Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
491/15.5GEALM-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: CELSO MANATA
Descritores: RECURSO PER SALTUM
CÚMULO JURÍDICO
CONHECIMENTO SUPERVENIENTE
CONCURSO DE INFRAÇÕES
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
FACTOS PROVADOS
NULIDADE
REENVIO DO PROCESSO
Data do Acordão: 06/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGAMENTO ANULADO
Sumário :
I - A decisão de cúmulo jurídico, por conhecimento superveniente do concurso, deve conter na fundamentação, em obediência ao disposto no artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal e por forma a viabilizar a adequada aplicação do disposto no artigo 77º, nº 1 do Código Penal – aplicável ex vi artigo 78º, nº 1 do mesmo diploma legal - todos os factos que interessam à realização do concurso de crimes e à determinação da pena única;
II- A completa ausência de indicação dos factos descritivos das condutas pelas quais o arguido foi condenado nas penas parcelares aplicadas nos processos convocados para a realização do cúmulo integra a nulidade prevista no art. 379.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal;
III - Não incumbe ao STJ indagar e selecionar os factos, nomeadamente recorrendo às certidões das decisões que se encontrem juntas nos autos, uma vez que, como tribunal de recurso, de reexame da matéria de direito, sindica o teor da decisão recorrida e não supre as deficiências factuais desta.
Decisão Texto Integral:


ACÓRDÃO


Acordam, em conferência, na 5ª secção do Supremo Tribunal de Justiça


A - Relatório


A.1. Decisão recorrida


O Tribunal recorrido, através de acórdão cumulatório datado de 26 de janeiro de 2024 e relativo a AA, decidiu o seguinte:

1. - “Não realizar o cúmulo das penas aplicadas nos processos 309/09.8..., 1467/10.4..., 318/12.0..., 160/11.5..., 546/12.8..., 1756/08.8..., 87/14.9... e 50/14.0...

2. - Operar cúmulo jurídico das penas aplicadas nos processos 1462/16.0..., 111/15.8... e 491/15.5GEALM (estes autos), fixando a pena única global de 8 anos e 6 meses de prisão.

3. - Não incluir no cúmulo realizado a pena unitária de 4 anos e 3 meses de prisão aplicada no processo 25/18.1..., por não se mostrarem verificados, in casu, os pressupostos do concurso de penas, pelo que acresce, para cumprimento sucessivo.”


A.2. Recurso do arguido


Não se conformando com essa decisão, dela interpôs recurso o arguido, tendo concluindo a sua motivação da seguinte forma (transcrição integral):


I – Vem o presente recurso interposto do Douto Acórdão de 28.01.2024 do Juízo Central Criminal ... – Juiz ... proferido no Processo nº 491/15.5GEALM, que efectuando cúmulo jurídico de diversas penas, condenou o Recorrente AA na pena de 8 anos e 6 meses de prisão, a que acresce a pena única de 4 anos e 3 meses de prisão aplicada no processo 25/18.0... do Juízo Central Cível e Criminal de ... Juiz ...3.


II –NãofundamentaoDouto Acórdãorecorrido a razãoda nãoinclusãodesta última pena nocúmulojurídico efectuado, constituindo verdadeira decisão-surpresa, dado que num despacho proferido nos mesmos Autos em 11.12.2023 (Refª .......58) determinara: “Verificando-se, só em sede de ato deliberatório, que não se mostra junta aos autos certidão da condenação do arguido AA no processo 25/18.0..., que estará em relação de concurso com as dos presentes autos, determino se requisite e junte a mesma”.


III – O que desde logo constitui uma violação do dever de fundamentação imposto pelos artºs 97º nº 5 e 374º nº 2 do CPP, uma vez que não explicita as razões de direito que levam à não inclusão da referida pena de 4 anos e 3 meses do processo nº 25/18.0... no cúmulo efectuado, que tem como consequência a nulidade do Douto Acórdão recorrido (artº 379º nº 1 alª a) do CPP).


IV – Além disso, a Douta Decisão recorrida interpreta erradamente os artºs 77º nº 1 e 78º nº 1 do CP, que dispõem, respectivamente: “Quanto alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”; “Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada no concurso de crimes”.


V – Fazendo a cronologia dos factos praticados pelo arguido e das correspondentes condenações, verificamos que:


a) O recorrente encontra-se preso ininterruptamente desde 12 de Julho de 2018 (Facto nº 17 do Acórdão), a cumprir uma pena de 4 anos e 3 meses de prisão, a que foi condenado em 4/3/2019 no Processo nº 125/18.0... do Juizo Central Cível e Criminal de ... – juiz ..., por dois crimes de furto qualificado, praticados em 10/7/2018;


b) Mas antes desses factos e desse julgamento, havia praticado em 11/6/2015 e 19/8/2015 os crimes pelos quais viria a ser condenado em 17/11/2019 (ou seja, depois da condenação de ...)noProcessonº 111/15.8... doJuízoLocal Criminal de ..., onde aliás foi perdoado um ano de perdão por aplicação da Lei nº 38-A/2023 de 2/8, ficando essa pena extinta, perdão esse que o Douto Tribunal recorrido ignorou, incluindo a pena por inteiro no cúmulo efectuado;


c) E veio ainda a ser condenado, por decisão de 8/7/2022 (isto é, depois da referida condenação de ...), por factos praticados entre Fevereiro de 2013 e Outubro de 2015 nos presentes autos do Processo mº 491/15.GEALM.L1 do Juizo Central criminal ... – Juiz ... na pena única de 11 anos de prisão, que o Tribunal da Relação de Lisboa reduziria para 7 anos de prisão.


VI – Ora tendo todos esses crimes sido praticados antes da primeira condenação no Processo 125/18.0... do Tribunal Judicial de ..., não se entende como se pode dizer que não existe concurso entre eles. Sendo certo que o arguido não tem culpa de que os factos praticados entre 2013 e 2015 só tenham sido julgados em 2022 no Tribunal ...; não existe aqui qualquer “cúmulo por arrastamento”, o que existe é um arrastamento interminável dos processos em tribunal!


VII – O Douto Tribunal recorrido interpretou e aplicou assim erradamente os referidos artºs 77º nº 1 e 78º nº 1 do CP (na interpretação que foi fixada pelo Acórdão nº 9/2016 deste Supremo Tribunal de Justiça), sendo a aplicação correcta a inclusão da pena do processo nº 125/18.0... no cúmulo jurídico efectuado nestes autos, tal como aliás se havia preconizado no despacho de mero expediente lavrado em 11.12,2023, não se verificando aqui o chamado “cúmulo por arrastamento” porque todos os factos em julgamento haviam ocorrido, como se disse, antes da primeira condenação destes processos.


VIII – E quanto ao perdão da Lei nº 38-A/2023 de 2/8, foi retirado da pena parcelar de alcobaça, em violação do caso julgado, e depois teve o tribunal o cuidado de aplicar ao arguido uma pena superior a 8 anos de prisão, para que também aí não pudesse beneficiar de qualquer perdão, embora tivesse menos de 30 anos quando praticou todos os crimes por que foi condenado.


IX – No total o Arguido ficou assim condenado a 12 anos e 9 meses de prisão (resultado da soma material de ambas as penas a cumprir), sendo certo que estamos a falar de crimes de natureza patrimonial, praticados de forma homogénea num espaço de poucos anos, por um jovem com menos de 30 anos.


X – Como se pode ver peloRelatório Social reproduzido na decisão recorrida, o Arguido viuo paio suicidar-se há cerca de 7 anos à sua frente (Facto 14), atirando-se de um 10º andar, depois de preso esteve várias vezes internado no Hospital Prisional ... devido a problemas psiquiátricos (diagnóstico de depressão – Pacto 18), mas aproveitou a reclusão que se prolonga por mais de 5 anos para melhorar as suas competências pessoais, completando o 12º ano de escolaridade (Facto 23); mantém hábitos de trabalho comofaxina hácerca de 3 anos(Facto24),mantendo umcomportamento adequadoe recebendo visitas da progenitora (Facto 26), manifestando arrependimento e considerando que a pena efectiva tem tido um efeito positivo na sua forma de encarar as regras de vida em sociedade (Facto 26).


XI – Terá assim de se considerar que a pena aplicada não teve em conta as circunstâncias a que se refere o artº 71º nº 2 do CP, designadamente as suas condições pessoais, e a conduta posterior ao facto (comportamentoprisional, arrependimentoe melhoriadas suas competências),deonde resulta uma pena exagerada, que viola os princípios da culpa (artº 71º nº 1 do CP), e da necessidade da pena e da proporcionalidade ou proibição do excesso ínsitos no artº 18º nº 2 da Constituição da República Portuguesa.

TERMOS EM QUE DEVE O DOUTO ACÓRDÃO RECORRIDO SER ANULADO, E SUBSTITUÍDO POR OUTRO QUE INCLUA NO CÚMULO JURÍDICO A EFECTUAR NESTES AUTOS A PENA DO PROC. 125/18.0... DO TRIBUNAL DE ..., QUE RESPEITE A AMNISTIA APLICADA NO PROCESSO 111/15.8..., NÃO DEVENDO A PENA DAÍ RESULTANTE ULTRAPASSAR OS 8 ANOS DE PRISÃO, QUE SE AFIGURAM SUFICIENTES PARA GARANTIR AS NECESSIDADES DE PREVENÇÃO GERAL E ESPECIAL, ASSIM SE FAZENDO A MELHOR JUSTIÇA !”

A.3. Parecer do Ministério Público no STJ


Não tendo sido apresentada resposta do Ministério Público na primeira instância, neste Supremo Tribunal de Justiça o Digníssimo Procurador-Geral-Adjunto emitiu mui douto parecer, nos seguintes termos (transcrição parcial):

“4.1 - Retificação do acórdão recorrido.

Consta dos factos provados do acórdão recorrido que (sublinhados da nossa autoria):

«1. (…)

l) Nos presentes autos, processo 491/15.5GEALM, deste juízo central criminal ..., juiz ..., por acórdão de 08/07/2022, transitado em julgado em 24/03/2023, por dois crimes de recetação, nas penas de 1 ano de prisão por cada um, por dois crimes de falsificação de documento, nas penas de 1 ano e 6 meses por cada um, por um crime de furto qualificado, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão e por dois crimes de furto qualificado, nas penas de 2 anos e 3 meses de prisão por cada um, todos praticados em 2015, sendo, em cúmulo, na pena única global de 7 anos de prisão».

Todavia, como resulta da certidão do acórdão do TRL [II], além dos referidos, o arguido foi ainda condenado no processo comum 491/15.5GEALM pela prática de um crime de furto qualificado p. e p. pelo art. 204.º, n.º 1, al. b), do CP, na pena de dois anos de prisão [pena parcelar que, aliás, foi tida em consideração quando o tribunal coletivo definiu a moldura abstrata do concurso e consignou que «a moldura a atender é, nos termos do artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal, de 2 anos e 3 meses (pena parcelar mais elevada) a 17 anos e 8 meses de prisão (soma aritmética das penas parcelares)»]

Conforme referido [III/1], o tribunal coletivo do Juízo Central Criminal ... deliberou:

«3. Não incluir no cúmulo realizado a pena unitária de 4 anos e 3 meses de prisão aplicada no processo 25/18.1..., por não se mostrarem verificados, in casu, os pressupostos do concurso de penas, pelo que acresce, para cumprimento sucessivo».

Também aqui procede dos factos provados 1/j) e 17 do acórdão recorrido e da certidão supra referida [I] que o NUIPC correto deste processo é 25/18.0...

Preceitua o art. 380.º do CPP que o tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correção da sentença quando a mesma contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial (n.º 1). Se já tiver subido recurso da sentença, a correção é feita, quando possível, pelo tribunal competente para conhecer do recurso (n.º 2).

À luz deste normativo deve, então, retificar-se:

- O facto provado 1/l), com o aditamento do crime de furto qualificado punido com a pena de 2 anos de prisão;

- O ponto 3 do dispositivo do acórdão recorrido por forma a que fique a constar que o cúmulo não inclui as penas do processo 25/18.0...

4.2 - Nulidade do acórdão recorrido.

Subordinado ao disposto no art. 205.º, n.º 1, da Constituição, que prescreve que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei, o art. 97.º, n.º 4, do CPP, estabelece que os atos decisórios – acórdãos, sentenças e despachos – devem ser fundamentados, através da especificação dos respetivos motivos de facto e direito, e os arts. 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a), ainda do CPP, determinam que a sentença não fundamentada, nomeadamente a sentença que não contenha os motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, é nula.

«A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projeção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão; em outra perspetiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos; para reapreciar uma decisão, o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e os fundamentos que determinaram o sentido da decisão, para, sobre tais fundamentos, formular o seu próprio julgamento» (Henriques Gaspar, Código de Processo Penal comentado, António Henriques Gaspar e outros, Almedina, 4.ª edição revista, páginas 285|286).

No que respeita às decisões cumulatórias, tem sido preconizado que o julgador, face ao disposto no art. 77.º, n.º 1, parte final, do CP, que na operação de concretização da pena conjunta impõe que se atendam, em conjunto, aos factos e à personalidade do agente, «não deve limitar-se a enumerar os ilícitos cometidos pelo arguido de forma genérica, mas descrever, ainda que resumidamente, os factos que deram origem às condenações, “por forma a habilitar os destinatários da decisão a perceber qual a gravidade dos crimes, bem como a personalidade do arguido, modo de vida e inserção social”» (Artur Rodrigues da Costa, O Cúmulo Jurídico Na Doutrina e na Jurisprudência do STJ, Revista do Centro de Estudos Judiciários, 2016 – I, página 87).


«Como tem sido afirmado no STJ (…) se não é necessário nem útil que a decisão que efectue o cúmulo jurídico de penas, aplicadas em decisões já transitadas, enumere exaustivamente os factos dados por provados nas decisões anteriores, já é imprescindível que contenha uma descrição, ainda que sumária, desses factos, de modo a permitir conhecer a realidade concreta dos crimes anteriormente cometidos e a personalidade do arguido neles manifestada» sob pena de nulidade (acórdão do STJ de 27 de maio de 2010, processo 708/05.4PCOER.L1.S1, relatado pela conselheira Maria Isabel Pais Martins, cujo sumário se encontra reproduzido no citado estudo do conselheiro Artur Rodrigues da Costa).


O acórdão recorrido procedeu ao cúmulo jurídico das penas aplicadas nos processos 491/12.5GEALM, 1462/16.0... e 111/15.8...


Relativamente à factualidade objeto de cada um daqueles processos referiu (a retificação promovida em 4.1. está destacada a itálico e bold):


«1. Do certificado de registo criminal do arguido AA consta condenação:


(…)


h) Por sentença de 01/03/2018, transitada em julgado em 09/04/2018, processo 1462/16.0..., juízo local criminal de ..., juiz ..., um crime de furto qualificado praticado em 06/09/2016, pena de 1 ano de prisão suspensa na sua execução por 5 anos, acompanhada de regime de prova, tendo sido revogada a suspensão por despacho de 08/10/2020.


(…)


k) Por sentença de 17/11/2019, transitada em julgado em 10/12/2019, Processo 111/15.8..., juízo local criminal de ..., por dois crimes de furto qualificado e um crime de condução perigosa de veículo rodoviário praticados em 11/06/2015 e 19/08/2015, nas penas de 1 ano e 6 meses de prisão, 1 ano e 6 meses de prisão e 8 meses de prisão, respetivamente e, em cúmulo, na pena única de 2 anos e 3 meses de prisão.


l) Nos presentes autos, processo 491/15.5GEALM, deste juízo central criminal ..., juiz ..., por acórdão de 08/07/2022, transitado em julgado em 24/03/2023, por dois crimes de recetação, nas penas de 1 ano de prisão por cada um, por dois crimes de falsificação de documento, nas penas de 1 ano e 6 meses por cada um, por um crime de furto qualificado, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, por um crime de furto qualificado, na pena de 2 anos de prisão, e por dois crimes de furto qualificado, nas penas de 2 anos e 3 meses de prisão por cada um, todos praticados em 2015, sendo, em cúmulo, na pena única global de 7 anos de prisão».

Ora, salvo o devido (e merecido) respeito, esta singela identificação dos processos, crimes e penas integrados no concurso, sem a menor concretização dos factos típicos cometidos, não basta para satisfazer as exigências legais de fundamentação de uma decisão cumulatória.

Daí que o acórdão recorrido seja nulo por falta de fundamentação (arts. 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a), do CPP).

Constando dos autos as certidões das condenações, a falha em questão pode ser suprida por este STJ (art. 379.º, n.º 2, do CPP).

Devem, por isso, ser aditadas aos factos provados 1/h), 1/k) e 1/l) as seguintes realidades (aditamentos a itálico):

«h) (…) Provou-se neste processo que:


No dia 6 de setembro de 2016, cerca das 15h00, no parque de estacionamento sito na avenida ..., em ..., em obediência a um plano previamente concertado entre os arguidos AA e BB, este último, depois de ter forçado a porta do lado do “pendura” do veículo “Mitsubishi Space Star”, matrícula ..-RD-.., retirou do seu interior objetos de valor total muito superior a 102 Euros, pertença de CC. Enquanto isso, o arguido AA permaneceu no interior do veículo automóvel da marca “Ford Mustang”, matrícula ..-QO-.., a vigiar se alguém aparecia por forma a avisar o BB.


Na posse dos descritos objetos, os arguidos abandonaram o local no “Ford Mustang” conduzido pelo arguido AA.


Os arguidos foram depois surpreendidos pela PSP na avenida ..., em ..., que os perseguiu até se despistaram na A..., sendo então detidos e os objetos recuperados. (…)


«k) (…) Provou-se neste processo que:


No dia 11 de junho de 2015, entre as 11h30 e as 14h15, na sequência de plano previamente elaborado com dois indivíduos cuja identificação não foi possível apurar, o arguido AA dirigiu-se ao Parque da ..., fazendo-se transportar no veículo com matrícula ..-OJ-.., marca BMW, série 1, cujo proprietário é a rent-a-car “S..... .. ....”, com o propósito de se apoderarem de objetos que ali se encontrassem.


Ali chegados, abeiraram-se do veículo com matrícula ..-PP-.., partiram o vidro triangular, do lado do condutor, e, de modo concretamente não apurado, retiraram da bagageira objetos com valor global superior a 102 Euros, após o que abandonaram o local no veículo BMW.


Apercebendo-se que tinham sido avistados por agentes da PSP, o arguido AA, que conduzia o veículo BMW, iniciou a marcha no sentido Poente-Nascente, tendo virado à esquerda para a Av. ..., iniciando assim a fuga.


Logo após, quando se encontrava no entroncamento da citada Avenida com a Av. ..., sem parar no sinal STOP, entrou na faixa de rodagem da direita, mas pela via de trânsito da esquerda.


De seguida, dirigiu-se à “rotunda do Hospital”, entrou na mesma sem obedecer ao sinal B1, de cedência de passagem, que ali se encontra, nem diminuir a velocidade do veículo que conduzia e entrou na Rua de ....


Ali chegado, encontrando-se diversas viaturas a circular em ambos os sentidos, circulou no eixo da faixa de rodagem, por cima das raias oblíquas delimitadas por uma linha contínua e de seguida por cima da linha Marca 1 (traço contínuo), seguindo assim até ao posto de combustível “R.....”, obrigando a que os outros condutores da via (de ambos os sentidos), se afastassem para a berma.


De seguida, entrou na rotunda formada pelas artérias ..., acesso ao ... e Rua de ... sem respeitar o sinal B1, de cedência de passagem, ali colocado, nem diminuir a velocidade do veículo que conduzia e seguiu em direção à Rua de ..., sentido ....


Chegando ao cruzamento formado com a EN... e rua Principal, Ponte Jardim, não obstante visualizar o sinal luminoso vermelho que se apresentava no seu sentido, continuou a marcha sem parar no referido sinal.


Em consequência do exposto, e de forma a evitar a colocação em perigo dos demais utentes da via, os agentes da PSP que se encontravam a perseguir o arguido, perderam os mesmos de vista.


No dia 19 de agosto de 2015, entre as 15h30 e as 17h30, o arguido AA abeirou-se do veículo com matrícula DT-108-NC que se encontrava estacionado na Rua ..., em ..., partiu o vidro triangular, da frente direita e retirou do seu interior objetos de valor global não inferior a 1.500 Euros.


«l) (…) Provou-se neste processo que:


Em data anterior a 10 de fevereiro de 2013 o veículo automóvel de marca “BMW”, modelo “730D”, com a matrícula francesa BK-...-TH, propriedade de DD, foi furtado.


Entre 10 de fevereiro de 2013 e 5 de outubro de 2015, os arguidos AA e BB, receberam o veículo automóvel acima identificado, que passaram a utilizar como se fossem donos, apesar de saberem que o referido veículo havia sido obtido por outrem mediante facto ilícito contra o património.


De forma a ocultarem a origem ilícita do veículo, os arguidos AA e BB substituiram as chapas de matrícula com a inscrição BK-...-TH por outras com as menções ..-PF-.., que pertenciam a um veículo automóvel de marca “BMW”, modelo “7L”, de cor azul, passando a utilizá-lo com as matrículas assim alteradas.


Entre as 01h30 e as 10h30 de 3 de setembro de 2015, indivíduos desconhecidos fizeram seu o veículo automóvel da marca Audi “B8” com a matrícula ..-PI-.., utilizado por EE. Entre 3 de setembro e 5 de setembro de 2015, os arguidos AA e BB, receberam o referido veículo, com as chaves, mas sem documentos, e passaram a utilizá-lo como se fossem os donos apesar de saberem que o veículo havia sido obtido por outrem mediante facto ilícito contra o património.


De forma a ocultarem a origem ilícita deste veículo automóvel, os arguidos AA e BB substituíram as chapas de matrícula com as inscrições ..-PI-.. por outras, de origem francesa, com as menções BZ-...-CW.


No dia 15 de junho de 2015, pelas 15h00, o arguido AA e dois indivíduos cuja identidade não se logrou apurar, fazendo-se transportar no veículo automóvel de marca “BMW”, modelo da série 1 “1K4”, de cor preta, com a matrícula ..-OJ-.., dirigiram-se ao parque de estacionamento da ..., na ..., com o intuito de se apoderarem de bens e valores que lograssem encontrar no interior de veículos aí estacionados;


Aí chegados, o arguido AA dirigiu-se ao veículo de marca “Volkswagen”, modelo “UP”, com a matrícula ..-OL-.., propriedade de E....... ...., alugado por FF, e, de forma não concretamente apurada, quebrou o vidro da janela da porta traseira do lado direito;


De seguida, retirou do interior do referido veículo vários objetos de valor global não inferior a 3.560 Euros.


No dia 29 de setembro de 2015, entre as 14h00 e 15h00, os arguidos AA, BB e GG fizeram-se transportar no veículo automóvel Audi A4. de matrícula ..-PI-.., com as matrículas BZ-...-CW colocadas no lugar das originais, e dirigiram-se ao parque de estacionamento da ..., em ..., com o intuito de se apoderarem de bens e valores que lograssem encontrar no interior de veículos aí estacionados.


Aí chegados, dirigiram-se ao veículo de marca “Volkswagen”, modelo “Golf”, com a matrícula ..-OP-.., e quebraram o vidro da janela da porta traseira do lado direito.


De seguida, introduziram-se no referido veículo e retiraram diversos bens que se encontravam no seu interior, da propriedade de HH e II, de valor global não inferior a 6.110 Euros.


No dia 30 de setembro de 2015, pelas 14h35, os arguidos AA e BB, fazendo-se transportar no veículo automóvel de marca “Audi”, “A4” de ..-PI-.., com a matrícula BZ-...-CW colocadas no lugar das originais, dirigiram-se ao parque de estacionamento junto ao ..., com o intuito de se apoderarem de bens e valores que lograssem encontrar no interior de veículos aí estacionados;


Aí chegados, dirigiram-se ao veículo de marca “Smart”, com a matrícula ..-PU-.. e partiram o vidro da janela da porta do lado direito e da porta do lado esquerdo;


De seguida, entraram no referido veículo de onde retiraram diversos bens propriedade de JJ e KK, de valor global não inferior a 5.800 Euros.


No dia 2 de outubro de 2015, pelas 14h20, os arguidos AA e BB, fazendo-se transportar no veículo automóvel de marca “Audi” A4. de matrícula ..-PI-.., com as placas de matrícula BZ-...-CW colocadas no lugar das originais, dirigiram-se ao parque de estacionamento existente junto à ..., em ..., com o intuito de se apoderarem de bens e valores que lograssem encontrar no interior de veículos aí estacionados.


Aí chegados, dirigiram-se ao veículo automóvel de marca “Ford”, modelo “Focus”, com a matrícula ..-QB-.. e arrombaram a fechadura da porta do lado do condutor.


De seguida, introduziram-se no referido veículo de onde retiraram diversos bens propriedade de LL, MM e NN, de valor global não inferior a 1.868 Euros.

4.3 - Do recurso

As penas integradas e excluídas do cúmulo podem ser resumidas no seguinte quadro:
      Processo
      Data dos factos
      Crimes
      Penas de prisão
      Trânsito
      1462/16.0...
      06/09/2016
      Furto qualificado (204/1/b CP)
      1 ano
      09/04/2018
      111/15.8...
      11/06/2015

      11/06/2015

      19/08/2015

      Furto qualificado (204/1/b CP)

      Condução perigosa (291/1/b CP)

      Furto qualificado (204/1/b CP)

      1 ano e 6 meses

      8 meses

      1 ano e 6 meses

      Pena única: 2 anos e 3 meses de prisão

      10/12/2019
      491/15.5GEALM
      Entre 10/02/2013 e 05/10/2015

      Entre 03/09/2015 e 05/09/2015

      Entre 10/02/2013 e 05/10/2015

      Entre 03/09/2015 e 05/09/2015

      15/06/2015

      29/09/2015

      30/09/2015

      Recetação (231/1 CP)

      Recetação (231/1 CP)

      Falsificação (256/1/b/3 CP)

      Falsificação (256/1/b/3 CP)

      Furto qualificado (204/1/b CP)

      Furto qualificado (204/1/b CP)

      Furto qualificado (204/1/a CP)

      1 anos

      1 anos

      1 ano e 6 meses

      1 ano e 6 meses

      1 ano e 6 meses

      2 anos

      2 anos e 3 meses

      24/03/2023
      02/10/2015
      Furto qualificado (204/1/a CP)
      2 anos e 3 meses

      Pena única: 7 anos de prisão

      25/18.0...
      10/07/2018

      10/07/2018

      Furto qualificado (204/1/b/h CP)

      Furto qualificado (204/1/b/h CP)

      3 anos e 6 meses

      3 anos e 6 meses

      02/09/2019
4.3.1 - A não inclusão das penas do processo 25/18.0... na pena única

O arguido começa por sustentar que a pena única do processo 25/18.0... devia ter sido incluída na pena única e que o tribunal não fundamentou a sua exclusão e, dessa forma, afrontou o dever de fundamentação imposto pelos arts. 97.º, n.º 5, e 374.º, n.º 2, do CPP e, como tal, padece da nulidade prevista no art. 379.º, n.º 1, al. a), do CPP, além de interpretar erradamente os arts. 77.º, n.º 1, e 78.º, n.º 1, do CP.


Sem o menor vislumbre de razão.


Antes de mais, importa reter que não se cumulam penas únicas. A pena única é sempre fixada a partir das penas parcelares (entre muitos outros v. os acórdãos do STJ de 21 de novembro de 2012, processo 153/09.2PHSNT.S1, e de 16 de maio de 2019, processo 790/10.2JAPRT.S1, ambos relatados pelo conselheiro Maia Costa, de 11 de maio de 2022, processo 940/17.8PBBRG.S1, relatado pela conselheira Helena Fazenda, e de 31 de maio de 2023, processo 81/14.0SHLSB.L2.S1, relatado pelo conselheiro Ernesto Vaz Pereira, todos em www.dgsi.pt).


Segundo o art. 77.º, n.º 1, do CP, quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena.


O art. 78.º, n.º 1, seguinte, sob a epígrafe «Conhecimento superveniente do concurso», preceitua que se depois de uma condenação transitada em julgado se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior.


A este propósito o STJ fixou jurisprudência no sentido de que «[o] momento temporal a ter em conta para a verificação dos pressupostos do concurso de crimes, com conhecimento superveniente, é o do trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer dos crimes em concurso» (acórdão n.º 9/2016, relatado pelo conselheiro Souto de Moura, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 111, de 9 de junho de 2016).


Ou seja, «o trânsito em julgado da condenação imposta por uma dada infração obsta a que, com essa infração ou com outras cometidas até esse trânsito, se cumulem infrações que venham a ser praticadas em momento posterior a esse mesmo trânsito. O trânsito em julgado de uma condenação penal é um limite temporal intransponível, no âmbito do concurso de crimes, à determinação de uma pena única, excluindo desta os crimes cometidos depois» (acórdão do STJ de 7 de fevereiro de 2002, processo 118/02, relatado pelo conselheiro Simas Santos, www.colectaneadejurisprudencia.com).

O Tribunal Constitucional, aliás, num recurso em que se discutia a constitucionalidade da «interpretação normativa do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal nos termos da qual se considera como momento decisivo para a aplicabilidade da figura do cúmulo jurídico (e da consequente unificação de penas) o trânsito em julgado da decisão condenatória – com a consequência de que a prática de novos crimes, posteriormente ao trânsito de uma determinada condenação, dará origem à aplicação de penas autonomizadas», já teve oportunidade de decidir que «a exigência formulada pelo artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal como condição para a unificação das penas correspondentes aos crimes em concurso – isto é, a exigência de que a prática de um outro crime tenha ocorrido antes do trânsito em julgado da decisão condenatória pelo primeiro crime – não pode entender-se como mera condição formal, antes revela um substancial sentido ético, ligado ao princípio da culpa, que deve relacionar-se com as dificuldades de reinserção do arguido, anteriormente condenado», que a condição estabelecida no preceito «assenta no princípio da culpa e justifica-se pelas especiais dificuldades de ressocialização nos casos em que um arguido a quem tenha sido aplicada uma sanção penal demonstre, pela sua actuação posterior – pela prática de novos crimes –, que não conforma o seu comportamento em função das exigências do direito penal», que «a acumulação de penas impostas ao arguido corresponde à reiteração da actividade criminosa do arguido, não podendo atribuir-se-lhe o significado de imposição de qualquer pena de duração perpétua ou indeterminada» e que, por conseguinte, a interpretação normativa atribuída ao art. 77.º, n.º 1, do CP, «nos termos da qual se considera como momento decisivo para a aplicabilidade da figura do cúmulo jurídico (e da consequente unificação de penas) o trânsito em julgado da decisão condenatória, não ofende os princípios da dignidade da pessoa humana, do Estado de direito, da tipicidade, da culpa e da inexistência de penas de duração perpétua ou indefinida, consagrados nos artigos 1.º, 2.º, 20.º, 29.º, n.º 1, e 30.º da Constituição da República Portuguesa e no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem» (acórdão n.º 212/2002, relatado pela conselheira Maria Helena Brito, www.tribunalconstitucional.pt. No mesmo sentido v. a decisão sumária n.º 307/2003, relatado pela conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, alojada na mesma base de dados).

Pois bem, como se assinala no quadro sinóptico previamente exposto, a primeira condenação que transitou em julgado foi a do processo 1462/16.0..., em 9 de abril de 2018.

Antes de 9 de abril de 2018 foram cometidos os crimes dos processos 111/15.8... (11 de junho de 2015 e 19 de agosto de 2015) e 491/15.5GEALM (entre 10 de fevereiro de 2013 e 5 de outubro de 2015, entre 3 de setembro de 2015 e 5 de setembro de 2015, entre 10 de fevereiro de 2013 e 5 de outubro de 2015, entre 3 de setembro de 2015 e 5 de setembro de 2015, em 15 de junho de 2015, em 29 de setembro de 2015, em 30 de setembro de 2015 e em 2 de outubro de 2015).

Em 10 de julho de 2018, ou seja, após 9 de abril de 2018, foram cometidos os dois crimes de furto qualificado que emprestam objeto ao processo 25/18.0...

À vista do que antecede, afigura-se incontroverso, em primeiro lugar, que os crimes dos processos 1462/16.0..., 111/15.8... e 491/15.5GEALM estão numa relação de concurso e, como tal, devem ser punidos com uma só pena conjunta, e em segundo lugar, que os crimes do processo 25/18.0... encontram-se com aqueles numa relação de sucessão.

Neste ponto, a decisão do JCC ... é irrepreensível.

A ser acolhida a tese de recorrente, estar-se-ia a realizar um cúmulo por arrastamento, ou seja, um cúmulo com penas de crimes cometidos antes e depois da condenação que primeiro transitou em julgado, neste caso, da condenação proferida no processo 1462/16.0... em clara afronta, aí sim, ao disposto nos arts. 77.º, n.º 1, e 78.º, n.º 1, do CP.

O recurso deve ainda improceder quanto à violação do dever de fundamentação porquanto as razões da não inclusão das penas do processo 25/18.0... na pena única formada pelas penas dos processos 1462/16.0..., 111/15.8... e 491/15.5GEALM estão explicadas, de forma suficiente e clara, coincidente com o que se acabou de expor, nas páginas 8 a 12 do acórdão recorrido.

4.3.2 - A não aplicação do perdão da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto

O arguido insurge-se ainda contra a não aplicação do perdão da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.

No seu entendimento, como o perdão fora aplicado no processo comum 111/15.8..., o acórdão recorrido violou o caso julgado.

Uma vez mais sem razão.

No processo comum 111/15.8..., o arguido AA, nascido em ... de ... de 1987, foi condenado pela prática, em 11 de junho de 2015, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 204.º, n.º 1, al. b), do CP, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, pela prática, no mesmo dia 11 de junho de 2015, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art. 291.º, n.º 1, al. b), do CP, na pena de 8 meses de prisão, pela prática, em 19 de agosto de 2015, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 204.º, n.º 1, al. b), do CP, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena única de 2 anos e 3 meses de prisão.

Segundo a lição da doutrina, a decisão de cúmulo jurídico não forma caso julgado. O «caso julgado relativamente aos cúmulos jurídicos vale rebus sic stantibus já que, se entretanto se alterarem as circunstâncias, nomeadamente pelo facto de ter que se englobar outras penas, então as penas parcelares cumuladas adquirem plena autonomia e, num juízo contemporâneo, irá realizar-se nova operação para aplicação da pena única» (Tiago Caiado Milheiro, Cúmulo Jurídico Superveniente, Noções Fundamentais, Almedina, 2016, página 87).

«Se tiver havido cúmulos anteriores, estes são anulados e reelaborados em função dos novos crimes que entram no concurso» (Artur Rodrigues da Costa, obra citada, página 80).

Essa é também a orientação de jurisprudência (v. o acórdão do STJ de 13 de julho de 2016, processo 101/12.2SVLSB.S1, relatado pelo conselheiro Raúl Borges, com abundante citação de jurisprudência, em www.dgsi.pt).

Nos termos conjugados dos arts. 2.º, n.º 1, e 3.º, n.ºs 1 e 4, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos aplicadas por ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, sendo que, em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.

No presente caso, apesar de todos os crimes em concurso terem sido praticados antes das 00:00 horas de 19 de junho de 2023, quando o arguido tinha entre 16 e 30 anos de idade, certo é que o tribunal coletivo, ao reformular o cúmulo jurídico, fixou a pena única de prisão em 8 anos e 6 meses de prisão.

Bem decidiu, por isso, ao não aplicar o perdão [embora deva registar-se que, contrariamente ao referido no acórdão recorrido («No em apreço, os ilícitos objetos da condenação não integram o elenco das exceções à aplicação do perdão …»), a pena do crime de condução perigosa não é abrangida pelo perdão (art. 7.º, n.º 1, al. d), subalínea ii), da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto)].

4.3.3 - A medida da pena única

(…)

In casu, a moldura abstrata do concurso tem um mínimo de 2 anos e 3 meses de prisão e um máximo de 17 anos e 8 meses de prisão.

O ilícito global integra sete crimes de furto qualificado (dois de coisas com valor elevado e todos de coisas colocadas ou transportadas em veículos), dois crimes de recetação de veículos automóveis, dois crimes de falsificação de chapa de matrícula de veículo automóvel e um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, ou seja, crimes que atentam contra a propriedade e património alheios (furto e recetação), a segurança e credibilidade probatória de documentos que, neste caso, têm por objetivo permitir a identificação de um veículo (falsificação) e a segurança rodoviária e, reflexamente, a vida, a integridade física e o património alheio (condução perigosa de veículo rodoviário).

O grau de ilicitude do conjunto dos factos não deixa de ser considerável, nomeadamente em relação aos crimes e furto e de recetação, que formam a maioria dos crimes em concurso, pela atuação em comparticipação (com a única exceção do crime de furto qualificado do processo comum 111/15.8... cometido em 19 de agosto de 2015), pela área geográfica onde os furtos foram cometidos (...), pelo valor global dos bens furtados (pelo menos 19.042 Euros) e não recuperados (com exceção dos subtraídos no furto do processo 1462/16.0...), e pelos objetos recetados (veículo BMW modelo 730D e Audi modelo B8).

Em todas as situações o arguido atuou com dolo direto.

Os crimes em concurso foram cometidos entre 11 de junho de 2015 (pelo menos) e 6 de setembro de 2016 e, entrecruzados com os antecedentes criminais do arguido, revelam uma personalidade desconforme ao direito.

A execução profissional dos crimes de recetação, de falsificação e de furto e a condução suicida na localidade de ..., durante o dia e para fugir a uma perseguição policial, acentuam as necessidades de prevenção geral e de reafirmação da validade das normas violadas.

Da mesma forma, as exigências de prevenção especial, pese embora as circunstâncias que o acórdão recorrido relevou em favor do arguido, a saber, «o apoio familiar e a motivação para se qualificar a nível escolar», «a ocupação laboral no meio prisional» e o ganho, durante a reclusão, de «capacidade de avaliação crítica face ao seu percurso delituoso e de reflexão sobre os factos pelos quais foi condenado», não deixam de ser elevadas face ao seu trajeto criminal, com condenações que remontam ao ano de 2012 pela prática de crimes de detenção de arma proibida, de furto qualificado, de roubo, de desobediência, de recetação, de ofensa à integridade física e de introdução em lugar vedado ao público.

O suicídio do progenitor na presença do arguido e a depressão de que o mesmo padece e que sobreveio quando já se encontrava recluso em nada diminuem a gravidade global dos factos ou as exigências de prevenção.

Na ponderação deste todo, estamos convictos de que a pena de 8 anos e 6 meses de prisão, situada pouco acima do primeiro terço da moldura abstrata do cúmulo, é equilibrada, respeita os critérios emergentes do art. 77.º, n.º 1, do CP, não excede a medida da culpa do arguido nem viola os princípios da necessidade e da proporcionalidade da pena.

Nada mais se oferecendo aduzir, e sem prejuízo do exposto em 4.1 e 4.2, emite-se parecer no sentido da improcedência do recurso”


A.4. Contraditório


Devidamente notificado nos termos do disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, o recorrente não apresentou resposta.


* * *


Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.


B - Fundamentação


B.1. Os Factos


“1. Do certificado de registo criminal do arguido AA consta condenação:

a) Por sentença de 08/10/2012, transitada em julgado em 29/01/2016, processo 309/09.8..., ... juízo criminal da extinta comarca do ..., um crime de detenção de arma proibida praticado em 10/03/2009, pena de 120 dias de multa à taxa diária de 5,00 €, extinta em 01/08/2018.

b) Por sentença de 02/10/2013, transitada em julgado em 04/11/2013, processo 1467/10.4..., juízo local criminal de ..., juiz ..., por um crime de furto qualificado praticado em 09/09/2010, pena de 210 dias de multa à taxa diária de 6,00 €, extinta em 27/09/2017.

c) Por acórdão de 14/03/2017, transitado em julgado em 24/04/2017, processo 318/12.0..., juízo central criminal de ..., Juiz ..., por um crime de furto qualificado e um crime de detenção de arma proibida, praticados em 06/07/2012, na pena de 3 anos e 2 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período, acompanhada de regime de prova, extinta em 26/06/2020.

d) Por sentença de 04/12/2013, transitada em julgado em 16/01/2014, processo 160/11.5..., instância criminal de ..., por um crime de roubo e um crime de desobediência praticados em 28/11/2011, pena única de 380 dias de multa à taxa diária de 5,00 €, substituída por 380 horas de trabalho em favor da comunidade, extinta em 30/06/2016.

e) Por sentença de 13/03/2014, transitada em julgado em 22/04/2014, processo 546/12.8..., ... juízo criminal da extinta comarca do ..., um crime de recetação praticado em 29/12/2012, pena de 60 dias de multa à taxa diária de 5,00 €, extinta em 03/06/2016.

f) Por sentença de 07/10/2014, transitada em julgado em 07/10/2014, Processo 87/14.9..., juízo local criminal de ..., juiz ..., por dois crimes de furto qualificado praticado em 16/04/2014, pena de única de 16 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período, acompanhada de regime de prova, extinta em 06/11/2020.

g) Por acórdão de 24/02/2015, transitado em julgado em 26/03/2015, Processo 1756/08.8..., juízo central criminal de ..., juiz ..., por um crime de detenção de arma proibida e dois crimes de ofensa da integridade física, praticados em 03/08/2011 e 03/09/2011, pena única de 300 dias de multa, à taxa diária de 6,00 €, extinta em 14/04/2018.

h) Por sentença de 01/03/2018, transitada em julgado em 09/04/2018, processo 1462/16.0..., juízo local criminal de ..., juiz ..., um crime de furto qualificado praticado em 06/09/2016, pena de 1 ano de prisão suspensa na sua execução por 5 anos, acompanhada de regime de prova, tendo sido revogada a suspensão por despacho de 08/10/2020.

i) Por sentença de 15/01/2016, transitada em julgado em 15/02/2016, Processo 50/14.0..., juízo de competência genérica de ..., por um crime de introdução em lugar vedado ao público praticado em 08/08/2014, pena de 1 mês e 15 dias de prisão suspensa na sua execução por 1 ano, extinta em 15/02/2016.

j) Por acórdão de 04/03/2019, transitado em julgado em 02/09/2019, Processo 25/18.0..., juízo central cível e criminal de ..., juiz ..., por dois crimes de furto qualificado, praticados em 10/07/2018, pena única de 4 anos e 3 meses de prisão.

k) Por sentença de 17/11/2019, transitada em julgado em 10/12/2019, Processo 111/15.8..., juízo local criminal de ..., por dois crimes de furto qualificado e um crime de condução perigosa de veículo rodoviário praticados em 11/06/2015 e 19/08/2015, nas penas de 1 ano e 6 meses de prisão, 1 ano e 6 meses de prisão e 8 meses de prisão, respetivamente e, em cúmulo, na pena única de 2 anos e 3 meses de prisão.

l) Nos presentes autos, processo 491/15.5GEALM, deste juízo central criminal ..., juiz ..., por acórdão de 08/07/2022, transitado em julgado em 24/03/2023, por dois crimes de recetação, nas penas de 1 ano de prisão por cada um, por dois crimes de falsificação de documento, nas penas de 1 ano e 6 meses por cada um, por um crime de furto qualificado, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão e por dois crimes de furto qualificado, nas penas de 2 anos e 3 meses de prisão por cada um, todos praticados em 2015, sendo, em cúmulo, na pena única global de 7 anos de prisão.

*

(Do relatório social):


2. AA é o mais velho de dois irmãos, oriundo de um agregado familiar de condição socioeconómica frágil.


3.O progenitor era vendedor ambulante e a progenitora trabalhadora na área da restauração.


4.O processo de socialização terá decorrido num contexto familiar pautado pela ausência da figura paterna, que cumpriu pena de prisão efetiva.


5.Aos 14 anos de idade, e devido à reclusão também da progenitora, AA e o seu irmão integraram o agregado dos tios maternos, durante dois anos e, posteriormente da avó materna, situação que foi mantida até à liberdade do progenitor, tendo o arguido cerca de 16/17 anos.


6. O padrão educativo dos vários agregados, pautou-se pela permissividade e pouco investimento, não existindo regras, normas ou limites.


7. A frequência escolar de AA regulou-se por desinvestimento, registando absentismo escolar.


8. Concluiu o 6º ano de escolaridade com 18 anos, no ensino noturno.


9. A nível laboral integrou o mercado de trabalho cerca dos 17 anos, na área da construção civil, vindo mais tarde a efetuar aprendizagem do ofício de carpinteiro de cofragens, permitindo-lhe assim, passar a trabalhar por conta de outrem, por um período de 4 anos, vindo a abandonar este trabalho e regista ainda trabalho por conta de outrem como empregado de armazém.


10. Com 23 anos, passou a trabalhar com a progenitora, por conta desta, no ramo da restauração, na exploração de uma cafetaria.


11. Veio a beneficiar de subsídio de desemprego, tendo posteriormente obtido colocação a tempo parcial numa firma de aproveitamento de sucata.


12. A expressividade laboral é pouco significativa e efetuada em diversos locais do país.


13. Em termos de atividades de lazer não lhe eram conhecidas quaisquer práticas estruturadas.


14. O pai suicidou-se há cerca de 7 anos, na sua presença.


15. Aos 24 anos, constituiu família, tendo o relacionamento terminado já durante a reclusão.


16. AA regista percurso criminal tendo sido condenado por diversas tipologias de crime, nomeadamente crimes de furto, roubo, desobediência, recetação e detenção de arma proibida.


17. AA de 35 anos de idade, encontra-se no Estabelecimento Prisional ..., desde 12 de julho de 2018, a cumprir pena de 4 anos e 3 meses no âmbito do processo 25/18.0... e, tem a cumprir sucessivamente mais 2 anos e 8 meses, no âmbito do processo 111/15.8..., em ambos, condenado por crimes de furto, furto qualificado e roubo.


18. No período temporal entre março e outubro de 2019, AA foi transferido para o Hospital Prisão ..., devido a problemas psiquiátricos, onde permaneceu internado durante cerca de 4 meses, encontrando-se medicado e em acompanhamento médico, com diagnostico de depressão.


19. À data dos factos, residia com a companheira e a enteada de 19 anos de idade, em casa cedida por familiares, porém, este relacionamento veio a terminar durante a pena de prisão, há cerca de 2 anos.


20. AA mantinha um estilo de vida socialmente desvinculado, com fraco sentido crítico, tendendo a atribuir à sociedade a responsabilidade pelos seus atos, características que condicionaram a sua inserção social, permanecendo maioritariamente sem qualquer ocupação ou atividade lúdica estruturada.


21. Apresenta-se como um indivíduo com fracas competências pessoais, sociais e laborais e, com dificuldade na sua organização pessoal, situação que tem vindo a trabalhar, no sentido de adquirir melhores e mais competências aos vários níveis.


22. Apesar das contrariedades, o arguido, conta com o apoio da progenitora e da avó materna, que apesar de desiludidas, se revelam disponíveis para apoiar o mesmo.


23. No Estabelecimento Prisional já concluiu o equivalente ao 12º ano, verbalizando vontade de prosseguir a sua vida académica.


24. A nível laboral, encontra-se a desenvolver tarefas de faxina na cozinha, há cerca de 3 anos.


25. Mantém um comportamento adequado, recebendo, com a regularidade possível, visitas da progenitora.


26. No que concerne aos factos de que foi acusado, não consegue justificar a sua atitude, verbalizando arrependimento, considerando que a pena efetiva de prisão, tem vindo a ter um efeito positivo, na forma como encara as normas e regras de uma sociedade de direito.


27. De referir que a privação de liberdade tem vindo a exercer de forma positiva, reconhecimento do desvalor social das problemáticas em causa. Mantém, o apoio da progenitora e da avó materna.


28. Estamos perante um individuo que desenvolveu um estilo de vida marginal, desorganizado, sem regras nem rotinas estruturadas, com vasto percurso criminal em várias tipologias de crimes.


29. Parece agora, apresentar interiorização dos normativos sociojurídicos vigentes, com sentido crítico face aos seus comportamentos.


30. Mantém o apoio da progenitora e um comportamento isento de reparos no Estabelecimento Prisional, demonstrando agora, interiorizar a ilicitude das suas condutas.


B.2. Âmbito do recurso


O âmbito do recurso delimita-se, como se sabe, pelas conclusões do recorrente (artigos 402º, 403º e 412º do Código de Processo Penal) sem prejuízo, se necessário à sua boa decisão, da competência do Supremo Tribunal de Justiça para, oficiosamente, conhecer dos vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410º, nº 2, do mesmo diploma legal, (acórdão de fixação de jurisprudência nº 7/95 in D.R. I Série de 28 de dezembro de 1995), de nulidades não sanadas (nº 3 do aludido artigo 410º) e de nulidades da sentença (artigo 379º, nº do Código de Processo Penal), podendo ainda conhecer-se oficiosamente de irregularidades que possa afetar o valor do ato praticado (artigo 123º, nº 2 do Código de Processo Penal).


As questões colocadas pelo recorrente e que cumpre apreciar neste recurso são a seguinte:

Nulidade do acórdão nos termos do artigo 379º, nº 1, al a) do Código de Processo Penal, por “violação do dever de fundamentação imposto pelos artºs 97º nº 5 e 374º nº 2 do CPP, uma vez que não explicita as razões de direito que levam à não inclusão da referida pena de 4 anos e 3 meses do processo nº 25/18.0... no cúmulo efectuado”;

Incorreta exclusão do cúmulo jurídico efetuado da pena aplicada no processo nº 25/18.0...;

Incorreta aplicação da Lei nº 38-A/2023, de 2 e agosto, por não ter sido considerado o perdão aplicado a uma pena parcelar, em violação do caso julgado;

Incorreta medida da pena única.


B.2. Questões prévias


B.2.1. Nulidade invocada pelo Recorrente


O recorrente vem, ao abrigo e nos termos do disposto nos artigos 97º, nº 5, 374º, nº 2 e 379º, nº 1, al. a), todos do Código de processo Penal, invocar a nulidade do acórdão, porquanto o mesmo não explicita as razões de direito que levam à não inclusão da referida pena de 4 anos e 3 meses do processo nº 25/18.0... no cúmulo efectuado”


A este propósito, aderimos completamente ao parecer do Digníssimo Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal, que nos dispensa da elaboração de uma fundamentação mais desenvolvida – sobretudo a nível de citações da doutrina e da jurisprudência -, permitindo-nos consignar, apenas, o seguinte:


Na sua fundamentação - e no que ora interessa - o acórdão recorrido começa por tecer um conjunto de considerações – que vai apoiando em doutrina e jurisprudência que vai citando e com a qual concordamos – sendo que, entre as mesmas, figura a seguinte:


“Estabelece o mencionado normativo1 que estão em relação de concurso as penas aplicadas por crimes praticados antes do trânsito em julgado da última condenação.”


E, mais à frente, consigna o seguinte:

“Com idêntico raciocínio, no que respeita aos crimes posteriores, o tribunal considerou o processo 1462/16.0..., operando um terceiro cúmulo (cúmulo c), englobando as penas objeto da condenação, por crimes anteriores, nos processos 111/15.8... e 491/15.5GEALM (estes autos).

Considerando as datas de prática dos ilícitos e do trânsito em Julgado das respetivas condenações, existe, em cada um dos grupos consideradas, relação de concurso, certo que os factos são todos anteriores ao trânsito em julgado da condenação por qualquer deles, excluindo-se, pois, o processo 25/18.1..., uma vez que a data dos factos objeto da condenação (10/07/2018) é posterior a todas as outras condenações consideradas, pelo que acrescerá ao cúmulo a operar, para cumprimento sucessivo.” (sublinhado nosso)

Ou seja, o acórdão recorrido justifica a não inclusão no cúmulo jurídico efetuado das penas aplicadas no Processo 25/18.0... dado que os factos que estiveram na sua aplicação foram cometidos em data posterior (10 de julho de 2018) ao primeiro trânsito em julgado de todas as outras condenações consideradas (9 de abril de 2018).


Portanto, dado que a decisão de não inclusão de tais penas está fundamentada, improcede o recurso quanto à invocada nulidade.


B.2.2. Lapsos e nulidade invocados pelo Ministério Público


Contudo, o Digníssimo Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça vem suscitar um conjunto de muito pertinentes questões que cumpre apreciar.


Antes disso, não podemos deixar de, desde logo, consignar, em tom pedagógico, que, como já se referiu, as decisões dos Tribunais devem pautar-se pelo rigor e ser devidamente fundamentadas, promovendo a sua compreensão pelos seus destinatários…. Por outro lado, importando, seguramente, introduzir as pertinentes citações da doutrina e jurisprudência, há que prestar uma particular atenção e visibilidade aos factos que estão em apreciação (nacos da vida do Povo em nome do qual administramos a justiça!), pois são eles que justificam a intervenção dos Tribunais, constituindo a base de toda a nossa intervenção.


B.2.2.1 Lapsos


B.2.2.1.1. Identificação de processo


Como bem refere o Ministério Público, no ponto 3 do dispositivo do acórdão recorrido refere-se que o cúmulo não inclui as penas aplicadas no processo 25/18.1...


Trata-se, obviamente de um lapsus calami pois as penas que o Tribunal a quo decidiu não englobar no cúmulo jurídico efetuado – e ao qual alude esse parágrafo - foram aplicadas no processo que tem o NUIPC 25/18.0... (e não 25/18.1...),


Tratando-se de lapso, determina-se que o Tribunal a quo (e não neste Tribunal dado o que adiante se decidirá…) proceda à sua correção, ao abrigo do disposto no artigo 380º, alínea b) do Código de Processo Penal.


B.2.2.1.2. Omissão da indicação de uma das penas

O Ministério Público consignou no seu douto parecer que, na parte relativa aos factos dados como provados, quando se reporta às penas aplicadas ao arguido no âmbito do processo 491/15.5GEALM, o acórdão recorrido se esqueceu de acrescentar que o arguido ficou ainda condenado, na sequência de recurso para o Tribunal da Relação de Évora, pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 204.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, na pena de dois anos de prisão.

Fundamenta essa afirmação no conteúdo da certidão junta aos autos – certidão que consta na indicação dos meios de prova que o tribunal a quo valorou na determinação dos factos assentes no acórdão recorrido - e na qual consta o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 25 de janeiro de 2023, que efetivamente condenou o arguido pela prática desse crime e na supra aludida pena2.

Assim, sugere que se faça um aditamento no ponto l) da matéria de facto dada como provada, por forma a que nele também passe a constar a condenação pela prática desse crime e nessa pena.

Funda esse pedido no disposto no artigo 380º, nºs 1, al. b) e 2 do Código de Processo Penal, porquanto caracteriza o ocorrido como um lapso.

Apreciando, verifica-se existir efetivamente uma incompatibilidade evidente entre o meio de prova invocado na fundamentação (a aludida certidão) e os factos dados como provados com base nesse meio de prova, o que, em regra, consubstanciaria um erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410º, nº 2, al. c) do Código de Processo Penal (neste sentido veja-se “Comentário ao Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, de Paulo Pinto de Albuquerque, 5ª edição, Vol. II, pág. 652).

Contudo, na sua fundamentação de direito, quando se reporta ao limite máximo da moldura abstrata da pena única, o acórdão recorrido fixa esse limite em 17 (dezassete) anos e 8 (oito) meses de prisão, número que só se poderá alcançar se, a todas as penas indicadas na matéria de facto dada como provada, se acrescentarem os aludidos 2 anos de prisão.

Ou seja, o que aconteceu não foi uma incorreta valoração do conteúdo da certidão, mas sim um lapso (na indicação dos crimes e penas em que o arguido tinha sido condenado), determinado por mera desatenção do Tribunal a quo na leitura desse meio de prova, porventura porque, na mesma decisão, aquele ficou condenado em vários crimes de furto qualificado.

Assim e acompanhando o magistrado do Ministério Público, entendemos que nos encontramos perante um mero lapso e não perante um erro de julgamento, o que nos reconduz ao disposto no artigo 380º, nº 1, al. b), do Código de Processo Penal.

Com efeito e como tem sido jurisprudência pacífica, o lapso resulta de uma atitude involuntária do juiz, tendo este escrito coisa diversa do que tinha em mente, enquanto no erro de julgamento o juiz escreveu o que pretendia, mas decidiu mal.

Concluindo, concorda-se com a proposta do Ministério Público devendo o Tribunal a quo corrigir o acórdão recorrido nos termos indicados.

B.2.2.2. Nulidade


Ainda o Ministério alega que o acórdão enferma da nulidade prevista nos artigos 379º, nº 1, al. a) e 374º, nº 2 do Código de Processo Penal, em virtude de se ter limitado a uma “singela identificação dos processos, crimes e penas integrados no concurso, sem a menor concretização dos factos típicos cometidos.”


Efetivamente, o acórdão recorrido limita-se, relativamente a cada uma das penas parcelares que considerou no cúmulo jurídico, a indicar: o Tribunal e processo onde foi proferida a decisão, a data de prolação e de trânsito em julgado dessa decisão e o tipo de crime cometido e a pena aplicada.


Ora, desde já se manifesta a nossa concordância relativamente à existência da aludida nulidade, relativa à falta de fundamentação, no que concerne à matéria de facto.


E essa fundamentação afigura-se-nos essencial para se poder determinar a pena única.


Com efeito, sem a indicação dos factos cometidos pelo arguido não é possível dar adequado cumprimento ao disposto no artigo 77º, nº1 do Código Penal (in casu aplicável ex vi artigo 78º, nº 1 do mesmo diploma legal), desde logo por não ser possível ponderar adequadamente a ilicitude do conjunto dos factos praticados e, também, por ficar limitada a apreciação da personalidade do agente, desvelada no cometimento desses factos.


Aliás, têm sido doutrina e jurisprudência pacíficas que, ainda que em formatos diversos, a indicação desses factos é imprescindível para que a decisão se mostre devidamente fundamentada.


Assim e para além das várias citações feitas pelo Ministério Público, podemos ainda aditar as seguintes:


“I - Na falta de preceito específico sobre a fundamentação da sentença de cúmulo jurídico por conhecimento superveniente do concurso, deverão respeitar-se os requisitos gerais da sentença previstos no art. 374.º do CPP, devendo, no caso, a fundamentação conter todos os factos que interessam à realização do concurso de crimes e à determinação da pena única.


II - Embora a jurisprudência do STJ venha considerando, de modo reiterado, não ser necessário que a decisão que efetua o cúmulo jurídico proceda à enumeração dos factos dados como provados em cada uma das sentenças onde as penas parcelares foram aplicadas, não deixa de exigir que dela constem, ao menos resumidamente, os factos que permitam apreender aos destinatários da decisão, as conexões ou ligações fundamentais à avaliação da gravidade da ilicitude global e da personalidade unitária do agente.


III - Dos «factos provados» no acórdão recorrido, consta a indicação dos processos cujas condenações integram o cúmulo jurídico por conhecimento superveniente do concurso, as datas da prática dos factos, as datas das decisões, as datas do trânsito em julgado, os crimes e as penas impostas, as condenações que constam do certificado do registo criminal do arguido e, por fim, o que o tribunal coletivo extraiu “do relatório social” no respeitante às condições de vida, sociais e familiares, incluindo fatores relativos à sua personalidade.


IV - A ausência de descrição dos factos, na sua singularidade concreta, imprescindíveis para avaliar o grau de ilicitude global e a personalidade unitária do arguido que deles resulta, determina a nulidade do acórdão cumulatório, nos termos conjugados dos arts. 374.º, n.º 2 e 379.º, n.os 1, al. a) e 2, do CPP, pelo que se impõe a devolução do processo ao tribunal a quo a fim de a suprir.”


Ac. de 10-01-2023 do STJ - 5ª secção – Proc. 10/20.1PAVLS.L2.S1, disponível em www.dgsi.pt


“I. Estando em causa um acórdão cumulatório, que procede ao cúmulo jurídico das penas aplicadas ao arguido em 5 processos, devidamente identificados, não é essencial a enumeração dos factos não provados, uma vez que tal já foi efetuado em cada uma das decisões singulares proferidas nos processos englobados no cúmulo jurídico, pelo que não faz sentido a arguição, com esse fundamento, de nulidade.


II. Crucial numa decisão com estas caraterísticas é que se faça referência aos factos concretamente perpetrados, com a enumeração de cada uma das condenações sofridas, ordenadas pela data da prática dos crimes pelos quais o agente se mostra definitivamente condenado, com a expressa discriminação da cronologia da ação ou omissão e das respetivas normas incriminadoras, acompanhada pelo menos de uma síntese compreensiva da atuação dada como provada, o que, na verdade, foi efetuado até de forma exaustiva, no acórdão em análise.”


Ac. de 13 de setembro de 2023 do STJ - Proc. 555/18.3GBABF.1.S1, disponível em www.dgsi.pt


Como já atrás referiu, no caso em apreço o acórdão recorrido não contém qualquer referência aos factos cometidos pelo arguido.


Aliás, mesmo quando alude aos crimes pelo mesmo praticados, não indica as disposições legais incriminadoras, o que também merece censura.


Com efeito e apenas para dar um exemplo, não será seguramente indiferente para a ponderação da pena única a indicação do número e da alínea do artigo 204º do Código Penal que conduz a que o crime de furto seja qualificado…


Portanto e em conclusão, o acórdão recorrido enferma da nulidade a que se reportam os artigos 379º, nº 1, al. a) e 374º, nº 2 do Código de Processo Penal e deve ser substituído por outro que sane essa nulidade.


B.3. Nota final


O Digníssimo Procurador-Geral-Adjunto sugere que seja este Supremo Tribunal de Justiça a suprir a nulidade e demais deficiências atrás apontadas.


Discordamos.


Com efeito, desde logo como refere Paulo Pinto de Albuquerque3 que “O tribunal de recurso tem o poder de “suprir” as nulidades da sentença. Mas este poder é muito reduzido na prática, porque ele só poderá exercido negativamente. Isto é o tribunal de recurso só pode exercer o poder de suprir a nulidade nos casos em que o tribunal recorrido se tenha pronunciado sobre questões de que não podia conhecer (nulidade da 2ª parte da al. c) do nº 1).”


No mesmo sentido e a título exemplificativo, veja-se o seguinte aresto deste Supremo Tribunal de Justiça:


“VI - A sentença do concurso de crimes é uma decisão autónoma, auto-suficiente, devendo, por isso conter todos os elementos por forma a que se possa apreender a situação de facto ali julgada e compreender a decisão de direito. Trata-se da função de convicção (e de legitimação) que a sentença deve cumprir.


VII - Esta função de convicção não é cumprida no acórdão cumulatório se aí se omitem completamente os factos que determinaram a condenação da arguida nos três processos englobados na decisão cumulatória.



VIII - Não sendo necessário que a decisão que efectue o cúmulo jurídico de penas, aplicadas em decisões já transitadas, enumere exaustivamente os factos dados por provados nas decisões anteriores, é, porém, imprescindível que contenha uma descrição, ainda que sumária, desses factos, de modo a permitir conhecer a realidade concreta dos crimes anteriormente cometidos e a personalidade do arguido, neles manifestada.

IX - Sendo patente a completa ausência dos factos descritivos das condutas pelas quais a arguida, ora recorrente, foi condenada nas penas aplicadas nos processos convocados para a realização do cúmulo, em violação do disposto no art. 374.º, n.º 2, do CPP, tal omissão integra a nulidade prevista no art. 379.º, n.º 1, al. a), do mesmo diploma

X - Não incumbe ao STJ indagar e seleccionar os factos, nomeadamente recorrendo às certidões das decisões que se encontrem juntas nos autos, uma vez que como tribunal de recurso, de reexame da matéria de direito, sindica o teor da decisão recorrida e não supre as deficiências factuais desta.”


Ac. do STJ de 20-04-2016 – Proc. 519/10.5JDLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt


C – Decisão


Por todo o exposto, decide-se anular a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra, a elaborar pelo Tribunal a quo e que sane a nulidade e deficiências apontadas.


Sem custas


D.N.


Supremo Tribunal de Justiça, d.s. certificada


(Processado e revisto pelo relator - artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)


Celso Manata (Relator)


Albertina Pereira (1º Adjunto)


Vasques Osório (2º Adjunto)


____________________________________________________

1. Artigo 77º, nº 1 do Código Penal↩︎

2. Nesse acórdão o Tribunal da Relação de Évora alterou as penas aplicadas ao arguido, tendo o mesmo ficado condenado nas seguintes penas parcelares: pela prática de dois crimes de recetação (art. 204º, nº 1 do CP) 1 ano de prisão por cada um deles; dois crimes de falsificação de documento agravada (artigo 256º, nºs 1, al. b) e 3 do CP) 1 ano e 6 meses por cada um deles; dois crimes de furto qualificado (artigo 204º, nº 1, al. b) do CP) respetivamente, 1 ano e 6 meses e 2 anos de prisão; e dois crimes de furto qualificado (artigo 204º, nº 1, al. a) do CP) 2 anos e 3 meses, por cada um deles.↩︎

3. Ob. citada, pág. 494↩︎