonstrou qualquer vontade de cumprir o contrato (por isso que apenas 2 de 120 prestações foram pagas), desequilibrando de forma irresponsável a posição das partes na relação contratual e incentivando os inadimplentes a manterem o comportamento relapso que sempre adoptaram”.

E foi com base na figura do abuso do direito na invocação do incumprimento do PERSI que a sentença julgou os embargos improcedentes.

A Relação, no acórdão subsequente à apelação interposta pelo embargante, modificou a decisão de facto, dando por não provado o facto que na sentença havia sido dado como provado sob o n.º 3 da matéria de facto. Isto é, a Relação considerou não provado que o contrato de crédito garantido pela livrança dada à execução fora celebrado “para consolidar créditos anteriormente concedidos à executada e ao embargante”.

Tal modificação da matéria de facto determinaria a inaplicabilidade ao caso do instituto do abuso de direito (art.º 334.º do Código Civil), enquanto fundamento para arredar a invocabilidade, pelo embargante, da exceção dilatória decorrente do desrespeito, pela exequente, do regime do PERSI.

No acórdão recorrido a Relação reconheceu que o crédito subjacente à livrança se integrava no âmbito de aplicação do regime do PERSI, mais precisamente na alínea c) do n.º 1 do art.º 2.º do Dec-Lei n.º 227/2012 (“Contratos de crédito a consumidores abrangidos pelo disposto no Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de junho”…).

No acórdão exarou-se o seguinte:

Assim, era obrigatória a integração da mutuária, enquanto cliente bancária, para efeitos do D.L. n.º 277/2012, de 25 de outubro, no regime jurídico do PERSI.

Verificada uma situação de mora no cumprimento de obrigações decorrentes do aludido contrato, cumpriria à instituição de crédito promover as diligências necessárias à implementação do PERSI (cfr. artigo 12.º e ss. do D.L. n.º 227/2012).

Ora, essa promoção de diligências para implementação do PERSI não resultou comprovada.”

E, no acórdão, expendeu-se ainda que o prévio cumprimento dos deveres impostos pelo regime do PERSI constitui um pressuposto específico da ação executiva movida por uma entidade financeira contra um devedor consumidor.

Diga-se, em parêntesis, e na sequência do alegado na revista quanto ao desfecho ditado na execução quanto à executada AA, que (o que se harmoniza com o expendido pela Relação no acórdão recorrido) em 26.01.2023 a primeira instância, por sentença proferida na execução, julgou procedente a exceção de falta de integração da executada em PERSI e, consequentemente, absolveu-a da instância executiva.

Ocorreu, contudo, que no acórdão recorrido, no que concerne ao executado BB, a Relação trilhou caminho diverso.

Com efeito, após proceder a uma breve exposição do regime do PERSI aplicável aos fiadores, a Relação terminou por arredar a aplicabilidade desse regime ao embargante.

Para chegar a esse desfecho a Relação ponderou que “a garantia accionada pela embargada nos autos de execução é a livrança que foi subscrita pelo ora embargante na qualidade de avalista.”

E, assente nesta constatação, a Relação, arrimando-se em diversa jurisprudência, da qual decorreria que o regime do PERSI não é aplicável aos avalistas, qualidade em que o embargante foi executado, considerou que in casu não era aplicável o regime jurídico do PERSI – daí emergindo a consequente improcedência dos embargos.

Que dizer?

Sem prejuízo do enorme respeito por opinião contrária e pelos subscritores do acórdão recorrido, entendemos que a revista merece provimento.

A execução ora embargada assenta numa livrança, subscrita pela primeira executada e avalizada pelo segundo executado.

Foi, assim, acionado em juízo o cumprimento forçado de obrigação cambiária, neste caso formalizada em livrança e em princípio alheada da relação jurídica subjacente à sua constituição (artigos 75.º, 77.º, 78.º, 17.º da LULL).

Porém, estando-se no domínio das relações imediatas, o obrigado cambiário poderá invocar perante o credor cambiário as exceções derivadas da relação extra-cartular que explica a emissão da declaração de vinculação cambiária (art.º 17.º a contrario sensu, da LULL).

In casu, conforme já abundantemente mencionado, a livrança foi emitida para garantir o crédito emergente para a exequente de um mútuo que esta havia concedido à executada AA e em que o executado outorgou como fiador. Essa livrança foi subscrita pela mutuária e pelo fiador em branco, conforme a lei cambiária permite (cfr. art.º 10.º da LULL).

Como se disse, a livrança permaneceu no domínio das relações imediatas, isto é, no domínio das partes que intervieram na relação jurídica subjacente à emissão da livrança.

Por conseguinte, assim como à subscritora da livrança (a executada AA) foi permitido invocar a exceção decorrente da aplicabilidade do PERSI à relação jurídica subjacente, com a consequente extinção da execução no que a si dizia respeito, também ao avalista da livrança (o ora embargante), fiador na relação jurídica subjacente, deve ser permitida igual defesa.

Conforme se expendeu no acórdão da Relação de Évora, de 12.01.2023, proferido no processo n.º 620/20.7T8ELV.E1, respeitante a caso semelhante ao destes autos, “[r]elativamente à Executada avalista, é certo que o regime legal consagrado no DL n.º 227/2012, de 25 de outubro, não prevê seja, nessa qualidade integrada no PERSI”. Porém, “caso o avalista do título de crédito seja fiador em contrato de crédito abrangido pelo DL citado, a instituição de crédito resulta sujeita à aplicação do referido regime para poder intentar ação judicial contra o fiador tendo em vista a satisfação do crédito” (n.º 2 do respetivo sumário).

A citação de jurisprudência que a Relação fez para sustentar o acórdão recorrido mostra-se fragilizada pelo facto de, toda ela, se reportar a situações relevantemente diversas daquela que constitui o objeto deste recurso:

- o acórdão da Relação de Lisboa de 26.10.2017 (processo n.º 2827/14.7T2SNT-B.L1), não publicado nas bases de dados, mas parcialmente transcrito pelo tribunal a quo, parece reportar-se a um avalista que não se constituíra fiador no contrato de empréstimo concedido à subscritora da livrança dada à execução;

- o acórdão da Relação de Lisboa de 09.10.2018 (processo n.º 5070/16.7T8ALM-C.L1-7) considerou que o regime do PERSI não era aplicável ao caso dos autos na medida em que a devedora, sociedade comercial, não era consumidora;

- o acórdão da Relação de Lisboa de 06.6.2019 (processo n.º 6470/14.2T8ALM.L1-6) incidiu sobre uma situação em que não ficou demonstrado que o avalista executado era fiador na relação subjacente; aliás, nesse acórdão exarou-se que “…caso o avalista do título de crédito não seja fiador em contrato de crédito, a sua obrigação cambiária está claramente fora do âmbito de aplicação do DL n.º 227/2012” – o que permite aventar que diversa teria sido a solução do acórdão se se tivesse demonstrado que o avalista era fiador no contrato de crédito;

- o acórdão da Relação de Évora de 15.4.2021 (processo n.º 992/19.6T8PTG-A.E1) considerou que o regime do PERSI não era aplicável ao caso dos autos na medida em que a mutuária, sociedade comercial, não era consumidora;

- por último, o acórdão da Relação do Porto de 07.3.2022 (processo n.º 266/10.8TBVLC-B.P1) também excluiu a aplicabilidade do PERSI na medida em que o mutuário/cliente bancário era uma sociedade comercial, não sendo consumidor.

Ora, in casu a livrança dada à execução garantia um crédito ao consumo concedido pela instituição bancária exequente, no qual a subscritora da livrança é a mutuária executada e o executado avalista interveio como fiador.

Assim, tendo a mutuária entrado em incumprimento, a instituição bancária deveria ter informado o fiador da situação de incumprimento e, ao interpelá-lo para cumprir as obrigações decorrentes do contrato de crédito que se encontravam em mora, deveria informá-lo sobre a faculdade de requerer a sua sujeição ao PERSI, bem como sobre as condições do exercício dessa faculdade (cfr. art.º 21.º do Dec.-Lei n.º 227/2012).

Provou-se que a credora interpelou o fiador para pagar a dívida; mas não se provou que o fiador foi integrado em PERSI, ou que solicitou tal integração, ou que foi informado da faculdade de proceder a essa solicitação.

Como já aduzido supra, sobre a exequente recaía o ónus de alegar e demonstrar que havia satisfeito as obrigações que sobre ela recaíam à luz do regime jurídico do PERSI.

Não tendo a exequente/embargada logrado satisfazer esse ónus, resta concluir pela verificação da exceção dilatória inominada da indevida falta de aplicação ao executado/embargante, pela credora/exequente, do regime do PERSI, com a consequente absolvição do executado da instância executiva.

A revista é, pois, procedente.

III. DECISÃO

Pelo exposto, julga-se a revista procedente e consequentemente revoga-se o acórdão recorrido e, em sua substituição, julga-se os embargos procedentes e, consequentemente, absolve-se o embargante da instância executiva.

As custas da revista, da apelação e dos embargos são a cargo da exequente/embargada (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).

Lx, 20.9.2023

Jorge Leal (Relator)

Pedro de Lima Gonçalves

Jorge Arcanjo