Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1186/19.6T8EVR.E1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
CÚMULO JURÍDICO
CONHECIMENTO SUPERVENIENTE
CONCURSO DE INFRAÇÕES
CRIME CONTINUADO
ABUSO DE CONFIANÇA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA ÚNICA
PLURIOCASIONALIDADE
PENA DE PRISÃO
PENA SUSPENSA
Data do Acordão: 10/15/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO PROCEDENTE O RECURSO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. São elementos do crime continuado, (i) a realização plúrima de condutas violadoras do mesmo bem jurídico, (ii) a execução essencialmente homogénea de tais condutas e (iii) a existência de uma solicitação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente;

II. A homogeneidade das diversas formas de comissão é dada por uma unidade de contexto situacional que, por sua vez, pode ser indiciada pela proximidade de espaço e tempo das diversas condutas;

III. Pressuposto da continuação criminosa é a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito;

IV. Nos casos de crime continuado existe um só crime porque, verificando-se embora a violação repetida do mesmo tipo legal ou a violação plúrima de vários tipos legais de crime, a culpa está tão acentuada que só é possível formular um só e não vários juízos de censura, sendo que a diminuição da culpa deve radicar em solicitações de uma mesma situação exterior que arrastem o agente para o crime, que não em razões de carácter endógeno;

V. No caso em apreço a resolução criminosa da arguida a partir do momento em que como tal foi constituída pela 1.ª apropriação da quantia de 10.470,56 €, essa forçosa tomada de consciência da ilicitude e censurabilidade de conduta, afastou qualquer unificação relativamente à resolução da apropriação posterior da quantia de 23.023,48 €, escassos 5 meses decorridos da 1.ª, ou seja, a 2.ª apropriação, objecto de condenação noutro processo foi resultante de uma nova e autónoma resolução criminosa, previamente assumida;

VI. Qualquer “amolecimento” da culpa que pudesse existir na consciência da arguida, terminara com a sua constituição como arguida pelos 1.ºs factos que a indiciavam como autora do crime de abuso de confiança, pelo que não há nem continuação criminosa, nem violação do princípio ne bis in idem, uma vez que os factos que fundamentaram uma e outra condenação são diversos, desde logo em razão dos valores ilegitimamente apropriados e das circunstâncias temporais de um e outro momento apropriativo;

VII. Perante o pressuposto formal da medida da pena única a fixar, não excedente a 5 anos de prisão e cumpridas que foram, entretanto, nos prazos concedidos em ambas as decisões, as condições de que dependia a suspensão de execução das penas de prisão, com o pagamento das quantias fixadas e correspondentes aos valores apropriados (10.470,56 € e 23.013,48 €) aos herdeiros do ofendido, entretanto falecido, não há razões para dissentir do juízo repetidamente formulado nas condenações que integram o concurso, embora se julgue conveniente e adequado à ressocialização da arguida que a suspensão da pena de prisão, a fixar pelo mesmo período de 5 anos, deva ser acompanhado de regime de prova, assente num plano a definir pela Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), além do mais orientado para um plano de vida futura assente em prestação de trabalho digno e remunerado por parte da arguida.
Decisão Texto Integral:

Proc. n.º 1186/19.6T8EVR.E1.S1

5.ª Secção

Concurso superveniente

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

No âmbito do Processo n.º 1186/19.6T8EVR, do Juízo Central Criminal de … - Juiz 2, da Comarca de …, por acórdão proferido em 16.12.2019 foi a arguida AA condenada na pena única de 6 anos e 6 meses de prisão, a qual englobou as seguintes penas e crimes:

a) – 4 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sob condição de pagamento ao ofendido (assistente) BB da quantia de 10.470,56 €, no prazo de 1 ano a contar do trânsito da sentença, por sua vez proferida em 19.11.2018 e transitada em julgado em 04.02.2019, pela prática de um crime de abuso de confiança dos art.ºs 205.º, n.ºs 1 e 4, alín. a) e 202.º, alín. a), do CP, no Proc. 240/16.0… do Juízo Local Criminal de … – Juiz 1;

b) – 4 anos e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sob condição de pagamento ao ofendido BB da quantia de 23.023,48 €, no prazo de 1 ano após trânsito em julgado da respectiva decisão, imposta na sentença proferida de 22.02.2019, transitada em julgado em 08.04.2019, pela prática de um crime de abuso de confiança dos art.ºs 205.º, n.ºs 1 e 4, alín. a) e 202.º. alín. a), do CP, no Proc. 464/17.3… do mesmo Juízo;

Inconformada, a arguida recorreu para o Tribunal da Relação de Évora que, por o recurso se cingir ao reexame da matéria de direito, em decisão sumária se julgou incompetente para dele conhecer, remetendo-o a este Supremo Tribunal, com motivação rematada com as seguintes conclusões:

i. O Acórdão recorrido determina a pena única de seis meses e seis anos por cúmulo jurídico de duas penas parcelares de quatro anos e quatro anos e dez meses suspensas na sua execução por iguais períodos;

ii. Da factualidade que sustentou as duas decisões sob cúmulo resulta que a arguida abriu uma conta solidária com o ofendido, e no período que medeia entre 16 de Dezembro de 2015 e 22 de Novembro de 2016, mediante o mesmo e único cartão visa Electron movimentou de diversas formas e alegadamente em seu benefício a quantia total de € 33.494,04;

iii. Tendo sido a arguida julgada e condenada por dois crimes de abuso de confiança, p.p. pelos artigos 205.º, n.º 1 e n.º 4 alínea a), por referência à alínea a) do artigo 202.º ambos do Código Penal;

iv. Nas condutas supra referidas existe uma perfeita identidade entre os bens jurídicos patrimoniais protegidos, o modus operandi e a vítima em ambos os processos, pois todos os montantes pertenciam a uma única conta bancária, movimentada através do mesmo cartão de débito e da qual era também co-titular um único ofendido;

v. Verifica-se à saciedade uma homogeneidade da conduta da arguida, que se pode subsumir no conceito de crime continuado, pelo que os factos praticados pela arguida não configuram duas actuações criminosas diferentes em concurso;

vi. Existiu assim uma dupla valoração dos mesmos factos, pois todo o circunstancialismo e os seus prossupostos são coincidentes nos dois crimes em concurso;

vii. Ao continuar a valorar duplamente os mesmos factos violou o tribunal a quo o princípio non bis in idem, previsto no n.º 5 do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa, que refere que “Ninguém pode ser julgado mais do que do que uma vez pela prática do mesmo crime”.

viii. Para além disso o Acórdão recorrido não valorou devidamente em conjunto os factos e a personalidade da arguida, que por duas vezes beneficiou de um juízo de prognose favorável à suspensão das penas decretadas, ficando agora arredada desse benefício, com uma pena única de seis meses e seis anos, que não permite suspensão.

ix. Foram assim violadas as regras da punição do concurso, ínsitas no nº. 1 do artigo 77.º ex vi artigo 78.º do Código Penal.

Pois,

x. Em face do circunstancialismo descrito estamos perante um crime continuado, pois existe uma realização plúrima do mesmo tipo de crime que fundamentalmente protege o mesmo bem jurídico, executado por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior, o que diminui consideravelmente a culpa da arguida, nos termos do nº. 2 do artigo 30.º do Código Penal;

xi. Pelo que a decisão ora recorrida deveria ter interpretado e aplicado as normas supra indicadas no sentido de manter o benefício da possibilidade de suspensão da pena de prisão efectiva, não determinando uma pena única acima do limite dos cinco anos;

xii. Note-se que se a arguida tivesse sido julgada por um único crime continuado, como deveria ter sido, o limite máximo da pena teria sido de 5 anos, nos termos da alínea a) do n.º 4 do artigo 205.º do Código Penal;

xiii. Andou por isso mal o Tribunal Colectivo ao manter implícita na sua douta decisão a dupla valoração negativa, que já acontecera com as sentenças sob cúmulo e ao não valorizar como deveria, os factos e a personalidade do agente, nos termos atrás referidos;

xiv. Violando assim grosseiramente as regras da punição do concurso, do n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal e o princípio non bis in idem, previsto no artigo 25.º da Constituição da República Portuguesa;

xv. Deve por isso o douto Acórdão ser substituído por outro que não determine uma pena única superior a cinco anos de prisão suspensa na sua execução, sob o mesmo condicionalismo das penas a unificar.

TERMOS EM QUE, E NOS MAIS DE DIREITO POR V/ EX.AS DOUTAMENTE SUPRIDOS:

Deve o presente recurso ser admitido e o acórdão recorrido ser revogado e, em consequência, reformulado concluindo-se pela violação dos artigos 77.º, n.º 1, do Código Penal e artigo 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, devendo em consequência ser substituído aquele por outro que determine uma pena única não superior a cinco anos de prisão suspensa por igual período”.

O M.º P.º junto do tribunal recorrido respondeu no sentido do não provimento do recurso e da manutenção do julgado, assim concluindo:

1. Os factos pelos quais a arguida foi condenada nos processos n.ºs 240/16.0... e 464/17.3... não são os mesmos, pelo que não ocorre qualquer violação do principio “ne bis in idem”.

2. Tendo a arguida cerca de 5 meses depois da sua constituição e interrogatório no Proc. n.º 240/16.0... praticado factos de idêntica natureza que foram investigados e julgados no Proc. n.º 464/17.3....

3. Esses actos processuais possuem a virtualidade de fazer cessar definitivamente o processo factual ocorrido preteritamente, entre Dezembro de 2015 e Janeiro de 2016, correspondendo a actividade posterior desenvolvida entre Outubro e Novembro de 2016, a facto penalmente desvalioso semelhante, sustentado por um impulso subjectivo distinto, por um processo decisório igualmente diverso e por um dolo autónomo, correspondendo, por isso, a uma resolução criminosa distinta.

4. Ocorreram duas resoluções criminosas, tendo a conduta da arguida AA preenchido duas vezes o mesmo tipo de crime, o que, de harmonia com o preceituado no artigo 30.º n.º 1, do Código Penal, conduz à dualidade de crimes.

5. Não estão preenchidos todos os pressupostos exigidos pelo art.º 30º, nº 2, do Cód. Penal, pelo que a arguida não pode ser punida nos termos determinados no art.º 79º, do Cód. Penal. Com efeito,

6. Decorre da matéria de facto provada que a arguida, aproveitou a circunstância do lesado BB, que tinha na altura quase 90 anos de idade, que não sabia ler nem escrever, que se encontrava acolhido no Lar por ela explorado, lhe ter revelado que suspeitava que algum ou alguns dos seus filhos queriam ficar com o dinheiro que tinha numa conta bancária, para formular o propósito de se apoderar do dinheiro ali existente e, em execução desse desiderato, enquanto permitia contactos íntimos ao arguido, abriu uma conta bancária solidária com o ofendido, para a qual foi transferido o dinheiro deste, do qual a arguida se apropriou.

7. Trata-se, pois, de uma situação que foi criada pela arguida, que lhe permitiu ter acesso ao dinheiro do ofendido, não sendo, portanto, uma circunstância, externa à arguida.

8. Nem o modo de execução, nem as características específicas da vítima conduzem a uma diminuição considerável da culpa da arguida.

9. Pelo contrário, tais características e o aproveitamento que a arguida delas realizou para conseguir que o ofendido procedesse à abertura da conta solidária e à transferência do seu dinheiro para a mesma, apontam no sentido do agravamento sensível da culpa da arguida

10. Na medida em que esta, enquanto dizia de modo enganador ao ofendido que o queria ajudar estava, efectivamente, a criar as condições que lhe permitiram apropriar-se do dinheiro do ofendido.

11. Considerando os elementos descritos na fundamentação do Acórdão e ainda:

12. O valor elevado -num caso- e consideravelmente elevado – no outro caso- face ao disposto no art.º 202º, als. a) e b), do Cód. Penal- das quantias de que a arguida se apropriou em prejuízo do ofendido;

13. A forte necessidade de prevenção geral deste tipo de condutas, face às características da vítima, gravemente atentatórias de direitos fundamentais e que geram forte repulsa na comunidade em geral.

14. Bem como a conduta anterior e posterior aos factos e as necessidades de prevenção especial: a arguida assumiu em audiência de julgamento uma atitude desresponsabilizadora, não evidenciando reprovação pelos seus actos; não adoptou uma conduta colaborante ou de disponibilidade para com a DGRSP, apesar dos reiterados contactos e insistências; não revela uma postura de responsabilidade, sentido crítico ou de autoria dos factos pelos quais foi condenada, desvalorizando as circunstâncias e as consequências dos seus actos; não demonstra sensibilidade perante os danos causados a terceiro; não reconhece qualquer ilicitude, nem dano, nas suas condutas, atitude que poderá constituir significativo factor de risco.

5. A arguida revela, antes, que não consegue estar afastada da criminalidade, contribuindo para o crescimento da insegurança dos cidadãos.

16. São, pois, no caso da arguida, prementes as exigências de prevenção quer de prevenção geral quer especial.

17. Tudo ponderado, afigura-se ajustada, adequada e proporcional a condenação da arguida numa pena única próxima do meio da moldura penal aplicável, da ordem de grandeza da aplicada pelo Tribunal Colectivo.

18. O único factor que a beneficia, é constituído pela junção aos autos de documento comprovativo do pagamento -em momento posterior à prolação do Acórdão proferido nos presentes autos- da quantia fixada no Proc. n.º 240/16.0... como condição da suspensão da execução da pena.

19. Trata-se de um passo dado pela arguida no sentido da conformação da sua conduta ao direito, dado como última tentativa de evitar a concretização da sua reclusão no E.P., mas que, no conjunto constituído pelo seu passado criminal, pelos factos que deram origem às penas aqui em cúmulo, pela sua atitude perante os factos, as vítimas e as decisões judiciais, não se reveste de força suficiente para fundar a aplicação à arguida de uma pena única que não ultrapasse os cinco anos de prisão, como a arguida pretende.

20. Não podendo ser a sua execução suspensa por impossibilidade legal, nos termos da parte final do nº 1, do art.º 50º, do Cód. Penal”.

Neste Tribunal a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer para aderir a essa resposta.

Cumprido o n.º 2 do art.º 417.º do CPP, a recorrente reiterou o pedido de redução da pena para 5 anos de prisão e sua suspensão por igual período.

*

II. Fundamentação

1. O quadro factual relevante para a decisão foi o seguinte:

A. No âmbito do Processo n.º 240/16.0..., que correu termos no Juízo Local Criminal de ... Juiz 1, por sentença proferida em 19 de Novembro de 2018 e transitada em julgado em 4 de Fevereiro de 2019, a Arguida foi condenada na pena de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sob condição de pagamento ao Assistente da quantia de € 10 470,56 (dez mil quatrocentos e setenta euros e cinquenta e seis cêntimos), no prazo de um ano a contar da data do trânsito em julgado, pela prática de um crime de abuso de confiança.

B. Na sentença proferida nesse processo, foi dada por provada a seguintes factualidade, com relevância para a causa:

1 O assistente BB nasceu a 00 dede 1928.

2 Não sabe ler nem escrever e sofre de problemas de que o impossibilitam de acompanhar uma conversa em volume normal.

3 No mês de Março de 2015, o assistente passou a residir, em regime de permanência, no lar para idosos, explorado pela arguida AA sito na Avenida ...n.º 000, ..., em ….

4 Em data não concretamente apurada, a arguida passou a relacionar-se com o assistente de forma íntima.

5 Em data não concretamente apurada, mas seguramente durante o mês de Novembro de 2015, o assistente confidenciou à arguida que algum dos seus familiares directos, nomeadamente algum ou alguns dos seus filhos, queria ficar com o dinheiro que o assistente tinha depositado no banco Millennium BCP, o que era contrário à vontade deste.

6 Perante tal revelação, a arguida tranquilizou o assistente de forma não concretamente apurada.

7 Nessa sequência, a arguida combinou com o assistente abrir consigo uma conta solidária no banco BPI, no balcão da Avenida ..., em …, e a solicitar a emissão de um cartão de débito titulado pela arguida, associado àquela conta bancária.

8 Na posse do cartão de cidadão do assistente, a arguida tratou de toda a documentação necessária à abertura da conta e à emissão do cartão de débito VISA Electron n.º 0000.

9 Tendo para o efeito levado o assistente à Conservatória do Registo Predial/Comercial/Automóvel de …, para que a respectiva assinatura (impressão digital) nos documentos fornecidos pelo banco BPI fosse reconhecida a rogo, mediante a intervenção de CC.

10 Uma vez aberta a conta bancária solidária n.º 0000, no banco BPI, balcão da Avenida ..., em …, no dia 11 de Dezembro de 2015, tendo como co-titulares o assistente e a arguida, o assistente deu ordem de transferência da totalidade do saldo da conta bancária por si exclusivamente titulada no banco Millennium BCP, balcão da Avenida ... (...), em …, no montante de 33.087,52 (trinta e três mil, oitenta e sete euros e cinquenta e dois cêntimos), para a nova conta do BPI.

11 Tal montante foi creditado na conta do BPI no dia 14 de Dezembro de 2015.

12 No dia 16 de Dezembro de 2015, a arguida assinou uma ordem de transferência do montante de 5.087,52 (cinco mil e oitenta e sete euros e cinquenta e dois cêntimos) da referida conta titulada por si e pelo assistente para a conta bancária n.º 0000, esta titulada por si e por DD, sediada também no banco BPI.

13 Desde o dia 21 de Janeiro de 2016 até ao dia 18 de Março de 2016, mediante a utilização do cartão de débito supra referido, associado à conta bancária mencionada no ponto 10, a arguida efectuou em seu benefício diversas compras, pagamento e levantamentos.

14 Mediante a conduta referida nos pontos 12 e 13, a arguida apropriou-se do valor global de 10.470,56 (dez mil quatrocentos e setenta euros e cinquenta e seis cêntimos), bem sabendo que o mencionado dinheiro não lhe pertencia, por pertencer na totalidade ao assistente, que jamais transferiu a propriedade do mesmo para a arguida, e que constava como titular da conta bancária referida em 10 como forma de ajudar o assistente a que os seus familiares não lhe retirassem o dinheiro.

15 Bem sabia a arguida que ao agir da forma supra descrita, o fazia sem o consentimento e contra a vontade do assistente, querendo e conseguindo desse modo apoderar-se do valor de 10.470,56 (dez mil quatrocentos e setenta euros e cinquenta e seis cêntimos), que integrou no seu património, dispondo dessa quantia como bem entendeu.

16 Bem sabia a arguida que tal quantia não lhe pertencia e que ao agir desse modo causava prejuízo ao assistente.

17 A arguida procedeu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

C. No âmbito do Processo n.º 464/17.3..., que correu termos no Juízo Local Criminal de ..., Juiz 1, por sentença proferida em 22 de Fevereiro de 2019 e transitada em julgado em 8 de Abril de 2019, foi a Arguida condenada na pena de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sob a condição de pagar ao ofendido BB a quantia de € 23 023,48 (vinte e três mil, vinte e três euros e quarenta e oito cêntimos), no prazo de um ano a contar da data do trânsito em julgado da presente sentença, pela prática de um crime de abuso de confiança.

D. Na sentença referida em C foi dada por provada a seguinte factualidade, com relevância para a apreciação da causa:

1 O ofendido BB nasceu a 00 dede 1928.

2 BB não sabe ler nem escrever e padece de problemas de que o impossibilitam de acompanhar qualquer conversa em volume normal.

3 No mês de Março de 2015 o ofendido passou a residir, em regime de permanência, no lar para idosos sito na Avenida ...n.º 000, ..., em …, explorado pela arguida à data dos factos que infra se descrevem.

4 Em data não concretamente apurada, a arguida, aproveitando-se da avançada idade do ofendido e porque este lhe confidenciasse, em Novembro de 2015, que um ou alguns dos seus filhos queriam ficar com o dinheiro que ele tinha depositado no Banco Millennium BCP, o que era contrário à sua vontade, formulou o propósito de se apoderar de todo o dinheiro que o ofendido ali tivesse em conta.

5 Na execução desse desiderato, a arguida, por forma a ganhar a confiança do ofendido, passou a relacionar-se com o mesmo de forma íntima.

6 Ao mesmo tempo que ia permitindo tais contactos íntimos, a arguida ia dizendo ao ofendido que iria resolver o assunto relativo aos receios do ofendido de que um ou alguns dos seus filhos queriam apoderar-se do seu dinheiro.

7 Convencido, pela arguida, de que a mesma apenas o pretendia ajudar, BB acordou com AA abrirem uma conta bancária solidária, no Banco BPI, no balcão da Avenida ..., em ….

8 Na posse do cartão de cidadão do ofendido, a arguida AA tratou de toda a documentação necessária à abertura de conta e providenciou pela emissão do cartão de débito VISA Electron n.º 0000.

9 – Para tal, a arguida acompanhou o ofendido à Conservatória do Registo Predial/Comercial/Automóvel de …, para que a assinatura de BB (impressão 5 digital) nos documentos fornecidos pelo Banco BPI fosse reconhecida a rogo, mediante a intervenção de CC, conhecido da arguida.

10 Uma vez aberta a conta solidária n.º 0000, no dia 11 de Dezembro de 2015, no Banco BPI, Avenida ..., em …, tendo como co-titulares o ofendido e a arguida, o ofendido deu ordem de transferência da totalidade do saldo da conta bancária por apenas titulada no Banco Millennium BCP, balcão da Avenida ..., ..., em …, no montante de 33.087,52 (trinta e três mil e oitenta e sete euros e cinquenta e dois cêntimos) para essa nova conta do BPI, aberta com a arguida.

11 Tal montante foi creditado na conta do BPI referida em 10- no dia 14 de Dezembro de 2015.

12 A arguida, não obstante saber que BB havia, contra ela, apresentado queixa-crime que deu origem ao inquérito com o NUIPC 240/16.0..., por a mesma se ter apoderado, sem o seu consentimento, da quantia monetária de 10.470,56 (dez mil quatrocentos e setenta euros e cinquenta e seis cêntimos) da conta bancária referida em 10, no período compreendido entre o dia 21 de Janeiro de 2016 até ao dia 18 de Março de 2016, e ter sido constituída como arguida nesse processo, ter conhecimento de que a sua conduta era contrária à vontade de BB, voltou, mediante a utilização do cartão VISA Electron n.º 0000 associado à conta bancária por ambos titulada, a movimentar, em seu benefício, o valor monetário que ali restava, propriedade do ofendido.

13 Assim é que, no período compreendido entre 4 de Outubro de 2016 e 22 de Novembro de 2016, mediante a utilização do referido cartão VISA Electron, a arguida, nos dias 26, 27, 28 e 31 de Outubro 2016, transferiu, em cada um desses dias, a quantia de 5.000,00 (cinco mil euros), no total de 20.000,00 (vinte mil euros) para Credifin Banco de Crédito.

14 Em Novembro de 2016 a arguida, munida do referido cartão, ainda efectuou, em seu benefício, vários levantamentos ATM, compras e pagamentos.

15 Com a conduta referida em 13 e 14, a arguida AA apoderou-se do valor monetário global de 23.023,48 (vinte e três mil e vinte e três euros e quarenta e oito cêntimos), o qual integrou no seu património e fez coisa sua, dispondo dessa quantia como bem entendeu, nunca mais a tendo devolvido ao ofendido, bem sabendo que tal dinheiro não lhe pertencia, por pertencer na totalidade ao ofendido.

16 Mais sabia a arguida que jamais o ofendido lhe havia transferido a propriedade daquele dinheiro que o ofendido apenas transferiu tal dinheiro para aquela conta em virtude da confiança derivada da intimidade que desenvolveu com a arguida e para acautelar uma eventual apropriação desse dinheiro por algum dos seus filhos.

17 Por ter sido constituída arguida no dia 27 de maio de 2016 no âmbito do processo de inquérito n.º 240/16.0..., nunca a arguida poderia, pelo menos a partir dessa data, deixar de saber que o ofendido não lhe tinha, de alguma forma, autorizado tais transferências, pagamentos e levantamentos em seu benefício, sabendo, por isso, que os levantamentos e pagamentos que realizou nas datas descritas 13 e 14, eram efectuados sem o consentimento e contra a vontade do seu único e legitimo proprietário, o ofendido BB.

18 A arguida agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, com o propósito concretizado de fazer sua a supra referida quantia monetária de 23.023,48 (vinte e três mil vinte e três euros e quarenta e oito cêntimos), sabendo que a mesma não lhe pertencia e que ao agir desse modo causava prejuízo patrimonial ao ofendido.

19 Agiu sempre sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei penal.

Mais se provou quanto às condições económicas e pessoais da Arguida:

E. A Arguida é … de lar e encontra-se em situação de desemprego.

F. Não recebe qualquer subsídio e não é titular de quaisquer bens

G. Vive em casa dos filhos, sendo o agregado familiar composto pelos dois filhos, pela nora, também desempregada, e dois netos menores, de … meses e … mês de idade.

H. Os filhos da Arguida trabalham e auferem, mensalmente, entre € 600,00 a € 650,00.

I. A Arguida não concluiu o 0.º ano de escolaridade.

J. A Arguida cresceu na casa da irmã mais velha, mas visitava, frequentemente, a progenitora.

K. O pai era casado com outra mulher e tinha filhos dessa relação, razão pela qual nunca esteve presente na vida da Arguida.

L. Apesar das condenações de que foi alvo, a Arguida não apresenta qualquer juízo crítico e de autocensura perante o ofendido/assistente, nos processos em cotejo nestes autos.

M. A Arguida assume ter sido responsável pela casa de acolhimento onde o ofendido/assistente se encontrava institucionalizado, mas refuta ter retirado dessa relação qualquer benefício pessoal ou económico.

N. A Arguida não dispõe de meios financeiros para pagar as indemnizações em que foi condenada.

O. No âmbito do processo n.º 355/13.7 …, em que havia sido condenada em pena de multa, requereu a substituição de pena de multa pela prestação de 40 horas de trabalho a favor da comunidade, no ..., em serviços de …, que nunca cumpriu, apresentando sucessivos certificados de incapacidade para o trabalho.

P. A Arguida não adoptou uma conduta colaborante ou de disponibilidade para com a DGRSP, apesar dos reiterados contactos e insistências.

Q. A Arguida não revela uma postura de responsabilidade, sentido crítico ou de autoria dos factos pelos quais foi condenada, desvalorizando as circunstâncias e as consequências dos seus actos.

R. A Arguida não demonstra sensibilidade perante os danos causados a terceiro.

S. Os processos em que foi condenada não parecem ter surtido impacto na sua vida, não reconhecendo qualquer ilicitude, nem dano, nas suas condutas, atitude que poderá constituir significativo factor de risco.

T. A Arguida conta com os seguintes antecedentes criminais:

Foi condenada por sentença proferida em 09.05.2000, transitada em julgado, no âmbito do processo comum singular n.º 397/00, da 1.ª Secção, do 4.º Juízo do Tribunal Criminal de … (extinto) pela prática, em 30.03.1998, de um crime de emissão de cheque sem provisão, na pena de cento e cinquenta dias de multa, no quantitativo diário de 3,00 € (três euros), extinta pelo cumprimento;

Foi condenada por sentença proferida em 11.07.2002, transitada em julgado em 18.10.2002, no âmbito do processo comum singular n.º 6041/98.1…, da 3.ª Secção do 4.º Juízo do Tribunal Criminal de … (extinto) pela prática, em 17.11.1998, de um crime de emissão de cheque sem provisão, na pena de sessenta dias de multa, no quantitativo diário de 3,00 € (três euros), extinta pelo cumprimento;

Foi condenada por sentença proferida em 07.03.2003, transitada em julgado em 24.03.2003, no âmbito do processo comum singular n.º 4/00.3… do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de … (extinto) pela prática, em 10.04.2000, de um crime de exploração ilícita de jogo, na pena de cem dias de prisão substituídos por cem dias de multa, e na pena de cinquenta dias de multa, ambas no quantitativo diário de 4,00 € (quatro euros), extintas pelo cumprimento;

Foi condenada por sentença proferida em 21.12.2006, transitada em julgado em 27.03.2007, no âmbito do processo comum singular n.º 1099/02.0…, do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de ... (extinto) pela prática, em 29.10.2002, de um crime de furto simples, de um crime de falsificação de documento e de um crime de burla simples, na pena única de dez meses de prisão suspensa na sua execução por dezoito meses e subordinada ao dever de entregar a cada um dos lesados a quantia de 50,00 € (cinquenta euros) no prazo de seis meses a contar da data do trânsito em julgado da sentença, extinta pelo cumprimento;

Foi condenada por sentença proferida em 07.11.2013, transitada em julgado em 07.11.2013, no âmbito do processo especial sumaríssimo n.º 355/13.7…, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de ... (extinto) pela prática, em 30.01.2012, de um crime de exploração ilícita de jogo, na pena de dois meses de prisão substituídos por quarenta dias de multa no quantitativo diário de 5,00 € (cinco euros), extinta pelo cumprimento;

U. Não há notícia que a Arguida haja incorrido em nova prática criminal após os factos cometidos e descritos em C”.

Está ainda provado que a arguida, em 31.01.2020, comprovou o pagamento da quantia de 10.470,56 € aos herdeiros do ofendido, entretanto falecido em 25.06.2019, conforme declaração/recibo de fls. 134, assim satisfazendo a condição da suspensão da execução da pena de prisão imposta no Proc. 240/16.0... e em 12.03.2020 juntou declaração/recibo dos mesmos herdeiros (fls. 174, em como “já se encontram ressarcidos da quantia de 23.023, 48 € referente ao pagamento que AA (…) foi condenada a pagar ao então assistente BB, no Proc. 464/17.3…, como condição para a suspensão da execução da pena em que também aí foi condenada”.

*

2. As conclusões da motivação limitam o âmbito do recurso à apreciação das seguintes questões:

a) – Continuação criminosa;

b) – Medida da pena;

c) – Aplicação da pena de substituição de suspensão de execução da pena de prisão.

2.1. Quanto à 1.ª, para defesa do crime continuado de abuso de confiança, a recorrente sustenta haver homogeneidade nas condutas da arguida a partir da identidade dos bens jurídicos protegidos, do modus operandi, ou modalidade da acção e da própria vítima e das respectivas circunstâncias de todos os montantes apropriados pertencerem à mesma conta bancária, movimentada através do mesmo cartão de débito de que era co-titular um único ofendido, pelo que as condenações por dois crimes autónomos valoraram duplamente os mesmos factos, assim se violando o princípio do ne bis in idem.

A questão da continuidade criminosa não foi suscitada nas instâncias fosse na 2.ª condenação, fosse no acórdão cumulatório recorrido, se bem que em sede de culpabilidade (maior consciência da ilicitude a partir da constituição como arguida no 1.º processo) fosse ressaltada a maior gravidade da 2.ª conduta, a par do maior valor apropriado, sobre o que se formou caso julgado.

Ainda assim se dirá que, destinando-se os recursos à reapreciação de uma decisão anterior e não à apreciação de questões novas (de que não deva conhecer-se), ainda assim, porque em causa vem invocada a violação do princípio constitucional do ne bis in idem, dir-se-á que a conduta da arguida sempre estaria longe de configurar uma situação de continuação criminosa.

De acordo com o disposto no n.º 2 do art.º 30.º do CP são elementos do crime continuado, (i) a realização plúrima de condutas violadoras do mesmo bem jurídico, (ii) a execução essencialmente homogénea de tais condutas e (iii) a existência de uma solicitação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.

A homogeneidade das diversas formas de comissão é dada por uma unidade de contexto situacional que, por sua vez, pode ser indiciada pela proximidade de espaço e tempo das diversas condutas (Figueiredo Dias, Direito Penal, I, 2.ª ed., pág. 1030).

Por outro lado, no dizer de Eduardo Correia (Direito Criminal, II, 1971, pág. 209), “pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito”.

Nos casos de crime continuado existe um só crime porque, verificando-se embora a violação repetida do mesmo tipo legal ou a violação plúrima de vários tipos legais de crime, a culpa está tão acentuada que só é possível formular um só e não vários juízos de censura, sendo que a diminuição da culpa deve radicar em solicitações de uma mesma situação exterior que arrastem o agente para o crime, que não em razões de carácter endógeno (Maia Gonçalves, Cód. Penal Port., 2007, pág. 155).

No dizer ainda de Paulo Pinto de Albuquerque (Coment. Código Penal, 3.ª ed., p. 224), “[t]ambém afasta a culpa diminuta a circunstância de o agente ter sido advertido por algum órgão do Estado ou particular durante a repetição dos factos, uma vez que ele não se deixou motivar pelos valores da ordem jurídica apesar de eles lhe terem sido lembrados”.

No caso em apreço, a resolução criminosa da arguida a partir do momento em que como tal foi constituída pela 1.ª apropriação da quantia de 10.470,56 €, essa forçosa tomada de consciência da ilicitude e censurabilidade de conduta, afastou qualquer unificação relativamente à resolução da apropriação posterior da quantia de 23.023,48 €, escassos 5 meses decorridos da 1.ª, ou seja, a 2.ª apropriação, objecto de condenação no Proc. n.º 464/17.3/9… foi resultante de uma nova e autónoma resolução criminosa, previamente assumida.

Qualquer “amolecimento” da culpa que pudesse existir na consciência da arguida, terminara com a sua constituição como arguida pelos 1.ºs factos que a indiciavam como autora do crime de abuso de confiança.

Não há, pois, nem continuação criminosa, nem violação do invocado princípio do ne bis in idem, uma vez que os factos que fundamentaram uma e outra condenação são diversos, desde logo em razão dos valores ilegitimamente apropriados e das circunstâncias temporais de um e outro momento apropriativo.

*

            2.2. Confrontados no concurso com duas penas singulares, uma de 4 anos e outra de 4 anos e 10 meses, de prisão, ambas resultantes da prática de factos subsumidos ao mesmo tipo legal de crime de abuso de confiança do art.º 205.º, n.ºs 1 e 4, alín. a), com referência ao art.º 202.º, alín. a), do CP, que em abstracto comina uma pena de prisão até 5 anos ou multa até 600 dias, importa assinalar a incorrecta incriminação nesse preceito da factualidade correspondente à 2.ª condenação (Proc. n.º 464/17.3/9...).

Dado o valor de 23.023,48 € da quantia apropriada, consideravelmente elevada por força do disposto no art.º 202.º, alín. b), do CP e art.º 22.º do DL n.º 34/08, de 26.02, que assim o considera a partir do valor de 20.400,00 € (200 UCx102,00 €), a qualificação jurídico-penal seria antes a da alín. b) do n.º 4 do art.º 205.º do CP, que pune tal conduta com a pena de 1 mês a 8 anos de prisão.

Seja como for, porque mais gravoso para a arguida (única recorrente), em obediência ao princípio da proibição da reformatio in pejus (art.º 409.º, n.º 1, do CPP), não há que modificar, para mais, a medida da pena imposta nesse processo.

Porque a recorrente não recorreu, tão-pouco subsidiariamente, das medidas das penas singulares de 4 e 4 anos e 10 meses de prisão, determinadas numa moldura abstracta de 1 mês a 5 anos de prisão, atentos os valores das quantias subtraídas e as circunstâncias concretas que tal possibilitou, há que convir num certo empolamento.

Todavia, à falta de recurso, há que as acatar e sopesá-las, agora, na determinação da pena única do concurso, a partir do conjunto dos factos e da personalidade da arguida.

Com efeito, pressuposto da formação da pena única é, pois, que os crimes hajam sido praticados antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles (art.º 77.º, n.º 1, do CP).

De acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 78.º do CP, que prevê o conhecimento superveniente do concurso, o regime da pena do concurso é ainda aplicável nos casos em que o concurso só venha a ser conhecido supervenientemente, isto é, que o crime de que só agora houve conhecimento haja sido praticado antes da condenação anteriormente proferida, de tal forma que esta deveria tê-lo tomado em conta no respectivo cúmulo jurídico se dele tivesse tido conhecimento.

O momento temporal decisivo a ter em conta para se determinar se o crime posteriormente conhecido foi ou não anterior à condenação é o momento do trânsito em julgado desta, ou seja, da 1.ª condenação por qualquer dos crimes em concurso, como nesse sentido se fixou a jurisprudência do STJ (AFJ n.º 9/2016, de 28.04.2016, DR, 1.ª, de 09.06.2016).

À luz daqueles preceitos legais, para lá do binómio culpa-prevenção, contido no art.º 71.º do CP, a pena única do concurso, formada no sistema da pena conjunta a partir das diversas penas parcelares impostas, deve ser fixada tendo em conta, no seu conjunto, os factos e a personalidade do arguido.

Na consideração dos factos, rectius, do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso, está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global (o conjunto dos factos indica a gravidade do ilícito global), que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexões entre os factos e os crimes concorrentes.

Importará, assim, atender à relação dos diversos factos entre si e em especial ao seu contexto; à maior ou menor autonomia e à frequência da comissão dos ilícitos; à diversidade ou igualdade dos bens jurídicos protegidos e forma de execução dos factos, às suas consequências; ao peso conjunto das circunstâncias de facto submetidas ao julgamento.

Na consideração da personalidade deve atender-se ao modo como ela se projecta nos factos ou é por eles revelada, com vista a aferir se os factos traduzem uma tendência criminosa ou se não vão além de uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade.

Só no primeiro caso, que não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta[1].

É a esse conjunto valorativo que corresponde uma nova culpa, agora imputada aos factos em relação entre si e em conjunto com a personalidade unitariamente apreciada[2].

Descuradas não podem ser as exigências de prevenção geral e especial ou de socialização, nesta sede havendo a considerar os efeitos previsíveis da pena única no comportamento futuro do arguido.

A avaliação conjunta dos factos e da personalidade convoca também critérios de proporcionalidade e proibição do excesso na fixação da pena única dentro da moldura do concurso.

No caso em apreço é patente a conexão material entre os factos subjacentes a ambas as condenações.

E também uma certa conexão temporal entre os ilícitos em concurso, distanciados por cerca de 7 meses.

É certo que a arguida já antes sofrera outras condenações: há mais de 20 anos, em penas de multa, pela prática de 2 crimes de emissão de cheque sem provisão e exploração ilícita de jogo e há cerca de 18 anos por furto, falsificação de documento e burla, em pena de prisão suspensa na sua execução e há cerca de 8 anos por exploração ilícita de jogo.

Embora tal permita denotar uma certa propensão para crimes patrimoniais, a sua conduta é ainda de pluriocasionalidade.

E, assim, numa moldura abstracta de pena do concurso de 4 anos e 10 meses e 8 anos e 10 meses, de prisão, atendendo à gravidade do ilícito global a partir daquelas conexões entre todos os factos, bem como da personalidade unitária da arguida, temos como adequada e suficiente, seja à culpa, seja às necessidades de prevenção, a pena única de 5 anos de prisão.

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2.3. Face à pena de prisão assim fixada e ao disposto no n.º 1 do art.º 50.º do CP coloca-se a questão da aplicação da pena de substituição de suspensão de execução da pena de prisão.

Importa desde já sublinhar que a juíza do julgamento (subscritora de ambas as condenações) e que teve a imediação e oralidade da matéria de facto provada, não teve dúvidas em concluir, na 2.º sentença, que “é ainda possível ao Tribunal formular um juízo de prognose favorável, havendo necessariamente que concluir que o cumprimento efectivo e imediato da pena de prisão supra determinada não se mostra como adequada ultima ratio em vista a alcançar a recuperação da arguida para o Direito” e, assim, suspender a execução da pena de prisão, ainda que subordinadamente ao dever de pagamento de indemnização devida ao lesado.

Perante o pressuposto formal da medida da pena, não excedente a 5 anos de prisão (n.º 1 do art.º 50.º) e cumpridas que foram, entretanto, nos prazos concedidos em ambas as decisões, as condições de que dependia a suspensão de execução das penas de prisão, com o pagamento das quantias fixadas e correspondentes aos valores apropriados (10.470,56 € e 23.013,48 €) aos herdeiros do ofendido, entretanto falecido, não há razões para dissentir daquele juízo repetidamente formulado, embora se julgue conveniente e adequado à ressocialização da arguida que a suspensão da pena de prisão, a fixar pelo mesmo período de 5 anos, deva ser acompanhado de regime de prova, assente num plano a definir pela Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), além do mais orientado para um plano de vida futura assente em prestação de trabalho digno e remunerado por parte da arguida.

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III. Decisão

Face ao exposto, acordam em julgar procedente o recurso e, assim, condenar a arguida AA na pena única de 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, subordinada a regime de prova a definir pela DGRSP nos termos assinalados.

Sem custas.

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Supremo Tribunal de Justiça, 15 de Outubro de 2020

Francisco Caetano (Relator)

Clemente Lima

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[1] V., sobre toda esta problemática, Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, 4.ª reimp., p. 291.
[2] Entre outros, Ac. STJ de 29.05.2013, Proc. 3/10.7SFPRT.S1-3.ª.