Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
223/15.8JAAVR.P1.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: RECURSO PENAL
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
REPETIÇÃO DA MOTIVAÇÃO
IN DUBIO PRO REO
FACA
MEIO PARTICULARMENTE PERIGOSO
CULPA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Data do Acordão: 03/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / RECURSO PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
DIREITO PENAL – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA / CRIMES CONTRA A INTEGRIDADE FÍSICA.
Doutrina:
-Figueiredo Dias, Comentário, I, 2.ª Edição, p. 68.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 410.º, N.ºS 2 E 3 E 434.º.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 132.º, N.º 2, ALÍNEAS E) E H), 143.º, N.º 1, 144.º, ALÍNEAS B) E C) E 145.º, N.ºS 1, ALÍNEA B) E 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 23-02-2012, PROCESSO N.º 123/11.OJAAVR.S1;
- DE 09-09-2015, PROCESSO N.º 73/13.6SVLSB.S1, IN SUMÁRIOS DO STJ, WWW.STJ.PT;
- ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA N.º 4/95, IN 07-06-1995, DR,I-A, DE 06-07-1995.
Sumário :
I  -   Embora o recorrente no recurso para o STJ se limite a reproduzir a motivação e as conclusões do recurso que interpôs para a Relação, a que na íntegra foi negado provimento, não sendo essa a atitude processual mais canónica ou acertada, em ordem ao princípio favorabilia amplianda, odiosa restrigenda é de conhecer do objecto do recurso.

II -  De acordo com o disposto no art. 434.º, do CPP os poderes de cognição do STJ estão limitados em exclusivo ao reexame da matéria de direito e quando ressalva a aplicação do disposto nos n.ºs 2 e 3 do art. 410.º fá-lo com referência aos seus poderes oficiosos e como condição do conhecimento de direito, o mesmo acontecendo quanto à violação do princípio in dubio pro reo.

III -     O uso de uma normal faca de cozinha (com 10 cm de lâmina e 11 cm de cabo) não constitui meio particularmente perigoso susceptível de integrar a qualificativa da al. h) do n.º 2 do art. 132.º do CP dado que não revela perigosidade significativamente superior à normal dos meios usados para matar ou ferir.

IV -     A desconsideração dessa qualificativa, a que a Relação atendeu, não pode deixar de revelar em sede de culpa no recurso para o STJ, com reflexos na medida concreta da pena.

V - Na moldura penal abstracta de 3 a 12 anos de prisão pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada dos arts. 143.º, n.º 1 e 144.º, als. b) e c) e 145.º, n.ºs 1, al. b) e 2 e 132.º, n.º 2, al. e) do CP, por arguido antes condenado por crimes de idêntica natureza, o desvalor da acção (assente em motivo fútil) e de resultado (perda definitiva da visão de um dos olhos) determina, necessária, adequada e proporcionalmente, a imposição da pena de 7 anos e 6 meses de prisão.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

AA [...] foi condenado no processo comum com intervenção do tribunal colectivo n.º 223/15.8JAAVR da ....ª Secção Criminal-..., da Instância Central de ..., quanto à parte crime (única que releva no recurso), como autor material de um crime de ofensa à integridade física grave e qualificada, dos art.ºs 143.º, 144.º, alíns. b) e c) e 145.º, n.ºs 1, alín. b) e 2, por referência ao art.º 132.º, n.º 2, alíns. e) e h), todos do Código Penal, na pena de 8 anos e 6 meses de prisão.

Dessa decisão interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto onde, por acórdão de 8 de Agosto de 2016, foi decidido negar-lhe provimento, confirmando integralmente essa decisão.

Ainda inconformado, recorreu o arguido para este Supremo Tribunal de Justiça, formulando na respectiva motivação as seguintes conclusões, por sua vez reeditadas das apresentadas para a Relação e que se transcrevem:
I. “ O presente recurso tem como objecto a matéria de facto e de direito (nos termos do disposto no art.º 434º, conjugado com o art.º 410º nº2 alínea c) do CPP) da sentença proferida nos presentes autos que condenou o Recorrente pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave e qualificada, previsto e punido 143º, 144º alíneas b) e c) e 145º, alínea b) e nº2 por referência ao art.º 132º nº2 alíneas e) e h) do Código Penal, na pena de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão efectiva, bem como o acórdão proferido no âmbito do recurso para o Tribunal da Relação do Porto;
II. O Tribunal a quo considerou como provados os seguintes factos, dos quais por economia processual se transcrevem apenas os que revestem interesse para os presentes autos:
III. “1. No dia 12 de Junho de 2015, cerca da 1 hora e 30 minutos, o arguido AA deslocou-se ao estabelecimento de bar denominado “...”, situado na ..., acompanhado de BB (com a alcunha de “...”), tendo ambos entrado e permanecido naquele bar a beber bebidas alcoólicas e a conviver.
IV. 2. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 1, o arguido tinha na sua posse uma faca do tipo faca de cozinha, dotada de lâmina em aço inoxidável com cerca de 10 (dez) centímetros de comprimento e cabo em madeira com cerca de 11 (onze) centímetros de comprimento.
V. 3. Cerca das 2 horas daquele dia 12/06/2015, quando ambos ainda se encontravam no interior do aludido bar, o referido BB envolveu-se em discussão com CC, o qual integrava um grupo de pessoas em que se incluía a DD.
VI. 4. Nessas circunstâncias o arguido AA desferiu um soco no referido CC.
VII. 5. Então, o mencionado BB e o arguido AA acabaram por se envolver em agressões físicas com algumas de tais pessoas.
VIII. 6. A DD, com o intuito de fazer cessar a contenda, colocou-se entre o arguido AA e uma das pessoas que o mesmo pretendia agredir, ocasião em que o arguido desferiu um soco na face daquela.
IX. 7. Acto contínuo e sem que nada o fizesse prever, o arguido pegou na faca referida em 2 e empunhou-a no ar, segurando-a pelo cabo com a mão direita, com a respectiva lâmina apontada para baixo, e com esta desferiu um golpe na direcção da face da DD, atingindo-a a nível da região ocular direita, onde a lâmina ficou empalada.
X. 12. Logo após os factos descritos em 7 a 9, o arguido tentou fugir do local, logrando ainda sair para o exterior do referido estabelecimento, onde foi agarrado e detido por várias pessoas que se encontravam no interior do bar, que foram no seu encalço e que o retiveram até à chegada ao local da Guarda Nacional Republicana.
XI. 14. O arguido conhecia as características da faca referida em 2, que utilizou nos moldes descritos em 7, estando ciente das potencialidades letais da mesma.
XII. 17.O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade da sua conduta.
XIII. 34. Na sequência da separação conjugal, o arguido encontra-se desde há cerca de 1 ano medicado com medicação antidepressiva e indutora do sono (“Sertralina 50mg”; “Castilium 10”).
XIV. Tendo ainda, com interesse para a decisão do presente recurso, considerado como não provado o seguinte factos:
XV. - O arguido AA apenas tenha agredido outras pessoas quando já havia agressões por parte do BB e de outros frequentadores do ...
XVI. Ora, atento os factos provados, bem como os não provados, conjugados com as declarações prestadas pelas testemunhas, dúvidas não nos restam de que andou mal o Tribunal a quo.
XVII. Na verdade e atendendo ao supra exposto, existiram factos que o Tribunal a quo deu como provados, em completa contradição com a prova produzida,
XVIII. Sendo que existem factos que foram dados como não provados, que no entender do ora Recorrente, podiam e deviam, atenta a prova, ter sido dado como provados.
XIX. Havendo ainda factos que, não obstante terem ficado devidamente comprovados na audiência, a verdade é que o tribunal a quo, deles fez uma rasura, ignorando por completo.
XX. Na verdade e no entender do ora arguido os factos em causa subsumem-se no seguinte:
XXI. Dá o tribunal como provado que o arguido agiu deliberada e conscientemente,
XXII. Acontece que o tribunal a quo dá igualmente por provado que o ora Recorrente teria ingerido diversas bebidas alcoólicas, bem como se encontrar a ser medicamentado por antidepressivos.
XXIII. Sendo que, conforme se dá como provado, o ora Recorrente ao ingerir as bebidas alcoólicas, estando a tomar medicamentos, aumenta exponencial, os efeitos destes, levando a lapsos de memória e perda de consciência, pelo que e contrariamente ao que faz crer o Douto Acórdão, a verdade é que o mesmo não poderia, em momento algum, ter a consciência necessária à prática do acto de que vem acusado.
XXIV. Tanto mais que, conforme dá como provado o Douto Acórdão, o ora Recorrente já teria tido problemas com o álcool (ponto 28 e 38 dos factos provados).
XXV. Aliás, da análise dos testemunhos que acima se transcrevem, e para onde se remete, dúvidas não nos restam de que atenta a quantidade de álcool ingerida, bem como o facto do mesmo se encontrar a ser medicamentado, certamente que o mesmo não teria, de todo, a consciência necessária para poder agir livre, deliberada e conscientemente conforme se dá como provado no poto 17.
XXVI. Pelo que, no entender do ora Recorrente, andou mal o tribunal a quo quando, não obstante reconhecer que o arguido se encontrava alcoolizado e medicamentado com medicamentos para a depressão, reconhece e dá como provado que este teria o discernimento necessário para agir conscientemente!
XXVII. Ainda no que concerne a este ponto entende o arguido que o tribunal a quo andou mal, pois da análise da prova produzida, e não obstante individualizar todos os actos à noite em questão, deveria este ter ido mais atrás no tempo,
XXVIII. Deveria o tribunal a quo ter dado como provado que desde o fim da tarde que o arguido se encontrava a ingerir bebidas alcoólicas,
XXIX. Sendo que tais factos deveriam ter sido dado como provados, atenta as declarações prestadas pelas testemunhas, quer de acusação – BB, quer de defesa – EE, os quais declaram, sem qualquer razão para se colocar em causa tais depoimentos, que o arguido teria ingerido diversas bebidas alcoólicas.
XXX. Aliás, conforme declarações prestadas, (BB Gravação 10/03/2016, com início a 00:03:15 e fim 00:30:30, e EE Gravação 14/03/2016, com início a 00:00:00 e fim 00:07:42).
XXXI. Dúvidas não nos restam de que é por demais evidente que o ora Recorrente, aquando dos actos, não se encontrava de todo consciente dos seus actos.
XXXII. Devendo, na opinião do ora Recorrente, o tribunal a quo ter dado como provado que este, antes mesmo de ter-se deslocado para o ... teria, em diversos outros estabelecimentos, ter ingerido diversas outras bebidas.
XXXIII. Pelo que, no entender do ora Recorrente, andou mal o tribunal a quo quando, por defeito, não dá como provado, nem não provado, factos que são por demais evidentes e que na sua opinião influenciam a decisão dos presentes autos.
XXXIV. Posto isto, deveria o tribunal a quo ter dado como provado estes factos e não subsumir os mesmos à hora e local em concreto.
XXXV. Não o fazendo, andou mal o tribunal a quo.
XXXVI. Por outro lado e ainda no que concerne à análise da matéria de facto, entende o ora Recorrente que andou igualmente mal o tribunal a quo quando dá como não provado a existência de agressões anteriores ao acto perpetuado pelo arguido.
XXXVII. Facto que, como se fará ver, terá influência clara na decisão em causa, bem como na medida da pena a aplicar.
XXXVIII. Na verdade, aquando dos momentos anteriores à agressão, ficou criada “na mente” do arguido uma situação clara em que existiria uma agressão ao colega que com ele se havia deslocado ao bar.
XXXIX. Agressão que não correspondia à verdade, mas que, atento o estado em que o mesmo se encontrava, dúvidas não nos restam de que o mesmo, erradamente, o aceitou como verdadeiro.
XL. Assim e atento o exposto, o ora Recorrente no meio da confusão que se gerou criou a ideia de que o seu colega BB estaria a ser vitima de uma agressão e foi em seu encalce.
XLI. Sendo que tal possibilidade é claramente evidente nas declarações prestadas pelas testemunhas, (nomeadamente DD Gravação 29/02/2016, com início a 00:04:06 e fim 00:37:29; FF Gravação 29/02/2016, com início a 00:01:44 e fim 00:22:54; CC Gravação 10/03/2016, com início a 00:03:18 e fim 00:07:02; BB Gravação 10/03/2016, com início a 00:05:54 e fim 00:32:42; entre outras).
XLII. Analisada a prova testemunhal ali exposta e acima transcrita, dúvidas não restam ao ora Recorrente de que andou mal o tribunal a quo quando não dá como provada a existência de conflito anteriores à primeira intervenção do ora arguido.
XLIII. Na verdade e se bem que as testemunhas possam variar quanto à forma da agressão, a verdade é que existe uma troca de palavras entre dois dos intervenientes, sendo que existe um empurrão entre ambos.
XLIV. Sendo que tal “agressão” anterior, conjugado com o facto de que o arguido tinha a sua mente toldada pelo álcool e medicamentos, criou a percepção errada de que o Colega BB do ora arguido, se encontrava a ser vítima duma agressão, o que levou a que o arguido criasse, erradamente, na sua mente a necessidade que teria em agir.
XLV. Facto ainda mais evidente quando o tribunal a quo dá como provado (facto 5) que existiu uma situação de agressão física com diversas pessoas.
XLVI. Ainda no que concerne aos factos dados como provados, andou mal o tribunal a quo quando dá como provado a existência na posse do ora arguido da faca (facto 2), bem como quando dá como provado que o mesmo tinha conhecimento das características da faca (facto 14).
XLVII. Na verdade, mal andou o tribunal a quo ao não dar como provado a proveniência da faca, bem como o local onde a mesma se encontrava.
XLVIII. É por demais evidente, aliás todas as testemunhas em causa demonstram-no, que o ora Recorrente não poderia andar com aquele tipo de faca no bolso ou em qualquer outra parte da roupa, sob pena de se ter cortado!
XLIX. É por demais evidente, aliás analisada a prova produzida, que o ora arguido não teria consigo nenhuma faca!
L. É por demais evidente que o ora Recorrente, tendo-se deslocado com a testemunha BB, durante grande parte do dia, não teria como ocultar daquele a posse da faca, pois bastaria o mesmo sentar-se para se cortar de imediato, o que seria notado por parte do seu colega,
LI. Sendo que, questionado o mesmo sobre tal, refere claramente que seria impossível transportar aquela faca sem que notasse.
LII. Assim, e salvo o devido respeito, em momento algum, nenhuma testemunha (com credibilidade) justificou, de alguma forma, a posse do ora Recorrente daquela faca pelo que o resultado da presença da mesma só poderá ser uma!
LIII. A faca encontrar-se-ia no estabelecimento comercial frequentado pelo ora arguido Recorrente!
LIV. Aliás, tal presunção é tida por base na análise de toda a prova (e que acima se transcreveu), de onde se retira que todas as testemunhas são unânimes no acto da agressão, mas nenhuma, em concreto, demonstra onde o mesmo possuía a faca, pelo que, mais uma vez dúvidas não nos restam de que a faca em causa se encontrava no interior do estabelecimento comercial e com fácil acesso não só ao arguido, mas a qualquer outra pessoa.
LV. Sendo que no entender do ora Recorrente tal facto é por demais importante para a sua defesa, porquanto no entender deste e no estado em que este se encontrava, dúvidas não nos restam de que após a agressão existente e de forma a tentar proteger-se o mesmo pegou no primeiro objecto que se lhe deparou naquele estabelecimento, o que demonstra claramente que o mesmo não o tinha na sua posse, até ao momento da agressão, nem que tão pouco conhecia as características da mesma.
LVI. Factos que, não obstante o alegado, se encontram dados como provados.
LVII. Por fim e ainda na senda dos factos provados, entendeu o tribunal a quo dar como provado, mal no entender do ora Recorrente, que o arguido ter-se-á colocado em fuga (facto 12),
LVIII. Acontece que no entender do ora Recorrente tal não se encontra verdadeiramente demonstrado, nem tão pouco provado,
LIX. Subsistindo, da análise da prova testemunhal, se o ora arguido se terá colocado em fuga, ou se eventualmente o mesmo terá sido agarrado e empurrado para o exterior.
LX. Na verdade e depois de analisadas as transcrições acima transcritas, as quais são por demais evidentes, constata o ora Recorrente que dúvidas não nos restam de que inexiste prova indubitável de que o mesmo se teria colocado em fuga, porquanto muitas das testemunhas referem claramente o contrário quando alegam que o mesmo saiu, existe quem afirme que o mesmo foi empurrado e outros que inicialmente afirmam que saiu, para mais tarde virem, após instados para tal, emendar e afinal afirmar que o mesmo fugiu,
LXI. Tudo isto num espaço onde se encontrariam, no mínimo, 8 pessoas, uma mesa de bilhar, mesas, cadeiras…
LXII. Assim, entende o ora Recorrente que não se encontra comprovado, com a certeza que se exige, que tenha existido, por parte do ora arguido, um acto de se colocar em fuga.
LXIII. Ao agir da forma descrita e ao não atender a prova realizado, no entender do ora arguido, andou mal o tribunal a quo violando claramente o principio in dubio pro reo, com os efeitos constitucionais que tal alegação acarreta.
LXIV. Face ao exposto deveria tal facto ter sido dado como não provado!
LXV. Posto isto e aqui chegados, entende o ora Recorrente que existem factos que só com alguma presunção de culpa se podem considerar como provados,
LXVI. Sendo que tal viola claramente o principio constitucional do principio in dubio pro reo.
LXVII. Por outro lado e no que concerne à pena e à sua medida, na fixação daquela se foi além desta!
LXVIII. Na verdade, fundamenta o tribunal a quo, para aplicação daquela pena em concreto, a ilicitude acentuada, o dolo directo e as necessidades de prevenção geral e especial.
LXIX. Sendo que, no que concerne à ilicitude acentuada, entende o tribunal a quo que tal se baseou no simples facto de que existiu uma mera agressão, sem qualquer causa justificativa,
LXX. Acontece que a crer nos factos supra mencionados, dúvidas não nos restam de que o ora arguido não se encontra consciente dos seus actos, nem tão pouco consciente do que se encontrava a realizar.
LXXI. Pelo que, salvo o devido respeito, não pode o ora Recorrente concordar com o grau de ilicitude do mesmo, porquanto agiu na errada presunção de que se encontrava, ele e o seu colega, a serem vítimas de uma agressão!
LXXII. E tal demonstra-se claramente se atendermos a todo o contexto da agressão.
LXXIII. Quanto ao dolo e salvo o devido respeito, não pode o mesmo caracterizar-se como dolo directo, até porque no contexto descrito e na opinião do ora Recorrente provado, o mesmo não teria a consciência necessária para agir, prever e pretender aquele resultado.
LXXIV. Posto isto e salvo o devido respeito, não poderá certamente justificar-se a existência do dolo directo.
LXXV. Quanto à questão de exigências de prevenção geral, não se vislumbra em que se baseia o tribunal a quo ao dar como justificado tal facto, com base no aumento das ofensas físicas, até porque da análise da estatística da justiça não se vislumbra qualquer aumento, e que o mesmo justifique a aplicação da medida da pena muito superior ao limite mínimo!
LXXVI. Não basta, no entender do ora Recorrente, a mera menção de que a criminalidade do mesmo “género” se encontra a subir, mister, no entendimento do ora Recorrente, que se prove tal subida, sob pena de se violar a possibilidade de permitir a defesa do ora arguido!
LXXVII. No que concerne à prevenção especial, também não se vislumbra razão para a pena ser bastante superior ao mínimo legal!
LXXVIII. Na verdade, o ora Recorrente não tem tendência inata para o crime, sendo que os crimes praticados foram-no em condições “justificadas” e evidentemente concretas, pelo que não se trata de um arguido que tenha tendência criminosa para que se aplique uma pena em muito superior ao mínimo legal.
LXXIX. Posto isto e tudo devidamente ponderado, entende o ora Recorrente que a ilicitude não poderá ser acentuada, o dolo não poderá ser o directo e as exigências de prevenção geral e especial não podem justificar a aplicação de uma pena tão superior ao limite mínimo!
LXXX. Posto isto, e atento o exposto, entende o ora Recorrente que o tribunal a quo andou mal ao condená-lo da forma que o fez e na medida da pena de que resulta dos autos”.

 O M.º P.º junto da Relação pronunciou-se pela confirmação do decidido.

Já neste STJ o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer que concluiu assim:

1. É de ponderar a rejeição liminar do recurso, nos termos das alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 420.º do CPP, se não mesmo no seu todo e por total ausência de motivação, pelo menos no segmento em que o arguido convoca o reexame da decisão de facto proferida;

2. É, em todo o caso, de negar provimento ao mesmo recurso, confirmando assim a condenação do recorrente, como autor material do sobredito crime de “ofensa à integridade física grave e qualificada” da previsão dos art.ºs. 143.º, 144.º, alíneas b) e c), 145.º, n.ºs 1/b) e 2, e 132.º, n.º 2, alínea e) – pelo menos –, todos do Código Penal, na pena de 8 anos e 6 meses de prisão, ou, a admitir-se porventura alguma intervenção correctiva, de a fixar em medida nunca inferior a 7 anos e 6 meses de prisão”.

Cumprido o n.º 2 do art.º 417.º do CPP não houve lugar a resposta do recorrente.

Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo questões a apreciar:

a) - A questão prévia da rejeição total ou parcial do recurso.

b) - A medida concreta da pena.


*

II. Fundamentação

A) - Os factos provados

1. No dia 12 de Junho de 2015, cerca da 1 hora e 30 minutos, o arguido AA deslocou-se ao estabelecimento de bar denominado “...”, situado na ..., acompanhado de BB (com a alcunha de “...”), tendo ambos entrado e permanecido naquele bar a beber bebidas alcoólicas e a conviver.

2. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 1, o arguido tinha na sua posse uma faca do tipo faca de cozinha, dotada de lâmina em aço inoxidável com cerca de 10 (dez) centímetros de comprimento e cabo em madeira com cerca de 11 (onze) centímetros de comprimento.

3. Cerca das 2 horas daquele dia 12/06/2015, quando ambos ainda se encontravam no interior do aludido bar, o referido BB envolveu-se em discussão com CC, o qual integrava um grupo de pessoas em que se incluía a DD.

4. Nessas circunstâncias o arguido AA desferiu um soco no referido CC.

5. Então, o mencionado BB e o arguido AA acabaram por se envolver em agressões físicas com algumas de tais pessoas.

6. A DD, com o intuito de fazer cessar a contenda, colocou-se entre o arguido AA e uma das pessoas que o mesmo pretendia agredir, ocasião em que o arguido desferiu um soco na face daquela.

7. Acto contínuo e sem que nada o fizesse prever, o arguido pegou na faca referida em 2 e empunhou-a no ar, segurando-a pelo cabo com a mão direita, com a respectiva lâmina apontada para baixo e com esta desferiu um golpe na direcção da face da DD, atingindo-a a nível da região ocular direita, onde a lâmina ficou empalada.

8. Com a violência do golpe a lâmina da faca partiu-se junto ao cabo, ficando o arguido com este na mão e a lâmina empalada na zona ocular direita da DD.

9. Tendo a referida DD levantado os braços para proteger a face, foi ainda atingida pela lâmina daquela faca na mão direita.

10. Em consequência directa e necessária das agressões descritas, sofreu a DD dores físicas, bem como ferida incisa do 2.º dedo da mão direita (que necessitou de ser suturada) e ferida escleral antero-posterior a nível da região orbitária direita, com início aproximadamente a 4 mm do limbo e extensão à região posterior ao equador do globo ocular, com exteriorização do conteúdo do mesmo e à região nasal inferior da mácula com envolvimento da fóvea, com trajecto intra-orbitário antero-posterior ascendente e porta de entrada cutânea através da pálpebra inferior direita, com acesso à cavidade orbitária adjacente ao pavimento da mesma, trajecto realizado através do globo ocular, paralelo e temporal ao nervo óptico, ultrapassando ligeiramente o plano do tecto orbitário e com pequena projecção endocraniana – necessitando de ser submetida a intervenção cirúrgica para extracção da lâmina e redução das lesões apresentadas.

11. Tais lesões determinaram para a DD– até ao dia 23/11/2015 – um período de 165 (cento e sessenta e cinco) dias de doença, com afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional por igual período e determinaram-lhe até à presente data a perda de visão à direita, com acuidade visual não corrigida inferior a 1/10 (por lesão cicatricial no fundo ocular com envolvimento macular), a qual lhe afecta, de maneira grave, a possibilidade de utilizar os sentidos.

12. Logo após os factos descritos em 7 a 9, o arguido tentou fugir do local, logrando ainda sair para o exterior do referido estabelecimento, onde foi agarrado e detido por várias pessoas que se encontravam no interior do bar, que foram no seu encalço e que o retiveram até à chegada ao local da Guarda Nacional Republicana.

13. Chegados os agentes policiais ao local, foi-lhes entregue o arguido, sendo que nessa ocasião estes agentes procederam igualmente à apreensão do cabo da predita faca, que o arguido entretanto deitara para o chão.

14. O arguido conhecia as características da faca referida em 2, que utilizou nos moldes descritos em 7, estando ciente das potencialidades letais da mesma.

15. Ao agir do modo descrito, agredindo a DD apenas por esta tentar defender os seus amigos nos termos descritos, pretendia o arguido impedir que a mesma se opusesse às agressões contra aqueles e poder continuar a agredi-los sem oposição.

16. O arguido sabia que ao agredir a DD com a sobredita faca ao nível da cabeça e face, atingia zona corporal onde se encontra alojado um órgão vital (o cérebro) e bem assim outros órgãos como os olhos e que com tal agressão podia causar-lhe lesões graves e permanentes e que poderia afectar-lhe de maneira grave os sentidos, designadamente a visão, bem como doença particularmente dolorosa, mas não se absteve de agir do modo descrito, o que quis, aceitando que tais resultados se produzissem.

17. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade da sua conduta.

Mais se provou:

18. Aquando da infância do arguido o seu pai era vendedor de farturas em feiras, só estava em casa alguns fins-de-semana e a sua mãe, sendo empregada de limpeza, só chegava a casa ao fim da tarde, permanecendo os 3 filhos - dos quais o arguido é o mais novo - entregues a si próprios.

19. O arguido, fazendo fé nas suas declarações, foi exposto a situações de violência familiar protagonizada pelo pai, que também recorria a castigos físicos no processo educativo, experienciando o agregado ainda carência económica.

20. Quando o arguido tinha 6 anos de idade o seu agregado familiar fixou residência num bairro social (bairro do ...) conotado por problemas de delinquência e marginalidade.

21. O arguido frequentou a escola até aos 17 anos, tendo concluído o 8º ano de escolaridade com duas reprovações.

22. Culminando um percurso marcado, sobretudo após o 2º ciclo (12/13 anos), por desinvestimento, absentismo e problemas de adaptação, abandonou os estudos na frequência do 9º ano, na sequência de medida disciplinar de expulsão por agressão a um colega (com participação judicial).

23. Já com anteriores experiências de trabalho nas férias escolares (na construção civil e outras), iniciou o seu percurso profissional com 17 anos.

24. Trabalhou 6 meses numa empresa de restauração e 1 mês como operário fabril antes de ter fixado ocupação em 1998, com 18 anos, como recepcionista do então Hotel ..., actualmente Hotel “...”, onde se manteve até ser formalmente despedido em Janeiro de 2016.

25. O arguido, no ambiente laboral, tinha um desempenho satisfatório, com uma relação adequada com clientes e colegas de trabalho e chefia, não obstante vinha nos últimos anos a registar pouco rigor no cumprimento de horários e teve faltas injustificadas que motivaram a aplicação de duas sanções disciplinares, uma de 3 e outra de 30 dias de suspensão, [sendo que] esta última, iniciada em 25 de maio de 2015, decorria à data dos factos.

26. O arguido emancipou-se do agregado de origem com 18 anos, mantendo um relacionamento afectivo de 5 anos com uma namorada e 10 anos com uma outra, da qual se tinha separado cerca de 6 meses antes da data dos factos.

27. O arguido desde 2003 vem fazendo consumos relativamente esporádicos de “cannabis/haxixe, tendo ainda consumido, pelo menos por duas vezes, cocaína.

28. O arguido refere ainda um padrão de consumo de álcool relativamente pontual, mas por vezes imoderado, em circunstâncias de convivência com grupo de pares.

29. O arguido vive com os pais, [..., ].

30. Este agregado reside num apartamento T3 de renda económica sito no ..., o qual propicia razoáveis condições de habitabilidade.

31. O arguido foi despedido por justa causa em Janeiro do corrente ano de 2016, altura em que deixou de auferir um salário líquido de cerca 750 euros.

32. Fazendo fé nas declarações do arguido, este tem dívidas por falta de pagamento da renda da sua anterior habitação e da prestação de crédito pessoal (esta última, no valor de 230 euros/mês, em atraso desde a data da sua detenção).

33. Os actuais rendimentos do seu agregado familiar provêm exclusivamente do salário do pai, no valor de cerca 750 euros/líquido/mês, sendo as despesas fixas mensais no valor de 180 euros, em renda de casa, electricidade, água, gás e tv/telecomunicações.

34. Na sequência da separação conjugal, o arguido encontra-se desde há cerca de 1 ano medicado com medicação antidepressiva e indutora do sono (“Sertralina 50mg”; “Castilium 10”).

35. O actual ambiente familiar é caracterizado como equilibrado e focalizado no apoio ao arguido, não lhe sendo conhecidos no contexto familiar reacções ou comportamentos agressivos, tendo sempre mantido um relacionamento adequado com os progenitores.

36. Pela sua colaboração na organização de festas nocturnas, tinha um estatuto privilegiado no acesso e frequência de espaços de diversão nocturna, onde costumava ocupar os tempos livres e beneficia de um círculo alargado de sociabilidade.

37. O arguido encontra-se desde 8 de Julho de 2015, sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, vindo a apresentar rigor no cumprimento da obrigação de confinamento e respeitado a integridade dos equipamentos de vigilância electrónica.

38. O arguido já respondeu em Tribunal, tendo sido condenado:

a) No processo comum singular nº 835/10.6PBAVR da Comarca do Baixo Vouga, Juízo de média Instância Criminal Juiz 3, por sentença proferida a 09.01.2012 e transitada em julgado a 11.06.2012, pela prática a 24.03.2010 de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punível pelo art.º 145º, al. a) do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano.

b) No processo comum colectivo 1740/09.4PBAVR da Comarca do Baixo Vouga, Juízo de Média Instância Criminal Juiz 1, por acórdão proferido a 14.03.2012 e transitada em julgado a 10.12.2012, pela prática a 26.07.2009 de um crime de ofensa à integridade física grave, previsto e punível pelo art. 144º, al. b) do Código Penal, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução com regime de prova [por igual período de tempo – crc de fls.675].

c) No processo sumaríssimo nº 551/13.7GBILH, da Comarca do Baixo Vouga, Ílhavo, Juízo de Pequena Instância Criminal, por decisão proferida e transitada em julgado a 26.03.2014, pela prática a 09.10.2013 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelo art.º 292º, nº 1 do Código Penal, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de 6,00€, já declarada extinta.

39. Como consequência da actuação do arguido acima descrita a DD sofreu dores, tendo sido encaminhada de imediato do local dos factos para os Hospitais ..., onde ficou internada até 22.06.2015.

40. Logo após a sua chegada às urgências foi submetida a cirurgia de emergência a fim de extrair a lâmina empalada na zona ocular direita e suturada no segundo dedo da mão direita.

41. A 18.06.2015 foi submetida a nova cirurgia do vítreo e retina (vitrectomia posterior via pars plana e tamponamento interno com óleo de silicone).

42. Durante a primeira semana de internamento esteve sempre deitada, imóvel de barriga para cima evitando qualquer movimento com a cabeça.

43. Na segunda semana de internamento manteve a imobilidade, mas agora deitada de barriga para baixo.

44. Após o dia 22.06.2015 a DD regressou a casa com instruções expressas de manter a postura com o mínimo de movimentos, manter a cabeça para baixo, deitar-se de barriga para baixo e evitar quaisquer movimentos bruscos, que hoje ainda não pode fazer.

45. Em 01.07.2015 foi submetida a nova cirurgia de vítreo e retina, por descolamento de retina, com presença de membrana subretiniana (vitrectomia posterior via pars plana e novo tamponamento interno com óleo de silicone).

46. A última consulta que teve foi em 23.11.2015, mas ainda não lhe foi dito quando fará nova cirurgia para retirar o silicone, uma vez que o “buraco” ainda não está fechado.

47. Terá nova consulta a 30.05.2016 para avaliação do seu estado e eventual marcação de nova cirurgia que terá que fazer.

48. Após os factos e pelo menos durante o período de um mês e meio, esteve completamente dependente da sua mãe que, residindo em ... com o marido e três filhos menores, abandonou o seu lar e os seus filhos menores (um deles completamente dependente por padecer de trissomia 21), entregando-os aos cuidados de terceiros para poder prestar assistência à DD.

49. Só regressaram a ... em 1 de Agosto de 2015 e de carro por a DD não poder viajar de avião e, aí chegadas, a DD permaneceu aos cuidados da mãe por não ter capacidade para permanecer sozinha e sem apoio.

50. Em Setembro de 2015 a ... e a mãe vieram a Portugal para uma consulta que tinha marcada no Centro Hospitalar da ... e viajaram novamente de carro por ainda não ser seguro para a demandante DD fazer a viagem de avião.

51. A Demandante e a mãe voltaram novamente a Portugal, agora de avião, aqui permanecendo de 22 a 25 de Novembro de 2015, uma vez que a demandante tinha consulta no Centro Hospitalar ... em 23 de Novembro.

52. Em todas estas viagens a Demandante necessita do apoio e dos cuidados da mãe, que a tem acompanhado sempre, em detrimento dos irmãos menores, ficando estes entregues sempre aos cuidados de terceiros.

53. A vida da Demandante foi totalmente alterada, perdeu a visão da vista direita, não pode fazer movimentos bruscos, não pode baixar e levantar a cabeça, nem pegar em objectos muito pesados.

54. Qualquer pequeno esforço ou movimento mais brusco ou o levantar ou baixar da cabeça normal, causa-lhe tonturas e falta de equilíbrio e perdeu a noção do que a rodeia do seu lado direito, pois não consegue visualizar nada com a vista direita.

55. A sua vida quotidiana alterou-se, passando a ter mais dificuldades nas tarefas do dia-a-dia, como fazer a sua cama, fazer as limpezas em sua casa e cozinhar, assusta-se a subir e descer escadas e até a atravessar uma estrada, tarefas e rotinas que passaram a requerer um esforço acrescido.

56. A Demandante sofreu dores intensas durante e após a agressão, durante e após as cirurgias a que foi submetida e até à presente data, particularmente atrozes e fortes foram as dores sofridas após a terceira cirurgia, receando a Demandante passar por nova agonia com a próxima intervenção.

57. As agressões de que foi vitima, bem como a violência das mesmas, provocaram na demandante humilhação, angústia e vergonha, designadamente por ter sido violentamente agredida por um desconhecido, num local de convivo onde pensava estar resguardada de qualquer violência, a conviver descontraidamente com os seus amigos.

58. Até à data dos factos a demandante era uma pessoa calma, alegre e pacata, que gostava de conviver e confraternizar com os seus amigos, a partir de então a sua vida alterou radicalmente, tendo receio de sair e de conviver e até de estar em locais públicos.

59. A demandante ainda não consegue ultrapassar o facto de ter perdido a visão do lado direito e de ter sido privada de um sentido vital - a visão - que lhe acarretará para o futuro mudanças drásticas, bem como incertezas, pois a sua situação ainda não é estável.

60. A situação clínica da demandante ainda não é estável tendo que realizar, pelo menos, mais uma intervenção cirúrgica, mas não é previsível que consiga recuperar a visão do olho direito.

61. As lesões sofridas como consequência da actuação do arguido foram causa directa e imediata de um período de 165 dias de doença, com afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional por igual período e determinaram-lhe até à presente data a perda de visão à direita, com acuidade visual não corrigida inferior a 1/10, a qual lhe afecta de maneira grave a possibilidade de utilizar os sentidos e afectaram a sua vida quotidiana.

62. Antes de 12.06.2015 a demandante trabalhava numa fábrica, desempenhando as funções de embalamento, trabalha na embalagem de peças de carne.

63. A sua remuneração base (após dos descontos sociais) era de € 1.200,00 conseguindo aumentar essa remuneração devido às peças extras que conseguia embalar e às horas extras que podia fazer.

64. Actualmente a demandante continua a trabalhar na mesma fábrica, mas por perda da sua capacidade visual e consequências da mesma, acima descritas, não consegue desempenhar essas funções como o fazia e como tal não consegue auferir mais do que o seu salário base.

65. Durante os 165 dias em que esteve totalmente incapacitada para o trabalho recebeu da Segurança social francesa a quantia de € 1.351,06, tendo-lhe sido paga tal montante por referência ao período desde o dia 22.06.2015 até 14.08.2015.

66. No entanto, se não tivesse sido vítima dos factos descritos na acusação, teria trabalhado normalmente os meses de Junho, Julho e Agosto de 2015 e teria recebido, ainda que pelo valor mínimo, a quantia de € 3.600,00.

67. Logo após o seu internamento em consequência dos factos constantes da acusação, a sua mãe veio de imediato para Portugal, tendo despendido (a mãe) com o bilhete de avião a quantia de € 225,36.

68. Em Novembro a Demandante e a mãe tiveram de vir a Portugal para a consulta, tendo a demandante gasto em bilhetes de avião a quantia de € 366,13.

69. Como consequência da actuação do arguido/demandado a demandante teve despesas com medicamentos no valor de € 177,85.

70. A Demandante terá de ser submetida novamente a pelo menos uma intervenção cirúrgica, podendo necessitar de outras, uma vez que as lesões não estão estabilizadas, o que acarretará gastos com novas viagens para si e quem a acompanhe, uma vez que não se sente capaz de viajar sozinha e necessita do apoio de outra pessoa e com medicamentos que tenha de tomar.

71. Por força da actuação do arguido e das lesões por esta causadas a DD foi assistida no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar da ..., a que se seguiu o internamento de 12-06-2015 a 22-06-2015 e de 01-07-2015 a 02-07-2015 com realização de exames e análises, em 29-06-2015, 20-07-2015, 07-09-2015 e em 23-11-2015 realização de consultas externas na especialidade de oftalmologia em 29-06-2015, 07-07-2015, 20-07-2015, 07-09-2015 e em 23-11-2015.

72. Os encargos com a referida assistência importam a quantia de € 3.301,87.


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B) – As questões enunciadas

a) - Questão prévia da rejeição, total ou parcial, do recurso
O M.º P.º junto deste Supremo Tribunal pronunciou-se, antes de mais, pela rejeição (total) do recurso por manifesta improcedência, dada a falta de motivação, já que o recorrente em vez de impugnar a decisão do Tribunal da Relação, limitou-se a reeditar e repetir, ponto por ponto, a motivação e as conclusões do recurso apresentado perante esse tribunal, como se não tivesse reapreciado já as questões suscitadas.
Tem razão quando refere que a motivação e conclusões do recurso do arguido são uma cópia da peça processual que serviu de base ao recurso apresentado perante a Relação.
Embora a atitude processual do recorrente não seja a mais canónica e acertada, favorabilia amplianda, odiosa restringenda, seguimos a jurisprudência mais recente deste STJ (p. ex., Ac. de 09.09.2015, Proc. 73/13.6SVLSB.S1 – 3.ª, in Sumários do STJ) no sentido de não haver razão para rejeitar em bloco o recurso, ainda que o recorrente repita perante o Supremo as questões suscitadas no recurso apresentado para a Relação e se limite a reiterar os mesmos fundamentos aí apresentados, de cuja improcedência a Relação o não convenceu, sendo, pois, nesse inconformismo que assenta a legitimidade e interesse processual do recurso apresentado do acórdão proferido por esse tribunal.
Claro que isso não significa que o recurso não possa ser rejeitado parcialmente, como é o caso, que vamos ver de seguida.
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     b) – O não conhecimento parcial do recurso
 Levado pela facilidade da repetição acrítica da motivação perante este STJ da anteriormente apresentada na Relação, o recorrente fundou o recurso na impugnação da matéria de facto, na violação do princípio do in dubio pro reo e na existência dos vícios enunciados no n.º 2 do art.º 410.º do CPP.
De acordo com o disposto no art.º 434.º do CPP os poderes de cognição do STJ estão limitados em exclusivo ao reexame da matéria de direito e quando ressalva a aplicação do disposto nos n.ºs 2 e 3 do art.º 410.º fá-lo com referência aos seus poderes oficiosos e como condição do conhecimento de direito, necessidade essa que, contudo, não ocorre no caso em apreço e não enquanto fundamento autónomo do recurso, cujo conhecimento, reportado à matéria de facto, se esgotará nos poderes da Relação.
O mesmo acontece quanto ao princípio do in dubio pro reo invocado pelo recorrente, enquanto reportado à apreciação e valoração da matéria de facto e ao princípio da presunção de inocência do arguido, vertente essa excluída dos poderes de cognição do STJ.
Em conclusão, nos termos dos art.ºs 434.º e 420.º, n.º 1, alín. a), do CPP, haverá que rejeitar o recurso quanto à impugnação da matéria de facto, da alegação dos vícios do n.º 2 do art.º 410.º ou da violação do princípio do in dubio pro reo.
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       c) – A medida da pena
  Sustenta o recorrente que a ilicitude “não poderá ser acentuada, o dolo não poderá ser o directo e as exigências de prevenção geral e especial não podem justificar a aplicação de uma pena tão superior ao limite mínimo”.
O M.º P.º junto deste STJ e embora a qualificação jurídica do ilícito penal por que o arguido foi condenado não seja posta em causa por nenhum dos sujeitos processuais, aderiu sem reservas à verificação da agravante qualificativa da alín. e) do n.º 2 do art.º 132.º do CP (motivo fútil) convocável por via do art.º 145.º, n.º 1, alín. b) e n.º 2 do mesmo diploma legal, mas já expressou dúvidas sobre a concorrência da qualificativa da alín. h) daquele preceito (utilização de meio particularmente perigoso), aí se não incluindo a faca (de cozinha) descrita nos factos provados.
Tem razão.
A factualidade apurada integra, sem contestação, o tipo legal do crime por que o arguido foi condenado, de “ofensa à integridade física agravada e qualificada” da previsão dos art.ºs 143.º, 144.º, alíneas b) e c), e 145.º, n.ºs 1, alín. b) e por referência ao art.º 132.º, n.º 2, alín. e) (motivo fútil), do CP, mas já não a da alín. h) deste último preceito.
Reportando-se tal alínea à utilização de um meio particularmente perigoso, quer a doutrina, quer a jurisprudência sustentam ser necessário que o mesmo revele uma perigosidade muito superior à normal dos meios usados para matar ou ferir, não cabendo no exemplo padrão e na sua estrutura valorativa “revólveres, pistolas, facas ou vulgares instrumentos contundentes” (Figueiredo Dias, Comentário, I, 2.ª ed., pág. 68) (v., entre outros, o Ac. STJ de 23.02.2012, Proc. 123/11.OJAAVR.S1 e os demais aí indicados).
Assim sendo, é de entender que uma faca de cozinha, com as características da utilizada pelo arguido (lâmina em aço de 10 cm de comprimento e cabo em madeira com cerca de 11 cm de comprimento), não pode ser qualificada como meio particularmente perigoso.
O crime imputado ao arguido, de ofensa à integridade física qualificada passa a ser, assim, qualificado apenas pela circunstância do motivo fútil (alín. e) do n.º 2 do art.º 132.º ex vi art.º 145.º, n.º 2, do CP) e embora a moldura penal abstracta se não altere (pena de 3 a 12 anos de prisão) a retirada daquela circunstância não pode deixar de relevar em sede de culpa e ser oficiosamente conhecida por este Supremo Tribunal com reflexo na medida concreta da pena. 
Embora a alteração da qualificação jurídica dê lugar a alteração não substancial dos factos descritos na acusação, permitida em sede de recurso (AFJ n.º 4/95. De 07.06.1995, DR,I-A, de 06.07.1995), face à oportunidade que o arguido dispôs de sobre ela se pronunciar, quando foi notificado do parecer do M.º P.º (art.º 417.º, n.º 2, do CPP), que como tal a referia e sobre que nada disse, nada obsta, agora, ao seu conhecimento (art.ºs 424.º, n.º 3 e 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP).
Tal como consideraram as instâncias, a ilicitude é, no caso, particularmente censurável, o arguido surpreendeu a ofendida que se encontra em contexto de lazer, quando em nada contribuiu para a sua conduta agressiva, o desvalor do resultado é acentuado e irreversível enquanto traduzido na perda definitiva de uma das vistas, pelo que, a par da frequência com que são cometidos crimes de igual natureza, acentuadas são as exigências de prevenção geral. 
Fortes são também as necessidades de prevenção especial de socialização do arguido.
Com efeito, a sua personalidade violenta cedo despontou, ao ser expulso da escola por agressão a um colega, quando frequentava o 9.º ano de escolaridade.
Depois, por factos reportados a 24.03.2010, foi condenado em 09.01.2012 (trânsito a 11.06.2012) por idêntico crime de ofensa à integridade física qualificada do art.º 145.º, n.º 1, alín. a), do CP, na pena de 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano.
E, por factos de 26.07.2009, foi condenado em 14.03.2012 (trânsito a 10.12.2012), também por idêntico crime de ofensa à integridade física grave do art.º 144.º, alín. b), do CP, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, igualmente suspensa na sua execução, com regime de prova, por igual período de tempo, em cujo decurso, aliás, praticou o crime dos autos.
Acresce-lhe, ainda, uma condenação (26.03.2014) pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez em 09.10.2013, em pena de multa, já declarada extinta.
Face ao exposto, considerando ainda o modo de actuação do arguido e o dolo directo com que agiu, a falta de factores de integração profissional após perda do emprego por razões a si imputáveis, à luz do preceituado nos art.ºs 40.º, 70.º e 71.º, do CP, face à moldura penal abstracta do crime de ofensa à integridade física qualificada dos art.ºs 143.º, n.º 1, 144.º, alíneas b) e c) e 145.º, n.ºs 1, alín. b) e 2 e 132.º, n.º 2, alín. e), do CP (3 a 12 anos de prisão), afigura-se necessária, adequada e proporcional a imposição da pena de 7 anos e 6 meses de prisão.
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III. Decisão

Face ao exposto, acordam em dar parcial provimento ao recurso e, assim, condenar o arguido AA pela autoria material de um crime de ofensa à integridade física qualificada, dos art.ºs 143.º, n.º 1, 144.º, alíneas b) e c) e 145.º, n.ºs 1, alín. b) e 2 e 132.º, n.º 2, alín. e), do CP, na pena de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão
Sem custas (art.ºs 513.º, n.º 1, do CPP).


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Supremo Tribunal de Justiça, 23 de Março de 2017

Francisco M. Caetano (Relator)

Souto de Moura