Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
184/12.5TELSB-AG.L1-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: PAULO FERREIRA DA CUNHA
Descritores: ESCUSA
JUÍZ DESEMBARGADOR
IMPARCIALIDADE
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 11/30/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA / RECUSA
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO
Sumário :
I. Está em causa a presença do Requerente como juiz adjunto numa causa que tem com uma outra em que teve intervenção significativas similitudes. Entendendo o Requerente que possui “uma opinião formada sobre a questão e entende que o recurso deve ser julgado por quem não tenha qualquer prejuízo sobre a mesma.”

II. Pode e deve um juiz pedir ao tribunal competente que o escuse, afastando-o, a seu pedido, de um processo, quando ocorrer o efetivo e objetivo risco de o magistrado poder vir a ser considerado suspeito, por real motivo, sério e grave, propício a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

III. São fundamentos (e requisitos) cumulativos para a verificação da escusa: a) quando a intervenção do juiz naquele dado processo corra risco real (não simples receio híper suscetível ou excessivamente escrupuloso) de vir a ser considerada suspeita; b) quando se verificar verosímil motivo, sério e grave; c) e quando esse mesmo motivo seja apto a gerar a referida desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, avaliação a ser feita por um juízo hipotético fundado nas representações que um cidadão médio teria sobre o reflexo dos factos concretos invocados na imparcialidade do julgador daquele concreto caso.

IV. Entende-se, contudo, que o haver-se tido intervenção num processo, e necessariamente, ter-se formado uma opinião sobre o problema em causa, não inibe o julgador de julgar mais vezes sobre a mesma matéria.

Não apenas porque, em tese geral, abstratamente, até poderia mudar de opinião (cf. a propósito de escusa em contexto de liberdade decisória, como é o caso: Acórdão do STJ de 09-10-2019, 3.ª secção)), o que será uma situação reconhecidamente excecional, mas sobretudo porque não vem mal ao mundo, nem ao sistema jurídico, que um observador do exterior, e desde logo os sujeitos processuais, façam um juízo de prognose sobre a possível posição do juiz. Ad absurdum se diria, então, que apenas a total imprevisibilidade da posição de um julgador seria tranquilizadora para o “auditório”, quer no processo, quer geral? Não, evidentemente. Poderia até, pelo contrário, adiantar-se que essa eventual prognose poderia ajudar ambos os contendores, permitindo-lhes preparar de forma mais consistente as suas posições e “movimentos” processuais.

V. O ter opinião formada sobre a questão (em sede geral, claro), será errado, nocivo, e sobretudo motivo para grave suspeita de parcialidade? Não parece; porquanto, se assim fosse, para dar um exemplo apenas, no limite, um juiz que houvesse escrito, por vezes centenas ou até milhares de páginas sobre inúmeros assuntos que terá que julgar (pense-se na hipótese de algum jurista de mérito no STJ), patenteando publicamente a sua posição sobre inúmeras situações, ou múltiplos casos que se subsumem a muitas teorizações e posições doutrinais, ficaria inibido, por ser pública e notória a sua posição, de intervir em tantos quantos os processos em que tais questões no concreto viessem a surgir. Evidentemente que não se encontra inibido de o fazer. Nem incorre em nenhuma falta subjetiva, e seria uma sociedade excessivamente absurda e anómica essa em que o público em geral dele suspeitasse por uma possível coerência, de uns casos para os outros.

Uma entorse deste tipo ao princípio do juiz natural é que seria de temer.

VI. E o reconhecimento de um “princípio” deste tipo, se alargado, se fazendo precedente, tornaria virtualmente impraticável o ofício de julgar, porque, por muito que a imaginação da realidade seja fértil, sempre se repetem casos, e sempre os novos litigantes poderão consultar o percurso jurisprudencial dos juízes que lhes venham a calhar em sorte.

VII. Assim, aqui também não se pode desejar um juiz que nunca tenha tratado do tema, e mesmo, no caso, que se encontre completamente afastado da causa… A imparcialidade não é uma categoria de separação, distanciamento, uma espécie de vácuo relativamente ao quid. E até, pelo contrário, se poderá dizer que o conhecimento prévio de questões semelhantes dá experiência, maturação e essa preparação acrescida é favorável a uma boa perspetiva da causa. Não, obviamente, uma repetição mecânica do já antes atingido e decidido.

Cf.  Sumário do Acórdão de 14-02-2021, proferido no Proc.º n.º 213/12.2TELSB-U.S1-A.

VIII. Com elementos pertinentes a considerar, designadamente: O Acórdão deste STJ de 19-05-2010, designadamente afirma a pertinência da escusa quando a intervenção no processo venha a ser considerada suspeita, “por a sua imparcialidade ((do juiz recorrente)) se mostrar posta em causa.”. O Acórdão deste STJ de 13-09-2006, ao falar na vertente subjetiva da imparcialidade, remete para a “inexistência de qualquer predisposição no sentido de beneficiar ou prejudicar qualquer das partes com a sua decisão”. Igualmente o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 27-05-1999, proferido no Proc.º n.º 323/99 enfatiza que “só podem relevar para a legitimidade da recusa que se suscite, se neles, por eles ou através deles for possível aperceber - aperceber inequivocamente - um propósito de favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro.” Ora, no caso, não há esse animus de beneficiar ou prejudicar, apenas se verifica alguma similitude de situações com caso julgado. Mutatis mutandis (no caso, em razão concretamente das pessoas), para uma escusa que, a ser concedida, poderia vedar o poder e dever judicatório de forma alargadíssima, cf. o Acórdão de 14-04-2021, proferido no Proc.º n.º213/12.2TELSB-U.S1-A.

Por seu turno, o Acórdão de 20-10-2010, proferido no Proc.º n.º 140/10.8YFLSB entende que “o mero convencimento subjectivo por parte de um interessado processual, ou o desvirtuamento da conduta do julgador, extraindo consequências perfeitamente exógenas ao funcionamento do instituto, nunca terão virtualidade para o fazer despoletar.” E insite no “propósito de favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro)”. Concluindo que “não podem ser razões menores, quantas vezes fruto de preconceitos, quando não de razões pessoais sem qualificação, mas sim razões objectivas que se coloquem de forma séria”. Recordando que “O TEDH tem entendido que a imparcialidade se presume até prova em contrário”.

Significativo se nos afigura ainda o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Junho de 2006, Proc.º n.º 06P1286:«o prisma a que se tem de atender não é o do particular ponto de vista do requerente (isto é, o seu sentimento pessoal de que a sua intervenção no processo possa gerar desconfiança ou ser considerada suspeita), mas a situação objectiva que possa derivar de uma determinada posição do juiz em relação ao caso concreto ou a determinado sujeito ou interveniente processual, em termos de existir um risco real de não reconhecimento público da sua imparcialidade. (…)”
E doutrinalmente
: António Henriques Gaspar et al., Código de Processo Penal. Comentado, 3.ª ed. revista, Coimbra, Almedina, 2021, p. 126); José Mouraz Lopes, anotação ao art. 43.º CP in António Gama et al., Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo I, Coimbra, Almedina, 2019, p. 491).

IX. O principal teste à dimensão objetiva da imparcialidade é o juízo hipotético, colocando-se o julgador no processo de escusa na posição que o público teria sobre a questão (cf., v.g., Acórdão do STJ de 27-11-2019 , 3.ª secção;  doutrinalmente, cf., por todos, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal,  4.ª ed., reimp., Lisboa, 2018, p. 133). Por muito que alguma vox populi se encontre à defensiva contra os poderes e desconfiada por princípio, não se crê que a concreta situação tenha cabimento nos casos, reconhecidamente excecionais, em que teria propriedade a escusa. É certo que há conexão entre os processos, mas não se crê que se possa pôr em crise, nem o venerando Desembargador Recorrente, nem o sistema da justiça, por, afinal, se tal vier a suceder, uma posição jurídica se repetir, com o mesmo juiz.

Termos em que se acorda, em indeferir o pedido de escusa do venerando Desembargador Recorrente, não o escusando de intervir como adjunto no julgamento do recurso interposto no Processo n.º 184/12.5TELSB-AG.L1.

Decisão Texto Integral:

Acórdão no Supremo Tribunal de Justiça




I

Relatório



1. AA, juiz desembargador da ... Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, vem requerer escusa de intervir, como ..., nos autos de recurso n.° 184/12.5TELSB-AG.L1.


2. Fundamenta pela seguinte forma a sua pretensão:

Foi ... do acórdão proferido em 13/10/2022, no recurso n.° 184/12.5TELSB..., outro apenso dos mesmos autos principais.

Nestes autos, ainda que o bem apreendido seja diferente, o despacho recorrido é o mesmo e a questão suscitada é, em tudo o mais, similar à que esta em apreciação neste recurso.

Tem, pois, uma opinião formada sobre a questão e entende que o recurso deve ser julgado por quem não tenha qualquer prejuízo sobre a mesma.

Por isso, nos termos do disposto nos art.º 43º/2 e ss. do CPP, pede ao Supremo Tribunal de Justiça que o escuse de intervir nestes autos de recurso.



Tendo os autos idos a vistos, cumpre apreciar e decidir em Conferência.



II

Fundamentação




A. Do Direito aos Factos


1. Está uma causa uma solicitação de escusa um Juiz Desembargador ao exercício do seu múnus jurisdicional, como juiz ….

A questão da suspeição, que publicamente pode cair sobre a reputação “ilibada” de um/a juiz/a, que pode assumir contornos e proporções mediáticas tenebrosas, como a calúnia no Barbiere di Siviglia de Rossini, remete para um descontentamento, que muitas vezes antes mesmo da própria decisão do julgador, já o condenaria na praça pública à fama de prevaricador. E é pela manutenção de uma geral presunção (fundada e não ilidida) de reta administração da justiça que há mecanismos de prevenir esses sobressaltos.

No caso, é natural que o Recorrente possa vir a proferir opinião semelhante à já consagrada quando foi ...: é um traço (ou pelo menos indício) de unidade, e de unidade do sistema jurídico. Não se crê que haja, por isso, motivo de hostilidade, incompreensão ou suspeição.


2. Pois um juiz que, cumprindo o seu dever, rigorosamente atribui a cada um o que é seu (suum cuique tribuendi – na célebre fórmula do Digesto), tem ao mesmo tempo de ser como o protótipo de chamado juiz “Júpiter”, pessoa da lei, ‘escrava’ do Direito, não tanto, decerto, um hercúleo, “engenheiro social”, que Germano Schwartz considera agiria, assim, ao contrário do jupiteriano, “servo das normas” (A Constituição, a Literatura e o Direito, Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 2006, p. 26). Numa engenharia social (que ultrapassa o simples enforcement), passível de ser feita por outras instâncias que não as judiciais, não é do suum cuique que se trata.

Há, contudo, um terceiro tipo simbólico de juiz, proposto pelo jurista belga François Ost – aquele que, além do cumprimento rigoroso das normas e do Direito, não descura a legitimação pelo procedimento (Niklas Luhmann, Legitimation durch Verfahren), que sabe que está a falar para um auditório (veja-se, v.g., a teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas), e que tem, assim, em atenção a comunicação e a circulação das suas decisões (cf. Germano Schwartz, cit., p. 27): o juiz Hermes.

No caso, o suum cuique não fica ferido, pelo contrário, pelo menos prima facie, com uma reiteração de posições. O contrário é que, não sendo necessariamente motivo para alarme, é que mais plausivelmente poderia ocorrer.


3. Independentemente da plasticidade imagética da tripartição dos tipos de juízes, e da sua possível hibridação e ou oposição, na questão dos pedidos de escusa por magistrados, o que está em causa é a necessidade de se atentar a essa dimensão social e comunicacional e de circulação, sem prejuízo, naturalmente, de o juiz ter de possuir uma atitude reta, independente, e sem tergiversações de qualquer inclinação por favoritismo, cedência, ou outra claudicação ética.


4. A necessidade de algumas pessoas (em algumas funções, cargos, magistraturas, ou próximas, de uma visibilidade pública que possa causar rumores) não apenas serem de conduta irrepreensível, como darem disso uma imagem social, capaz de calar os detratores sistemáticos, foi sintetizada num conhecido episódio atribuído a Júlio César. E cunhada na expressão, milhares de vezes repetida, nas mais diferentes situações de ética pública: Mulier Caesaris non fit suspecta etiam suspicione vacare debet.


5. Recentes glosas ao tema, confundindo o seu sentido com outras questões, não retiram ao brocardo a sua validade clássica (com um uso de séculos), o qual, talvez se deva salientar, tem corretamente sido invocado por (e a favor ou contra) pessoas de vários géneros e estados civis. E também se aplica a situações, em que não releva, é o caso vertente, antes de mais, a dimensão pessoal, mas sobretudo uma relativa coincidência fática.

Voltando ao brocardo: ele ganhou vida própria, e significa, brevitatis causa, que não basta a virtude, a retidão, a honestidade, o escrupuloso respeito pela Lei, mas é necessário também que de tal haja notícia, eco, reputação (e até memória) e não haja nada que permita a cavilosas conjeturas de tortuosas mentes ou simplesmente a intrigas pérfidas, alcançar, com roupagens de alguma plausibilidade (para além de puras cogitações e ataques sem qualquer fumus de apoio em factualidade), fazer pairar nos espíritos qualquer suspeita. Sem sombra de suspeita, ou acima de toda a suspeita tem, pois de ser o comportamento de alguns / algumas.


6. Trata-se, pois, não apenas de ser justo, independente, incorruptível, insuscetível de ceder a paixões de favorecimento ou perseguição, mas também de o parecer. E, para o parecer sempre, pela possibilidade de em alguns casos, pelo simples jogo das situações, poder haver dúvidas sobre a sua conduta, quem ocupa a magistratura judicial deve cautamente pedir escusa. Assim se avança um remédio prévio a uma possível teia de rumores, os quais, nem por serem infundados, deixam de causar ruído na vida da Justiça e na sua perceção comunicacional.

Além da satisfação, ou pelo menos conformação dos sujeitos processuais, de que falava Villey, e que é o mais clássico objetivo (embora sempre possa haver descontentes, a começar pelo julgamento mais falado de sempre, o de Salomão), há também a necessidade de não causar escusado alarme social com a efabulação de teorias da conspiração evitáveis pela substituição do juiz natural, quando se revelam ponderosos os motivos de conexão.


7. Explicitando o que está em questão nas causas de impedimento, o Acórdão deste STJ de 19-05-2010, designadamente afirma:

“IX. Elemento comum de todas aquelas causas de impedimento também é, obviamente, a de que subjacente aos impedimentos se encontra o receio de que a intervenção do juiz venha a ser considerada suspeita, por a sua imparcialidade se mostrar posta em causa.” (negrito nosso).


E ainda o Acórdão deste STJ de 13-09-2006 traça útil distinção de vertentes:

“I. Na sua vertente subjectiva, a imparcialidade do juiz significa uma posição pessoal, do foro íntimo do juiz, caracterizada pela inexistência de qualquer predisposição no sentido de beneficiar ou prejudicar qualquer das partes com a sua decisão.

II. Na vertente objectiva, a imparcialidade traduz-se na ausência de quaisquer circunstâncias externas, no sentido de aparentes, que revelem que o juiz tenha um pendor a favor ou contra qualquer das partes, afectando a confiança que os cidadãos depositam nos tribunais.”


8. A lei, especificamente no art. 43 do CPP, recusa ao juiz que motu proprio declare a sua suspeição (n.º 4, 1.ª parte), mas, ao mesmo tempo, permite-lhe que solicite ao tribunal competente que o escuse (ibidem, 2.ª parte), havendo, contudo, requisitos para tal: quando ocorram as condições dos n.ºs 1 e 2 do mesmo artigo, ou seja:

“1 - A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

2 - Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º”.


9. Muito certeiro é o comentário de Cavaleiro de Ferreira (Curso de Processo Penal, I, pp. 237-239), que dissipará facilmente dúvida, escrúpulos indevidos e confusões sobre o pedido de escusa:

“Importa considerar sobretudo que, em relação ao processo, o juiz possa ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos da suspeição verificados, sendo este também o ponto de vista que o próprio juiz deve adoptar, para voluntariamente declarar a sua suspeição. Não se trata de confessar uma fraqueza; a impossibilidade de vencer ou recalcar questões pessoais, ou de fazer justiça, contra eventuais interesses próprios, mas de admitir ou de não admitir o risco de não reconhecimento público da sua imparcialidade pelos motivos que constituem fundamento da sua suspeição.”


Não é, pois, de uma avaliação do foro interno que se trata, mas de uma prognose sobre uma possível malevolência pública a propósito da sua intervenção processual, com efeitos nocivos para a sua reputação pessoal e, mais ainda, para a geral imagem da Justiça, por si representada.


10. Há abundante jurisprudência que corrobora os pontos que vimos desenvolvendo, e elabora a filigrana conceitual do instituto.

Assim, por exemplo, o Sumário do Acórdão de 20-10-2010, proferido no Proc.º n.º 140/10.8YFLSB:

“I - Nos termos do art. 43.º, n.º 4, do CPP, o juiz pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. Consequentemente constituem fundamento de escusa que: a sua intervenção no processo corra risco de ser considerada suspeita; por se verificar motivo, sério e grave; adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

II - Estamos em face de circunstâncias específicas que contêm potencialidade para colidir com o comportamento isento e independente do julgador, colocando em causa a sua imparcialidade, bem como a confiança dos interessados e da comunidade. É evidente que a seriedade e gravidade do motivo ou motivos causadores do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, só podem conduzir à sua recusa ou escusa quando objectivamente consideradas. Assim, o mero convencimento subjectivo por parte de um interessado processual, ou o desvirtuamento da conduta do julgador, extraindo consequências perfeitamente exógenas ao funcionamento do instituto, nunca terão virtualidade para o fazer despoletar. (negrito nosso)

III - Falamos, assim, de uma razão séria e grave, do qual ou no qual resulte inequivocamente um estado de forte verosimilhança (desconfiança) sobre a imparcialidade do juiz (propósito de favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro). Visa salvaguardar-se um bem essencial na Administração da Justiça que é a imparcialidade ou seja a equidistância sobre o litígio a resolver, de forma a permitir a decisão justa. (negrito nosso)

IV - Mas, se está em causa uma tarefa essencial no desempenho do Estado igualmente se procura defender a posição do Juiz, assegurando um instrumento processual que possibilite o seu afastamento quando, objectivamente, existir uma razão que minimamente possa beliscar a sua imagem de isenção e objectividade.

V - É evidente que não podem ser razões menores, quantas vezes fruto de preconceitos, quando não de razões pessoais sem qualificação, mas sim razões objectivas que se coloquem de forma séria. Fundamental é a formulação de um juízo hipotético baseado na percepção que um cidadão médio sobre o reflexo na imparcialidade do julgador daquele facto concreto. (negrito nosso)

VI - Na verdade, do que falamos é do risco da perda de objectividade, do afastamento isento que é indiciado pelo facto objectivo. Aqui importa salientar que é do conhecimento normal de um cidadão médio que tais atributos do exercício da jurisdição estão tanto mais afastados quanto maior for a proximidade do julgador em relação a factos do litigio que lhe é proposto julgar, nomeadamente quando tal proximidade seja fruto de um conhecimento extraprocessual. A imparcialidade afasta-se quando as razões ditadas pela razão objectiva são substituídas pelas empatias contidas na emoção resultante da proximidade. A partir do momento em que o juiz do processo recebe informação de qualquer tipo relacionada com o processo, que lhe é transmitida por um dos intervenientes, dificilmente a sua posição deixa de ser reconhecida como condicionada por tal ligação. Passa a interferir um elemento de conexão pessoal e extraprocessual num procedimento que se deve pautar pelo afastamento e pela objectividade.

VII - Acresce que tal tipo de relação não é por natureza objecto de publicidade, o que pode potenciar a dúvida dos restantes intervenientes processuais sobre o seu conteúdo. A isenção objectiva do julgador pode não estar comprometida e naturalmente não estará. Mas, objectivamente, a dúvida ficara a pairar e por essa forma ficará afectada a imagem da justiça.

VIII - Por seu turno o TEDH entende que a imparcialidade deve apreciar-se de um duplo ponto de vista: aproximação subjectiva, destinada à determinação da convicção pessoal de tal juiz em tal ocasião; e também, segundo uma apreciação objectiva, isto é, se ele oferece garantias bastantes para excluir a este respeito qualquer dúvida legítima.

IX - É esta jurisprudência da maior relevância no caminho a um tempo construtor do princípio da imparcialidade objectiva do tribunal e da sua aplicação à diversidade dos casos concretos, que vem trilhando a jurisprudência da instância europeia. A imparcialidade, como exigência específica de uma verdadeira decisão judicial, define-se, por via de regra, como ausência de qualquer prejuízo ou preconceito em relação à matéria a decidir ou às pessoas afectadas pela decisão. O TEDH tem entendido que a imparcialidade se presume até prova em contrário; e que, sendo assim, a imparcialidade objectiva releva essencialmente de considerações formais e o elevado grau de generalização e de abstracção na formulação de conceito apenas pode ser testado numa base rigorosamente casuística, na análise in concreto das funções e dos actos processuais do juiz.” (negrito nosso).


Sublinhe-se (insista-se) que o aresto remete também para critérios do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, no corpo do respetivo Acórdão, assinalando:

“Tribunal Europeu dos Direitos do Homem entende que a imparcialidade deve apreciar-se de um duplo ponto de vista: aproximação subjectiva, destinada à determinação da convicção pessoal de tal juiz em tal ocasião; e também, segundo uma apreciação objectiva, isto é se ele oferece garantias bastantes para excluir a este respeito qualquer dúvida legítima.

É esta jurisprudência da maior relevância no caminho a um tempo construtor do princípio da imparcialidade objectiva do tribunal e da sua aplicação à diversidade dos casos concretos, que vem trilhando a jurisprudência da instância europeia. A imparcialidade, como exigência específica de uma verdadeira decisão judicial, define-se, por via de regra, como ausência de qualquer prejuízo ou preconceito em relação à matéria a decidir ou às pessoas afectadas pela decisão. O TEDH tem entendido que a imparcialidade se presume até prova em contrário; e que, sendo assim, a imparcialidade objectiva releva essencialmente de considerações formais e o elevado grau de generalização e de abstracção na formulação de conceito apenas pode ser testado numa base rigorosamente casuística, na análise in concreto das funções e dos actos processuais do juiz.”


Veja-se ainda o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de de 27-05-1999, proferido no Proc.º n.º 323/99:

«(4) - A regra do n.º 2 do art.º 43.º do CPP, agora introduzida pelo DL 59/98, de 25-08, só adquire sentido, como do próprio contexto do artigo dimana, se o fundamento da recusa que nele se contempla se apoiar nos mesmos pressupostos - os da existência de motivo sério e grave - que alicerçam aquele que se define no n.º 1 do referido normativo.

(5) - É precisamente a imprescindibilidade desse motivo sério e grave que faz não só avultar a delicadeza desta matéria, como leva a pressentir que, subjacente ao instituto da recusa, se encontra a necessidade (e a conveniência) de preservar o mais possível a dignidade profissional do magistrado visado e, igualmente, por lógica decorrência e inevitável acréscimo, a imagem da justiça em geral, no significado que a envolve e deve revesti-la.

(6) - Por isso é que, determinados actos ou determinados procedimentos (quer adjectivos, quer substantivos) só podem relevar para a legitimidade da recusa que se suscite, se neles, por eles ou através deles for possível aperceber - aperceber inequivocamente - um propósito de favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro.

(7) - As meras discordâncias jurídicas com os actos processuais praticados ou com a sua ortodoxia, a não se revelar presciente, através deles, ofensa premeditada das garantias de imparcialidade, só por via de recurso podem e devem ser manifestadas e não através de petição de recusa».

E ainda o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 29-06-2000, proferido no Proc.ª n.º 943-B/98.

«(1) - O fundamento básico de recusa de juiz consiste em o mesmo poder ser considerado suspeito, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

(2) - Para a sua correcta processualização, haverá no entanto que alegar sempre factos concretos que possam alicerçar tal desconfiança e indicar as normas legais aplicáveis que fundamentam a recusa».


C. Dos Factos ao Direito


2. Pode e deve um juiz pedir ao tribunal competente que o escuse, afastando-o, a seu pedido, de um processo, quando ocorrer o efetivo e objetivo risco de o magistrado poder vir a ser considerado suspeito, por real motivo, sério e grave, propício a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.


3. São, assim, fundamentos (e requisitos) cumulativos para a verificação da escusa:

- quando a intervenção do juiz naquele dado processo corra risco real (não simples receio híper suscetível) de vir a ser considerada suspeita;

- quando se verificar verosímil motivo, sério e grave;

- e quando esse mesmo motivo seja apto a gerar a referida desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, avaliação a ser feita por um juízo hipotético fundado nas representações que um cidadão médio teria sobre o reflexo dos factos concretos invocados na imparcialidade do julgador daquele concreto caso.


4. No caso, está em causa a presença do Requerente como juiz adjunto numa causa que tem com uma outra significativas similitudes. Entendendo que possui “uma opinião formada sobre a questão e entende que o recurso deve ser julgado por quem não tenha qualquer prejuízo sobre a mesma.”

Com todo o respeito pela tese avançada, entende-se, contudo, que o haver-se tido intervenção num processo, e necessariamente, ter-se formado uma opinião sobre o problema em causa, não inibe o julgador de julgar mais vezes sobre a mesma matéria.

Não apenas porque em tese geral, abstratamente, até poderia mudar de opinião (sendo proverbial que Lincoln, enquanto advogado, teria mudado de opinião no mesmo tribunal da manhã para a tarde; cf. ainda a propósito de escusa em contexto de liberdade decisória, como é o caso: Acórdão do STJ de 09-10-2019, 3.ª secção)), o que será uma situação reconhecidamente excecional, mas sobretudo porque não vem mal ao mundo, nem ao sistema jurídico, que um observador do exterior, e desde logo os sujeitos processuais façam um juízo de prognose sobre a possível posição do juiz. Ad absurdum se diria, então, que apenas a total imprevisibilidade da posição de um julgador seria tranquilizadora para o “auditório”, quer no processo, quer geral? Poderia até, pelo contrário, adiantar-se que essa eventual prognose poderia ajudar ambos os contendores, permitindo-lhes preparar de forma mais consistente as suas posições e “movimentos” processuais.

Mas independentemente da dialética das conjeturas, que servem para abalar a confiança na necessidade de não haver conhecimento prévio da posição eventualmente previsível de um juiz, avulta a questão da natureza desse posicionamento.

O ter opinião formada sobre a questão (em sede geral, claro), é errado, nocivo, e sobretudo motivo para grave suspeita de parcialidade? Não parece; porquanto, se assim fosse, para dar um exemplo apenas, no limite, um juiz que houvesse escrito, por vezes centenas ou até milhares de páginas sobre inúmeros assuntos que terá que julgar (pense-se na hipótese de algum jurista de mérito no STJ), patenteando publicamente a sua posição sobre inúmeras situações, ou múltiplos casos que se subsumem a muitas teorizações e posições doutrinais, ficaria inibido, por ser pública e notória a sua posição, de intervir em tantos quantos os processos em que tais questões no concreto viessem a surgir. Evidentemente que não se encontra inibido de o fazer. Nem incorre em nenhuma falta subjetiva, e seria uma sociedade excessivamente absurda e anómica essa em que o público em geral dele suspeitasse por uma possível coerência, de uns casos para os outros.

Uma entorse deste tipo ao princípio do juiz natural é que seria de temer.

E o reconhecimento de um princípio deste tipo, se alargado, se fazendo precedente, tornaria virtualmente impraticável o ofício de julgar, porque, por muito que a imaginação da realidade seja fértil, sempre se repetem casos, e sempre os novos litigantes poderão consultar o percurso jurisprudencial dos juízes que lhes venham a calhar em sorte. Algo faz lembrar, mutatis mutandis, a parábola contada por Miguel Reale nas suas Lições Preliminares de Direito sobre o conceito técnico-jurídico de “competência”. Como bem se sabe (mas não os leigos) é competente o juiz pela sua capacidade técnica, humana ou prudencial, mas, juridicamente, mercê de uma malha de pertinências que têm a ver com território, matéria, alçada, hierarquia, etc..

Assim aqui também não se pode desejar um juiz que nunca tenha tratado do tema, e mesmo, no caso, que se encontre completamente afastado da causa… A imparcialidade não é uma categoria de separação, distanciamento, uma espécie de vácuo relativamente ao quid. E até, pelo contrário, se poderá dizer que o conhecimento prévio de questões semelhantes dá experiência, maturação e essa preparação acrescida é favorável a uma boa perspetiva da causa. Não, obviamente, uma repetição mecânica do já antes atingido e decidido.

Muito claramente é colocada a questão, para o que nos importa, no Sumário do Acórdão de 14-02-2021, proferido no Proc.º n.º 213/12.2TELSB-U.S1-A:

“I - São normas gerais e abstratas contidas nas leis processuais penais e nas leis de organização judiciária que pré-determinam o tribunal competente, a sua composição (singular ou coletivo ou júri) e, especificamente, a juíza, o juiz, ou juízes que, em cada fase, intervêm no processo e no julgamento.

II - O princípio do «juiz natural» ou «juiz legal» é uma garantia do processo penal, obstando ao desaforamento das causas criminais.

III - Não basta que o juiz seja imparcial; é também necessário que o pareça.

IV - Quando a imparcialidade da juíza ou juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é justificadamente posta em causa, não está em condições de «administrar a justiça» no caso concreto.

V - Na ponderação da imparcialidade na sua vertente objetiva, não releva a convicção da juíza ou juiz requerente e também não é suficiente a constatação de um qualquer motivo gerador de desconfiança sobre a neutralidade da/o julgador/a.

VI - Exige-se que o motivo ou motivos invocados sejam sérios e graves a tal ponto que a intervenção da juíza ou juiz no processo que legalmente lhe está distribuído, olhada do exterior (pelos sujeitos processuais ou pela comunidade), se apresenta ou pode ter-se por suspeita.

VII - O deferimento do pedido de escusa do juiz natural para ser apartado do processo tem de assentar em motivos de suspeição de tal consistência e importância que, por si sós, de qualquer perspetiva objetiva, colocam fundamente em crise a aparência da sua neutralidade e isenção.”


5. O motivo invocado neste caso não parece por si só atendível, aparentemente decorrendo de um certamente nobre, mas quiçá deveras escrupuloso (no sentido dos eticistas) rigoroso e zelo excessivo, uma suscetibilidade e preocupação talvez louváveis deontologicamente, mas juridicamente não atendíveis. Funda-se decerto numa prognose  excessiva e “defensiva” (como na “medicina defensiva”) sobre o que poderia ser a vox populi se não fosse deferida a escusa. Embora se limite, no que à questão essencial é pertinente, a remeter para a Lei, e a considerar que “entende que o recurso deve ser julgado por quem não tenha qualquer prejuízo sobre a mesma.”.

Ora, embora o vocábulo “prejuízo” seja polissémico, e haja passado por alguma evolução semântica, no uso corrente, crê-se que na linguagem forense (que, contudo, guarda alguma da elegância e fórmulas nem sempre em curso, e por isso deve ser cautelosamente interpretada, cum grano salis) prejuízo se identifica sobretudo com “juízo antecipado” e não com preconceito ou sentidos afins, que é um outro significado do termo. Evidentemente que não poderia significar, no caso, preconceito. Nem, muito menos, é claro, dano ou superstição ou crendice.

O que o Recorrente quer dizer, crê-se, é que considera que o recurso deveria ser julgado por algum que não tivesse já um pré-julgamento (que só pode ser em geral) sobre a questão. Não, obviamente, uma posição de preconceito que, essa sim, poderia ser um fumus para eventual motivo de escusa.


6. Recordando alguma jurisprudência pertinente.

O Acórdão deste STJ de 19-05-2010, designadamente afirma a pertinência da escusa quando a intervenção no processo venha a ser considerada suspeita, “por a sua imparcialidade ((do juiz recorrente)) se mostrar posta em causa.”.

O Acórdão deste STJ de 13-09-2006, ao falar na vertente subjetiva da imparcialidade, remete para a “inexistência de qualquer predisposição no sentido de beneficiar ou prejudicar qualquer das partes com a sua decisão”.

Igualmente o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de de 27-05-1999, proferido no Proc.º n.º 323/99 enfatiza que “só podem relevar para a legitimidade da recusa que se suscite, se neles, por eles ou através deles for possível aperceber - aperceber inequivocamente - um propósito de favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro.”

Ora, no caso, não há esse animus de beneficiar ou prejudicar, apenas se verifica alguma similitude de situações com caso julgado. A passar à vertente objetiva requer-se a ausência de “quaisquer circunstâncias externas, no sentido de aparentes, que revelem que o juiz tenha um pendor a favor ou contra qualquer das partes, afectando a confiança que os cidadãos depositam nos tribunais.”. Ora o requerente não considera que tenha um pendor a favor ou contra qualquer das partes. Apenas recorda que já tomou posição, em situação semelhante. Tal não parece afetar a confiança dos cidadãos nos tribunais. Caso contrário, dir-se-ia ainda, cum grano salis, teria de reformular-se o princípio non bis in idem, ou encontrar-se um novo, de forma a abranger estes casos.

Mutatis mutandis (no caso, em razão concretamente das pessoas), para uma escusa que, a ser concedida, poderia vedar o poder e dever judicatório de forma alargadíssima, cf. o Acórdão de 14-04-2021, proferido no Proc.º n.º213/12.2TELSB-U.S1-A.

Por seu turno, o Acórdão de 20-10-2010, proferido no Proc.º n.º 140/10.8YFLSB entende que “o mero convencimento subjectivo por parte de um interessado processual, ou o desvirtuamento da conduta do julgador, extraindo consequências perfeitamente exógenas ao funcionamento do instituto, nunca terão virtualidade para o fazer despoletar.” E insite no “propósito de favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro)”. Concluindo que “não podem ser razões menores, quantas vezes fruto de preconceitos, quando não de razões pessoais sem qualificação, mas sim razões objectivas que se coloquem de forma séria”.

Recordando que “O TEDH tem entendido que a imparcialidade se presume até prova em contrário”.

Significativo se nos afigura ainda o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Junho de 2006, Proc.º n.º 06P1286:

 «o prisma a que se tem de atender não é o do particular ponto de vista do requerente (isto é, o seu sentimento pessoal de que a sua intervenção no processo possa gerar desconfiança ou ser considerada suspeita), mas a situação objectiva que possa derivar de uma determinada posição do juiz em relação ao caso concreto ou a determinado sujeito ou interveniente processual, em termos de existir um risco real de não reconhecimento público da sua imparcialidade. Por conseguinte, não relevam as meras impressões individuais, ainda que fundadas em situações ou incidentes que tenham ocorrido entre o peticionante da escusa e um interveniente ou sujeito processual, num processo ou fora dele, desde que não sejam de molde a fazer perigar, objectivamente, por forma séria e grave, a confiança pública na administração da justiça e, particularmente, a imparcialidade do tribunal. De outro modo, poder-se-ia estar a dar caução, com o pedido de escusa, a situações que podiam relevar de motivos mesquinhos ou de formas hábeis para um qualquer juiz se libertar de um qualquer processo por razões de complexidade, de incomodidade ou de maior perturbação da sua sensibilidade. E no Acórdão de 9/12/04, Proc. n.º ... – ..., convocando, aliás, variada jurisprudência deste Tribunal, escreveu-se que «não basta um puro convencimento subjectivo (…) tendo de haver uma especial exigência quanto à objectiva gravidade da invocada causa de suspeição». É que do uso indevido do incidente pode resultar «a lesão do princípio constitucional do juiz natural, ao afastar o juiz por qualquer motivo fútil. A não ser assim, ver-nos-íamos confrontados a cada passo com pedidos de recusa ou de escusa motivados por suspeições mais ou menos devidas à particular susceptibilidade ou ao grau de tolerância de cada um ou mesmo à especial idiossincrasia de cada indivíduo. Isto levaria, obviamente, à paralisia do sistema. Por conseguinte, o motivo apresentado tem de ser sério e grave, objectivamente considerado, isto é, do ponto de vista do cidadão médio, que olha a justiça como uma instituição que tem de merecer confiança. A regra do juiz natural ou legal, com assento na Constituição – art. 32.º n.º 9 – só em casos excepcionais pode ser derrogada, e isso para dar satisfação adequada a outros princípios constitucionais, como o da imparcialidade, contido no n.º 1 do mesmo normativo. Mas, para isso, é preciso que essa imparcialidade esteja realmente em causa, em termos de um risco sério e grave, encarado da forma sobredita».


7. Evidentemente que os julgadores, e mais ainda, a fortiori, presumir-se-á, os mais experimentados e qualificados, sabem bem apartar as situações, discernir e aplicar a justiça independentemente das circunstâncias, e a manutenção deles nestas funções, em si, nada prejudicaria a justeza e a justiça das suas decisões. É apenas por uma vigilante cautela, no respeito pelos requisitos da lei, que se entende ser prudente atender aos cautos e justificados pedidos. Mas é importante que seja feita, com rigor, e de acordo com os parâmetros legais, cujos pressupostos, no caso, não se encontram cabalmente preenchidos.

Ter uma posição que se crê firmada sobre uma questão jurídica, que novamente se coloca em novo processo, não se crê ser motivo grave e sério, apto a gerar desconfiança pública sobre a imparcialidade de um juiz. Em atenção ao escrúpulo, bem anda o juiz que levanta a questão, pedindo a sua escusa. Mas menos bem andaria o STJ se lha concedesse, porquanto não se enquadra nos requisitos em causa, nomeadamente do artigo 43.º do CPP.


8. Importa salientar que se não trata, no caso, de uma pura e simples subjetividade, mas poderia haver um potencial fumus de legitimidade no artigo invocado, especialmente no artigo 43.º, n.º 2. A formulação deste número, é, contudo, clara: não diz que é, taxativamente, fundamento de recusa a intervenção processual noutro processo ou em fases anteriores do mesmo, fora dos casos do artigo 40.º. Diz que pode ser… O que deixa, evidentemente, margem para a apreciação.

O Conselheiro António Henriques Gaspar, em anotação ao artigo e ao número em causa, considera, no mesmo sentido:

“A aplicação do critério geral depende da participação decisória no processo que esteja em causa em concreto, não havendo, por isso, identificação, de princípio, de situações que possam constituir fundamento para a aplicação da norma”.

E explicitando mais ainda:

“dada a extensão enunciativa do artigo 40º, é razoável ter como assente que só excepcionalmente ocorrerão outras intervenções sucessivas no processo susceptíveis de integrar os motivos para afectação da imparcialidade objetiva” – António Henriques Gaspar et al., Código de Processo Penal. Comentado, 3.ª ed. revista, Coimbra, Almedina, 2021, p. 126).

A fortiori tal parece ocorrer com intervenção em processos distintos. No caso, recorda-se:

“(…) Foi ... do acórdão proferido em 13/10/2022, no recurso n.° 184/12.5TELSB..., outro apenso dos mesmos autos principais.

Nestes autos, ainda que o bem apreendido seja diferente, o despacho recorrido é o mesmo e a questão suscitada é, em tudo o mais, similar à que esta em apreciação neste recurso.


Por seu turno, o Conselheiro José Mouraz Lopes, em anotação ao artigo 43.º, considera “absolutamente necessário avaliar toda a intervenção de um juiz num determinado processo para daí concluir da existência de motivos sérios e graves que levem a uma situação de quebra de confiança no juiz, pondo em causa a sua própria legitimação como julgador” (António Gama et al., Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo I, Coimbra, Almedina, 2019, p. 491). Ora o sintetismo do texto do requerente não nos permite ir além do que afirma, e que se centra, aliás, sobre a questão de já ter uma opinião formada. E tal não será fundamento bastante para a escusa.

O Acórdão do STJ de 28-03-2019, 5.ª secção, parece, no limite, poder levar a concluir que o próprio escrúpulo de um juiz ao pedir escusa já será, em si mesmo, pelo menos em certas circunstâncias (levado ao máximo expoente destruiria o próprio instituto), uma demonstração de que não há que temer, de forma grave e séria, pela inexistente imparcialidade. De qualquer forma, compreende-se que o pedido, mesmo escrupuloso, de escusa é um sinal de desejo de manter a imparcialidade impoluta.

O principal teste é o juízo hipotético, colocando-se o julgador na escusa na posição que o público teria sobre a questão (cf., v.g., Acórdão do STJ de 27-11-2019, 3.ª secção; doutrinalmente, cf., por todos, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª ed., reimp., Lisboa, 2018, p. 133). Por muito que alguma vox populi se encontre à defensiva contra os poderes e desconfiada por princípio, não se crê que a concreta situação tenha cabimento nos casos, reconhecidamente excecionais, em que teria propriedade a escusa. É certo que há conexão entre os processos, mas não se crê que se possa pôr em crise, nem o venerando Desembargador Recorrente, nem o sistema da justiça, por, afinal, se tal vier a suceder, uma posição jurídica se repetir, com o mesmo juiz.



III

Dispositivo



Termos em que se acorda, na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em indeferir o pedido de escusa do Venerando Desembargador Recorrente, não o escusando de intervir como adjunto no julgamento do recurso interposto no Processo n.º 184/12.5TELSB-AG.L1.

Sem custas.


Supremo Tribunal de Justiça, 30 de novembro de 2022


Dr. Paulo Ferreira da Cunha (Relator)

Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta)

(Dr. Sénio Alves, Juiz Conselheiro Adjunto)