Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6ª SECÇÃO | ||
Relator: | AZEVEDO RAMOS | ||
Descritores: | DESEMBARAÇO ADUANEIRO DESPACHANTE OFICIAL MANDATO SEM REPRESENTAÇÃO PAGAMENTO DIREITO DE REGRESSO DECLARAÇÃO TÁCITA ABUSO DO DIREITO | ||
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Data do Acordão: | 11/20/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO ADUANEIRO - CAUÇÃO GLOBAL PARA DESALFANDEGAMENTO DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FA CTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL | ||
Doutrina: | - Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, p. 63. - Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Vol. II, 3ª ed, p. 57. - Vaz Serra refere-se, “Abuso do direito”, Bol. n.º 85, p. 253; “Responsabilidade do devedor pelos factos dos auxiliares, dos representantes legais ou dos substitutos”, nº2, Bol. n.º 72. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 217.º, N.º1, 334.º, 770.º, 769.º, 800.º, 1161.º, 1167.º, 1180.º. DL Nº 46.311, DE 27-4-65: - ARTIGO 426.º. DL N.º 289/88, DE 24-08: - ARTIGO 2.º, N.º2. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 17-6-82, BOL. 318, P. 437. | ||
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Sumário : | I - A actividade de desembaraço aduaneiro de um despachante oficial enquadra-se no contrato de mandato sem representação, na medida em que o despachante age em nome próprio, mas por conta de outrem. II - Se o importador se serviu de terceiro, como seu auxiliar, para assegurar o cumprimento de todas as diligências e procedimentos necessários à importação de mercadorias, tal importador é responsável nos termos do art. 800.º, n.º 1, do CC. III - Se o importador pagou os direitos aduaneiros a esse terceiro, seu auxiliar, mas este não entregou o dinheiro ao despachante, o qual teve de pagar do seu bolso tais direitos, há direito de regresso do despachante contra o importador, nos termos do art. 2.º, n.º 2, do DL n.º 289/88, de 24-08. IV - Só há declaração tácita quando se deduza de factos que, com toda a probabilidade, a revelem. V - O abuso do direito pressupõe um manifesto excesso, um direito exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Em 11-12-08, AA instaurou a presente acção ordinária contra a ré BB- Produtos Farmacêuticos, S.A., alegando exercer a actividade de despachante oficial, cujo objecto é a representação directa perante as alfândegas. Nessa qualidade processou, em nome da Ré, três declarações aduaneiras de mercadorias para o regime de livre prática, imputadas à caução legal para desalfandegamento, prestada a favor da Alfândega e tomada pelo Autor junto do Banco Millenium BCP, das quais resultaram dívidas aduaneiras no montante de € 64.210,90, € 69.887,90 e € 556,70. Nos dias subsequentes à saída das mercadorias destinadas à Ré, emitiu as contas de despachante que junta, que a Ré recusou pagar, argumentando que não conferiu ao Autor mandato para a representar junto das Alfândegas e que pagou as quantias em causa à CC, empresa que presta serviços conexos ou complementares da actividade da importação e que tinha como cliente a Ré. Em consequência da conduta da Ré, teve de financiar-se junto do Millenium BCP, emissor da fiança que servia de caução global e pagar a importância de € 70.444,60 a que acresceram juros de mora de € 352,22, no total de € 70.796,82, situação que o desprestigiou junto dos seus pares e o privou de exercer a sua actividade, ocasionando-lhe uma perda de negócio de € 163.700,00 a que corresponde o valor líquido anual de € 26.000,00 de que ficou privado, a três anos da data da reforma. Concluiu pedindo a condenação da ré a pagar-lhe € 166.368,93 correspondente à soma das duas dívidas aduaneiras, na quantia de € 70.796,82 a que acrescem juros vencidos, desde o incumprimento, no montante de € 2.924,33, mais € 78.000,00 de lucros cessantes e € 15.000,00 de danos morais, a que acrescerão juros vincendos a liquidar em execução de sentença.
A BB contestou. Arguiu a sua ilegitimidade, porquanto não manteve relação contratual com o Autor, mas sim com a CC – Assistência Aduaneira Lda, a quem mandatou para, designadamente, garantir o cumprimento de todas as obrigações legais e fiscais inerentes às obrigações legais e fiscais respeitantes às operações de importação, tendo a R. lhe dado a liberdade de escolha de meios e procedimentos a utilizar para efectuar as importações de mercadorias da mesma Ré. A CC escolheu o despachante ora Autor, opção a que a Ré é alheia, bem como às relações estabelecidas entre aqueles. Além disso, contesta, os valores das dívidas aduaneiras eram facturados pela CC à Ré. As quantias correspondentes às dívidas aduaneiras em causa foram pagas, como habitualmente, à CC (salvo € 1000,00 , por mero lapso). Se é certo que perante a Alfândega o A. age em representação indirecta da R, nada impede a Ré de contratar a integralidade dos serviços relacionados com a importação de mercadorias a uma terceira entidade como é o caso da CC. Impugnou os demais factos alegados pelo Autor e requereu a intervenção acessória provocada de CC, Lda.
O Autor replicou. * Foi admitida a intervenção acessória provocada da CC, L.da. * Realizado o julgamento e apurados os factos, foi proferida sentença, que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a Ré a pagar ao Autor € 70.237,34 acrescidos de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a citação até integral pagamento. * Apelou a ré, mas sem êxito, pois a Relação de Lisboa, através do seu Acórdão de 29 de Março de 2012, negou provimento à apelação e confirmou a sentença recorrida. * Continuando inconformada, a ré BB interpôs recurso de revista excepcional, que foi admitido pela formação de apreciação preliminar deste Supremo Tribunal, com fundamento no art. 721, nº1, al. a) do C.P.C. Alegando no recurso, a recorrente BB resumidamente conclui: 1 – O Acórdão recorrido deve ser revogado e substituído por outro que considere que o recorrido tacitamente declarou que a obrigação que a recorrente tinha para com ele, decorrente do despacho de mercadorias, se extinguiria mediante o pagamento à empresa de serviços de importação (CC, L.da) para a qual, de resto, remetera a sua conta. 2 – Ao decidir de forma diferente, o Acórdão impugnado violou o art. 217, nº1 e 770, al. a) do C.C. 3 – Acresce que ao tentar aplicar o nº2, do art. 2º, do dec-lei nº 289/88, de 24 de Agosto, sem qualquer tipo de restrição, ao caso em apreço, resulta numa errada solução jurídica para o mesmo. 4 – O mencionado preceito não foi concebido tendo em conta a intervenção de um terceiro que torna as relações entre importador e despachante muito mais complexas do que o previsto naquela norma. 5 - O art. 2, nº2, do dec-lei nº 289/88, de 24 de Agosto, deve ser objecto de uma interpretação actualista e restritiva, de modo a que se exclua a possibilidade de exercício de direito de regresso, por parte do despachante, contra o importador, isto porque apenas a conduta ilícita de um interveniente do negócio conduziu ao incumprimento que a norma visa sancionar, cujos danos devem ser peticionados à CC, nos termos do art. 483 do C.C. 6 – O Acórdão recorrido, ao não ter absolvido o recorrido violou o nº2, do art. 2º do dec-lei nº 289/88 e o art. 483 do C.C., devendo ser revogado e substituído por outro que absolva a BB de tudo o peticionado. 7 – Constitui um verdadeiro abuso do direito alegar que o recorrido, pessoalmente, nunca declarou à recorrente que o pagamento feito à CC extinguiria a obrigação, uma vez que todos os procedimentos por este criados, enquanto gerente da CC, permitiriam concluir à BB que, pagando à CC as contas por esta apresentadas, a recorrente estaria a cumprir com todas as suas obrigações para com a Alfândega. 8 – Deve, pois, nos termos do art. 334 do C.C., ser declarado ilegítimo o exercício do direito a que o recorrido se arrogou na petição inicial, revogando-se o Acórdão recorrido e substituindo-se por outro que absolva a recorrente de tudo o peticionado. * O recorrido contra-alegou em defesa do julgado.
* Corridos os vistos, cumpre decidir.
* A Relação considerou provada a matéria de facto seguinte:
A) O A exerce a profissão de despachante oficial;
B) O Autor, como despachante oficial, aderiu a um procedimento especial de pagamento de dívidas aduaneiras designado por caução global de desalfandegamento;
C) No dia 9/06/2008, foi apresentada na Alfândega de Alverca a declaração aduaneira (DAU), que foi conferida e aceite no próprio dia, tendo recebido o nº de ordem I.2008/204380 92, de 09/06/2008, da Alfândega de Alverca, de que resultou uma dívida aduaneira no montante de €64.210,90, objecto de registo de liquidação nº 0444377, de 09/06/2008 e nessa data imputada à caução global para desalfandegamento, prestada a favor da Alfândega, tomada pelo A. no Banco Millennium/BCP;
D) No dia 11/06/2008, foi apresentada na Alfândega de Alverca segunda declaração aduaneira, identificada por DAU nº I.2008/2043981.001 de 11/06/2008, de que resultou uma dívida aduaneira no montante de €69.887,90, objecto de registo liquidação nº 2008 /0446310, de 2008/06/11, e nessa data imputada à caução global para desalfandegamento, prestada a favor da Alfândega, tomada pelo A, no Banco Millennium/BCP;
E) No dia 16/06/2008 foi apresentada na Alfândega do Aeroporto uma terceira declaração, identificada por DAU nº I.2008/2325855.001, de 16/6/2008, da Alfândega do Aeroporto, de que resultou uma dívida aduaneira no montante de €556,70, objecto de registo liquidação 2008/0421245, de 16/6/2008, também afecta à mesma caução global;
F) Foi dada autorização de saída às três partidas de mercadoria, respectivamente nos dias 9, 11 e 16 de Junho de 2008;
G) O Autor emitiu as contas de despachante constantes de fls. 33, 35 e 37 dos autos cujo teor se dá por integralmente reproduzido, que foram enviadas pela CC à Ré que as recebeu, juntamente com as facturas de fls. 98, 100 e 101;
H) A Ré não entregou ao Autor as quantias correspondentes às declarações a que se alude em D) e E);
I) Ao longo dos anos quem entregou ao A. os documentos destinados ao desalfandegamento das mercadorias da Ré foi, quase sempre, a CC;
J) Era a CC que se encarregava do transporte de mercadorias da estância aduaneira para os armazéns da Ré;
L) E quem entregava ao Autor o dinheiro para pagamento do impostos e dos honorários;
M) Era através da CC que o Autor recebia instruções da Ré;
N) Era a CC que recebia da Ré e entregava ao Autor a documentação relativa a cada importação;
O) Mostra-se inscrito na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, mediante a apresentação 31 de 12.5.95, como gerente da CC – ASSISTÊNCIA ADUANEIRA LDA, o ora Autor, e mediante a apresentação de 5.6.2007 a sua renúncia a tal gerência operada em 30.8.2006 (documento de fls. 110 a 116 dos autos cujo teor se dá por reproduzido);
P) No exercício da sua actividade de despachante oficial, o Autor prestou à Ré os serviços que deram origem à emissão das contas de despachante a que se alude em G);
R) O Autor, na sua actividade de despachante oficial, procede ao “desalfandegamento” de mercadorias da Ré há mais de 15 anos;
S) Nas declarações aduaneiras, a Ré figura como “ Importador”;
T) A Ré recebeu, ao longo de mais de 15 anos, as contas de despachante emitidas pelo Autor, enviadas pela CC e pagou-as sempre;
V) A CC presta serviços conexos ou complementares da actividade de importação;
X) A Ré ajustou com a CC, em meados da década de 90, a prestação de serviços para assegurar o cumprimento de todas as diligências e procedimentos necessários à importação de mercadorias;
Z) Neste contexto, foi dada à CC liberdade de escolha e dos meios e procedimentos a utilizar para efectuar as importações de mercadorias da Ré;
AA) Escolhendo a pessoa ou pessoas que seriam responsáveis pela concretização das importações, nomeadamente pelo desalfandegamento das mercadorias;
BB) Conforme ajustado, os valores das dívidas aduaneiras eram facturados pela CC à Ré, sendo anexa a conta do despachante alfandegário como comprovativo dos valores solicitados, o que sucedeu até ao Verão de 2008, e sucedeu com as dívidas aduaneiras em causa.
CC) No Verão de 2008, a Ré tomou conhecimento de que os direitos aduaneiros para desalfandegamento de mercadorias a si destinadas não estavam a ser liquidados.
AD) A partir de então deixou de recorrer aos serviços da CC;
AE) O Autor em consequência do vertido em D), pagou na Alfândega de Alverca € 69.887,90;
AF) Provado que, em consequência do vertido em E), a quantia de € 556,70 foi paga à Alfândega do Aeroporto pela entidade garante da caução global prestada a favor da referida Alfândega, tomada pelo Autor no Banco Millenium BCP;
AG) E liquidou juros de mora no montante de € 349,44 (com referência à quantia paga na Alfândega de Alverca).
AH) A Ré entregou as quantias correspondentes às declarações a que se alude em D) e E) à CC Lda., à excepção da quantia de € 1000,00, referente à declaração a que se alude em D);
AI) A CC não tem alvará para processar declarações aduaneiras;
AJ) O sistema de pagamento a que se alude em B) traz benefícios aos importadores.
* Vejamos agora o mérito do recurso.
O art. 2º do dec-lei nº 289/88, de 24 de Agosto, estabelece:
“1 – No âmbito do sistema de caução global para desalfandegamento, o despachante oficial age em nome próprio e por conta de outrem, constituindo-se, porém, aquele e a pessoa por conta de quem declara perante as alfândegas solidariamente responsáveis pelo pagamento dos direitos e demais imposições exigíveis. 2- O despachante oficial ou a entidade garante gozam do direito de regresso contra a pessoa por conta de quem foram pagos os direitos e demais imposições, ficando sub-rogados em todos os direitos das alfândegas relativos às quantias pagas, acompanhados de todos os seus privilégios, nomeadamente do direito de retenção sobre as mercadorias e documentos objecto das declarações apresentadas”.
O art. 426 da Reforma Aduaneira, introduzida pelo dec-lei nº 46.311, de 27-4-65, veio dispor que apenas os despachantes oficiais podem intervir no despacho aduaneiro, mediante mandato sem representação. O despachante oficial é um técnico especializado em matéria aduaneira, procedendo às formalidades necessárias ao desembaraço, por conta de outrem, de mercadorias e meios de transporte, competindo-lhe assim o exercício quotidiano, indiscriminado, da actividade ligada ao requerimento, instrução e obtenção do despacho alfandegário. A actividade de desembaraço aduaneiro de um despachante oficial enquadra-se, assim, no contrato de mandato sem representação (art. 1180 do C.C.), na medida em que o mandatário age em nome próprio, mas por conta de outrem No âmbito deste contrato, cabe ao mandante entregar ao despachante oficial as verbas correspondentes aos direitos aduaneiros e demais imposições relativos ao desalfandegamento das mercadorias, enquanto que a este, na qualidade de mandatário, lhe compete entregar à administração aduaneira os valores recebidos do mandante – arts 1161 e 1167 do C.C.
No caso concreto, no exercício da sua actividade de despachante oficial, o autor prestou à ré BB os serviços que deram origem à emissão das contas de despachante a que se alude em G), que foram enviadas pela CC à ré que as recebeu, juntamente com as facturas de fls 98, 100 e 101. Nas declarações aduaneiras, a ré BB figura como importador. A ré BB não entregou ao autor as quantias correspondentes às declarações a que se alude em D) e F), que o autor pagou. Também se apurou que a ré ajustou com a CC, em meados da década de 1990, a prestação de serviços para assegurar o cumprimento de todas as diligências e procedimentos necessários à importação de mercadorias. Neste contexto, foi dada à CC liberdade de escolha e dos meios e procedimentos a utilizar, para efectuar as importações de mercadorias da ré BB, escolhendo as pessoas que seriam responsáveis pela concretização das importações, nomeadamente pelo desalfandegamento das mercadorias. Assim, ao longo dos anos, quem entregou ao autor os documentos destinados ao desalfandegamento das mercadorias da ré foi, quase sempre, a CC. Era a CC que se encarregava do transporte de mercadorias da estância aduaneira para os armazéns da ré. E quem entregava ao autor o dinheiro para pagamento dos impostos e dos honorários. Era través da CC que o autor recebia instruções da ré. Conforme ajustado, os valores das dívidas aduaneiras eram facturados pela CC à ré, sendo anexa a conta do despachante alfandegário como comprovativo dos valores solicitados, o que sucedeu até ao verão de 2008, e se verificou com as dívidas aduaneiras em causa. No verão de 2008, a ré tomou conhecimento de que os direitos aduaneiros para desalfandegamento de mercadorias a si destinadas não estavam a ser liquidadas. A ré entregou as quantias correspondentes às declarações a que se alude em D) e E) á CC, à excepção da quantia de 1.000 euros, referente à declaração mencionada em D). Desde que tomou conhecimento, no verão de 2008, que os direitos aduaneiros respeitantes às suas mercadorias não estavam a ser pagos, a ré deixou de recorrer aos serviços da CC.
Estes factos provados mostram que, desde meados da década de 1990, a ré BB recorreu aos serviços de um terceiro, como seu auxiliar, para assegurar o cumprimento de todas as diligências e procedimentos necessários à importação de mercadorias. Ora, art. 800, nº1, do C.C. estipula: “O devedor é responsável perante o credor pelos actos dos seus representantes legais ou das pessoas que utiliza para o cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor”. Comentando tal preceito, Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Vol. II, 3ª ed, pág. 57) observam: “ Se, sem culpa e diligentemente, o devedor encarrega alguém de lhe ir pagar uma dívida, e o encarregado foge com o dinheiro ou negligentemente se esquece de cumprir, dir-se-ia não se justificar que, por não haver culpa do devedor, o credor sofresse as consequências da culpa do auxiliar. “O devedor, escreve, porém, Vaz Serra (Responsabilidade do devedor pelos factos dos auxiliares, dos representantes legais ou dos substitutos, nº2, Bol. nº 72), que se aproveita de auxiliares no cumprimento, fá-lo a seu risco e deve, portanto, responder pelos factos dos auxiliares, que são apenas um instrumento seu para o cumprimento. Com tais auxiliares, alargam-se as possibilidades do devedor, o qual, assim como tira daí benefícios, deve suportar os prejuízos inerentes à utilização deles “. Vide a propósito o Ac. do S.T.J. de 17-6-82, Bol. 318, pág. 437). Dominam nesta matéria os princípios que justificam a responsabilidade do comitente pelos danos que o comissário causar (art. 500), bem como a responsabilidade do Estado ou das demais pessoas colectivas públicas pelos danos causados a terceiro pelos seus órgãos, agentes ou representantes (art. 501). A responsabilidade limita-se, no caso do art. 800 aos actos praticados no cumprimento da obrigação, não abrangendo os praticados por ocasião do cumprimento, mas nada tendo com este. Tratando-se de obrigação pecuniária, há ainda que tomar em conta, na definição da responsabilidade do devedor pelos actos dos seus representantes legais ou auxiliares, a circunstância de se tratar de uma dívida portable, ou seja, que só se considera cumprida quando o devedor (ou alguém por ele) coloca o objecto da prestação em poder do credor “. A exclusão da responsabilidade do devedor que utiliza auxiliares para o cumprimento de uma obrigação pode ser convencionalmente excluída ou limitada nos termos do art. 800, nº2, do C.C. Só que a responsabilidade da ré BB, nas suas relações com a auxiliar CC, não foi excluída ou limitada, nos termos legalmente previstos. Por outro lado, importa ponderar que a prestação só pode ser feita ao credor ou ao seu representante – art. 769 do C.C. A prestação feita a terceiro não extingue a obrigação, excepto nos casos do art. 770 do C.C., que aqui não ocorrem, por não estarem provados factos suficientes que o revelem. Por isso, apesar da auxiliar CC se ter apropriado do dinheiro que lhe foi entregue pela ré, para pagamento dos direitos aduaneiros em questão, não está excluído o direito de regresso, por parte do despachante (ora autor), contra a importadora (a ora ré BB), nos termos do art. 2, nº2, do citado dec-lei nº 289/88, de 24 de Agosto, visto estar apurado que o despachante pagou tais direitos à Alfândega. A ré é que poderá exigir da CC o dinheiro que lhe entregou para o questionado desalfandegamento.
Não há contradição entre a posição que agora se deixou defendida e o que foi decidido em cada um dos três Acórdãos citados nas alegações da revista, pois não há coincidência entre o núcleo essencial dos factos em questão que concorrem neste caso, por um lado, e na situação apreciada em cada um daqueles três Acórdãos, por outro. Aqui, o que se verifica é que a importadora entregou a quase totalidade do dinheiro à auxiliar CC, mas esta não pagou ao despachante, tendo este procedido ao pagamento dos direitos aduaneiros devidos pelo desalfandegamento das mercadorias. Em cada um dos três Acordãos citados nas alegações da revista, a situação é bem diferente. O importador de mercadorias, desalfandegadas com utilização do “sistema de caução global”, fez entrega directa ao despachante do montante dos direitos aduaneiros, mas ele não pagou os referidos direitos, vindo o pagamento a ser efectuado pela seguradora, sendo esta que pretende exercer o direito de regresso contra o importador.
Sustenta ainda a recorrente que o Acórdão impugnado deve ser revogado por dever ser considerado que o recorrido, tacitamente, declarou que a obrigação que a mesma recorrente tinha para com ele, decorrente do despacho de desalfandegamento de mercadorias, se extinguiria mediante o pagamento à indicada CC, para a qual, de resto, remetera a sua conta. Que dizer? A declaração negocial pode ser expressa ou tácita: é expressa, quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio directo de manifestação de vontade; é tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade a revelem – art. 217, nº1, do C.C. No caso, o relacionamento directo foi estabelecido entre a ré e a auxiliar CC. Ora, como já se salientou no Acórdão recorrido, os factos respeitantes ao apuramento da declaração tácita terão de reportar-se à relação do autor com a ré. E hão-de conduzir à dedução de que o autor aceitou que a entrega do dinheiro à CC equivaleria, só por si e desde logo, ao pagamento dos seus serviços de despachante. Todavia, os factos provados apenas se reportam quer à relação do autor com a CC, quer à relação desta com a ré. Não dizem respeito à relação da ré com o autor. Daí que inexistam factos suficientes donde se possa concluir, com toda a probabilidade, pela aceitação tácita da alegada extinção imediata do pagamento dos serviços, através da simples entrega do dinheiro à CC. A recorrente ainda chama à colação o facto do autor ser gerente da CC, o que apontaria para um certo controlo da situação de facto pelo próprio autor, que permitiria a aceitação do pagamento dos serviços deste com a mera entrega do dinheiro à CC. Todavia, está provado que o autor renunciou às funções de gerente da CC em 30-8-2006, sendo que os factos em questão apenas vieram a ocorrer em meados de 2008. Com a renúncia ao cargo de gerente, o autor perdeu o completo controlo da situação de facto da CC. Por isso, à data dos factos, não há elementos para se poder concluir, com toda a probabilidade, pela aceitação tácita de que a entrega do dinheiro à CC equivaleria ipso facto ao pagamento dos serviços do autor.
Por último, a recorrente ainda defende que constitui um verdadeiro abuso do direito alegar que o recorrido, pessoalmente, nunca declarou à recorrente que o pagamento feito à CC extinguiria a obrigação, uma vez que todos os procedimentos por este criados, enquanto gerente da CC, permitiriam concluir à BB que, pagando à CC as contas por esta apresentadas, a recorrente estaria a cumprir todas as suas obrigações para com a Alfândega. Mas também aqui não assiste razão à recorrente. É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito – art. 334 do C.C. Exige-se que o excesso cometido seja manifesto. É esta a lição de todos os autores e de todas as legislações. Manuel de Andrade refere-se aos “direitos exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça “ (Teoria Geral das Obrigações, pág. 63) e “às hipóteses em que a invocação e aplicação de um preceito da lei resultaria, no caso concreto, intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético-jurídico, embora lealmente se aceitando como boa e valiosa para o comum dos casos a sua estatuição (Sobre a validade das cláusulas de liquidação de partes sociais pelo último balanço, R.L.J. Ano 87, pág. 307). Vaz Serra refere-se, igualmente, “à clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante (Abuso do direito , Bol. nº 85, pág. 253). Pois bem. A ré escolheu a CC, como sua auxiliar, para lhe prestar os serviços necessários para assegurar o cumprimento de todas as diligências e procedimentos necessários à importação de mercadorias. Conforme ajustado, os valores das dívidas aduaneiras eram facturadas pela CC à ré, sendo a CC que entregava ao autor o dinheiro para pagamento dos impostos e dos honorários. Como a ré tinha consciência de que a CC era uma mera auxiliar no cumprimento dos procedimentos necessários à importação de mercadorias e simples intermediária no pagamento dos impostos e dos honorários do despachante, nos termos do art. 800, nº1, do C.C., não podia criar a convicção ou esperar que, entregando o dinheiro à CC, estava a cumprir todas as suas obrigações para com a Alfândega. Assim sendo, no caso concreto, não se constata qualquer manifesto excesso, no comportamento do autor, que justifique o apelo ao instituto do abuso do direito, para efeito de conduzir à improcedência da acção. * Sumariando:
1 – A actividade de desembaraço aduaneiro de um despachante oficial enquadra-se no contrato de mandato sem representação, na medida em que o despachante age em nome próprio, mas por conta de outrem. 2 – Se o importador se serviu de terceiro, como seu auxiliar, para assegurar o cumprimento de todas as diligências e procedimentos necessários à importação de mercadorias, tal importador é responsável nos termos do art. 800, nº1, do C.C. 3 – Se o importador pagou os direitos aduaneiros a esse terceiro, seu auxiliar, mas este não entregou o dinheiro ao despachante, o qual teve de pagar do seu bolso tais direitos, há direito de regresso do despachante contra o importador, nos termos do art. 2, nº2, do dec-lei nº 289/88, de 24 de Agosto. 4 – Só há declaração tácita quando se deduza de factos que, com toda a probabilidade, a revelem. 5 – O abuso do direito pressupõe um manifesto excesso, um direito exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça. * Termos em que negam a revista. Custas pela recorrente. Lisboa, 20-11-2012 |