Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2661/23.3T8GMR.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: AMÉLIA ALVES RIBEIRO
Descritores: AÇÃO POPULAR
PRESSUPOSTOS
PROCESSO DE CONTRAORDENAÇÃO
AÇÃO CÍVEL
OBJETO DO PROCESSO
ILICITUDE
INTERPRETAÇÃO DA LEI
DOCUMENTO ELETRÓNICO
DIREITOS DO CONSUMIDOR
DIREITOS FUNDAMENTAIS
RESTRIÇÃO DE DIREITOS
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
RECURSO PER SALTUM
Data do Acordão: 11/26/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA PROCEDENTE
Sumário :
O facto de o comportamento imputado à ré (falta de disponibilização do livro de reclamações eletrónico) ser, em abstrato, reconduzível a um tipo de ilícito contraordenacional, não afasta a possibilidade de, em ação cível, ser aquela compelida ao cumprimento da obrigação legal que alegadamente não cumpriu.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

Revista n.º 2661/23.3T8GMR.S1

6ª Secção

I. Relatório

Citizens’ Voice – Consumer Advocacy Association intentou contra Prime Senior Tecnologias Inteligentes, Lda. a presente acção popular, pedindo1, que seja «(…) declarado que a Ré:

A. Violou e continua a violar as obrigações decorrentes dos artigos 1 (2), 2 (2) e 5-C

(1), do decreto-lei 156/2005 e do artigo 3 (2), da portaria 201-A/2017.

B. Com a totalidade ou parte desses comportamentos lesou gravemente o interesse difuso da proteção dos consumidores e os interesses coletivos e individuais homogéneos dos autores populares, designadamente os seus direitos enquanto consumidores a poderem reclamar no livro de reclamações eletrónico;

e em consequência, deve a ré ser condenada:

C. a disponibilizar aos consumidores residentes em território português um livro de reclamações eletrónico, em conformidade com os termos da lei, no prazo que esse tribunal entenda adequado, após o trânsito em julgado da sentença, sob pena de aplicação de sanção pecuniária compulsória de montante a determinar pelo tribunal por cada dia de atraso, para que estes possam, então, querendo, apresentar as suas reclamações por essa via legalmente determinada;

D. a pagar à autora interveniente o montante de procuradoria que venha a ser determinado pelo tribunal, nos termos e para os efeitos do artigo 21 da lei 83/95.».

Após tramitação processual, que não releva para a presente decisão, foi proferido despacho liminar do qual se extrai nomeadamente que: «(…) No caso em apreço, a Autora (associação de defesa dos consumidores) pretende reagir contra a omissão da Ré de dispor de livro de reclamações eletrónico, cuja obrigatoriedade encontra-se prescrita pelo artigo 5.º-B/1, do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15.09.

Com efeito, nos termos dessa disposição legal, o fornecedor de bens ou prestador de serviços é obrigado a possuir o formato eletrónico do livro de reclamações, nos termos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 9.º.

A violação dessa disposição constitui, nos termos do artigo 9.º/1, do diploma legal citado, contraordenação económica grave, punível nos termos do Regime Jurídico das Contraordenações Económicas (RJCE). E a competência quanto à instrução dos processos de contraordenação, no caso dos estabelecimentos mencionados nas als. a) a k), do n.º 1, nas als. a) a f) do n.º 3 e no n.º 5, do anexo ao diploma legal acima citado, cabe à ASAE (cfr. artigo 11.º/1,a) do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15.09).

No entanto, de acordo com o artigo 9.º-A, do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15.09, com a redação que lhe foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29.01: (…)

Perante o que se vem de expor, prevendo o legislador uma tutela contraordenacional de reação à violação da disposição que determina a posse do livro de reclamação eletrónico, tutela essa que deve ser precedida de notificação do infrator para a regularização do ilícito, coloca-se a questão de saber se a ação popular civil é alternativa à perseguição contraordenacional.

Embora se perspetiva áreas de sobreposição de interesses, em que os meios de reação possam ser cumulativos, tendo em conta a causa de pedir em que se estrutura a presente ação, entende-se que o meio de tutela dos consumidores é a perseguição através do ilícito de mera ordenação social.

Isto porque, no presente processo, para além de não se ter aludido a nenhum episódio concreto de falta de disponibilização do livro de reclamações eletrónico, não se visa a concessão de proteção ressarcitória, não tendo sido formulada pretensão dessa natureza. A finalidade exclusiva destes autos é a de repressão do comportamento violador da Ré de não possuir o citado livro de reclamações.

(…).

Ora, no caso em apreço, entende-se que a forma de reação para repressão da conduta da Ré é, justamente, a quase-acção popular penal, acabada de aludir.

Veja-se que o artigo 25.º, da LAP, determina que aos titulares do direito de ação popular é reconhecido o direito de denúncia, queixa ou participação ao Ministério Público por violação dos interesses previstos no artigo 1.º, da LAP, que revistam natureza penal, bem como o de se constituírem assistentes no respetivo processo, nos termos previstos nos artigos 68.º, 69.º e 70.º do Código de Processo Penal.

É certo que, no caso, não está em causa a imputação de um ilícito penal, mas a prática de uma contraordenação. No entanto, se é reconhecido aos titulares do direito de ação popular o direito de denúncia, por identidade de razão, esse direito assiste-lhes no âmbito do ilícito de mera ordenação social.

Pelo que, tudo posto, salvo o devido respeito, entende-se que, face à configuração da ação constante da petição inicial (onde não é formulada pretensão de natureza indemnizatória pelo ilícito), a denúncia, permitida pelo artigo 25.º, LAP, com vista à perseguição contraordenacional, é a tutela ao dispor dos consumidores para reagir contra a falta de livro de reclamações eletrónico.

O facto de a Autora ter requerido a aplicação de uma sanção pecuniária compulsória não afeta a exposição antecedente, porquanto, para além de a ilicitude da conduta imputada à Ré ser punida através de uma coima, dentro da amplitude fixada pelo legislador, entende-se que o direito àquela dependeria de assistir à Autora o recurso à presente tutela para a repressão do comportamento em questão.

Nestes termos, ao abrigo do que dispõe o artigo 13.º, da LAP, indefere-se liminarmente a petição apresentada.

Nos termos do artigo 26.º/3, da LAP, as custas, que se fixam no mínimo legal, são a cargo da Autora.

(…)”.

A A. interpôs revista per saltum para este Supremo Tribunal, no qual formula as seguintes conclusões:

1. Os recorrentes, autores populares, interpõe o presente recurso por entenderem que o tribunal a quo não fez a melhor e mais correta interpretação do direito ao entender: a) fixar custas a cargo da autora; b) indeferir liminarmente a petição inicial, no arco do poder dever conferido pelo artigo 13, da lei 83/95, por entender que a ilicitude da conduta imputada à ré deveria ser reprimida nos termos de uma quase-ação popular penal, por intermédio do disposto do artigo 25, da lei 83/95, ou seja, nos termos do direito penal, e não nos termos do direito civil, como é feito na presente ação.

2. O presente recurso vem na modalidade da revista per saltum, por recair apenas sobre a matéria de direito, o que é feito nos termos e ao abrigo nos artigos 627, 629 (1), 631, 637, 639, 672, 675, 678 (1), aplicável ex vi, artigo 644 (1,a) e 678 (3), todos do CPC.

3. Os autores têm legitimidade para interpor o presente recurso acompanhado das respetivas alegações sob a matéria de direito (cf. artigo 631, do CPC) e estão em tempo de o fazer (cf. artigo 638, do CPC).

4. Os recorrentes, mui respeitosamente, discordam da douta sentença pelas razões de direito vertidas nos §§ 4 e 5 supra, para onde se remete para uma completa compreensão e evitando aqui uma repetição fastidiosa e prolixa do que aí se encontra de forma resumida.

5. Mas que, resumindo, se estriba no facto de:

a. a douta sentença ter decidido por custas pela autora nos termos do artigo 20 (3) da lei 83/95, quando tal norma se encontra revogada pelo artigo 25 (1) do decreto-lei 34/2008. Razão pela qual deveria ser aplicado o regime atual de custas processuais na ação popular e que resulta da conjugação do artigo 4 (1, b) e (5) do decreto-lei 34/2008, desse modo excecionando a autora de custas – tal como tem vindo a ser entendimento jurisprudencial unanime desse Colendo Supremo Tribunal de Justiça.

b. a douta sentença ter indeferido liminarmente a petição inicial por interpretar restritivamente o direito de ação popular, no sentido de que a ilicitude da conduta imputada à ré dever ser reprimida nos termos de uma quase-ação popular penal, uma vez que não é pedido nenhum pedido de indemnização civil, violando, com tal interpretação, o direito de ação popular, desde logo com assento constitucional.

6. Sem queremos ser fastidiosos e repetitivos em sede de conclusões, mas para evidenciar o desacordo relativamente à interpretação do direito de ação popular declarativa sob a forma de processo comum do tribunal a quo, importa sumariamente referir o seguinte:

7. Neste processo é reclamado o direito dos autores a obterem a condenação da ré no cumprimento das suas obrigações legais (efetiva disponibilização do livro eletrónico de reclamações), por intermédio de uma sentença do tribunal, com uma sanção pecuniária compulsória com vista a eficácia e a soberania dos tribunais, porquanto o incumprimento dessas obrigações lesa os interesses difusos de proteção dos consumidores.

8. Tal cai no âmbito do direito civil e não contraordenacional ou penal, porquanto o regime do livro de reclamações confere um direito aos consumidores –o de apresentarem uma reclamação através do mecanismo previsto na lei– que podem fazer uso dos mecanismos legais para garantirem a possibilidade de exercerem esse seu direito e o respeito pela obrigação reflexa da ré.

9. A ação popular civil pode revestir qualquer das formas previstas no Código de Processo Civil, tema sobre o qual o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa ainda muito recentemente se pronunciou –vide nota de rodapé número 2– [cf. artigo 12 (2), da lei 83/95], incluindo ações declarativas de simples apreciação ou de condenação.

10. Pelo que não se pode excluir a possibilidade de uma ação declarativa de condenação, incluindo por intermédio de uma ação popular (uma vez conferida a legitimidade ativa aos autores populares) no cumprimento de uma obrigação legal com o fundamento de que a violação dessa obrigação pode ser sancionada com uma contraordenação, pois os particulares têm o direito de pedir aos tribunais que ordenem o restabelecimento da legalidade e não se podem encontrar limitados a peticionar tal às autoridades administrativas e tão pouco estão dependentes da decisão destas de atuarem (ou não) para verem protegidos os seus direitos.

11. Acresce que o artigo 25, da lei 83/95, invocado pelo tribunal a quo, alarga os direitos reconhecidos aos autores populares, não restringe os direitos que já lhes foram anteriormente reconhecidos na CRP e na mesma lei.

12. Mas mesmo que em causa estivesse matéria que dependesse de queixa ou acusação particular, as vítimas podiam renunciar ao exercício desse direito a favor de uma ação civil [cf. artigo 72 (2), do CPP], pois o legislador, por intermédio da opção retro referida, concedeu à vítima de crimes semipúblicos ou particulares, para verem o dano reparado (ou a reposição da legalidade) pela via da ação civil, quando lhe é indiferente a censura penal do agente do dano, liberdade que também se verifica nos crimes públicos, sem prejuízo do princípio da adesão (cf. artigo 71, do CPP) ao processo penal e com as exceções previstas no aludido artigo 72, do CPP.

13. Isto significa que não pode o tribunal, intérprete aplicador das leis, impor às vítimas, os autores populares, o caminho pelo processo penal, quando o legislador, de forma alguma, o impôs, muito pelo contrário, deu-lhes a liberdade de escolha.

14. Ou seja, mesmo que a infração em causa fosse de natureza penal, os consumidores que se viam impedidos de exercer um seu direito em resultado desse ilícito penal continuado teriam a opção de recorrer aos tribunais cíveis para obrigar à reposição da legalidade, bem como para verem qualquer dano reparado. E nem precisam de peticionar uma qualquer indemnização civil para que tal direito, tutelado desde logo pela lei fundamental, lhes seja concedido.

15. Essa liberdade de escolha e, concomitantemente, o direito, ao restabelecimento da legalidade, por via de uma ação declarativa em que é pedido que o livro de reclamações eletrónico seja disponibilizado a toda a massa de consumidores, por via de uma ação popular, não pode ser negado ou restringido, pelo entendimento do tribunal, que tal direito não pode ser perseguido e exigido no âmbito da ação popular civil, pois deveria ser por intermédio de uma quase-ação popular penal, por força de tal entendimento ser quadruplamente inconstitucional.

16. Estando o direito de ação popular previsto tanto na CRP, como na lei ordinária, nomeadamente na lei 83/95, para a promoção da prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações contra os direitos dos consumidores [cf. artigo 52 (3, a), da CRP], teriam os autores populares sempre direito e legitimidade ao acesso à ação popular como proposta, nos termos conjugados dos artigos 2, 18, 20 (1) e (4) e 52 (3), da CRP, e artigo 2 (1), da lei 83/95, sob pena de quadrupla inconstitucionalidade de tal interpretação ultra restritiva aplicada pelo tribunal a quo ao direito de ação popular civil.

17. Assim, desde já se suscita a inconstitucionalidade da interpretação normativa extraída da conjugação dos artigos 2 (1), 12 (2) e 25, da lei 83/95, e de qualquer outra norma ordinária do ordenamento jurídico, segundo a qual os cidadãos e as associações de defesa dos interesses em causa não têm o direito de promover a cessação ou a perseguição judicial das infrações contra os direitos dos consumidores quando essas infrações constituem contraordenações, pois tal interpretação violaria o direito de ação popular [cf. artigo 52 (3), da CRP], bem como o princípio do Estado de Direito, na sua vertente de princípio da segurança jurídica (cf. artigo 2, da CRP), da força jurídica, por falhar no teste da proporcionalidade (cf. artigo 18, da CRP), e do direito de acesso aos tribunais e uma tutela jurisdicional efetiva mediante um processo equitativo [cf. artigo 20 1. e (4), da CRP].

18. Por fim, o que os autores populares pretendem e assim peticionam, é que a ré lhes disponibilize o livro de reclamações eletrónico, tal como é imposto por lei, entendendo que não precisam de perseguir qualquer pedido de indemnização civil e muito menos criminalmente a ré – o que acreditam que teria sido simples com a citação e condenação da ré a fazê-lo, sem necessidade de outras medidas.

Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência ser revogada a douta sentença, nomeadamente no que concerne à condenação da autora em custas, devendo esta ser considera isenta, e na verificação da exceção dilatória invocada pelo tribunal recorrido, relativamente à sua incompetência material (pois é isso, no final de tudo, que se trata), devendo ser considerado o Juízo Central Cível materialmente competente para julgar todos os pedidos formulados pelos autores populares.

Caso assim não entendam Vossas Excelências, Colendos(as), Senhores(as), Juízes(as) Conselheiros(as), deverá ser decretada a remessa do processo ao tribunal em que a ação deveria ter sido proposta, aproveitando-se os articulados já produzidos [cf. artigo 99 (2), do CPC], o que desde já se requer.

(…)”.

I.2. Recortadas nas conclusões de recurso, cumpre resolver as questões de saber se: (i) vindo alegada a violação do dever legal de disponibilização eletrónica de livro de reclamações, o facto de esta ser sancionada com uma contraordenação obsta à interposição de ação popular; (ii) a A. está isenta de taxas de justiça.

I.3. Admissibilidade do recurso

Verificam-se os pressupostos gerais de admissibilidade da revista: como flui do precedente relatório, as questões suscitadas têm uma índole estritamente jurídica e o recurso incide sobre decisão que colocou termo ao processo.

Nada obsta, pois, ao conhecimento do mérito da presente revista per saltum.

II. fundamentação

II.1. factualidade relevante

Importa ponderar a matéria que consta do precedente relatório.

II.2. do mérito do recurso

II.2.1. Quanto à questão saber se, vindo alegada a violação do dever legal de disponibilização eletrónica de livro de reclamações, o facto de esta ser sancionada com uma contraordenação obsta à interposição de ação popular.

Antes de mais, importa ter em mente o quadro normativo do direito de ação popular.

O artigo 52.º/3 da Constituição da República Portuguesa estabelece:

É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para:

a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, a preservação do ambiente e do património cultural;

b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais.”

Como emerge deste preceito, a ação popular, que integra o direito de ação judicial previsto no artigo 20.º da Lei Fundamental, constitui uma importante via de «(…) defesa de bens constitucionalmente protegidos de âmbito transindividual. (…)»2. Nessa medida, a previsão constitucional «(…) expressa uma verdadeiro direito fundamental que permite a quem não é titular de um interesse pessoal e directo o acesso visando a defesa de certos interesses de toda a colectividade (…)»3.

Sendo essencialmente vocacionada para a defesa de determinados interesses difusos, a ação popular assegura também a defesa de interesses individuais homogéneos os quais «(…) representam todos aqueles casos em que os membros da classe são titulares de direitos diversos, mas dependentes de uma única questão de facto ou de direito, pedindo-se para todos eles um provimento jurisdicional de conteúdo idêntico. (…)»4.

A tutela dos direitos dos consumidores insere-se precisamente neste último domínio5, constituindo um dos direitos fundamentais que integra o «(…) núcleo de proteção reforçada (…)»6 consagrado no citado preceito constitucional.

Estabelecido este enquadramento geral, importa relembrar que o mesmo dispositivo aponta claramente no sentido de existir uma garantia do direito de ação popular, pelo que os seus limites são apenas aqueles que figuram na lei para cuja regulamentação aquele preceito constitucional remete7.

Conhecidos estes contornos gerais, atentemos no particularismo do caso vertente.

A factualidade relevante, recortada na P.I., cinge-se à invocação de que a R., exercendo uma atividade comercial de prestação de serviços (incipientemente enunciada), não disponibiliza aos consumidores livro de reclamações eletrónico.

A argumentação aduzida no primeiro grau estribou-se na consideração de que, prevendo o disposto no artigo 25.º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, a possibilidade de A. desencadear a instauração, contra a R., de um processo contraordenacional pela prática dos factos descritos na P.I., vedado ficava o acesso à ação popular cível.

No plano normativo, o Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro instituiu a obrigatoriedade de existência e disponibilização do livro de reclamações a um conjunto alargado de fornecedores de bens e prestadores de serviços.

No seu preâmbulo colhe-se que a disponibilização do livro de reclamações foi então tida como um dos instrumentos que «(…) tornam mais acessível o exercício do direito de queixa de eficácia do livro de reclamações, enquanto instrumento de prevenção de conflitos, contribuindo para a melhoria da qualidade do serviço prestado e dos bens vendidos (…)»8.

Por sua vez, com o declarado propósito «(…) de modernizar e simplificar este regime, em particular no que se refere à desmaterialização do livro de reclamações e respetivos procedimentos (…)» e de dar cumprimento a uma medida programática que consistia «(…) na disponibilização de uma plataforma digital que permite aos consumidores apresentar reclamações e submeter pedidos de informação de forma desmaterializada, bem como consultar informação estruturada, promovendo-se o tratamento mais célere e eficaz das solicitações e uma maior satisfação daqueles (…)»9, o Decreto-Lei n.º 74/2017, de 21 de junho introduziu alterações no Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro, as quais, no que aqui releva, criaram a obrigatoriedade de disponibilização do livro de reclamações em formato eletrónico, disciplinaram os termos em que tal deve ser concretizado (cfr. artigos 2.º, 3.º e 5.º-B deste diploma) e sancionaram, por recurso ao direito de mera ordenação social, o incumprimento dessa determinação legal (cfr. artigos 9.º a 11.º do mesmo diploma).

Afigura-se, assim, que a obrigação cujo incumprimento se imputa à R. se insere no domínio dos direitos legalmente reconhecidos aos consumidores, i.e. num dos campos privilegiados do exercício do direito de ação popular, como acima se deu nota.

Aqui chegados, tenhamos como seguro que um mesmo facto praticado pelo mesmo agente pode desencadear diversas ilicitudes (civil, penal, contraordenacional, etc.), a que corresponderão diferentes reações do ordenamento jurídico nos diferentes planos em que tal ocorrência revista relevância. E esta constatação assume particular relevância no domínio da defesa do consumidor, a qual «(…) pode ser considerada como um princípio jurídico, que corresponde a um pensamento jurídico geral, e, por isso, é mesmo comum a vários ramos do direito (…)»10.

Neste enquadramento, interessa, em seguida, determinar se o facto de o comportamento imputado à R. ser, em abstrato, reconduzível a um tipo de ilícito contra-ordenacional afasta a possibilidade de, em ação cível, ser aquela compelida ao cumprimento da obrigação legal que alegadamente não cumpriu.

Antes de mais, cumpre assinalar que o direito de ação popular penal previsto no artigo 25.º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, tem como conteúdo útil a viabilização do direito de denúncia, queixa ou participação ao Ministério Público quanto a factos - dotados de relevância criminal - que atentem contra os interesses da coletividade a que se refere o artigo 52.º/3 da Constituição da República Portuguesa e a consequente admissão da constituição como assistente (cfr. ainda a parte final do artigo 68.º/1 do Código de Processo Penal).

Apesar deste preceito cingir o seu campo de aplicação ao processo penal, é defensável a sua extensibilidade ao direito de participação (cfr. artigo 53.º/3 do Decreto-Lei n.º 9/2021, de 9 de janeiro) de infrações às obrigações impostas pelo Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro às autoridades competentes para a instauração do respetivo procedimento contraordenacional.

Cumpre, porém, constatar que as pretensões formuladas pela A. na P.I. não se circunscrevem à declaração da ilicitude contraordenacional. Importa, de resto, assinalar que os pedidos formulados nas alíneas a) e b) do petitório - de índole estritamente declarativa - se constituem como meramente instrumentais em relação ao pedido condenatório formulado na alínea c) desse mesmo segmento da petição inicial, figurando, pois, como mero pressuposto jurídico dessa pretensão, a qual, como se anuirá, constitui o fulcro da presente ação.

Acresce que nem o regime procedimental especialmente aplicável à contraordenação prevista pela alínea artigo 9.º/1/a) do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro nem o regime geral do procedimento contraordenacional (instituído pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro) facultam aos interessados o poder de exigir ao autor do ilícito contraordenacional o cumprimento de qualquer obrigação. É que, como se sabe, o escopo do procedimento contraordenacional é estritamente preventivo/repressivo e não se coaduna com a tutela reintegrativa da ordem jurídica visada por particulares.

Acrescente-se, enfim, que a consideração dos deveres que, para as autoridades administrativas, dimanam dos n.os 1 e 2 do artigo 9.º-A do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro, é desprovida de relevância para a abordagem ao tema. Na verdade, aquela previsão legal apenas acentua o que viemos de expor, pois a eventual reposição da legalidade pelo autor do facto constitui um efeito reflexo da instauração do procedimento -, cabendo notar que, também em sede judicial, a constatação de que, na sequência da citação, a R. passou a disponibilizar aos consumidores o livro de reclamações eletrónico determinará, paralelamente, a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.

Deve-se, assim, concluir que o direito de participação contraordenacional não esgota o alcance da tutela jurisdicional requerida na presente ação nem permite que a pretensão condenatória que, fulcralmente, é direcionada contra a R. obtenha o acolhimento pretendido pela A..

Assim, pelas adiantadas razões e salvo o devido respeito, não nos revemos no entendimento segundo o qual a participação contraordenacional seria a única «(…) tutela ao dispor dos consumidores para reagir contra a falta de livro de reclamações eletrónico.». De outro modo, negaríamos a transversalidade da defesa do consumidor e uma das vertentes (a civil) que esta pode assumir, assim vedando, injustificadamente, o acesso a um eficaz e direto meio de tutela dos interesses em presença. E, mais relevantemente, erigiríamos uma restrição ao exercício do direito fundamental de ação popular que não encontra apoio na letra da lei nem é justificada pela necessidade de, adequada e proporcionalmente, acautelar a tutela de qualquer outro direito, o que dificilmente se poderia ter como compatível com o princípio da proporcionalidade (artigo 18.º/2 da Constituição da República Portuguesa) e com a índole jus fundamental daquele direito de ação.

Insubsiste, assim, o despacho recorrido.

II.2.2 Quanto à questão da isenção do pagamento de taxas de justiça

Cabendo revogar o despacho recorrido, mostra-se prejudicada a apreciação da segunda questão.

III. Decisão

Pelo exposto e decidindo, de harmonia com as disposições legais citadas, concede-se a revista e, consequentemente, na revogação do despacho recorrido, determina-se o prosseguimento dos autos.

Sem custas.

Lisboa, 26 de novembro de 2024

Amélia Alves Ribeiro (Relatora)

Luís Correia de Mendonça

Maria Olinda Garcia

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1. O pedido inicialmente formulado foi objeto de redução judicialmente admitida.↩︎

2. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª Edição, reimpressão, pág, 693.↩︎

3. Paulo Otero, A Acção Popular: configuração e valor no actual Direito português, in R.O.A., ano 59, vol. III, pág. 878.↩︎

4. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de setembro de 1997, B.M.J. n.º 469, pág. 432.↩︎

5. Neste sentido, o Acórdão citado na nota precedente e Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., pág. 698.↩︎

6. Cita-se o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 577/2013, acessível em TC > Jurisprudência > Acordãos > Acórdão 577/2013.↩︎

7. Assim, Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., pág. 695.↩︎

8. Preâmbulo do referido diploma.↩︎

9. Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 74/2017, de 21 de junho.↩︎

10. Luís Menezes Leitão, Estudos do Instituto do Direito do Consumo, vol. I, Almedina, págs. 226.↩︎