Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | RODRIGUES DA COSTA | ||
Descritores: | DECISÃO INTERLOCUTÓRIA RECURSO MATÉRIA DE FACTO VÍCIOS TRÁFICO DE DROGA TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA | ||
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Nº do Documento: | SJ200312040031885 | ||
Data do Acordão: | 12/04/2003 | ||
Votação: | UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT | ||
Tribunal Recurso: | T REL LISBOA | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 1782/03 | ||
Data: | 06/01/2003 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC PENAL. | ||
Decisão: | REJEITADO O RECURSO. ALTERADA A DECISÃO. | ||
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Sumário : | 1 - O Supremo só conhece dos recursos das decisões interlocutórias do tribunal de 1ª instância que devam subir com o da decisão final, quando esses recursos (do tribunal do júri ou do tribunal colectivo) sejam directos para o STJ e não quando tenham sido objecto de recurso decidido pelas Relações. 2 - O princípio da presunção de inocência do arguido não significa que este deva ficar indiferente às provas que se forem produzindo e que possam ser suficientes para formarem a convicção do julgador no sentido da sua condenação. É nisso que se estriba o princípio do contraditório e também o princípio da defesa. 3 - Os vícios do art. 410.º n.º 2 do CPP, como toda a gente sabe, têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida, em si mesmo considerado ou com recurso às regras gerais da experiência. A rastreação desses vícios não admite o lançar mão de elementos extrínsecos, nomeadamente a invocação de depoimentos e outras provas produzidas em audiência e, muito menos, no inquérito, pelo que o recurso para o STJ que tenha esse objecto é manifestamente improcedente. 4 - A quantidade de heroína detida pelos arguidos - 7, 578 grs. - acomodada em 33 embalagens, não tem o relevo suficiente para a incluirmos no padrão típico do art. 21.º n.º 1 daquele diploma legal. De mais a mais, não havendo prova alguma de que os arguidos se dedicassem à actividade de tráfico, com excepção dessa única vez em que foram surpreendidos pela entidade policial. Nem sequer constando, como muitas vezes sucede, que eles vendessem produtos estupefacientes. É certo que a droga em causa é das que tem mais poder viciante, mas tal qualidade, só por si não é suficiente para se enquadrar a conduta no citado art. 21.º n.º 1. O modo como eles (arguidos) procediam à venda da referida heroína denota, por seu turno, uma insipiência de processos, roçando o improviso e a quase ingenuidade. Tudo isso aponta para uma acentuada diminuição da ilicitude, ou seja, para um tráfico de menor gravidade. 5 - A operação de alteração da qualificação jurídico-penal pode perfeitamente ter lugar a título oficioso, ainda que o recorrente a não tenha focado no recurso. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam do Supremo Tribunal de Justiça: I. - RELATÓRIO 1. - No Tribunal da 2ª Vara Criminal de Lisboa foram julgados os arguidos A e B por crime de tráfico de estupefacientes do art. 21.º n.º 1 do DL 15/93, de 22/1, pelo qual foram ambos condenados na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, tendo o arguido B sido ainda condenado na coima 750 euros pela contra-ordenação prevista e punida pelo art. 81.º n.ºs 2 e 4 do Código da Estrada, na redacção do DL 2/98, de 3/1 (condução com taxa de alcoolemia superior a 0,5 grs./ l.). Recorreu o arguido B para o Tribunal da Relação de Lisboa na parte relativa ao crime de tráfico de estupefacientes, não tendo obtido provimento. Desta última decisão recorreu o mesmo arguido para este Supremo, extraindo extensas conclusões, que se resumem como segue: 1 - O Tribunal da Relação não se pronunciou sobre o recurso interposto da decisão que ordenou o desentranhamento do requerimento apresentado em 16/12/02, o que constituiria a nulidade prevista no art. 379.º n.º 1 c) do CPP, devendo o mesmo ter sido levado em consideração e, uma vez que ainda tinha oportunidade, ter-se produzido prova suplementar, em ordem a apurar-se a verdade material; 2 - O depoimento do agente C - única prova em que assentou a condenação do recorrente - foi sobrevalorizado, sendo que o mesmo estava afectado na sua credibilidade, pois a testemunha não quis, nem foi capaz de indicar o local exacto onde se encontrava, sendo que a sua indicação de que se encontraria a 80 metros do cruzamento da Rua da Cruz com a Rua Feliciano de Sousa é forçosamente errada, atentos os mapas topográficos que se juntaram aos autos. 3 - Houve erro notório na apreciação da prova, ou seja facto erroneamente julgado. 4 - A prova impõe até decisão diversa, analisados os depoimentos do arguido ao longo do processo, em que há uma linha de coerência, e atento o depoimento do co-arguido A na audiência, o qual foi prestado de forma livre e depois de uma desintoxicação no EPL, ao passo que os primeiros depoimentos foram prestados sob o efeito da ressaca provocada pela privação da droga. 5 - No julgamento ficou assente que a testemunha C não se encontrava no cruzamento da Rua Cruz, a Alcântara com a Rua Feliciano de Sousa, quando vigiou a 80 metros em linha recta os arguidos. Estaria na Rua Maria Pia, a alegadamente 80 metros de distância. 6 - Consultada uma carta topográfica do local e tiradas fotografias, verifica-se que a Rua Maria Pia fica a uma grande distância do local, não havendo ângulo de visão da referida rua para o local dos factos (facto notório e evidente que impõe decisão diversa, bem como renovação da prova). 7 - Ao aceitar-se que a testemunha se eximisse a revelar o local exacto onde se encontrava, sob o pretexto da protecção de actuais e futuras investigações, o tribunal recorrido aceitou uma situação de segredo não prevista nos artigos 135.º a 137.º do CPP. 8 - Violaram-se os artigos 32.º n.º 5 da Constituição, por se ter furtado esta testemunha ao contraditório, o da presunção de inocência do arguido, por se ter invertido o ónus da prova, já que se teve por verdadeiro tal depoimento, por não ter sido requerida a contradita pelo recorrente. 9 - Deve o recorrente ser absolvido, uma vez retirada valoração ao depoimento citado, ou, subsidiariamente, ser repetida a prova com exame ao local. 2. - Respondeu o Ministério Público, defendendo que não se verifica qualquer omissão de pronúncia e que a decisão deve ser mantida, não havendo lugar à repetição da prova. 3. - Neste Supremo, o Ministério Público teve vista dos autos, promovendo o julgamento. Colhidos os vistos, realizou-se a audiência de julgamento e nela o senhor Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se de forma genérica sobre as questões prévias, entendendo que não eram procedentes. Disse que o recurso visava a matéria de facto e que, nessa medida, era inadequado, dado o STJ conhecer apenas de matéria de direito. Todavia, e embora não viesse questionada a questão da qualificação jurídica dos factos, nem a da medida da pena, entendia que, face à matéria provada, o crime dos autos seria de qualificar e punir como tráfico de menor gravidade, do art. 25.º do DL 15/93, de 22/1, revogando-se a decisão recorrida, o que estaria dentro dos poderes do STJ, dado tratar-se de questão de direito que não precisava de ser alegada, podendo e devendo ser conhecida ex officio. Cumpre, então, decidir. II. - FUNDAMENTAÇÃO 4. Factos provados No dia 11/5/2002, pelas 11h.45 m., no cruzamento da Rua Cruz de Alcântara e a Rua Feliciano de Sousa, em Lisboa, o arguido A foi surpreendido n aposse de 33 embalagens de heroína e o arguido B, na posse de 20 euros em dinheiro; O 1º arguido entregava heroína a consumidores que se lhe dirigiam e o 2º arguido recebia a contrapartida em dinheiro; A heroína tinha o peso total líquido de 7, 578 grs. e o dinheiro (20 euros) provinha de vendas anteriores de heroína; Os arguidos agiram livre e conscientemente, conhecendo as características estupefacientes da heroína e sabendo que o seu comportamento era punido por lei; No dia 16/2/02, pelas 06 h. 5 m., na Avenida Miguel Torga, frente à EPAL, em Lisboa, o arguido foi surpreendido ao volante do automóvel FX, acusando uma TAS de 1,19 grs./l.; Sabia que não podia conduzir na via pública sob influência do álcool; O 1º arguido confessou os factos de que vinha acusado; era, à data, toxicodependente, vivia na rua e não exercia qualquer profissão; actualmente, encontra-se detido preventivamente na ala A do EPAL; frequenta os 5.º e 6.º anos de escolaridade. Não tem antecedentes criminais; O 2º arguido vive com os pais e trabalha como servente de pedreiro; não sabe ler nem escrever, encontrando-se a estudar no EP, onde está preventivamente detido. Sofreu uma condenação anterior por condução sem carta. 5. Vistas as questões formuladas, comecemos pela alegada omissão de pronúncia. Diz ela respeito a um requerimento apresentado pelo recorrente na 1ª instância e no qual se pedia a junção de documento topográfico do local, a fim de se pôr em causa o depoimento da testemunha de acusação C, alegando-se a falta de condições para ela poder ter presenciado determinados factos, mas em que nada se requeria em concreto (Cf. fls. 358 dos autos). O aludido requerimento e o documento foram mandados desentranhar dos autos já após a leitura do acórdão condenatório, com o fundamento da sua manifesta extemporaneidade, após o encerramento da produção da prova e das alegações orais (fls. 375). Ora, em primeiro lugar, o recorrente não interpôs recurso específico dessa decisão, apenas o tendo interposto da decisão final. Não existindo recurso, a Relação não tinha que se pronunciar, tendo o mesmo despacho transitado em julgado e, com ele, tendo ficado esgotado o poder jurisdicional. Por outro lado, o recorrente juntou o tal documento topográfico na motivação de recurso para a Relação e esta, não obstante a não interposição de recurso do citado despacho, sempre se lhe referiu, quer no relatório, quer na fundamentação, pronunciando-se sobre a questão nos seguintes termos: «Mas também é certo que, tendo esta testemunha C justificado a sua intervenção policial no facto de ter presenciado os arguidos A e B juntos, e o primeiro a entregar a 2 indivíduos algo que se confirmou ser heroína, a troco de dinheiro que o co-arguido B recebia, não se percebe como se questiona a veracidade do seu depoimento por fisicamente não ter sido possível presenciar tais factos, sem pôr em causa o motivo da sua própria intervenção policial, aliás justificada». Como claramente se vê, a Relação respondeu directamente, embora sem se referir expressamente ao documento topográfico, à principal objecção que com ele o recorrente quis suscitar: a desvalorização da testemunha com base na configuração do local e o seu pressuposto posicionamento, a determinada distância, relativamente a esse local. Ou seja, de acordo com a Relação, a intervenção policial que culminou na detenção do recorrente é o facto objectivo irrecusável que confere sentido à justificação apresentada pela testemunha - o ter presenciado os factos antecedentes que motivaram essa mesma intervenção. Por conseguinte, mesmo vista as coisas por este lado, o recorrente não tem manifestamente razão relativamente à alegada omissão de pronúncia. 6. - Quanto às demais questões, basta atentarmos no seu teor, para logo vermos que extravasam completamente do âmbito dos poderes cognitivos deste Supremo, pois se reconduzem todas à impugnação da matéria de facto no sentido mais amplo, isto é, no que diz respeito à prova produzida, à sua apreciação e valoração, de acordo com os princípios ínsitos no art. 127.º do CPP. É certo que o recorrente formula também a questão da legalidade da alegada recusa da citada testemunha C em revelar o local onde se encontrava, não estando ela ao abrigo do disposto nos artigos 135.º e 136.º do CPP, mas tal questão, rigorosamente, é uma questão interlocutória que foi devidamente apreciada pela Relação, tendo esta entendido que a revelação do local «pouco importava, quando outros factos a credibilizavam», passando à análise, ainda que sumária, desses factos. Como tal, a decisão da Relação é insusceptível de recurso para este Supremo, nos termos do art. 400.º n.º 1, alínea c) do CPP, que estabelece a sua inadmissibilidade, relativamente a acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que não ponha termo à causa. «Causa só pode ser entendida para estes efeitos como o processo destinado a determinar a responsabilidade criminal do agente pela prática de facto ilícito» (Ac. de 21.2.02, Proc. n. 131/02-5) e a questão formulada reveste as características de um incidente. Ora, o Supremo só conhece dos recursos das decisões interlocutórias do tribunal de 1ª instância que devam subir com o da decisão final, quando esses recursos (do tribunal do júri ou do tribunal colectivo) sejam directos para o STJ e não quando tenham sido objecto de recurso decidido pelas Relações (Cf. o Acórdão de 8/7/03, Proc. n.º 2148/03 - 5, de que foi relator o aqui relator deste processo). E assim se tem decidido, nomeadamente nos Acórdãos de 21/6/01, Proc. n.º 1292/01 - 5, de 14/11/02, Proc. n.º 3225/02- 5, de 12/2/02, Proc. n.º 3145/02 - 5 (este, relatado pelo Conselheiro Simas Santos, desenvolvendo extensamente o assunto e defendendo a doutrina de que o artigo 754.º n.º 2 do CPC, que estabelece a inadmissibilidade do recurso de agravo trazido da 1ª instância e apreciado pela Relação, salvo se se tratar de decisão que ponha termo ao processo, teria aplicação no processo penal). O problema do desrespeito pelo princípio do contraditório, que o recorrente associa a tal falta de revelação do local onde se encontrava a testemunha é um problema secundário, em face da lateralidade e total irrelevância da referida circunstância para a descoberta da verdade material, na óptica do tribunal «a quo», sendo certo que, logo após a vigilância exercida pela testemunha, o recorrente veio a ser detido na posse do produto estupefaciente. Como tal, não ocorre agressão a esse princípio fundamental consignado na Constituição e na lei processual penal. 7. - Ainda nesta linha de argumentação, o tribunal «a quo» não operou a inversão do ónus da prova, ao concluir que o recorrente podia ter requerido (e não requereu) a contradita da testemunha. Na realidade, tal conclusão não ofende o princípio de que cabe à acusação, em última instância, como decorrência do princípio da presunção de inocência, consagrado no art. 32.º n.º 2 da Constituição, fazer a prova decisiva dos factos constantes da acusação, dissipando as dúvidas razoáveis que subsistam no espírito do julgador. Tal princípio não supõe a inércia do arguido face ao desenrolar da prova. Antes pelo contrário: o arguido, se não quiser sofrer as consequências das provas que o incriminam, tem mesmo de desenvolver uma actividade tendente a contrariar ou a anular o efeito incriminador dessas provas. É que a presunção de inocência não é uma verdadeira presunção em sentido técnico-jurídico, como está hoje definitivamente adquirido pelas ciências jurídicas, mas é uma norma «programática e fixadora de um critério interpretativo», que tem incidência em vários institutos do processo penal (a começar pelo estatuto do arguido), e também uma norma com incidência no campo da prova, tendo aí expressão ao nível do princípio in dubio pro reo, mas não se confundindo, todavia, com este e tendo um alcance mais vasto do que este (Cf. JOSÉ VAZ DOS SANTOS CARVALHO, Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito me julgado da sentença de condenação, Fronteira, n.ºs 3, 4 e 5, especialmente n.º 4, p. 118, e ALEXANDRA VILELA, Considerações Acerca Da Presunção De Inocência - Coimbra Editora 2000 - especialmente p. 81 e ss (Cf. também MAIA COSTA, A presunção de inocência do arguido na fase do inquérito, Revista do Ministério Público, n.º 92, p. 63 e ss., o qual defende para o referido princípio a natureza de verdadeiro direito fundamental e não de mero princípio programático, mas sem que tal implique, segundo pensamos, uma orientação diferente para o pensamento aqui explanado). Se verdadeiramente não existe no nosso processo penal um ónus da prova, competindo ao tribunal o dever autónomo de investigar a verdade por meios processualmente válidos e, em última análise, competindo à acusação dissipar as dúvidas que possam subsistir sobre os factos imputados ao arguido, este não pode ficar indiferente às provas que se forem produzindo e que possam ser suficientes para formarem a convicção do julgador no sentido da sua condenação. É nisso que se estriba o princípio do contraditório e também o princípio da defesa. «Assim o princípio da inocência teve reflexos em matéria de ónus da prova para dele isentar o arguido. Mas o arguido só beneficiará verdadeiramente do princípio da inocência, quando, após a produção da prova, surja a dúvida sobre a sua responsabilização» (SOUTO de MOURA, A Questão da Presunção De Inocência Do Arguido, Revista do Ministério Público, n.º 42, p. 48), juízo este que também concorrerá para a bondade da conclusão que expendemos atrás. Ora, a contradita de determinada testemunha é um dos meios que a lei põe ao alcance do arguido para o efeito apontado. Não quer isso dizer que, pelo facto de o recorrente não ter requerido a contradita da testemunha, daí tivesse resultado a sua credibilidade. Não. A credibilidade resultou de outros factores que levaram o tribunal a convencer-se da veracidade e isenção do seu depoimento - factores que constam da fundamentação da decisão - e que, em última análise, não foram abalados por nenhuma séria razão, nomeadamente trazida ao conhecimento do tribunal pelo arguido (no exercício do direito de defesa), que tivesse posto em causa os fundamentos em que ela assentou. 8. - Quanto às demais considerações do recorrente, como se disse acima, dizem todas respeito à impugnação da matéria de facto. Põem em causa a apreciação e valoração que da prova produzida em julgamento fez o tribunal de 1ª instância e que já foi objecto de recurso para o Tribunal da Relação, limitando-se agora o recorrente a reproduzir, quase na íntegra, a motivação ali apresentada. Essa impugnação nem sequer se circunscreve aos vícios do art. 410.º n.º 2 do CPP - caso em que, segundo a jurisprudência dominante no STJ, já seria de questionar a adequação de um tal recurso para este Tribunal, o qual deve visar apenas o reexame da matéria de direito, sem prejuízo de o Supremo conhecer ex officio daqueles vícios, quando proceda a tal reexame e concluir que, por força deles, não é possível chegar a uma correcta solução de direito (Cf. os Acórdãos atrás citados e, em especial, o último). Embora invocando formalmente o art. 410.º n.º 2, o certo é que o recorrente apenas, e de forma obsessiva, questiona a maneira como tribunal de 1º instância, com o aval da Relação, apreciou e valorou a prova produzida. Daí a utilização frequente de expressões como facto erroneamente julgado; prova que impõe decisão inversa, etc. E mais: o recorrente nem sequer se coíbe de apontar os factos que, contra o que ficou assente, considera provados ou não provados, de fazer o seu julgamento das provas produzidas, de recorrer constantemente ao próprio inquérito e de, por fim, pedir a renovação da prova com exame ao local. É a suprema infracção das regras por que se baliza a interposição de recurso para este Tribunal e circunscrevem os seus poderes de cognição. Ora, os vícios do art. 410.º n.º 2 do CPP, como toda a gente sabe, têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida, em si mesmo considerado ou com recurso às regras gerais da experiência. A rastreação desses vícios não admite o lançar mão de elementos extrínsecos, nomeadamente a invocação de depoimentos e outras provas produzidas em audiência e, muito menos, no inquérito O erro notório na apreciação da prova é aquele que, sendo de tal modo evidente, não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta, com exclusão, pois, da consulta de outros elementos do processo. (Acórdão do STJ de 13/1/98, Proc. n.º 1169/97). Qualquer vício dos previstos no n.º 2 do art. 410.º do CPP, deve resultar do contexto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum e tem de ser por tal modo evidente que uma pessoa média o possa descortinar (Acórdão do STJ de 14/3/02, Proc. n.º 3261/01 - 5). De sorte que o recurso, tal como está formulado no tocante a tais questões, não tem qualquer cabimento, sendo manifestamente infundado. E tanto deve ser rejeitado, por manifesta improcedência, pelo que respeita a esta última parte em análise, envolvendo os princípios constitucionais invocados (art. 32.º n.ºs 2 e 5), como relativamente às já analisadas questões de omissão de pronúncia e de validade de depoimento (a referida questão interlocutória), aqui por inadmissibilidade de recurso. 9. Resta analisar a questão colocada pelo Ministério Público na audiência de julgamento, afinal a questão mais importante. Será de qualificar a factualidade assente como tráfico de menor gravidade do art. 25.º do DL 15/93? A tal propósito, no Acórdão de 9/10/03, Proc. n.º 2609/03 - 5, relatado pelo mesmo relator deste processo, escreveu-se o seguinte com interesse para estes autos: «O art. 25.º do DL 15/93 contém um tipo privilegiado de tráfico de estupefacientes, que coloca acento tónico na diminuição acentuada da ilicitude, em relação àquela ilicitude que está pressuposta no tipo-base descrito no art. 21.º Essa diminuição acentuada depende, nos termos da referida norma, da verificação de determinados pressupostos, que ali são descritos de forma exemplificativa, que não taxativa, como é inculcado pelo advérbio nomeadamente (tendo em conta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações.) «A menor severidade da punição consagrada no art. 25.º corresponde a uma menor perigosidade presumida da acção para os bens jurídicos protegidos por tal norma, a saber, a saúde e a integridade física dos cidadãos, ou mais sinteticamente a saúde pública. Nos termos desse preceito, a diminuição considerável da ilicitude deverá resultar da consideração e apreciação conjunta das circunstâncias, factores ou parâmetros aí enunciados, bem como eventualmente de outros com tal potencialidade, dado que a enumeração a que ali se procede não é taxativa» - diz paradigmaticamente um desses acórdãos, com data de 20/2/97 e proferido no processo n.º 966/96. Por conseguinte, a apreciação a que há que proceder tem de ter em vista uma ponderação global das circunstâncias que relevem do ponto de vista da ilicitude e que tornem desproporcionada ou desajustada a punição do agente, naquele caso concreto, pelo art. 21.º do referido decreto-lei, já que o art. 25.º é justamente para situações de tráfico de estupefacientes (o que, por vezes, parece andar esquecido), mas em que esse tráfico se não enquadra nos casos de grande e média escala, a que corresponde a grave punição expressa na respectiva moldura penal, que vai de um mínimo de 4 a um máximo de 12 anos de prisão. Trata-se, pois, de casos de menor gravidade, mas, ainda assim, de casos com uma certa relevância - só que não a relevância das situações que podem caber na previsão do tipo legal do art. 21.º É preciso não esquecer, como se frisa no Acórdão deste Supremo de 15/12/99, Processo n.º 912/99, relatado pelo Conselheiro Armando Leandro, que «a tipificação do art. 25.º do DL 15/93 parece significar o objectivo de permitir ao julgador que, sem prejuízo da natural rigor da concretização da intenção penal relativamente a crimes desta natureza, encontre a medida justa de punição desses casos que, embora porventura de gravidade ainda significativa, ficam aquém da gravidade do ilícito justificativo da tipificação do art. 21.º e têm suporte adequado dentro da moldura penal prevista na norma indicada em primeiro lugar». A moldura penal prevista para o citado art. 25.º - 1 a 5 anos de prisão - inculca, na verdade, que não estamos em presença de simples bagatelas penais, mas de casos com certa gravidade (menor, apesar de tudo, do que a correspondente ao tipo fundamental do art. 21.º). Se a estatuição das penas tem de obedecer, constitucionalmente, à regra da proporcionalidade, haveremos de convir que aquela medida abstracta há-de corresponder a situações graves, mas, evidentemente, não tão graves - ou muito menos graves - do que aquelas que o tráfico de estupefacientes, segundo o padrão típico pressuposto pelo legislador, pressupõe». Ora, no caso dos autos, o arguido A foi surpreendido detendo na sua posse 33 embalagens de heroína, com o peso líquido de 7, 578 grs., e o recorrente foi surpreendido com 20 euros em dinheiro, que provinha de vendas anteriores desse produto, sendo que, enquanto o A entregava o estupefaciente a consumidores, o recorrente recebia a contrapartida em dinheiro. Provou-se ainda que o A era toxicodependente e vivia na rua, não exercendo qualquer profissão, enquanto o recorrente vivia com os pais, trabalhando como servente de pedreiro e não sabendo ler nem escrever. O A não tinha antecedentes criminais e o recorrente sofreu apenas uma condenação anterior por condução sem carta. Ora, não será preciso mais do que ponderar estes factos na sua globalidade para, sem necessidade de qualquer argumentação esforçada, se chegar à conclusão de que eles integram o tipo legal de crime de menor gravidade do art. 25.º do DL 15/93. Na verdade, a quantidade de heroína detida pelos arguidos - 7, 578 grs. - acomodada em 33 embalagens, não tem o relevo suficiente para a incluirmos no padrão típico do art. 21.º n.º 1 daquele diploma legal. De mais a mais, não havendo prova alguma de que os arguidos se dedicassem à actividade de tráfico, com excepção dessa única vez em que foram surpreendidos pela entidade policial. Nem sequer constando, como muitas vezes sucede, que eles vendessem produtos estupefacientes. É certo que a droga em causa é das que tem mais poder viciante, mas tal qualidade, só por si, como resulta da jurisprudência acima referida, não é suficiente para se enquadrar a conduta no citado art. 21.º n.º 1. O modo como eles (arguidos) procediam à venda da referida heroína denota, por seu turno, uma incipiência de processos, roçando o improviso e a quase ingenuidade. Tudo isso aponta para uma acentuada diminuição da ilicitude, ou seja, para um tráfico de menor gravidade. As demais circunstâncias provadas atinentes ao enquadramento sociológico dos arguidos, um deles - o A - a viver na rua, o recorrente a viver com a família, sendo servente de pedreiro, e com um baixíssimo nível ou mesmo sem nenhum nível de instrução (o recorrente nem sequer sabia ler nem escrever) concorrem também para a mesma conclusão, ainda que dizendo mais respeito a circunstâncias exógenas mitigadoras da culpa. O certo é que, traduzindo elas, em grande medida, a responsabilidade social e política pela situação de marginalização ou até de exclusão de certas pessoas, o caminho da droga, incluindo o pequeno comércio negro a ela ligado, se apresenta como uma via frequentemente associada àquela situação de carência a todos os níveis. Nessa medida, a actividade ilícita do tráfico, quase sempre associada ao consumo (no caso, ficou provado, quanto ao A, que era toxicodependente) é muito mais o resultado e o reflexo objectivo da apontada situação de miséria, do que a expressão da ilicitude pressuposta no tráfico de estupefacientes do art. 21.º n.º 1. Sendo embora censuráveis do ponto de vista ético-jurídico, estas acções típicas caem no âmbito do art. 25.º n.º 1 do DL 15/93, que as pune já com uma pena considerável - 1 a 5 anos de prisão - e não no daquele normativo. Consequentemente, há que proceder a uma requalificação dos factos, em ordem a obter uma qualificação jurídico-penal mais consentânea com a factualidade provada. Tal operação de alteração da qualificação jurídico-penal, pode perfeitamente ter lugar a título oficioso, como se sustentou no Acórdão do STJ de 17/1/02 (Acs. STJ X, 1, 183), depois retomado no Acórdão, também do STJ, de 5/4/03, Proc. n.º 504/03 - 5): «2 - O acórdão uniformizador de jurisprudência n.° 4/95, de 7.6.95 (DR IS-A de 6-7-95 e BMJ n.º 448 pág. 107) que decidiu: "o Tribunal Superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo tribunal recorrido, mesmo para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da «reformatio in pejus", e assento n.º 2/93 do STJ, em cuja senda aquele se situa, reformulado, na seguinte forma (Assento n.º 3/2000, 15-12-1999, DR IS-A de 11-2-2000.): "Na vigência do regime dos Códigos de Processo Penal de 1987 e de 1995, o tribunal, ao enquadrar juridicamente os factos constantes da acusação ou da pronúncia, quando esta existisse, podia proceder a uma alteração do correspondente enquadramento, ainda que em figura criminal mais grave, desde que previamente desse conhecimento e, se requerido, prazo, ao arguido, da possibilidade de tal ocorrência, para que o mesmo possa organizar a respectiva defesa" fundam-se na ideia de que constitui núcleo essencial da função de julgar, o enquadramento jurídico dos factos apurados, a determinação do direito, pelo que não está limitada por errado enquadramento que haja sido feito pelos interessados ou pelas partes. 3 - Ideia reafirmada no mencionado acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/95 com redobrado valor, tratando-se já não de pronúncia, mas de sentença penal condenatória que potencia o exame e crítica em via de recurso e que ganha ainda maior sentido tratando-se, como se trata, de um recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça, cuja natureza e funções tornariam incompreensível que, detectado um erro de direito em relação a uma condenação submetida a recurso, se abstivesse de o corrigir, mesmo tratando-se de fazer respeitar a sua jurisprudência obrigatória, defesa cuja importância justifica, só por si, a existência de um recurso extraordinário próprio - o do art. 446.º do CPP. 4 - Ainda que o recorrente não ponha concretamente em causa a incriminação definida pelo Colectivo ou a ponha num sentido diverso, não pode nem deve o STJ - enquanto tribunal de revista e órgão, por excelência e natureza, mentor de direito - dispensar-se de reexaminar a correcção das subsunções. 5 - Sendo o Supremo Tribunal um tribunal de revista, só conhece de direito e estando em causa a qualificação jurídica por entender o recorrente que o crime é simples e não qualificado como fora decidido, pode indagar se deve ser adoptada uma outra e diversa qualificação jurídica.» |