Processo n.º 1324/16.0T8AMT.P1.S1
Revista – Tribunal recorrido: Relação do Porto, ... Secção
Acordam em Conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça
I. RELATÓRIO
A) Foi proferida em 31/1/2017 pelo Juiz ... do Juízo de Comércio ... (Tribunal Judicial da Comarca do Porto Oeste) decisão que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, determinando-se que o rendimento do devedor que ultrapasse o equivalente a 1 salário mínimo nacional para ele por mês, considerando os 12 meses do ano, seja cedido ao fiduciário nomeado, de acordo com a qual se deferiu o requerido pedido e se proferiu despacho inicial de exoneração do passivo do insolvente relativamente aos cinco anos subsequentes ao trânsito em julgado.
B) Depois de requerida nos autos, o Juiz ... do Juízo de Comércio ... proferiu em 30/9/2020 decisão de cessação antecipada do procedimento de exoneração tendo em conta a falta de entrega do montante do rendimento disponível atinente aos dois primeiros anos do período de cessão e subsequente violação, pelo menos com grave negligência, da obrigação imposta pelo art. 239º, 2, 4, c), de acordo com o previsto no art. 243º, 1, a), sempre do CIRE, com a seguinte fundamentação:
“No caso dos autos constata-se que em 15-03-2019 o devedor tinha uma dívida à massa da fidúcia do valor de € 14.366,36 inerente aos dois primeiros anos de cessão.
Por requerimento de 01-04-2019 o devedor veio requerer o pagamento daquela quantia em prestações, o que foi deferido por despacho de 03-05-2019.
A verdade, porém, é que aquele acordo prestacional não foi cumprido.
Ora, ao não entregar o montante do rendimento disponível atinente aos dois primeiros anos do período de cessão o insolvente violou, pelo menos com grave negligência, a obrigação que lhe é imposta pelo artigo 239.º, n.os 2 e 4, al. c) do CIRE e assim prejudicando o interesse dos credores.
Senão vejamos.
Deriva do artigo 239.º, n.º 4, al. c) do CIRE que durante o período de cessão o devedor fica obrigado a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão.
Aliás, o rendimento disponível deve ser entregue directamente ao fiduciário, e não aos insolventes que, por seu turno, os entregam ao fiduciário (cfr. Carvalho Fernandes/J. Labareda in CIRE Anotado, 3.ª ed., Quid Iuris, p. 860).
Por outro lado, essa entrega deve ser efectuada imediatamente, isto é, logo que deva ser entregue ao devedor.
Daí que quando as parcelas que foram entregues ao devedor que perfazem o montante global de € 14.366,36, deveria ele, imediatamente, tê-las transferido para o Exmo. Sr. Fiduciário, pois que elas não lhe pertenciam, pertencendo antes à massa da fidúcia.
O comportamento/omissão de transferência imediata dos valores em causa para a massa da fidúcia deve ter-se, pelo menos, como gravemente negligente.
A negligência grave deve ser entendida, como foi defendido no Ac. da R.P. de 08-02-2018 in www.dgsi.pt, proc. n.º 499/13.5TJPRT.P1, “como a atuação do devedor que, consciente dos deveres a que se encontrava vinculado, e da possibilidade de conformar a sua conduta de acordo com esses deveres, não o faz, em circunstâncias em que a maioria das pessoas teria atuado de forma diversa.”
Por outro lado, esse comportamento/omissão prejudicou o interesse dos credores.
Observe-se que a lei se basta com a existência de um mero prejuízo dos credores, que não tem que ser relevante (cfr. Ac. da R.G. de 14-06-2018 in www.dgsi.pt, proc. n.º 4706/15.1T8V.G1; cfr. ainda Ac. da R.P. de 08-02-2018 in www.dgsi.pt, proc. n.º 499/13.5TJPRT.P1).
No caso, para sanar o prejuízo do interesse dos credores, foi dada oportunidade ao devedor de pagar a referida quantia em prestações mensais.
Sucede que também este plano prestacional manifestamente não foi cumprido pelo devedor, de sorte que se mantém o prejuízo do interesse dos credores que não viram satisfeitos os seus créditos, ainda que parcialmente, pelo produto da cessão de rendimentos.
Encontra-se, assim verificado o pressuposto para a cessação antecipada do procedimento de exoneração plasmado no artigo 243.º, n.º 1, al. a), por referência ao artigo 239.º, n.º 2 do CIRE.
Nestes termos, determina-se a cessação antecipada do procedimento de exoneração, recusando-o.”
Em acréscimo, transcreve-se o teor do requerimento de cessação antecipada do procedimento de exoneração por parte da credora requerente:
“1. A exoneração do passivo restante assenta num benefício concedido ao devedor de um recomeço económico permitindo aos seus credores o ressarcimento dos créditos; conforme resulta do preâmbulo do decreto-lei que aprova o CIRE, o designado fresh start.
2. A exoneração destina-se às pessoas singulares insolventes, de boa-fé, conduta que não precede nestes autos.
3. O insolvente não cumpriu nem o 1.º, nem o 2.º ano de cessão, no entanto, os credores e este Tribunal concedo-lhe o benefício da dúvida e oportunidade de se retratar, foi-lhe disponibilizado um plano de pagamentos para o incumprimento, novamente não cumpriu;
4. não prestou qualquer satisfação, sequer.
5. O insolvente assumiu uma conduta omissiva reiterada, visto que no 3.º ano, nada cedeu, nada informou.
6. A exoneração foi requerida pelo próprio insolvente, em seu benefício, no entanto este pura e simplesmente não quer saber.
7. Com a sua conduta omissiva o Insolvente violou o plano além dos princípios orientadores da boa fé, transparência, cooperação entre outros, o disposto nos artigos 239.º n.2, n.4 alíneas a) do CIRE, o plano de pagamentos, tudo em prejuízo dos credores.
8. Importa destacar que o Insolvente não cumpre nem com os pagamentos, nem com o dever de informação.”
C) Inconformado, o devedor insolvente interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, que, identificando como objecto “a verificação da existência dos pressupostos para a ocorrência da verificação [em rigor, cessação] antecipada da exoneração do passivo”, proferiu acórdão em 29/4/202, negando-lhe provimento e confirmando a decisão recorrida.
D) Novamente sem se resignar, veio o devedor insolvente interpor recurso de revista, convolada oficiosamente por despacho do aqui Relator para revista baseada no art. 14º, 1, do CIRE (arts. 6º, 2, 193º, 3, 547º, CPC), tendo por fundamento oposição jurisprudencial com o Ac. proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 14/7/2020, processo n.º 797/12.5TBGDM.P1, com certificação de trânsito em julgado em 4/8/2020 (após instrução promovida nos autos e resposta do Recorrente, sob ref.ª ...58).
O Recorrente apresentou, a finalizar as suas alegações de revista, as seguintes Conclusões (pertinentes em razão do acórdão fundamento):
“a. O Douto Tribunal a quo proferiu acórdão onde confirmou a decisão do Tribunal de 1ª instância de cessação antecipada da exoneração do passivo restante do aqui Recorrente, a que se refere o art. 243/1a CIRE, por incumprimento da obrigação de entrega do rendimento a que estava obrigado o aqui Recorrente.
b. A decisão aludida foi aplicada em clara violação da lei e em clara contradição com decisões já transitadas em julgado dos Tribunais da Relação e até com decisões do Supremo Tribunal de Justiça, que exige no art. 243/1a CIRE a existência de um prejuízo efetivo para os credores da insolvência, seja ele relevante ou não.
c. Pelo que, o presente recurso deve ser admitido.
d. A matéria de facto provada não alude a comportamentos negligentes por parte do Recorrente nem a quaisquer prejuízos por parte dos credores.
e. A alegação e prova de que o devedor incumpriu dolosamente ou com grave negligência uma das suas obrigações, bem como, a verificação de um prejuízo dos interesses dos credores, competia aos credores.
f. O Acordão recorrido concluiu pela presunção de que a conduta do Recorrente “… tem óbvios reflexos económicos nos credores, prejudicando-os na solvência dos seus créditos”.
g. Tal presunção viola o princípio do ónus da prova.
h. Além de que, tal interpretação é contraria a decisões já transitadas em julgado proferidas pelos Tribunais da Relação e pelo Supremo Tribunal de Justiça quanto a esta matéria.
i. Nomeadamente:
(…)
- Acordão do Venerando Tribunal da Relação do Porto, em 14-07-2020, no processo nº 797/12.5TBGDM.P1 pela Relatora Fátima Andrade, em cujo sumário podemos ler:
“I – Nos termos do artigo 243º nº1 al. a) do CIRE é fundamento da cessação antecipada do procedimento de exoneração (ou recusa, ex vi 244º nº2) a violação dolosa ou com grave negligência do devedor de alguma das obrigações impostas pelo artigo 239º que por essa via tenham prejudicado a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
II – Recai sobre o fiduciário ou credor requerente de tal cessação antecipada, o ónus de alegação fundamentada e prova da violação e circunstancialismo exigidos e mencionados em I. (sublinhado e negrito nosso).
III – É vedado o conhecimento pelo tribunal de recurso de questões novas antes não suscitadas entre as partes, nos termos do artigo 608º nº2 do CPC.”
Pontos estes que o mesmo Tribunal desenvolve afirmando que:
“Bem como é exigida a demonstração de que tal incumprimento prejudicou a satisfação dos créditos.” (sublinhado e negrito nosso).
j. O Acordão recorrido violou o disposto nos artigos 342.º do Código Civil, 243.º, do CIRE, 607.º n.º 3 e 4, e 615.º n.º 1, c), todos do Código Processo Civil.”
E) Foi proferido despacho pelo aqui Relator no âmbito de aplicação e para os efeitos do art. 655º, 1, do CPC, ex vi art. 679º, do CPC e 17º, 1, do CIRE, uma vez verificado que, relativamente às questões fundamentais de direito elencadas, incidentes sobre a interpretação do art. 243º, 1, a), do CIRE, não se vislumbraria oposição entre os acórdãos em confronto que permitisse o conhecimento do objecto do recurso à luz do exigido como condição de admissibilidade recursiva pelo art. 14º, 1, do CIRE.
O Recorrente respondeu e, com a reiteração dos seus argumentos, em especial para a subsistência de oposição jurisprudencial, pugnou pela admissibilidade do recurso e sua procedência.
Foram consignados e obtidos os vistos legais por meios electrónicos nos termos do art. 657º, 2, ex vi art. 679º, do CPC.
Cumpre apreciar e decidir.
II. APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTAÇÃO
Questão prévia da admissibilidade do recurso
F) A revista do Insolvente e aqui Recorrente visa a revogação do acórdão recorrido, que inverta a decisão de cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, no âmbito deste incidente do processo de insolvência (arts. 235º e ss do CIRE). Este incidente, sendo tramitado endogenamente nos próprios autos de insolvência, rege-se pelo especial regime de recursos previsto no artigo 14º, 1, do CIRE, aplicável restritivamente e, por isso, delimitador da susceptibilidade do recurso de revista do acórdão recorrido, após convolação operada pelo despacho proferido e descrito sob D).
Determina o art. 14º, 1, do CIRE:
«No processo de insolvência e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das Relações ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686º e 687º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme».
Daqui resulta que o recorrente tem o ónus de demonstrar que a diversidade de julgados a que respeitam os acórdãos em confronto é consequência de uma interpretação divergente da mesma questão fundamental de direito na vigência da mesma legislação, conduzindo a que uma mesma incidência fáctico-jurídica tenha sido decidida em termos contrários, sob pena de não inadmissibilidade do recurso do acórdão recorrido e apreciação do seu mérito.
Para existência da indispensável oposição jurisprudencial, as decisões entendem-se como divergentes se se baseiam em situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo – tendo em vista os específicos interesses das partes em conflito – são análogas ou equiparáveis, pressupondo o conflito jurisprudencial uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria factual subjacente a cada uma das decisões em confronto, sendo que, nesse contexto, a questão fundamental (ou questões fundamentais) de direito em que assenta(m) a alegada divergência assume(m) um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso (v., recentemente e por todos, o Ac. do STJ de 26/5/2021, processo n.º 2543/19.3T8VNF.G1.S1, Rel. Henrique Araújo).
Assim, para que o STJ seja chamado a pronunciar-se, orientando a jurisprudência em tais tipos de processos, é necessário concluir, previamente, que existe uma oposição (frontal e expressa, por regra) de entendimentos nos acórdãos em confronto sobre a aplicação de determinada solução legal, sendo que – reitere-se – tal divergência se projecta decisivamente no modo como os casos foram decididos.
G) Vistas as Conclusões apresentadas na revista, o Recorrente alega, incidindo sobre a interpretação do art. 243º, 1, a), do CIRE, que o acórdão recorrido estaria em oposição com o acórdão fundamento, em face da situação factual correspondente à falta de entrega pelo devedor insolvente dos montantes objecto de cessão do rendimento disponível no âmbito de exoneração do passivo restante, quanto:
— ao princípio e normas aplicáveis sobre o ónus de alegação e prova dos factos relativos aos pressupostos de aplicação do art. 243º, 1, a), do CIRE;
— à necessidade de preenchimento do requisito correspondente ao prejuízo da satisfação dos credores da insolvência.
Vejamos.
H) No acórdão recorrido, foi considerada relevante a seguinte factualidade para a decisão:
“1. No relatório/informação anual de 13-03-2020 o Exmo. Sr. AI deu nota nos autos que o valor em dívida para o 2.º ano de cessão de rendimentos é de € 7.823,79, acrescentando que o devedor não cumpriu o plano de pagamentos que havia apresentado nos autos (cfr. req. de 01-04-2020 e despacho de 03-05-2019). Informou-se ainda que no 3.º ano de cessão o devedor deveria ter cedido o montante de € 8.392,23. Terminou e requerendo a notificação do insolvente para regularizar os valores em divida ou apresentar um plano de pagamento, referente ao valor global em dívida de € 22.753,52.
2. Por requerimento de 13-03-2020 o Digno Magistrado do Ministério Público requereu o cumprimento do disposto no artigo 243.º, n.º 3 do CIRE, e caso o devedor não entregasse o montante em dívida no prazo que lhe fosse fixado, fosse declarada cessada antecipadamente e recusada a exoneração do passivo restante.
3. Em 16-03-2020 foi proferido o seguinte despacho: “No relatório/informação anual de 15-03-2019, o Exmo. Sr. Fiduciário informou os autos que por conta do 1.º e 2.º anos de cessão de rendimentos o insolvente devia à massa da fidúcia o valor de € 14.366,36.
4. Por requerimento de 01-04-2019 o devedor veio requerer o pagamento daquela quantia em prestações, o que foi deferido por despacho de 03-05-2019.
5. Veio o Exmo. Sr. Fiduciário, no seu relatório de 13-03-2020, informar que o devedor não cumpriu o plano de pagamentos apresentado.
6. Desta forma, notificou-se o devedor para, em 10 dias, demonstrar nos autos que procedeu ao depósito na conta da massa da fidúcia da quantia de €14.366,36, que deveria ter sido cedida durante os dois primeiros anos do período de cessão, sob expressa cominação de, não o fazendo, poder vir a ser cessado antecipadamente o procedimento de exoneração. Advertiu-se desde logo o devedor de que não seria admitido novo requerimento para pagamento daquela quantia (em dívida nos dois primeiros anos do período de cessão) em prestações. (…).
7. Por outro lado, do teor do relatório/informação anual que antecede emerge que o devedor deveria ter cedido a quantia de € 8.392,23 no 3.º ano de cessão de rendimentos. Assim, quanto a esse valor, foi notificado o devedor do relatório apresentado pelo Sr. Fiduciário, concedendo-se àquele o prazo de 10 dias para proceder ao pagamento da quantia de € 8.392,23 que deveria ter sido cedida durante o período do 3.º ano de cessão, ou propor o seu pagamento faseado (acordando com o Senhor Fiduciário um plano de pagamentos que deverá ser comunicado ao processo), comprovando nos autos o início do cumprimento desse pagamento em prestações (cujo número de prestações não poderá exceder o número de meses que ainda faltam decorrer até findar o período de cessão), sob pena de poder ver cessado antecipadamente o procedimento de exoneração do passivo restante que lhe foi liminarmente concedido.
8. Por requerimento de 23-03-2020 a credora AA, requereu a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, pelos fundamentos ali aduzidos.
9. Por requerimento de 24-03-2020 veio o devedor requerer o pagamento em prestações dos montantes em dívida à massa da fidúcia.
10. Pelo despacho de 30-04-2020 determinou-se, além do mais, a notificação do “devedor para, em 10 dias, demonstrar nos autos o pagamento daquela quantia de € 14.366,36 que deveria ter sido cedida durante os dois primeiros anos do período de cessão, sob expressa cominação de, não o fazendo, poder ser cessado antecipadamente o procedimento da exoneração do passivo restante, como já requerido nos autos (cfr. requerimento de 13-03-2020 e req. de 23-03-2020 de AA)”.
11. O devedor foi notificado do despacho em apreço, bem como dos requerimentos de cessação antecipada (cfr. notificação de 04-05-2020).
12. Por requerimento de 19-05-2020 o devedor pediu uma prorrogação de 20 dias para proceder ao pagamento da quantia aludida de € 14.366,36.
13. Por despacho de 20-05-2020 foi concedido o prazo adicional de 20 dias ao devedor para demonstrar nos autos a transferência para a conta da massa da fidúcia da quantia em divida inerente aos dois primeiros anos de cessão de rendimentos. Declarou-se desde logo que o prazo concedido era improrrogável.
14. Por requerimento de 16-06-2020 o devedor veio requerer o prazo adicional de 10 dias para proceder ao pagamento da quantia em dívida nos 2 primeiros anos de cessão de rendimentos.
15. Por despacho de 17-06-2020 foi determinada a notificação do Exmo. Sr. Fiduciário para, em 20 dias, informar os autos se o devedor procedeu ao pagamento da quantia em dívida inerente aos dois primeiros anos do período de cessão.
16. No requerimento de 02-07-2020 o devedor, além do mais, declarou: “Na sequência do pagamento que irei efetuar na próxima semana do valor em dívida dos dois primeiros anos de cessão de rendimentos”, sendo que em requerimento do mesmo dia requereu o prazo adicional de 5 dias para proceder ao pagamento em dívida dos dois primeiros anos do período de cessão.
16. O Exmo. Sr. Fiduciário, em 03-08-2020, comunicou aos autos que o devedor não havia feito qualquer pagamento atinente aos dois primeiros anos do período de cessão.
17. [Renumerado aqui por rectificação.] Por despacho de 01-09-2020 foi indeferida a pelo devedor pretendida remessa dos presentes autos para o Tribunal de Faro.”
E fundamentou-se assim a decisão:
“O Código de Insolvência e Recuperação de Empresa (Decreto – Lei n.º 53/2004, de 18/mar., DR I-A, n.º 66, sucessivamente alterado – CIRE), ao regular no artigo 243.º a cessação antecipada do procedimento de exoneração, estabelece nos seus números 1 e 3 os respetivos fundamentos substantivos. Naquele n.º 1 enuncia que “Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando: a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência; b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente; c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação” – sendo nosso o negrito, agora como adiante. No n.º 3 acrescenta que “Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar”. Na tramitação deste incidente, fixa no n.º 2 o momento temporal para formular essa pretensão de recusa de exoneração do passivo, consagrando que “O requerimento apenas pode ser apresentado dentro do ano seguinte à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, devendo ser oferecida logo a respectiva prova”.
Da conjugação deste bloco normativo sobressaem três grandes circunstâncias para a extinção antecipada do processo de exoneração do passivo: a) a violação dolosa ou com negligência grave dos deveres de cessão do rendimento disponível ou demais deveres conexos (i), com repercussão no não pagamento dos créditos da insolvência (ii) (243.º, n.º 1, al. a); 239.º do CIRE); b) circunstâncias pretéritas de conhecimento superveniente conducentes ao indeferimento liminar do pedido de exoneração (243.º, n.º 1, al. b); 238.º, n.º 1, b), e) e f) do CIRE); c) ocorrência de insolvência culposa ou agravamento da situação de insolvência (243.º, n.º 1, al. c); 186.º CIRE). Tratando-se das duas primeiras circunstâncias, o devedor tem o ónus de comprovar o cumprimento dos seus deveres (243.º, n.º 3 CIRE; 344.º, n.º 1 parte final do Código Civil). Assim, na extinção antecipada do processo de exoneração do passivo e estando em causa a violação dolosa ou com negligência grave dos deveres de cessão do rendimento disponível por parte do devedor insolvente, com repercussões na não satisfação dos créditos da insolvência, cabe àquele demonstrar esse pagamento ou então os motivos razoáveis conducentes ao não cumprimento, sob pena de recusa da exoneração do passivo.
Como se pode constatar foi uma das credoras que suscitou a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo, ao contrário do agora alegado pelo recorrente (item 8.º). E também podemos verificar que o devedor insolvente não procedeu, ao longo de 3 anos, à entrega de qualquer rendimento auferido relativamente ao qual não podia pessoalmente dispor (itens 1 a 7; 9 a 16). Aliás, no fim de cada um desses anos e notificado para o efeito apresentou um plano de pagamento quanto aos dois primeiros anos e solicitou um prazo complementar de pagamento no terceiro ano, mas em nenhum deles realizou o pagamento a que se tinha comprometido, nem sequer apresentou razões concretas para esse procedimento. E isto quando o devedor insolvente tinha pleno conhecimento da obrigação de cedência à fidúcia das quantias a que estava obrigado a entregar. Com esse incumprimento o devedor insolvente revela um manifesto desdém pelo cumprimento dos seus deveres, sendo, para o efeito, intensamente refratário, ao mesmo tempo que os seus credores continuam a não ver minimizados no valor dos seus créditos. E toda esta situação tem óbvios reflexos económicos nos credores, prejudicando-os na solvência dos seus créditos.
Em suma, o insolvente age, pelo menos, com grave negligência, quando no período dos primeiros três anos de fidúcia, não tem uma conduta de probidade no cumprimento dos seus deveres para uma futura exoneração do passivo, designadamente, não realizando a cessão de qualquer quantia do seu rendimento disponível, para além de não justificar, minimamente e em concreto, as razões desse comportamento refratário.”
I) No acórdão fundamento do TRP, encontramos a seguinte argumentação tendente a basear o não preenchimento dos requisitos de que dependia a decisão de cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante:
“O recorrente alega a não verificação dos requisitos a que alude a al. a) do nº 1 do artigo 243º.
Conforme de tal alínea se extrai, é fundamento da cessação antecipada [ou recusa, ex vi 244º nº 2] a violação dolosa ou com grave negligência do devedor de alguma das obrigações impostas pelo artigo 239º que por essa via tenham prejudicado a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
O decidido fundamentou-se no incumprimento do insolvente quanto à entrega do rendimento disponível fixado na decisão que admitiu liminarmente este incidente. Apesar de para tanto ter sido notificado o insolvente e nada ter dito. E que a não entrega dos rendimentos objeto de cessão ocorreu, é ponto que o recorrente não questiona. Tal como é ponto assente que notificado o recorrente para justificar o motivo por que não observou tal dever, o mesmo se remeteu ao silêncio.
(…)
O preenchimento do disposto na al. a) em análise está sempre dependente da demonstração de que a violação dos deveres que sobre o insolvente recaem, ocorreu de forma dolosa ou com grave negligência, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre os insolventes.
O que nos leva a pronunciar sobre o ónus de prova da factualidade necessária ao preenchimento dos pressupostos que justificam a decisão de antecipação da cessação do procedimento de exoneração.
Nos termos do preceituado no artigo 243º nº 1, previu o legislador a hipótese de antecipar a decisão deste incidente “a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência (…) ou do fiduciário”, requerimento este com o qual e para além de ter de respeitar o prazo previsto no nº 2 deste mesmo artigo, deve “ser oferecida logo a respetiva prova.” (vide nº 2 in fine).
Esta exigência entende-se porquanto estando em causa factos impeditivos do direito do insolvente, ao credor que os invoque caberá fazer prova dos mesmos, em respeito pela regra geral contida no artigo 342º nº 2 do CC.. Só assim se entendendo a exigência quer do requerimento fundamentado quer do oferecimento imediato de prova.
Não tendo a questão do ónus de prova sido líquida a nível jurisprudencial no que respeita à prova dos requisitos necessários à admissão liminar do incidente de exoneração do passivo restante por referência ao disposto no artigo 238º, para que o artigo 243º nº 1 al. b) remete, assumimos como correta a posição que se julga maioritária de ser ónus dos credores ou AI e sem prejuízo da atuação oficiosa que o tribunal entenda por oportuna, a prova dos fundamentos do indeferimento liminar (…). (…) E se assim é nesta fase da admissão liminar, o mesmo se aplica à situação em que o credor vem pugnar pela cessação antecipada do incidente em curso, invocando em tal fase o que antes não alegou por desconhecimento ou verificação superveniente [vide al. b) do artigo 243º nº 1 in fine].
A natureza impeditiva da concessão da exoneração do passivo restante do circunstancialismo referido no artigo 238º e os argumentos a este propósito convocados para concluir pelo ónus probatório incidente sobre o requerente da cessação antecipada deste procedimento de exoneração, é a mesma do fundamento de cessação antecipada previsto na al. a) do artigo 243º nº1 por referência às obrigações impostas aos insolventes no artigo 239º, tanto mais que o legislador exigiu ainda a demonstração de que tal violação foi dolosa ou com grave negligência e prejudicial por esse facto à satisfação dos credores.
A impor a conclusão de que também neste caso, o ónus probatório recai sobre o requerente da cessação antecipada deste procedimento de exoneração […].
Assente sobre quem recai a prova da violação das obrigações a que se refere o artigo 243º nº 1 al. a), importa aferir se a informação prestada pelo fiduciário quanto ao incumprimento do devedor, a que se associa o subsequente silêncio deste quando expressamente foi notificado para regularizar esse mesmo incumprimento é suficiente para concluir pelo preenchimento dos requisitos da al. a) em análise.
É certo o incumprimento/violação do dever de cessão, o qual tão pouco está questionado pelo recorrente.
Este, porém, só por si não é suficiente para determinar a decisão de recusa antecipada.
É ainda exigido que tal incumprimento seja imputado ao devedor a título de dolo ou grave negligência.
Bem como é exigida a demonstração de que tal incumprimento prejudicou a satisfação dos créditos.
Analisada a decisão recorrida constata-se que nada foi analisado neste conspecto.
O período de cessão – fixado legalmente em 5 anos – teve início em 08/02/2017.
O que significa que o seu termo [salvo cessação antecipada] ocorreria a 08/02/2022.
Em março de 2020 foi proferida a decisão de recusa do pedido de exoneração com base no já mencionado incumprimento, numa altura em que faltavam ainda 2 anos para o termo dos 5 anos a que corresponde o período normal de cessão.
Nada nos autos evidencia ou foi analisado quanto ao prejuízo que a não entrega dos valores em falta representou para os credores, tanto mais quando estando ainda em curso o período de cessão, poderia haver a possibilidade de o insolvente regularizar os montantes que deveria ter oportunamente entregue ao fiduciário ainda dentro do prazo dos referidos 5 anos.
Igual omissão se verifica quanto ao circunstancialismo em que tal incumprimento ocorreu.
O que se compreende, desde logo pelo facto de a cessação antecipada não ter sido na verdade requerida e assim inexistir factualidade alegada dos respetivos requisitos a demonstrar.
O fiduciário deu nota do incumprimento.
O credor “D…” informa nada ter a opor à cessação antecipada atento o incumprimento comunicado.
A declaração de não oposição não é equiparável processualmente ao pedido de declaração de cessação antecipada – o que se refere já que na decisão recorrida é afirmado que a D… pugnou por tal cessação antecipada.
Como já antes referido, recai sobre quem requer a cessação antecipada o ónus de alegar e provar os requisitos de que depende tal decisão.
Tal alegação e prova não foram feitos e tão pouco foram analisados na decisão recorrida todos esses pressupostos.
Não bastando, repete-se, o incumprimento do insolvente que entendemos ser merecedor de censura na medida em que apesar de notificado para regularizar os valores em falta se remeteu ao silêncio.”
Foi considerada a seguinte factualidade constante do Relatório:
“iii – Em 23/01/2013 foi decidido “deferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e em relação ao insolvente B… e, em consequência, determinar que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a um fiduciário, nomeando-se para o efeito o administrador de insolvência, ficando os insolventes obrigados a observar as imposições previstas no n.° 4 do artigo 239.° do CIRE.
Fixa-se no montante equivalente a uma vez e meio salário mínimo nacional o rendimento que o insolvente pode dispor para prover à sua subsistência.
Notifique, incluindo o devedor, com expressa advertência do disposto no nº 4 do artigo 239.º do CIRE (…)”
iv – Por decisão de 08/02/2017, foi declarado o encerramento do processo de insolvência e iniciado “o prazo a que alude o artigo 239º/2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (período da cessão).
Notifique o devedor e o fiduciário.”
v – Em 08/05/2018 o fiduciário juntou aos autos o Relatório de Fidúcia a que alude o artigo 240º do CIRE, informando (em suma):
- o insolvente está a trabalhar;
- de acordo com os dados da declaração de IRS de 2017 o mesmo deveria ter entregue à fidúcia o valor de € 9.947,99, sendo € 4.836,57 relativos ao ano de 2017;
- o insolvente nada entregou;
- foram notificados todos os credores deste relatório;
vi – em 27/06/2018, a C…, SA informa ter sido condenada a pagar uma indemnização ao insolvente – no valor de € 16.123,00 acrescido de juros vencidos e vincendos desde a sua citação e à taxa legal - cujo destino solicita seja indicado.
vii – Em 17/08/2019 o fiduciário juntou aos autos o Relatório de Fidúcia a que alude o artigo 240º do CIRE, informando (em suma):
- o insolvente está a trabalhar;
- foi fixado ao insolvente o rendimento disponível de 1.50 SMN e fixado o início do período em 8/2/2017.
- foi recebida documentação relativa às declarações de IRS dos anos de 2017 e 2018.
De acordo com os dados obtidos, o mesmo deveria ter entregue à fidúcia o valor de € 8.898,28 sendo € 4.364,77 relativos ao ano de 2017 e € 4.533,51
- o insolvente nada entregou;
- foram notificados todos os credores do conteúdo deste relatório.
viii – Por despacho de 25/11/19 foi determinada a notificação do requerente indicado em vi para proceder ao depósito da quantia devida na conta da fidúcia.
Foi ainda determinado: a notificação do insolvente, atento o relatório apresentado para “proceder ao pagamento em falta sob cominação de que a exoneração do passivo restante poderá ser cessada antecipadamente, nos termos do disposto no artigo 243º/1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Prazo: 10 dias.
Notifique nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 243º/3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
*
Decorrido o prazo fixado deve o Sr. Fiduciário informar os autos da concretização do pagamento pelo insolvente e complementar o relatório apresentado.”
ix – A credora D… veio em 26/11/19 informar “que, nada tem a opor à cessação antecipada da exoneração do passivo restante, nos termos do Art.º 243º, nº 1, al. a) do C.I.R.E.” porquanto “o insolvente não prestou as informações necessárias ao Fiduciário nem liquidou os valores em falta à Fidúcia, incumpriu com os deveres decorrentes da concessão da exoneração do passivo restante que lhe foram deferidos, violando assim o preceituado no Art.º 239º, n.º 4 do C.I.R.E. e, consequentemente, prejudicando a satisfação dos credores.”.
x – Notificado o insolvente na pessoa do seu mandatário e também pessoalmente, nada foi requerido ou informado aos autos.
xi – Em 20/12/2019 o fiduciário informa que a “regularização do montante em aberto não foi efetuada pelos insolventes até à presente data.
Foi notificado o Sr. Mandatário dos relatórios elaborados, assim como a insolvente.”
xii – Em 04/03/2020 é proferida a seguinte decisão:
“(…)
Conforme resulta dos autos, o Exmo. Fiduciário comunicou que os insolventes auferiram quantias superiores ao montante indisponível fixado, que retiveram em seu poder e que ascendem ao montante de € 8.898,28.
Notificados credores e devedores, veio o credor D…, S.A. pugnar pela cessação antecipada da exoneração do passivo restante.
Por despacho de 25.11.2019, considerando-se que os factos expostos eram suscetíveis de configurar fundamento de cessação antecipada do procedimento de exoneração, foram os insolventes notificados para se pronunciarem e para cumprirem as obrigações em falta no prazo de 10 dias.
Os devedores não vieram aos autos demonstrar o pagamento.
Por requerimento de 20.12.2019 o Sr. Fiduciário informou que ainda nada tinha recebido.
Os devedores, até ao momento, não demonstraram o pagamento em falta apesar de largamente excedido o prazo concedido.
Cumpre apreciar e decidir:
Antes de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração quando se apure alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f), do nº 1 do artigo 238º - artigo 243º/1/b), do referido Código.
Nos termos do disposto no artigo 239º/4/c), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, durante o período da cessão o devedor fica obrigado a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos rendimentos objeto de cessão.
Assim sendo, considerando a violação dos deveres que lhe eram impostos, mesmo depois de concedido prazo adicional para o efeito, considero haver fundamento para recusar a exoneração, nos termos do disposto no artigo 243º/1/b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Pelo exposto, recuso a exoneração do passivo restante e determino a cessação antecipada do procedimento correspondente.”
Pois bem.
J) 1. Como vimos, o Recorrente alega oposição entre os acórdãos referidos no que tange às seguintes questões fundamentais de direito incidentes sobre a interpretação do art. 243º, 1, a), do CIRE:
- ónus de alegação e prova dos factos exigidos para a subsistência dos requisitos exigidos pelo preceito;
- juízo, em face dessa prova, sobre o preenchimento do prejuízo sofrido pelos credores da insolvência em face da violação da obrigação do devedor beneficiário da exoneração do passivo restante, imposta pelo art. 239º, 4, c), do CIRE («Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão»).
Ora.
O art. 243º, 1, a), do CIRE dispõe:
«Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando [a)] O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência (…)».
Estamos perante uma das hipóteses (agregadas nos n.os 1 a 3 do art. 243º) de cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, uma vez este deferido, antes de esgotado o chamado “período da cessão” do rendimento disponível.
Neste caso, a causa de cessação radica na violação culposa das obrigações impostas ao devedor insolvente durante esse período (art. 239º, 2 e 4, c), CIRE).
Por seu turno, o art. 243º, 2, exige que o requerimento apresentado pelo sujeito com legitimidade – neste caso, foi uma credora – seja «apresentado dentro do ano seguinte à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, devendo ser logo oferecida a respetiva prova».
2. Quanto às questões identificadas, não se vislumbra que haja oposição que se retire dos fundamentos dos acórdãos em confronto quanto a esse ónus probatório e ao preenchimento dos pressupostos de aplicação desse art. 243º, 1, a), do CIRE, nomeadamente o do dano causado aos credores da insolvência.
Não obstante a questão desse ónus ser mais detalhadamente abordada no acórdão fundamento, em nenhum deles se encontra a dispensa dessa alegação e prova, a cargo dos sujeitos requerentes da cessação antecipada, referidos no art. 243º, 1, do CIRE (aos credores da insolvência, ao administrador da insolvência em funções ou ao fiduciário-fiscalizador da cessão demonstrar a sua existência), assim como da contra-prova a cargo do devedor beneficiário da exoneração do passivo restante.
Nem em nenhum deles se encontra ausência da identificação dos requisitos legais da al. a) e discussão sobre o respectivo preenchimento de acordo com o acervo factual apurado.
Chegam, isso sim, a resultados decisórios distintos: o acórdão recorrido julgou estarem preenchidos esses mesmos pressupostos legais, sindicando cada um deles com autonomia; o acórdão fundamento não julgou estarem preenchidos os pressupostos da censura subjectiva e do prejuízo causado aos credores da insolvência. Mas, vistos com rigor, esses resultados decisórios não se justificam por qualquer oposição de entendimento quanto a essas questões alegadamente em contradição, antes a um diverso juízo da subsunção dos factos assentes aos requisitos da norma legal aplicada.
3. Ademais, verifica-se que as situações fáctico-materiais litigiosas não são de tal modo equiparáveis que proporcionem uma aplicação contraditória do regime legal a que tais factos se subsumem.
Na verdade, no processo a que se refere o acórdão fundamento, a apreciação do regime legal apenas se baseia facticamente na notificação judicial dos devedores insolventes para o depósito na conta dos montantes comprovadamente em falta e não entregues, após relatórios da fidúcia e sob a cominação de cessação antecipada do procedimento de exoneração, e a sua total ausência de resposta, sob a forma de requerimento nos autos ou liquidação do devido – cfr. supra, ponto I.
Enquanto isso, no processo dos autos, a apreciação dos requisitos legais funda-se num reiterado incumprimento da entrega dos montantes em falta por parte do insolvente, primeiro relativamente ao 1.º e 2º anos da cessão do rendimento disponível, depois relativamente ao 3.º ano da cessão, com ênfase em planos de pagamentos em prestações requeridos, deferidos e não cumpridos, e prorrogações de cumprimento, também requeridos, deferidos e não cumpridos. Foi essa factualidade qualificada e arrastada no tempo – descrita supra, ponto H) – que contribuiu, no entendimento do acórdão recorrido, para a densificação dos requisitos legais (que no acórdão fundamento não lograram serem dados como preenchidos), em particular o do prejuízo causado aos credores (em síntese: “Com esse incumprimento o devedor insolvente revela um manifesto desdém pelo cumprimento dos seus deveres, sendo, para o efeito, intensamente refratário, ao mesmo tempo que os seus credores continuam a não ver minimizados no valor dos seus créditos. E toda esta situação tem óbvios reflexos económicos nos credores, prejudicando-os na solvência dos seus créditos.”).
Concluiu-se, por isso, que não há um substracto factual que se seja de equiparar para este efeito, antes subsiste uma dissemelhança significativa das situações de facto subjacentes às decisões em confronto, que justifica com razoabilidade a divergência quanto ao resultado obtido na interpretação dos requisitos da disposição legal convocada no mesmo contexto normativo.
Em suma.
Resulta do analisado que, sem prejuízo do inconformismo do Recorrente quanto à solução do acórdão recorrido proferido pela Relação, não ocorre, como condição prévia para a admissibilidade do recurso, a oposição de julgados (pelo menos com este acórdão indicado como fundamento recursivo) indispensável para ser conhecida a revista no âmbito do art. 14º, 1, do CIRE. E sem esta condição estar verificada, não se pode aceitar uma reapreciação em último grau de jurisdição através de uma revista que deve ser admitida com particular exigência, no âmbito de um regime prima facie de irrecorribilidade.
III. DECISÃO
Em conformidade, não sendo admissível a revista, acorda-se em não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas da revista pelo Recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.
STJ/Lisboa, 12 de Janeiro de 2022
Ricardo Costa (Relator)
António Barateiro Martins
Luís Espírito Santo
SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).