Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3071/16.4T8STS-F.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: QUALIFICAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
PRESUNÇÃO DE CULPA
NEXO DE CAUSALIDADE
ADMINISTRADOR
Data do Acordão: 04/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - O incumprimento da obrigação de manter contabilidade organizada - que, por substancial, pressupõe a omissão de elementos relevantes e essenciais em termos contabilísticos - há-de influir nessa percepção, impedindo-a, impossibilitando ou prejudicando o conhecimento das causas da insolvência ou do agravamento destas.
II - A omissão na elaboração das contas anuais e ao seu depósito na respectiva Conservatória, não constitui, a se, uma presunção inilidível de comportamento culposo e causal da situação insolvencial, sendo mister apurar-se o nexo causal entre tais omissões e a criação e/ou o agravamento do estado de insolvência, situação esta que tem de ser devidamente alegada e provada: o n.º 3 do art. 186.º apenas presume a culpa do administrador naquela omissão, mas já não em relação ao nexo causal entre o seu comportamento e o estado de insolvência ocorrido ou o seu maior comprometimento.
Decisão Texto Integral:


PROC 3071/16.4T8STS-F.P1.S1

6ª SECÇÃO

ACORDAM, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I O Administrador da insolvência de LABORATÓRIO DE ANÁLISES CLÍNICAS MCT, LDA, requereu o incidente de qualificação, propondo-a como culposa, com fundamento nas alíneas f), g), h) e i) do nº 2 e da alínea b) do nº 3 do artigo 186.º do CIRE, com a afectação do ... AA.

O Ministério Público acompanhou tal requerimento.

Os Requeridos deduziram oposição, admitindo atraso na entrega de contabilidade e dizendo que em Dezembro de 2016 a devedora depositou contas de 2015 e que irá apresentar contas de 2016. Mais impugnam que o imobilizado da devedora fosse o alegado pelo Administrador de Insolvência, antes consubstanciava aparelhos antigos e obsoletos que foram reciclados pela Câmara Municipal ... aquando da entrega do locado onde laboravam. Os restantes equipamentos pertenciam a fornecedores a quem a devedora adquiria e consumia reagentes e que a estes foram normalmente devolvidos por serem os seus legítimos proprietários. As instalações de ... e de ... nunca pertenceram à devedora mas sim a uma terceira sociedade, e as instalações de ... eram um mero posto de colheitas de produtos biológicos, pelo que não necessitava de equipamentos e material para a realização de análises clínicas. Os problemas da devedora iniciaram-se com uma inspecção efectuada pela Entidade Reguladora da Saúde no final de 2013, cujas exigências esta não conseguiu cumprir, o que originou a que todas as análises tivessem sido transferidas para outro laboratório. A partir do início de 2015, o laboratório em causa deixou de colaborar com a devedora e a sua actividade reduziu-se de forma acentuada, mas não foi criada nova dívida. Entre o início de 2015 até à data da insolvência, o passivo dadevedora foi reduzido a expensas exclusivas do seu administrador. Mais alegam que o administrador da insolvente se encontra a pagar em nome pessoal os créditos contraídos pela devedora junto da Autoridade Tributária e Segurança Social, tendo para o efeito recorrido ao programa “PERES”. A Devedora recorreu a um processo especial de revitalização no ano de 2012, no âmbito do qual foi aprovado e judicialmente homologado, a 11.09.2013, a proposta de plano de recuperação por si apresentado, e desde 2012 foi pagando as prestações correntes à Segurança Social bem como amortizando as decorrentes do plano de recuperação aprovado e homologado até à data da declaração da insolvência. Não requereram a insolvência por estarem convictos da possibilidade de recuperação da empresa. Os veículos da devedora foram vendidos por valor correspondente ao seu valor de mercado para suprir dificuldades de tesouraria. Os outros bens foram entregues ao senhorio do imóvel como dação em pagamento e os legais representantes não retiraram para si qualquer benefício. Concluem pela qualificação da insolvência como fortuita e pela não afectação do Requerido.

O Administrador de Insolvência apresentou resposta à oposição deduzida, mantendo a qualificação da insolvência por si proposta.

Foi proferida sentença a qualificar a insolvência da devedora Laboratórios de Análises Clínicas MCT, Lda como culposa, declarando-se afectado por tal qualificação AA e decretando a sua inibição para administrar patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de 2 (dois) anos, condenado-se o mesmo a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respectivo património, pelo valor dos créditos incluídos na lista definitiva de credores.

Os Requeridos interpuseram recurso de Apelação, tendo a final sido proferido Acórdão a julga-la improcedente, com a confirmação da sentença recorrida quanto ao fundamento aludido no nº 2, alínea h) do artigo 186º do CIRE, julgando-se prejudicada a apreciação do fundamento aludido no nº 3 do mesmo normativo.

Os Requeridos recorreram de Revista, a qual veio a ser parcialmente concedida com a revogação da decisão plasmada no Acórdão recorrido quanto ao fundamento aludido no nº2, alínea h) do artigo 186º do CIRE, ordenando-se a remessa ao Tribunal da Relação ... para apreciação do fundamento abordado na sentença de primeira instância, aludido no nº3 do mesmo normativo, havido por prejudicado na decisão em crise.

O Tribunal da Relação ... veio a produzir novo Acórdão sobre a questão cujo conhecimento lhe foi solicitado, tendo julgado improcedente a Apelação e confirmado a sentença nesse particular.

De novo irresignados, recorrem os Requeridos de Revista excepcional, por oposição do Acórdão recorrido com um outro da Relação de Coimbra de 7 de Fevereiro de 2012, cuja cópia certificada fizeram juntar com as alegações, nos termos do artigo 672º, nº 1, alínea c) do CPCivil, a qual veio a ser admitida por Acórdão da Formação.

Concluiram do seguinte modo:

«A) O Douto Acórdão ora recorrido julgou improcedente a apelação proposta porquanto é seu entendimento que os Recorrentes não lograram ilidir a presunção prevista no nº 3 do artigo 186º do CIRE, concluindo que a mera existência dos factos previstos nas suas alíneas a) e b) são suficientes para qualificar a presente insolvência como culposa.

B) O Douto Acórdão refere que “Verificado algum destes factos, praticados pelo devedor, o juiz terá que decidir necessariamente no sentido da qualificação da insolvência como culposa, visto que ali está estabelecida uma presunção juris et de jure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não admitindo, por conseguinte a produção de prova em contrário.”.

C) Conforme bem refere o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07/02/2012 relativo ao processo 2273/10.1TBLRA-B.C1, pesquisável em www.dgsi.pt e transcrito no Acórdão fundamento, “a violação, pelos administradores, v.g., do dever de requerer a insolvência, apenas permite presumir a culpa grave daqueles – mas já não a imputação da situação de insolvência, ou o seu agravamento, à respectiva conduta”.

D) Assim, torna-se bem evidente que a presunção do nº 3 do artigo 186º do CIRE se limita a presumir a culpa grave mas já não a criação ou agravamento da insolvência exigidos pelo nº 1 do mesmo preceito legal, os quais têm de ser alegados e provados por quem os invoca.

E) “In casu” e como igualmente sucedeu no Douto Acórdão fundamento, “nada há na matéria de facto provada que permita, ainda que por ilação devidamente fundamentada, concluir pela verificação desse nexo de causalidade entre a apontada omissão do ora Apelante e a criação ou o agravamento da situação de insolvência da empresa.”

F) A realidade é que tão pouco o Douto Acórdão ora recorrido refere existir tal matéria factual, limitando-se a interpretar a presunção prevista no nº 3 artigo 186º do CIRE de uma forma mais lata e abrangente, nela incluindo a prova da criação ou agravamento da situação de insolvência.

G) É certo de que não se provou “in casu” o incumprimento da obrigação de apresentação à insolvência prevista na alínea a) do nº 3 do artigo 186º do CIRE, nem tão pouco que um eventual e alegado atraso tenha criado ou agravado a situação de insolvência.

H) É igualmente certo que não se provou “in casu” que o atraso no depósito das contas societárias, prevista na alínea b) do nº 3 do 186º do CIRE, tenha criado ou agravado a situação de insolvência.

I) Nesta esteira, permitem-se os Recorrentes transcrever a nota 6 do Douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.11.2020 relativa ao processo nº 1033/11.TYVNG-

A.P1, na qual é referido que “Na jurisprudência, vejam-se, por exemplo Ac. RG, de 25.2.16, Proc. 1857/14.3TBGMR-DG1): São pressupostos da insolvência culposa nos termos do nº. 1 do artº. 186º do CIRE, a actuação (acção ou omissão), com culpa (dolo ou culpa grave), do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo que conduziu à insolvência, e o nexo causal entre a actuação e a criação ou agravamento da situação de insolvência. Ac. RC, de 12.7.2017, Proc. 370/14.3TJCBR-A.C1: Por força da exigência plasmada no nº 1 do art.º 186º do CIRE, quer as situações que se encontram prevenidas nas alíneas a), b), c), d), e), f) e g) do n.º 2 desse artigo, quer as situações descritas nas alíneas do seu nº 3 – v.g., a falta de apresentação tempestiva à insolvência e a omissão das obrigações discriminadas na al. b), atinentes às contas - embora fazendo presumir a culpa (grave, nos casos que se enquadrem no aludido nº 3) dos administradores, só autorizam a qualificar a insolvência como culposa se se evidenciar a existência de nexo de causalidade entre essas faltas e o estado de insolvência. Na doutrina, Menezes Leitão, Direito da Insolvência, Coimbra, Almedina 2009, p. 269, e Rui Estrela da Oliveira, cit., 968.”

J)Sendo na nota 7 do mesmo Douto Acórdão referido, “Ac. RG, de 30.4.15, Proc. 3129/12.9TBBCL-C.G1: Apenas nas situações previstas no nº 3 do artigo 186º do CIRE, estabelecendo este normativo presunções ilidíveis, relativas ou juris tantum, que podem ser ilididas por prova em contrário, se exige a demonstração do nexo causal entre o comportamento (presumido) gravemente culposo do devedor ou dos seus administradores e o surgimento ou o agravamento da situação de insolvência, não abrangendo esta presunção ilidível a do nexo de causalidade entre tais actuações omissivas e a situação da insolvência verificada ou do seu agravamento, já não se exigindo o estabelecimento de tal nexo de causalidade adequada nas situações previstas no nº 2 do artº 186º do CIRE, em que a lei estabelece presunções inilidíveis, ou presunções absolutas ou jure et de jure, que não admitem qualquer prova em contrário, conduzindo, assim, necessariamente, os comportamentos dos administradores aí referidos à qualificação da insolvência como culposa. (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 6/10/2011, P.46/07.8TBSVC-O.L1.S1, in www.dgsi.pt );Ac. RE, de 14.3.2019, Proc. 2560/13..7TBPMT-E.E1: A presunção legal estabelecida no n.º 3 do art.º 186.º CIRE, limita-se a um juízo de culpa e não a um nexo de causalidade entre a conduta culposa e a criação ou agravamento da situação de insolvência.”.

K) Face à posição Jurisprudencial e Doutrinária supra expandida, dúvidas não poderão restar de que, o Douto Acórdão ora recorrido ao descartar a exigência do nexo de causalidade entre a conduta culposa e a criação ou agravamento da situação de insolvência conforme resulta do Douto Acórdão fundamento a qual, “in casu”, inexiste, esteve mal, motivo pelo qual deverá ser revogado e substituído por outro que declare e qualifique a presente insolvência como fortuita.».

Não foram produzidas contra alegações.

II A única questão a resolver no âmbito do presente recurso é a de saber se se verifica in casu a presunção de culpa qualificada na insolvência, nos termos do disposto no 186º, nº3, alínea a) do CIRE.

As instâncias declaram provados os seguintes factos:

1. A devedora apresentou-se à insolvência em 20 de Outubro de 2016.

2. Foi declarada insolvente por sentença proferida no dia 24 de Outubro de 2016.

3. Foram reconhecidos créditos no montante de € 422.211,21.

4. Apenas foram apreendidos bens móveis.

5. Os bens apreendidos foram liquidados pelo valor global de € 7.633,69.

6. Nos anos de 2015 e 2016 a devedora não manteve contabilidade organizada;

7. A declaração de rectificação referente às contas de 2015 foi submetida em 13.01.2017.

8. As declarações anuais relativas à Informação Empresarial Simplificada (IES) para os rendimentos de 2013 e 2014 foram submetidas em Março e Maio de 2016, respectivamente.

9. A IES de 2016 foi submetida a 22.07.2017.

10. A devedora e o seu administrador não facultaram acesso do Administrador de Insolvência à contabilidade dos anos de 2015 e 2016.

11. Aquando da apresentação à insolvência a última prestação de contas registada era referente ao exercício do ano de 2014 e foi registada a 30 de maio de 2016.

12. As contas do exercício do ano de 2013 foram registadas a 21.03.2016.

13. A devedora tem créditos vencidos desde o ano de 2012.

14. Apresenta resultados negativos desde 2014.

15. O equipamento que se encontra descrito no imobilizado de 2014 não foi apreendido nem localizado.

16. A devedora e seu administrador têm conhecimento da sua situação de insolvência pelo menos desde 2014;

17. Parte do imobilizado da Devedora consubstanciava aparelhos antigos.

18. Foram entregues para reciclagem à Câmara Municipal ... equipamentos de pequenas dimensões, vidros e sacos de papel.

19. O locado foi entregue ao Senhorio.

20. Parte dos equipamentos que se encontravam nas instalações da devedora pertenciam a fornecedores a quem adquiria e consumia reagentes e que a estes foram devolvidos.

21. As instalações de ... e de ... nunca pertenceram à Devedora e as instalações de ... eram um mero posto de colheitas de produtos biológicos, que não necessitava de equipamentos e material para a realização de análises clínicas.

22. Os problemas financeiros agravaram-se com uma inspecção efectuada pela Entidade Reguladora da Saúde ocorrida no final de 2013.

23. A devedora apresentou-se a PER no ano de 2012.

24. O plano de recuperação apresentado em PER indicava passivo de € 580.968,48. 25. O plano de recuperação apresentado em PER foi homologado por decisão de 11 de Setembro de 2013.

26. Entre a data de apresentação a PER e a data da apresentação à insolvência, o passivo da Devedora foi reduzido, nomeadamente através de pagamentos efectuados à Segurança Social.

27. O administrador da insolvente encontra-se a pagar créditos contraídos pela Devedora junto da Autoridade Tributária e Segurança Social, por força de reversão, tendo para o efeito recorrido ao programa “PERES”.

28. A devedora na data de apresentação à insolvência já não exercia actividade.

Analisando.

O Acórdão recorrido neste conspecto, considerou o seguinte:

«[De] acordo com o mencionado nº 1 do art. 186º do CIRE são os seguintes os requisitos da insolvência culposa:

1) o facto inerente à actuação, por acção ou omissão, do devedor ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência;

2) a culpa qualificada (dolo ou culpa grave);

3) e o nexo causal entre aquela actuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.

O mesmo artigo estabelece presunções com vista à qualificação da insolvência como culposa de um conjunto de circunstâncias e comportamentos elencados taxativamente nos n.ºs 2 e 3. O n.º 2 (aplicável, com as necessárias adaptações, às pessoas singulares por força do n.º 4) concretiza as situações em que a insolvência de pessoa colectiva há-de ser considerada culposa, de tal sorte que, apurada factualidade subsumível a qualquer das circunstâncias ali tipificadas, se presume juris et de jure que a insolvência é culposa, tal como resulta da expressão “considera-se sempre” (cfr., neste sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, “Quid Juris”, 2009, pág. 610; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in Direito da Insolvência, 2.ª edição, pág. 272, e Raposo Subtil e outros ali citados). No n.º 3 estabelecem-se duas presunções juris tantum, ilidíveis mediante prova em contrário, relacionadas com o incumprimento do dever dos administradores, de direito ou de facto, de requerer a declaração de insolvência (alínea a) e da obrigação de elaboração das contas anuais, no prazo legal, sua fiscalização e depósito na conservatória do registo comercial (alínea b). Verificado algum destes factos, praticados pelo devedor, o juiz terá que decidir necessariamente no sentido da qualificação da insolvência como culposa, visto que ali está estabelecida uma presunção juris et de jure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não admitindo, por conseguinte a produção de prova em contrário.

Vem provado que a devedora se apresentou à insolvência em 20 de Outubro de 2016, sendo que apresenta resultados negativos desde 2014 (14) e que devedora e seu administrador têm conhecimento da sua situação de insolvência pelo menos desde esse ano de 2014 (16).

Ora, tendo a Insolvente conhecimento da sua situação de insolvência pelo menos desde de 2014, era até final de Janeiro de 2015 que se lhe impunha a apresentação à insolvência (art.º 18.º, n.º 1, do CIRE). O facto de se não haver apresentado à insolvência deve considerar-se causal da insolvência culposa, não tendo sido provados factos que lograssem afastar a presunção de causalidade e de culpa, no cumprimento do dever de apresentação e na própria insolvência, que a norma institui (cfr. Acórdão desta Relação do Porto e Secção de 09-03-2020, Proc. 1116/13.9TYVNG-B.P1, www.dgsi.pt, Rel. pelo Conselheiro Vieira e Cunha, com voto de conformidade do aqui relator; e Ac.R.C. 19/12/2018 Col.V/26, nele citado; em sentido divergente, Acs. da Relação de Guimarães de 24-04-2012, Proc 172/08.6TBGMR-B.G1, e da Relação de Coimbra de 12-07-2017, Processo 370/14.3TJCBR-A.C1, ambos in www.dgsi.pt).

No que concerne à obrigação de elaboração das contas anuais, no prazo legal, sua fiscalização e depósito na conservatória do registo comercial, vem provado:

- A declaração de rectificação referente às contas de 2015 foi submetida em 13.01.2017 (7);

- As declarações anuais relativas à Informação Empresarial Simplificada (IES) para os rendimentos de 2013 e 2014 foram submetidas em Março e Maio de 2016, respectivamente (8);

- A IES de 2016 foi submetida a 22.07.2017 (9);

- Aquando da apresentação à insolvência a última prestação de contas registada era referente ao exercício do ano de 2014 e foi registada a 30 de maio de 2016 (11);

- As contas do exercício do ano de 2013 foram registadas a 21.03.2016 (12).

A informação empresarial simplificada (IES), criada em 2007 (Portaria n.º 208/2007), destina-se ao cumprimento das obrigações legais das empresas em sede de informação que as empresas têm de prestar relativamente às suas contas anuais. Através da IES cumpre de uma só vez as seguintes quatro obrigações legais:

- Entrega da declaração anual de informação contabilística e fiscal (n.º 1 do artigo 117.º e 121.º do Código do IRC e n.º 1 do artigo 113.º do Código do IRS);

- Registo da prestação de contas junto das conservatórias de registo comercial (n.º 1 do artigo 15.º do Código do Registo Comercial); - Prestação de informação estatística ao Instituto Nacional de Estatística (n.º 1 do artigo 6.º da Lei do Sistema Estatístico Nacional);

- Prestação de informação contabilística para fins estatísticos ao Banco de Portugal (artigo 13.º da Lei Orgânica do Banco de Portugal).

Até 2019, a IES era apresentada até ao dia 15 do 7.º mês posterior à data do termo do período económico. Uma vez que, em via de regra, o ano económico corresponde ao ano civil, a declaração deveria ser entregue até ao dia 15 de Julho do ano seguinte àquele a que as contas diziam respeito. Por onde se vê que a prestação de contas relativas aos exercícios de 2013 e 2014 foi apresentada, ainda que com atraso. Já a prestação de contas de 2015, que deveria ter sido apresentada até 15 de Julho de 2016, foi incumprida, tendo-se a devedora apresentado à insolvência sem a realizar, e só viria a ser submetida em 13.01.2017, já depois da sentença declaratória da insolvência.

Ocorreu, assim, omissão da elaboração das contas anuais e do respectivo depósito na Conservatória – artº 186º nº 3 al. b) do CIRE -, que é relevante para conhecimento de todos os que pudessem relacionar-se comercialmente com a Insolvente. E também nessa parte o requerido/apelante não ilidiu a presunção de culpa grave e de causalidade, como lhe competia – artº 350º CCiv. Também por via desta citada norma se pode afirmar a existência de uma insolvência culposa e o ... AA por ela se considerar-se afectado, confirmando-se a douta sentença recorrida.».

Insurgem-se os Recorrentes contra a tese formulada no Aresto em crise, uma vez que a tese assim esgrimida se encontra em flagrante oposição com aquela que se mostra explanada no Acórdão fundamento – o Acórdão da Relação de Coimbra datado de 12 de julho de 2017, onde se entendeu que:

«Dispõe o n.º 1 do art.º 186.º do CIRE: “A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.

De acordo com o n.º 2 deste mesmo artigo considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de facto ou de direito, tenham praticado algum dos factos previstos nas diversas alíneas desse número. O que significa que neste n.º 2 se consagram presunções de insolvência culposa.

Tais presunções, atento o advérbio “sempre” utilizado no preceito e a ausência daquele na redacção do n.º 3 do mesmo artigo, leva a considerá-las como presunções “juris et de jure”, inilidíveis, pois, ao contrário daquilo que ocorre quanto às presunções que são também estabelecidas no mencionado n.º 3, que estão sujeitas à regra consignada no n.º 2 do art.º 350º do Código Civil [4].

Por força da exigência plasmada no nº 1 do art.º 186º do CIRE, quer as situações que se encontram prevenidas nas alíneas a), b), c), d), e), f) e g) do n.º 2 desse artigo, quer as situações descritas nas alíneas do seu nº 3 – v.g., a falta de apresentação tempestiva à insolvência e a omissão das obrigações discriminadas na al. b), atinentes às contas - embora fazendo presumir a culpa (grave, nos casos que se enquadrem no aludido nº 3) dos administradores, só autorizam a qualificar a insolvência como culposa se se evidenciar a existência de nexo de causalidade entre essas faltas e o estado de insolvência.

Foi este o entendimento que se seguiu no acórdão da Relação do Porto de 10 de Fevereiro de 2011 (Apelação nº 1283/07.0TJPRT-AG.P1)[5] onde, com referência às situações previstas no nº 3 do aludido artº 186º, se disse: «[…] Haverá ainda que atentar que, neste segundo grupo de situações, para além da actuação dolosa ou com culpa grave, se exige a alegação de que essa actuação esteve na origem da insolvência ou ao seu agravamento, já que só assim se poderá afirmar a situação de insolvência culposa, conforme se extrai do artº 186º, nº 1 do CIRE.

E relativamente a esta última afirmação haverá de fazer-se a respectiva prova, já que não se encontra abrangida pela presunção estabelecida no nº 3 do artº 186º do CIRE. Com efeito este normativo é claro e inequívoco no sentido de que não admite, com o apoio mínimo no texto da lei, que o artº 9º, nº 2 do CC exige, uma interpretação mais abrangente, que inclua no âmbito da presunção estabelecida no nº 3 do artº 186º do CIRE também o exigido nexo de causalidade entre a actuação descrita naquele preceito legal e o despoletar da situação de insolvência ou o seu agravamento.

Nestas situações, sempre haverá pois não só de alegar-se a actuação culposa ou dolosa do devedor ou seus administradores, como alegar e comprovar, o nexo de causalidade entre essa actuação e a situação da insolvência, nos termos em que o exige o nº 1 do artº 186º do CIRE. […]».

Também o STJ, no seu Acórdão de 06 de Outubro de 2011 (Revista nº 46/07.8TBSVC-0.L1.S1) salienta que as presunções ilidíveis, estabelecidas no aludido nº 3, não abarcam o nexo causal entre as actuações omissivas aí previstas e a situação da verificação da insolvência ou do seu agravamento, pelo que, embora dispensando-se, na aludida norma, “a demonstração do nexo causal entre o comportamento (presumido) gravemente culposo do devedor ou dos seus administradores e o surgimento ou o agravamento da situação de insolvência”, é necessário, nas situações aí abarcadas, “verificar se os aí descritos comportamentos omissivos criaram ou agravaram a situação de insolvência”, não bastando a simples demonstração da sua existência e a consequente presunção de culpa que sobre os administradores recai.

No Acórdão da Relação do Porto de 20 de Outubro de 2009 (Apelação nº 578/06.5TYVNG-A.P1), também se entendeu que a presunção prevista no n.°3 do art. 186º do CIRE «…apenas faz presumir a existência de culpa grave em relação à insolvência, mas é por si só insuficiente para qualificar a insolvência como culposa, porquanto, face aos requisitos exigidos pelo n.°1 do mesmo artigo, é ainda necessário demonstrar que o incumprimento que a lei presume gravemente culposo foi causa da criação ou de agravamento da situação de insolvência.».

Na sentença “sub judice”, eximindo-se de qualquer responsabilidade o Requerido M..., arrimou-se a qualificação da insolvência como culposa - afastando-se todos os restantes fundamentos que para tal haviam sido invocados -, apenas na circunstância de a conduta do gerente da insolvente P... integrar a previsão da alínea a) do nº 3 do artigo 186º do CIRE.

Para esse efeito escreveu-se, entre o mais:

«[…] No caso concreto, resulta dos factos provados que, no dia 10 de Fevereiro de 2014, L..., Lda veio requerer a insolvência de S..., Ldª, na qualidade de credor pelo fornecimento de diverso material informático.

Nessa altura a dívida ao requerente totalizava a quantia de €5.600,00.

Todavia, resulta também dos factos provados que o gerente vinha incumprido as obrigações perante a Segurança Social pelo menos desde Fevereiro de 2013.

Acresce que os credores da insolvente têm créditos reconhecidos no montante total de €982.891,17.

Ora, como se sabe, e vem sido entendido pela Jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores (cfr. Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 18.12.2012 e de 05.05.2011, disponíveis em www.trc.pt), o que caracteriza a situação de insolvência não é a impossibilidade de cumprimento de todas as obrigações assumidas pelo insolvente e vencidas, sendo que o que verdadeiramente interessa é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado, montante e circunstâncias concretas evidenciem a impotência, para o devedor, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos.

Voltando ao caso dos autos, resulta dos factos provados que a insolvente vinha incumprindo a generalidade das suas obrigações pelo menos meados de 2013.

Deste modo, impendia sobre o gerente da insolvente o dever de apresentação à insolvência dentro dos 30 dias seguintes ao conhecimento da situação de insolvência, o que não aconteceu.

O gerente de S..., Ldª ao omitir o dever de apresentar a sociedade à insolvência, contribuiu para o agravamento daquela situação, porque a situação patrimonial da empresa se agravou, desde logo com o débito de juros.

Neste particular, o gerente de S..., Ldª não cumpriu com a obrigação que a lei lhe impunha, violando de forma manifesta um dos seus deveres legais – a apresentação da sociedade à insolvência, presumindo-se a existência de culpa grave a que alude o artigo 186º, nº 3, alínea a), do CIRE.

E ainda que se admitisse ser a presunção ilidível mediante prova em contrário, o certo é que o requerido não ilidiu, como lhe competia, tal presunção, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 342º do Código Civil.

Assim sendo, entendemos que, no caso concreto, está verificada a alínea a) do nº 3 do artigo 186º do CIRE.

(...) concluímos que as condutas do gerente da insolvente integram apenas a previsão da alínea a) do nº 3 do artigo 186º do CIRE, sendo forçoso concluir pela qualificação da insolvência como culposa. […]».

Saliente-se, no presente caso, que não tendo sido requerida a ampliação do objecto do recurso, nos termos do artº 636º, nº 1, do NCPC, é defeso a esta Relação sindicar, neste recurso interposto pelo Requerido, o acerto do afastamento dos restantes fundamentos que haviam sido invocados para que se qualificasse a insolvência como culposa.

Ora, como flui do acima exposto, a circunstância de o ora Apelante ter omitido o dever de requerer a insolvência da empresa, não é suficiente para que se classifique esta (insolvência) como culposa.

De facto, como resulta do que acima ficou exposto e se escreveu no Acórdão desta Relação de 07/02/2012 (Apelação nº 2273/10.1TBLRA-B.C1),[7] “a violação, pelos administradores, v.g., do dever de requerer a insolvência, apenas permite presumir a culpa grave daqueles – mas já não a imputação da situação de insolvência, ou o seu agravamento, à respectiva conduta”.».

No seu entendimento a factualidade considerada provada no ponto 10) que refere que a devedora e o seu administrador não facultaram o acesso do Administrador de Insolvência à contabilidade dos anos de 2015 e 2016, não permite concluir pelo fundamento enunciado no artigo 186º nº 2 alínea h) do CIRE.

Como se lê no Ac 570/2008 do TC (Relator Vitor Gomes) «As presunções legais são ilações que a lei tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (artigo 349.º do Código Civil). Mediante a demonstração de um determinado facto (o facto base da presunção), cuja prova incumbe à parte que a presunção favorece e pode ser feita pelos meios probatórios gerais, intervém a lei para concluir pela existência de outro facto (o facto presumido).

Neste sentido, é duvidoso que na previsão do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE se instituam verdadeiras presunções. Na verdade, o que o legislador faz corresponder à prova da ocorrência de determinados factos não é a ilação de que um outro facto (fenómeno ou acontecimento da realidade empírico-sensível) ocorreu, mas a valoração normativa da conduta que esses factos integram. Neste sentido, mais do que perante presunções inilidíveis, estaríamos perante a enunciação legal (não importa aqui averiguar se mediante enunciação taxativa ou concretizações exemplificativas) de situações típicas de insolvência culposa.

De todo o modo, numa ou noutra perspectiva (presunção inilidível de culpa, factos-índice ou tipos secundários de insolvência culposa), o legislador prescinde de uma autónoma apreciação judicial acerca da existência de culpa como requisito da adopção das medidas restritivas previstas no artigo 189.º do CIRE contra os administradores julgados responsáveis pela insolvência. Ora, mais do que a determinação da natureza da norma (estabelecimento de uma presunção juris et de jure ou qualificação jurídica dos factos tipificados), o que é decisivo para a questão de constitucionalidade suscitada é que, perante a prova de determinados comportamentos dos administradores da sociedade insolvente, se conclui pela verificação desse requisito, sem necessidade, nem sequer possibilidade, de um juízo casuístico efectuado pelo julgador perante todo o circunstancialismo do caso concreto.».

O Acórdão recorrido considerou que quer o conhecimento por parte da Insolvente da sua situação de insolvência pelo menos desde 2014, era até final de Janeiro de 2015 que lhe impunha a apresentação à insolvência, quer a sua omissão na elaboração das contas anuais e ao seu depósito na respectiva Conservatória, constituiu, a se, uma presunção não ilidida, de comportamento culposo e causal da sua situação insolvencial.

Efectivamente resultaram provados os apontados factos, cfr pontos 6. a 16. da matéria assente.

Porém, esses elementos materiais, a se, continuam sem conduzir, também, aqui, à asserção retirada em sede dispositiva pelo Aresto impugnado, já que dela não resulta que esse incumprimento, no que tange à elaboração das contas anuais, bem como o atraso na apresentação à insolvência da Insolvente, tivesse criado e/ou agravado o seu estado, sendo que o nº3 do artigo 186º apenas presume a culpa do administrador naquela omissão, mas já não em relação ao nexo causal entre o seu comportamento e a criação e/ou o agravamento do estado de insolvência, situação esta que tem de ser devidamente alegada e provada, o que in casu se não verificou, cfr os Acórdãos do STJ de 29 de Outubro de 2019 (Relatora maria Olinda Garcia), 17 de Outubro de 2020 (Relator Henrique Araújo), 13 de Julho de 2021 (da aqui Relatora), 19 de Outubro de 2021 (Relator Pinto de Almeida).

A ausência da organização da contabilidade referente aos anos de 2015 e 2016, correspondente a um comportamento negligente é certo, mas não faz concluir, pelo que deflui da factualidade assente, que tenha sido essa conduta do omissiva administrador da Insolvente, bem como o facto de o mesmo, bem sabendo da situação em que se encontrava a sua administrada, de impossibilidade de cumprir as suas obrigações pelo menos desde há um ano antes da declaração da sua insolvência, que fez despoletar e/ou contribuiu para a situação daquela.

As conclusões têm necessariamente de proceder, devendo a insolvência ser considerada como fortuita.

III Destarte, concede-se a Revista, revogando-se a decisão plasmada no Acórdão recorrido, declarando-se a insolvência como fortuita

Custas pela massa insolvente, artigos 303º e 304º do CIRE.

Lisboa, 5 de Abril de 2021

Ana Paula Boularot (Relatora)

José Rainho

Graça Amaral

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).