Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
392/23.3T8MFR-A.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR
ADMISSIBILIDADE DA REVISTA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
Data do Acordão: 07/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NÃO CONHECIMENTO DO OBJECTO DO RECURSO.
Sumário :

I. O art. 370º, 2, do CPC, como regra de irrecorribilidade em revista de decisões proferidas relativamente a procedimentos cautelares, só admite como salvaguarda a revista extraordinária nas situações previstas no art. 629º, 2, do CPC («casos em que o recurso é sempre admissível»).


II. A admissibilidade do recurso previsto no art. 629º, 2, c), do CPC («decisões proferidas, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça») implica o preenchimento de requisitos cumulativos, com destaque para: (i) uma relação de identidade entre a questão de direito que foi objecto de uniformização jurisprudencial e a que foi objecto da decisão recorrida, aferida tendo em conta uma equiparação substancial da situação material de facto subjacente ao litígio em cada uma das decisões em confronto; (ii) essencialidade dessa questão de direito sob controvérsia para o resultado obtido numa e noutra das decisões, num quadro normativo substancialmente idêntico; (iii) contrariedade ou oposição ou diversidade (não acolhimento) da resposta dada pela decisão recorrida em relação ao núcleo essencial da uniformização alegadamente desrespeitada.


Tal preenchimento não acontece se o acórdão recorrido não traduz resposta contrária e em violação com o decidido e uniformizado pelo AUJ do STJ n.º 12/2023 no que toca ao art. 640º, 1, c), do CPC (“Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.”), desde logo porque o acórdão recorrido não contende nem se baseou para a sua decisão de reapreciação da matéria de facto (sem prejuízo de ter aplicado e sindicado os ónus correspondentes às als. a) e b) do art. 640º, 1, do CPC) com a questão de direito elencada e decidida pelo AUJ alegadamente em contradição – não há relação de identidade nem essencialidade para a questão decidida no acórdão recorrido e, por efeito, não há qualquer oposição com a orientação judicativa do AUJ n.º 12/2023 –, não podendo legitimar-se essa contrariedade com o inconformismo do recorrente com o resultado decisório do julgado nessa resposta sobre a matéria de facto reanalisada em 2.ª instância.


III. A admissibilidade do recurso previsto no art. 629º, 2, d), do CPC, fundada em oposição jurisprudencial, implica a demonstração de que a diversidade de julgados a que respeitam os acórdãos em confronto é consequência de uma interpretação divergente da mesma questão fundamental de direito na vigência da mesma legislação, essencial ou fundamental para o caso, conduzindo a que uma situação fáctico-material análoga ou equiparável sob o ponto de vista jurídico-normativo, tendo em vista os interesses das partes em conflito, tenha sido decidida em termos contrários, de modo que os entendimentos diversos sobre determinada solução legal se projectaram decisivamente no desfecho do litígio.


Tal demonstração não acontece se a configuração legal-normativa e a respectiva aplicação nos critérios decisórios não apresentam oposição que conduzisse a solução distinta no acórdão recorrido, antes os acórdãos em confronto revelam comunhão no essencial e relevante para averiguar dessa oposição, assim como se, ademais, as situações fáctico-materiais litigiosas não são equiparáveis para a subsunção jurídica feita em ambos os acórdãos em alegada contradição (quanto ao ónus de alegação recursiva previsto na al. b) do art. 640º, 1, do CPC e quanto aos requisitos de constituição de servidão legal de passagem à luz do art. 1549º do CCiv. («destinação do pai de família»)).

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 392/23.3T8MFR-A.L1.S1


Revista – Tribunal recorrido: Relação de Lisboa, ... Secção


Acordam em conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I) RELATÓRIO


1. AA intentou procedimento cautelar comum não especificado contra BB, CC e DD, nos termos dos arts. 362º e ss e 366º, 1, do CPC, alegando ser proprietário de prédio que se encontra encravado para efeitos do artigo 1550.º, e na situação prevista no artigo 1556.º, ambos do CCiv., por não ter comunicação com a via pública nem acesso directo à rede pública de distribuição de águas, fazendo-se ambos os acessos pelos prédios dos Requeridos, e bem assim que estes têm dificultado a passagem para o prédio em causa, na qual o requerente edificou casa de habitação, nomeadamente pela colocação de um portão manual, e ameaçam cortar o tubo de fornecimento de água a esta, que passa pelo prédio dos 2.º e 3.ª requerida, tendo inclusivamente estabelecido a data de 13/3/2023 para o fazer. Concluiu pedindo a imediata cessação pelos Requeridos de quaisquer condutas que coloquem em causa a propriedade do prédio urbano de que é proprietário, ordenando-se também que estes procedam ao registo da servidão que onera os prédios de que são proprietários, e, por fim, que seja removido pela 1.ª Requerida o portão manual que colocou no logradouro do seu prédio ou que seja por esta substituído por um automático.


2. Dispensado o exercício prévio do contraditório e tramitado em sequência com a realização de audiência, foi proferida a seguinte decisão pelo Juízo Local Cível de ... (18/4/2023):


“(…) julgo parcialmente procedente, porque provado, o presente procedimento cautelar inominado e, consequentemente:


“a) absolvo os requeridos da instância no que respeita ao pedido de condenação de inscrição no registo predial da servidão de passagem;


b) determino a imediata cessação, por parte dos requeridos, de quaisquer condutas ou omissões que dificultem ou impossibilitem o requerente de usar a servidão de passagem que beneficia o prédio de que é proprietário e melhor descrita a 4.º de fls. 24 dos autos, nomeadamente procedendo a requerida BB à imediata retirada do portão de madeira que colocou no seu prédio;


c) determino que os requeridos CC e DD reponham de imediato o tubo de condução da rede pública de abastecimento de água ao prédio do requerente e se abstenham de quaisquer condutas ou omissões que dificultem ou impossibilitem a fruição de servidão de passagem para aproveitamento de águas que beneficia o prédio em referência”.


Fixou-se o valor da causa em € 30.000,01, decisão esta transitada em julgado.


3. Notificados, vieram os Requeridos apresentar Oposição, tendo pedido (na parte admitida por despacho proferido em 19/6/2023, que absolveu da instância o Requerente quanto aos pedidos feitos nas als. c) a n) e p) do segmento final, de acordo com o decretamento da nulidade por erro na forma de processo, nos termos do art. 193º, 1, do CPC) que fosse verificada a excepção de ilegitimidade processual activa do Requerente, e, para o caso de assim não se entender, fosse julgada procedente por provada a oposição em ordem a serem levantadas as providências decretadas.


Por despacho proferido em 11/7/2023, foi a excepção dilatória de ilegitimidade activa do Requerente (com fundamento na preterição de litisconsórcio necessário) julgada improcedente.


4. Realizada audiência final, foi proferida decisão (21/11/2023) em que se julgou procedente a Oposição oferecida pelos requeridos e, consequentemente, se determinou o levantamento das providências oportunamente decretadas nos autos, com as correspondentes consequências.


5. Inconformado, o Requerente interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, que conduziu a ser proferido acórdão (8/2/2024), no qual, uma vez identificadas as questões decidendas:


(i) sobre a reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, rejeitou a alteração dos factos 16. e 17., a impugnação dos factos não provados 17. a 21. e do facto provado 15., o aditamento de novos factos e a existência de contradição entre os factos provados 9. e 15., fazendo uso do incumprimento das als. a) e b) do art. 640º, 1, do CPC, assim como o pedido de renovação de prova ao abrigo do art. 662º, 2, a), do CPC; alterou-se a redacção do facto provado 13. ao abrigo do art. 662º, 2, c), do CPC;


(ii) sobre o não decretamento das providências pedidas pelo Requerente, manteve a decisão recorrida;


logo, julgando improcedente a apelação.


6. Novamente sem se resignar, o Requerente e Apelante interpôs recurso de revista para o STJ, tendo por base as als. c) e d) do art. 629º, 2, do CPC, com Conclusões tiradas após aperfeiçoamento e indicação dos acórdãos fundamento por força de despachos proferidos nos autos (v., por último, a peça recursiva de 14/6/2024: ref.ª CITIUS 208081), visando a anulação ou revogação do acórdão recorrrido.


Assim.


As Conclusões 2. a 6. respeitam à al. c) e à contradição com o AUJ n.º 12/2023 do STJ (é lapso manifesto a referência ao AUJ n.º 13/2023, atenta a referência expressa ao processo n.º 8344/17 na Conclusão 6.).


As Conclusões 7. a 11. respeitam à al. d) e apresentam como acórdão fundamento para oposição jurisprudencial o Ac. do TRPorto, de 8/3/2021 (processo n.º 16/19); a questão de direito é o cumprimento do ónus decorrente da al. b) do art. 640º, 1, do CPC.


As Conclusões 12. a 19. respeitam igualmente à al. d) e apresentam como acórdão fundamento o Ac. do TRLisboa, de 29/10/2013 (processo n.º 1183/10); a questão de direito é a constituição de servidão predial por “destinação do pai de família” quanto à servidão de passagem reinvindicada pelo Requerente no seu requerimento do procedimento cautelar.


Cumpriu-se na instância o ónus de apresentação de certidão comprovativa do trânsito de cada um desses acórdãos fundamento da oposição alegada para a revista extraordinária.


7. Foi proferido despacho no exercício dos poderes conferido pelo art. 655º, 1, do CPC, atenta a eventual inadmissibilidade da revista tal como configurada e em face dos requisitos do art. 629º, 2, c) e d), do CPC.


O Recorrente apresentou pronúncia: (i) reiterou a oposição perante a fundamentação do AUJ n.º 12/2013 para efeito da condição de admissibilidade do art. 629º, 2, c), do CPC; (ii) reiterou a existência de oposição jurisprudencial quanto às questões de direito que pretende ver conhecidas de acordo com o fundamento recursivo proporcionado pelo art. 629º, 2, d), do CPC.





Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir em conferência, desde logo enfrentando a questão da admissibilidade do recurso em sede de revista extraordinária.


II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS


Questão prévia da admissibilidade do recurso


1. O art. 370º, 2, do CPC prescreve:


«Das decisões proferidas nos procedimentos cautelares, incluindo a que determine a inversão do contencioso, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível


2. Desta norma resulta uma regra de condicionamento de acesso ao terceiro grau de jurisdição, de forma que a irrecorribilidade do art. 370º, 2, apenas é afastada pelo regime da revista extraordinária baseada nos motivos de impugnação previstos no art. 629º, 2, do CPC («casos em que é sempre admissível revista»).


Por partes.


3. Da revista fundamentada no art. 629º, 2, c), do CPC


3.1. A al. c) do art. 629º, 2, c), do CPC prescreve:


«Das decisões proferidas, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça”.


A admissibilidade da revista extraordinária fundada na al. c) do art. 629º, 2, aplicável pela remissão da parte final do art. 370º, 2, do CPC, depende da verificação de a mesma questão fundamental de direito ser resolvida e obter soluções antagónicas pelo acórdão recorrido e por um AUJ (acórdão para uniformização de jurisprudência).


Tal verificação depende, em especial, de: (i) uma relação de identidade entre a questão de direito que foi objecto de uniformização jurisprudencial e a que foi objecto da decisão recorrida, aferida tendo em conta uma equiparação substancial da situação material de facto subjacente ao litígio em cada uma das decisões em confronto; (ii) essencialidade dessa questão de direito sob controvérsia para o resultado obtido numa e noutra das decisões, num quadro normativo substancialmente idêntico; (iii) contrariedade ou oposição ou diversidade (não acolhimento) da resposta dada pela decisão recorrida em relação ao núcleo essencial da uniformização alegadamente desrespeitada1.


3.2. O AUJ n.º 12/2023 do STJ (proferido em 17/10/2023, publicado in DR, 1.ª Série, de 14/11/2023, págs. 44 e ss, com Declaração de Rectificação n.º 25/2023, in DR, 1.ª Série, de 28/11/2023) ditou um segmento de uniformização com o seguinte teor:


“Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.”


Para tal, fundamentou-se, no contexto do “ónus tripartido sobre o recorrente”:


“O recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto, cumpre o ónus constante do n.º 1, c), do art. 640º, se a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, constar das conclusões, mas também da leitura articulada destas últimas com a motivação do vertido na globalidade das alegações, e mesmo na sequência do aludido, apenas do corpo das alegações, desde que do modo efetivado, não se suscitem quaisquer dúvidas.”


3.3. O critério normativo do AUJ respeita à interpretação e aplicação da al. c) do art. 640º, 1, do CPC (único fundamento para conhecimento do RUJ e consequente uniformização: cfr. pontos 2.2.2. e 2.2.3. do cap. 2.); enquanto isso, o acórdão recorrido fundamenta a sua rejeição da impugnação sobre a matéria de facto, em parte mas não exclusivamente, com a aplicação das als. a) e b) do art. 640º, 1, do CPC (v. págs. 41, 42-43), sem que em qualquer circunstância o motivo da rejeição tenha sido o (in)cumprimento da al. c) quanto à inserção ou não da decisão alternativa a ser proferida na questão de facto impugada nas conclusões recursivas (questão de direito aceite como contraditoriamente decidida e fundamento de conhecimento e prolação nesse RUJ).


Não importa, para este confronto, a fundamentação do AUJ que, em termos gerais e de enquadramento, trata do art. 640º do CPC, em especial quanto à ponderação dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade – o que é pacífico.


O que interessa acentuar, para decidir da admissibilidade do recurso neste segmento, é, de forma objectiva, que o acórdão recorrido não traduz resposta contrária e em violação com o decidido e uniformizado pelo AUJ em causa no que toca especificamente à al. c) do art. 640º, 1, desde logo e pela razão simples de que o acórdão recorrido não contende nem se baseou para a sua decisão de reapreciação da matéria de facto com a questão de direito elencada e decidida pelo AUJ alegadamente em contradição – não há relação de identidade nem essencialidade para a questão decidida no acórdão recorrido e, por efeito, não há qualquer oposição com a orientação judicativa do AUJ n.º 12/2023.


Aliás, esta asserção resulta até das Conclusões do Recorrente, quanto este se refere, na alusão ao acórdão recorrido, expressa e exclusivamente à al. b) do art. 640º, 1 (Conclusão 3.) e, indistintamente, a todas as als. do art. 640º, 1 (Conclusão 4.)


O que o Recorrente exibe, na verdade, é inconformismo perante o resultado dessa decisão (e v. o art. 662º, 4, do CPC), mas sem que tal insatisfação se possa imputar a qualquer contrariedade ou violação entre o acórdão recorrido e a jurisprudência uniformizada pelo AUJ do STJ invocado pelo Recorrente, como se exige, como válvula de escape terminal, no art. 629º, 2, c), do CPC, no que respeita – e só a esta respeita a análise preliminar de admissibilidade – à questão do cumprimento do art. 640º, 1, c), do CPC.


Logo, não pode ser admitido o recurso com base neste fundamento recursivo.


4. Da revista fundamentada no art. 629º, 2, d), do CPC


4.1. A al. d) do art. 629º, 2, do CPC prescreve:


«Do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.»


4.2. A revista nesta situação implica que se verifique preenchido o art. 629º, 1, do CPC, uma vez que o fundamento recursivo assenta em «motivo estranho à alçada do tribunal»2 – o que se verifica, atento o valor da causa e insubsistência de elementos para aferição da medida da sucumbência.


4.3. Ademais, dessa previsão resulta que o recorrente tem o ónus específico de demonstrar que a diversidade de julgados a que respeitam os acórdãos em confronto é consequência de uma interpretação divergente da mesma questão fundamental de direito na vigência da mesma legislação, conduzindo a que uma mesma incidência fáctico-jurídica tenha sido decidida em termos contrários, sob pena de não inadmissibilidade do recurso do acórdão recorrido e apreciação do seu mérito.


4.4. Para existência da indispensável oposição jurisprudencial para efeitos de admissibilidade da revista, além do mais e preliminarmente, as decisões entendem-se como divergentes se se baseiam em situações fáctico-materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo – tendo em vista os específicos interesses das partes em conflito – são análogas ou equiparáveis, pressupondo o conflito jurisprudencial uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto, acrescendo que a questão fundamental de direito em que assenta a alegada divergência assuma um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso.


Assim, para que o STJ seja chamado a pronunciar-se, orientando a jurisprudência em tais tipos de processos, é necessário concluir, previamente, que existe uma oposição (frontal e expressa, por regra) de entendimentos nos acórdãos em confronto sobre a aplicação de determinada solução legal, sendo que – reitere-se – tal divergência se projecta decisivamente no modo como os casos foram decididos.3


Destarte.


4.5. Vistas as Conclusões que finalizam a revista, o Recorrente alega que a primeira questão fundamental de direito respeita ao cumprimento do ónus previsto no art. 640º, 1, b), do CPC.


Sobre esta questão, refere-se e argumenta-se no acórdão recorrido, no que toca à pretensão do Recorrente:


“(…) cumpre ainda dizer que em sede de impugnação da decisão relativa à matéria de facto e para que sejam cumpridos os ónus previstos no art. 640º, nº 1, al. b), in fine, e nº 2, al. a), do CPC, não basta que o recorrente indique os documentos e/ou os depoimentos que a seu ver não foram corretamente valorados, antes se lhe exigindo que exponha as razões por que as respostas devem ser no sentido por que pugna e não naquele que foi dado em 1ª instância. Exige-se, assim, ao recorrente, que faça uma análise crítica da prova invocada, confrontando-a com aquela que foi feita em 1ª instância, desconstruindo-a, em ordem a evidenciar o invocado erro de julgamento e a justificar a alteração do julgado. Caso assim não se entendesse, o tribunal de recurso acabaria por ter de proceder a um segundo julgamento da causa, que, como vimos anteriormente, não corresponde à vontade do legislador.


A propósito desta questão, e pela clareza de exposição, não podemos deixar de invocar o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 6 de julho de 2022 e relatado pelo Sr. Conselheiro Mário Belo Morgado (processo nº 3683/20.1T8VNG.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt):


“Impugnar uma decisão significa, por isso, refutar as premissas e os motivos que lhe subjazem, contrapondo-lhe um pensamento (racionalidade) alternativo, que não dispensa a justificação das afirmações e a expressão de argumentos (tendentes a demonstrar a bondade dos motivos apresentados como sendo “bons motivos”).


Constituindo o julgamento de facto o domínio privilegiado dos “silogismos práticos”, exige-se que o impugnante ponha em causa as bases lógicas em que principalmente o mesmo assenta, enunciando os pertinentes motivos e contra-motivos.”


(…)


Impõe-se-lhe, no fundo, uma contra-análise crítica da prova, traduzida na desconstrução da lógica (racionalidade substantiva) subjacente à decisão recorrida e na concomitante proposta de uma argumentação alternativa e fundamentada.


(…)


Conexamente, em sede de apelação, é possível reconduzir a impugnação da decisão de facto a três grandes conjuntos de motivos: i) insuficiência/deficiência da motivação, em si mesma (exemplo: o tribunal recorrido não justifica minimamente as razões pelas quais dá crédito ao testemunho que está na base da pronúncia sobre um facto essencial, baseando-se apenas em critérios de valoração subjetiva, como por exemplo a veemência ou a assertividade); ii) vícios de raciocínio expressos na motivação (exemplo: o tribunal confere credibilidade a uma declaração que não observa os supra mencionados parâmetros de análise dos testemunhos ou procede à valoração da prova em infração de princípios lógico-racionais); e iii) falhas objetivas de exatidão (exemplo: alegação de que uma testemunha não disse o que lhe é imputado na motivação).


Deste modo, quando a decisão de facto se mostre suficientemente motivada, o recorrente que a impugne, mormente por discordar do modo como foram valorados (ou não valorados) determinados depoimentos, não poderá limitar-se a alegar vagamente o seu desacordo; deverá identificar clara e concretamente as suas razões (sob pena – caso tenha observado os ónus formais de impugnação – de improcedência do recurso), numa argumentação lógico-racional alternativa à da sentença.”


(…)


Diz, de seguida, o apelante, e de modo genérico, que deve considerar-se a matéria de facto apurada como escassa e deficiente, devendo a mesma ser ampliada nos termos requeridos, por força do disposto no artigo 662º nº 2 alínea c) do Código de Processo Civil, com a consequente reapreciação da prova gravada. Concomitantemente, com apelo ao ónus decorrente da alínea b) do nº 1, do art. 640º do CPC, enumera os meios de prova que pretende ver reapreciados, designadamente, os depoimentos das partes e das testemunhas que indica. Identificou ficheiros de gravações, bem como o início e fim de cada um dos depoimentos e os minutos em que se encontram as passagens dos respetivos depoimentos que alegadamente pretende ver reapreciados.


Procede, ainda, ao resumo das declarações prestadas pelas testemunhas/depoentes (desconhecendo-se se o faz com referência a passagens concretas da gravação ou aos testemunhos prestados na sua globalidade), após o que indica aquilo que a seu ver resulta demonstrado com base em cada um desses depoimentos.


Em termos documentais, identifica os documentos que pretende ver reapreciados, invocando erro de julgamento na sua apreciação.


O recorrente não cumpre desde logo, e manifestamente, o ónus a que se reporta a al. b), do nº 1, do art. 640º, do CPC, pois não indica os meios de prova que impunham uma decisão diversa relativamente a cada um dos pontos de facto impugnados, a cada um dos pontos que pretendia ver aditados, e/ou a blocos de factos concernentes a realidade factual homogénea ou conexionada entre si, sendo que esta conexão não existe relativamente a toda a matéria de facto impugnada pelo recorrente, já que parte dela diz respeito a factualidade relacionada com servidão de passagem, outra, com a servidão para aproveitamento de água.


Como se disse anteriormente, a impugnação da decisão de facto não tem por escopo um novo julgamento em 2ª instância. A aceitar-se o modo como o recorrente configura o cumprimento do sobredito ónus, seria isso, precisamente, que este tribunal de recurso teria de fazer.


Acresce, tendo em consideração o que acima se deixou expendido, que não basta que o recorrente/impugnante se refugie em expressões genéricas e conclusivas, como a invocação de erro de julgamento na apreciação de facto, antes se lhe exigindo a apreciação crítica da prova (exigência que vai muito além duma enunciação resumida de testemunhos/depoimentos de parte, desprovida de valor impugnatório) e a exposição de argumentação suscetível de refutar a exposição de motivos da 1ª instância, o que no caso não sucedeu.


Como exemplo do que se acaba de afirmar, atente-se na seguinte passagem da motivação do apelante: “Houve manifesto erro de julgamento na apreciação da prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, em especial pela inexistência de contraponto, de juízo crítico em escolher a prova produzida pelos Requeridos em detrimento da prova produzida pelo Requerente, ou seja, não existe uma explicação lógica para a formulação do silogismo judiciário na fundamentação da matéria de facto.”


A sentença recorrida mostra-se suficientemente fundamentada, dela resultando as razões que levaram a Exmª julgadora a concluir num sentido e não noutro; constam os motivos pelos quais deu credibilidade a determinados meios de prova em detrimento de outros, e bem assim, o juízo crítico e conjugado da prova testemunhal e documental produzida na audiência final e naquela que foi realizada inicialmente, quando ainda não tinha ocorrido o contraditório, motivador das razões da alteração da decisão de facto constante da primeira decisão.


Neste quadro, exigia-se do recorrente a desconstrução crítica do juízo feito em 1ª instância, fundada numa contra-análise crítica da prova e na exposição de argumentos concretos e alternativos capazes de evidenciar o erro da motivação subjacente à decisão recorrida, que no caso manifestamente não ocorre, o que determina a improcedência do recurso.”


4.6. Por sua vez, o acórdão fundamento, que enfrentou como questão prévia a “apreciação da observância dos ónus de impugnação que sobre os recorrentes recaem, em especial o previsto no artigo 640º nº 1 al. b) do CPC”, tendo em conta o imputado “erro de julgamento imputado à decisão de facto”, argumenta:


“Para a apreciação desta pretensão importa ter presente os seguintes pressupostos:


i - Estando em causa a impugnação da matéria de facto, obrigatoriamente e sob pena de rejeição deve o recorrente especificar (vide artigo 640º n.º 1 do CPC):


“a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;


b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;


c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.


No caso de prova gravada, incumbindo ainda ao recorrente [vide n.º 2 al. a) deste artigo 640º] “sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.


Sendo ónus do mesmo apresentar a sua alegação e concluir de forma sintética pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão – artigo 639º n.º 1 do CPC – na certeza de que as conclusões têm a função de delimitar o objeto do recurso conforme se extrai do n.º 3 do artigo 635º do CPC.


Pelo que destas conclusões é exigível no mínimo que das mesmas conste de forma clara quais os pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, sob pena de rejeição do mesmo. Podendo os demais requisitos serem extraídos do corpo alegatório.


(…)

ii - (…)

Sobre a parte interessada na alteração da decisão de facto recai portanto o ónus de alegação e especificação dos concretos pontos de facto que pretende ver reapreciados; dos concretos meios de prova que impõem tal alteração e da decisão que a seu ver sobre os mesmos deve recair, sob pena de rejeição do recurso.


(…)





(…)


A observância do requisito impugnatório previsto na al. b) do nº 1 do artigo 640º (antes já mencionado), demanda uma análise mais pormenorizada.


Nos termos desta alínea, recai ainda sobre os recorrentes o ónus de especificar “b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”.


Analisado o corpo alegatório evidencia o mesmo e em primeiro lugar o recurso por parte dos recorrentes à técnica de impugnação da factualidade julgada provada ou não provada em bloco ou por temas.


Assim seccionaram a sua impugnação dos factos provados em dois blocos, um primeiro integrando os factos provados 13 a 16, 19, 21 e 27 e um segundo relativo aos factos provados 29 e 34. Seguido de um terceiro bloco para os factos não provados e finalmente e em quarto lugar pugnaram pelo aditamento aos factos provados de nova factualidade.


E numa primeira abordagem por referência a toda a factualidade provada e não provada e impugnada ou “omitida”, alegaram de forma genérica sem qualquer concretização ponto a ponto e assim se especificar por referência a cada um quais os meios de prova que impõem decisão diversa, o seguinte:


(…).


Após uma primeira e genérica crítica da decisão proferida atenta a prova que alegam foi produzida, nos termos supra reproduzidos, prosseguem os recorrentes a crítica à decisão recorrida, desta feita alegando que


“Existem factos dados como provados para os quais não existiu qualquer produção da prova, impondo-se que, para a demostração de tal inexistência probatória, seja ouvida toda a produção de prova testemunhal, com especial relevo (…)”


Reproduzindo em seguida e de novo exatamente os mesmos elementos probatórios e nos mesmos termos que acima já deixámos reproduzidos.


Concluindo perante o alegado que deverão ser dados como não provados os pontos 13 a 16, 19, 21, 27, 29 e 34 dos factos provados.


Para o efeito pugnando pela reapreciação de “toda a prova gravada e documentação constante dos autos.”


Deste segmento é de realçar que para além da repetida referência genérica e em bloco à prova produzida, os recorrentes afirmam inicialmente que nenhuma prova foi sobre os factos a que se referem produzida qualquer prova, mas resulta do que invocam que esta inexistência de prova é afirmada no sentido de que a prova produzida não permite concluir no sentido seguido pelo tribunal a quo e não que ocorreu total ausência de prova/instrução sobre estes mesmos factos o que seria coisa diversa.


Assente que a afirmação respeita a um diverso entendimento sobre a apreciação da prova produzida, importa prosseguir na apreciação da observância do ónus de impugnação em apreciação.


No subsequente segmento alegatório seccionam os recorrentes a impugnação da factualidade provada em dois blocos:


(…)


A transcrição de todo este corpo alegatório visou afastar quaisquer dúvidas sobre o modo genérico e não individualizado como os recorrentes formularam a sua análise da decisão do tribunal recorrido.


Sobre os depoimentos testemunhais e declarações de parte que identificaram de forma genérica não formulando qualquer concreto juízo crítico por referência a cada um dos factos questionados.


O mesmo caminho seguiram quanto ao segundo segmento, no que respeita aos factos provados 29 e 34.


(…)


Também aqui expressam os recorrentes o seu desacordo quanto ao juízo formulado de forma genérica e não individualizada.


Sem relacionar de forma especificada os depoimentos que tão pouco concretizam com os factos que impugnam.


(…)


Aos recorrentes impor-se-ia alegar os meios probatórios concretos que evidenciam o erro de julgamento do tribunal a quo para cada um dos factos impugnados.


O que pelo acima exposto não fizeram.


A técnica de impugnação da factualidade julgada provada ou não provada em bloco ou por temas é ainda mais notória no que aos factos não provados respeita.


(…)


É claramente ausente de fundamentação a impugnação assim deduzida.


Tanto mais quando os factos em questão não são exatamente e apenas a versão contrária dos factos provados convocados pelos recorrentes.


E quando em concreto os recorrentes não apontam para cada facto os meios probatórios que impõem decisão diversa.


Como tão pouco o haviam já feito para os factos provados que mencionaram, nos termos acima analisados.


*


É entendimento reiterado na jurisprudência que a exigência legal a que respeita a al. b) do nº 1 do artigo 640º do CPC impõe ao recorrente a indicação dos concretos meios probatórios que evidenciam o erro de julgamento e assim impõem uma decisão diversa para cada um dos factos impugnados.


A impugnação da decisão de facto não se destina a obter um segundo julgamento, mas antes a reapreciação da prova nos pontos que em concreto as partes apontem padecer de erro perante os concretos meios probatórios produzidos e que lhes incumbe especificar, sob pena de rejeição da pretendida reapreciação.


Não se bastando como tal com uma enunciação em bloco ou por temas dos meios probatórios sem discriminação dos mesmos por referência a cada um dos factos impugnados.


(…)


Tendo em conta o entendimento por nós expresso, conforme à reiterada corrente jurisprudencial vinda de citar, quanto ao ónus de impugnação que sobre os recorrentes recaía de especificação dos concretos meios probatórios que impunham decisão diversa para cada um dos factos impugnados no confronto com o modo como os recorrentes organizaram a sua impugnação de forma genérica e em bloco nos termos supra já analisados, é de concluir que os mesmos não respeitaram tal ónus com a consequente rejeição da reapreciação da decisão de facto com base neste fundamento.


Acresce que e sem prejuízo do acima exposto e julgado, sobre os recorrentes recaía o ónus de efetuar uma análise crítica sobre a prova produzida, só assim justificando o seu desacordo quanto à valoração da prova formulada pelo tribunal a quo e evidenciando o erro de julgamento que ao mesmo imputam.


Tanto mais quando e como é o caso o tribunal a quo justificou de forma extensa, pormenorizada e coerente a valoração da prova, efetuando da mesma uma análise crítica global e circunstanciada. Dando nota das razões por que deu credibilidade ou não às declarações de parte e depoimentos das testemunhas ouvidas, de forma conjugada com a prova documental também aos autos oferecida.


Tal como ao tribunal é imposta uma análise crítica da prova produzida como forma de tornar as suas decisões claras e sindicáveis nomeadamente em segunda instância, também aos recorrentes que imputam erro de julgamento na decisão de facto é exigido um juízo critico sobre essa mesma prova, especificando os meios probatórios que impunham decisão diversa.


Os recorrentes, pela forma como alegaram e que acima já deixámos enunciado, tão pouco formularam um juízo crítico circunstanciado e concreto sobre a prova produzida e valoração da mesma por parte do tribunal a quo que permita concluir violar a mesma as regras da lógica ou da experiência. Limitaram-se a invocar de forma genérica e global depoimentos testemunhais ou documentos, sem efetuar qualquer análise crítica justificativa de uma decisão diversa da seguida pelo tribunal recorrido.


Esta análise crítica da prova produzida é uma exigência que tem vindo a ser reconhecida quer pela doutrina quer pela jurisprudência.


E nessa medida tão pouco cumpriram os recorrentes o ónus de justificar por que os meios probatórios que em abstrato e de forma genérica invocaram impunham decisão diversa, como também o exige a al. b) do nº 1 do artigo 640º do CPC.


A justificar também por esta via a rejeição da reapreciação da decisão de facto no que aos factos provados e não provados respeita.”


4.7. Daqui decorre que, na medida em que se reflecte a apreciação da exigência imposta pela al. b) do art. 640º, 1, b), do CPC, ainda que as situações de alegação para reapreciação da decisão da matéria de facto sejam equiparáveis – desde logo no método de exposição por parte do aqui Recorrente na aspiração a ver reapreciada a decisão sobre a matéria de facto –, é de salientar:


(i) as particularidades de cada um dos elencos de factos apreciados nos dois acórdãos;


e de


(ii) ambos os acórdãos se irmanarem manifestamente no que respeita à finalidade, extensão e densificação a cargo do recorrente do ónus de alegação recursiva previsto na al. b) do art. 640º, 1 (em relação com a al. a) do n.º 2), do CPC); de modo que se pode concluir que, se os critérios decisórios expostos pelo acórdão fundamento fossem aplicados pelo acórdão recorrido, o resultado decisório seria o mesmo, pois não se vislumbra oposição que conduzisse a desfecho de outra ordem.


Em particular, sublinhem-se os seguintes trechos de identidade:


4.7.1. Acórdão recorrido


“Exige-se, assim, ao recorrente, que faça uma análise crítica da prova invocada, confrontando-a com aquela que foi feita em 1ª instância, desconstruindo-a, em ordem a evidenciar o invocado erro de julgamento e a justificar a alteração do julgado.”;


“(…) não basta que o recorrente/impugnante se refugie em expressões genéricas e conclusivas, como a invocação de erro de julgamento na apreciação de facto, antes se lhe exigindo a apreciação crítica da prova (exigência que vai muito além duma enunciação resumida de testemunhos/depoimentos de parte, desprovida de valor impugnatório) e a exposição de argumentação suscetível de refutar a exposição de motivos da 1ª instância, o que no caso não sucedeu.”;


“(…) exigia-se do recorrente a desconstrução crítica do juízo feito em 1ª instância, fundada numa contra-análise crítica da prova e na exposição de argumentos concretos e alternativos capazes de evidenciar o erro da motivação subjacente à decisão recorrida, que no caso manifestamente não ocorre (…).”


4.7.2. Acórdão fundamento


“(…) sobre os recorrentes recaía o ónus de efetuar uma análise crítica sobre a prova produzida, só assim justificando o seu desacordo quanto à valoração da prova formulada pelo tribunal a quo e evidenciando o erro de julgamento que ao mesmo imputam.


Tanto mais quando e como é o caso o tribunal a quo justificou de forma extensa, pormenorizada e coerente a valoração da prova, efetuando da mesma uma análise crítica global e circunstanciada. Dando nota das razões por que deu credibilidade ou não às declarações de parte e depoimentos das testemunhas ouvidas, de forma conjugada com a prova documental também aos autos oferecida.


Tal como ao tribunal é imposta uma análise crítica da prova produzida como forma de tornar as suas decisões claras e sindicáveis nomeadamente em segunda instância, também aos recorrentes que imputam erro de julgamento na decisão de facto é exigido um juízo crítico sobre essa mesma prova, especificando os meios probatórios que impunham decisão diversa.


Os recorrentes, pela forma como alegaram e que acima já deixámos enunciado, tão pouco formularam um juízo crítico circunstanciado e concreto sobre a prova produzida e valoração da mesma por parte do tribunal a quo que permita concluir violar a mesma as regras da lógica ou da experiência. Limitaram-se a invocar de forma genérica e global depoimentos testemunhais ou documentos, sem efetuar qualquer análise crítica justificativa de uma decisão diversa da seguida pelo tribunal recorrido.


Esta análise crítica da prova produzida é uma exigência que tem vindo a ser reconhecida quer pela doutrina quer pela jurisprudência.


E nessa medida tão pouco cumpriram os recorrentes o ónus de justificar por que os meios probatórios que em abstrato e de forma genérica invocaram impunham decisão diversa, como também o exige a al. b) do nº 1 do artigo 640º do CPC.”


5. Por outro lado, o Recorrente alega que a segunda questão fundamental de direito respeita à constituição de servidão legal de passagem (arts. 1543º, 1547º, 2, e 1550º do CCiv.) nos termos da causa constitutiva prevista no art. 1549º do CCiv. («destinação do pai de família») – para este efeito, “um caso especial de servidão legal”4.


5.1. Sobre esta questão, refere-se e argumenta-se no acórdão recorrido, no que toca à pretensão do Recorrente:


“O requerente invoca a existência de uma servidão de passagem constituída por destinação do pai de família nos termos do art. 1549º do CC, em benefício do seu prédio, com o correspondente encargo sobre os prédios dos requeridos e que, segundo alega, estes o vêm impedindo de utilizar e de, assim, aceder ao seu prédio, que não tem outra comunicação com a via pública.


Dispõe o art. 1550º, do CC:


1. Os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos.


(…)”


Resultou indiciariamente demonstrado que o prédio do requerente identificado em 1., confina com os prédios descritos em 3. e 5., propriedade dos requeridos (cf. factos 4 e 6) e que todos provieram da divisão de mesma unidade predial.


Está igualmente demonstrado em termos indiciários, que o prédio de que o requerente é proprietário não tem comunicação com a via pública, tratando-se, pois, de um prédio encravado, assim resultando indiciariamente demonstrado o direito de exigir a constituição de servidão de passagem nos termos da dita disposição legal.


“O direito de servidão predial é um direito real de gozo sobre coisa alheia, mediante o qual o proprietário de um prédio tem a faculdade de se aproveitar de utilidades de prédio alheio em benefício do aproveitamento das utilidades desse prédio” [Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 5ª Edição, pág. 453.], envolvendo esse direito a correspondente restrição ao gozo efetivo do dono do prédio onerado, porquanto este fica inibido de praticar atos suscetíveis de prejudicar o exercício da servidão.


Segundo a noção plasmada no art. 1543º, do Código Civil (código a que pertencem as disposições legais doravante citadas sem qualquer outra indicação expressa): “Servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia”.


Assim, e como salientam Pires de Lima e Antunes Varela [Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª Edição, pág. 614.], a servidão constitui um encargo, uma “(…) restrição ou limitação ao direito de propriedade (do prédio onerado). É um ius in re aliena ou, dentro da tipologia dos direitos reais na doutrina moderna, um direito real limitado. (…).


“Trata-se de um encargo que recai sobre o prédio, de um encargo imposto num prédio, de uma restrição ao gozo efectivo do dono do prédio, inibindo-o de praticar actos que possam prejudicar o exercício da servidão”.


As servidões podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião (com exceção das servidões não aparentes, ou seja, aquelas que não são reveladas por sinais visíveis e permanentes – cfr. art. 1548º, nºs 1 e 2), ou destinação do pai de família (cfr. nº 1, do art. 1547º), sendo que as servidões legais, na falta de constituição voluntária, podem ser constituídas, além do mais, por sentença judicial (nº 1, do art. 1547º).


As servidões legais distinguem-se das voluntárias pelo facto de as primeiras, ao invés do que acontece com as últimas, poderem ser impostas coativamente, sendo que a circunstância destas não terem sido impostas coercivamente, por terem os donos dos prédios servientes aceite voluntariamente a inerente sujeição, não perdem a natureza de servidão.


O art. 1549º dispõe sobre a constituição de servidão por destinação do pai de família nos seguintes termos:


“Se em dois prédios do mesmo dono, ou em duas frações de um só prédio houver sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para o outro, serão esses sinais havidos como prova da servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios, ou as duas frações do mesmo prédio, vierem a separar-se, salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respetivo documento”.


Constituem, assim, pressupostos da constituição da dita servidão os seguintes:


- Os dois prédios ou as duas frações do mesmo prédio têm de ter pertencido ao mesmo proprietário;


- Existência de sinais visíveis e permanentes que revelem de forma inequívoca a serventia de um prédio para outro;


- Separação dos prédios ou das frações quanto ao seu domínio e inexistência de declaração oposta à constituição do encargo [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/09/2018 (…).].


Também sobre os requisitos deste título constitutivo da servidão, esclarece Luís Carvalho Fernandes [Lições de Direitos Reais, 5ª Edição, Quid Juris, 2007, págs. 463-464.]:


“a) Tem de haver uma relação de serventia entre dois prédios ou entre duas frações do mesmo prédio;


b) A serventia tem de resultar de acto de quem é proprietário dos dois prédios, e naturalmente, das duas fracções; logo,


c) Há um só proprietário de ambos os bens”.


Segundo acórdão de 31/01/2012, do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo nº 277/05.5TBBCL.G1.S1, e cujo texto integral pode ser lido no sítio da internet, www.dgsi.pt, a “servidão por destinação de pai de família, pressupõe além do mais a existência, no património de um mesmo antigo proprietário, de um prédio que já no tempo desse “dominus” tivesse (pelo menos) duas fracções, cada uma delas com características necessariamente "a se", nas quais, ou numa delas, esse "pai de família" tenha posto sinal ou sinais visíveis e permanentes para revelarem, e revelando, a serventia de uma das fracções para com a outra. Sendo certo que, para que possa entender-se que há duas fracções de um só prédio, para efeitos do artigo 1549° do Código Civil, é necessário que elas (fracções) sejam distinguíveis, por características próprias, entre si”.


No que diz respeito à existência de sinais, ensinam Pires de Lima e Antunes Varela [Código Civil Anotado, Vol. III, Coimbra Editora, 1987, pág. 633-634.], que “Torna-se (…) necessária a existência de sinais visíveis e permanentes, que revelem, inequivocamente, uma relação ou situação estável de serventia (…) de um prédio para com outro. (…)


Se os sinais reveladores da relação de serventia forem válidos, bastará que a visibilidade ou aparência e a permanência se verifiquem em relação a um ou a alguns deles (…).


Não é indispensável que os sinais existam em ambos os prédios, visto a lei falar explicitamente nos sinais postos em um ou em ambos.


(…)


Além de serem visíveis ou aparentes, os sinais devem ser permanentes.


(…)


O que o art. 1549º exige, para a constituição por destinação do pai de família, são os mesmos tipos de sinais que denunciariam uma servidão aparente (por conseguinte, uma prestação de utilidade não transitória, mas estável), caso os dois prédios pertencessem a donos diferentes. (…)


Os sinais hão-de revelar a serventia de um prédio para com o outro. (…)”.


A propósito dos sinais reveladores da serventia, diz, ainda, Luís Carvalho Fernandes [Obra citada, pág. 464.] que, “(…) torna-se naturalmente necessário que a serventia seja patente por si mesma, mediante «sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos os prédios», revelando qual deles suporta a serventia. Prevalecem aqui razões equivalentes às que justificam a inviabilidade de aquisição, por usucapião, de servidões não aparentes. Por analogia, a serventia deve, pois ser aparente.

(…)”.

Retomando o caso dos autos, verifica-se que a matéria de facto emergente da prova produzida em audiência final não evidencia a existência dos ditos sinais, e consequentemente, a existência de servidão de passagem constituída por destinação de pai de família, nos termos invocados pelo requerente.


E, no mais, e no que tange à matéria da servidão de passagem, mantendo-se inalterada a decisão de facto fixada em 1ª instância, temos de sufragar a decisão recorrida, por revelar acerto na subsunção dos factos apurados ao direito aplicável, conforme se extrai da parte ora transcrita:


“(…)


Constituindo-se, porém, a servidão como encargo…, deve implicar as maiores vantagens para o prédio dominante com o menor prejuízo possível para o proprietário do prédio serviente, como resulta da conjugação do vertido nos artigos 1553.º e 1565.º, ambos do Cód. Civil, devendo estabelecer-se pelo prédio ou prédios que menor prejuízos sofram com o concernente encargo, pelo lugar que menos inconveniente provoque ao prédio onerado, apenas abrangendo e sendo exercido pela forma que satisfaça as necessidades existentes e previsíveis do prédio dominante, e que implique o menor prejuízo para o serviente.


O que acima se verteu consubstancia corolário do denominado Princípio do Mínimo Meio que rege a presente matéria.


No entanto, para que se atenda ao que dispõem os normativos em apreço, necessário é que a concernente factualidade seja introduzida no processo por quem assista interesse na sua ponderação e aplicação.


Na verdade, a panóplia de factos susceptíveis de integrar a previsão dos preceitos jurídicos em apreciação, traduz processualmente defesa por excepção na medida em que a sua alegação e demonstração impedirão a constituição do direito de servidão de passagem ou em determinado prédio ou por determinado local do prédio onerado.


Assim, ao abrigo do artigo 5.º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil e do artigo 342.º, n.º 2 do Cód. Civil, que consagram na lei o Princípio do Dispositivo, competiria aos requeridos alegar e demonstrar factualidade que permitiria a este Tribunal considerar que outro prédio contíguo ao encravado e em condições de proporcionar a este comunicação suficiente com a via pública, sofreria com o encargo correspondente à servidão, menor prejuízo do que aquele que adviria da sua constituição nos termos solicitados; ou então, que o lugar pelo qual se pretende fazer a passagem acarreta mais inconveniente aos titulares do prédio onerado do que outro.


Ora, os requeridos efectivamente excepcionaram a maior onerosidade para o prédio de que são proprietários, da constituição da servidão de passagem peticionada pelo requerente do que aquela que se constituiria sobre o prédio identificado a 6. da fundamentação de facto, porquanto este seria um prédio rústico, não utilizado para habitação dos seus proprietários, ao invés dos seus.


E, na verdade, lograram demonstrar indiciariamente, como é suficiente para a presente tutela provisória, que assim é, sendo evidente que a constituição de passagem sobre um prédio que não serve os propósitos de habitação é muito menos onerosa que a que se estabeleceria num prédio urbano habitado, desde logo por não atentar contra a privacidade, segurança e descanso/tranquilidade dos residentes como atenta a pretendida pelo requerente.


Assim, impõe-se considerar que o encrave do prédio do requerente é eliminado pela constituição da servidão de passagem por prédio diverso do dos requeridos, sendo que nada foi trazido aos autos que justifique consideração diversa, nomeadamente que a passagem de veículos não seja possível pelo prédio em apreço.


Donde, afastada se queda a possibilidade de existir uma servidão legal de passagem que onere o prédio dos requeridos, o que seria suficiente para determinar o levantamento da providência cautelar decretada que se lhe refere.


Contudo, não se pode deixar de atentar que o requerente também havia alegado factualidade que se podia subsumir na aquisição da referida servidão por usucapião, modo originário de constituição daquele direito, cuja eficácia depende, como resulta dos artigos 1287.º e 1288.º ambos do diploma referido, de ser expressamente invocada pelo possuidor, pese embora os efeitos retroajam à data do início da posse.


Acontece que a Usucapião ou Prescrição Aquisitiva, como era uso chamar-se durante a vigência do Cód. Civil de Seabra, é a constituição facultativa do direito de propriedade ou de outro direito real de gozo, a favor de quem detenha a correspondente posse, durante certo lapso de tempo, em determinadas condições, dentro dos limites previstas na lei e por via de triunfante invocação.


Reconduz-se por isso às causas de aquisição originárias de direitos reais por operar na sequência da existência de posse, entendida enquanto facto jurísgeno, que se revela boa para servir de fundamento genético àquela aquisição mesmo sem título, ou com título substancialmente nulo (artigo 1259.º e 1296.º). Isto é, a nulidade (substancial ou formal) do título, ou até a falta de título, não mancham a posse, como posse boa para usucapião: apenas podem interferir com o tempo exigível para a posse ser posse prescricional. Ou seja, é a posse que gera o direito, com título, sem título, contra um título de terceiro ou mesmo com um título afectado de nulidade substantiva.


Resulta do acima exposto que fundamental e basilar à aquisição originária por via da Usucapião, é a figura da posse. Sem esta, não ocorre o facto genético que conduz à aquisição originária em apreço.


Há, assim e ainda que sumariamente, que referir o que entende o nosso sistema jurídico por posse.


Dispõe o artigo 1251.º do Cód. Civil: Posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.


(…)


Constituída de forma pública e pacífica, características essenciais a tanto, a situação factual possessória, por uma das formas previstas no artigo 1263.º do Cód. Civil ou por qualquer outra forma, atenta a não taxatividade do elenco aí inserido, e mantida que seja, nos termos do artigo 1257.º do Cód. Civil, decorridos os prazos previstos nos artigos 1294.º a 1296.º e 1298.º e 1299.º, todos do diploma a que se vem aludindo, aplicáveis, respectivamente, às coisas imóveis e móveis, poderá o possuidor, querendo, invocar triunfantemente a causa de aquisição originária aqui em discussão e assim ver constituído na sua esfera jurídica, com eficácia retroactiva, o direito real nos termos do qual vinha possuindo a res.


Essencial, no entanto, é que no momento em que quem invoca a usucapião se encontre efectivamente na posse do bem, que seja seu possuidor. (…)


Ora, do julgamento de facto acima consignado, resulta que o requerente não actua materialmente sobre o prédio dos autos, ou seja, não exerce quaisquer poderes empíricos de passagem sobre o imóvel dos impetrados, razão pela qual não há qualquer aparência da existência do direito de propriedade na sua esfera jurídica, aparência essa que, conjugada com os demais requisitos legalmente exigidos, lhes facultaria a transição para a constituição desse mesmo direito, conformando assim a realidade fáctica com a ordenação jurídica.

(…)

Pelo exposto, na medida em que os actos praticados pelo requerente sobre as parcelas dos prédios dos autos não se podem qualificar como possessórios, então não se verifica o pressuposto sem o qual impossível é a constituição originária por eles invocada; razão pela qual não se pode considerar a constituição, por usucapião, da servidão de passagem que melhor identificada na petição inicial, falhando assim o pressuposto da aparência do direito acautelado pela presente.


Mais ainda que assim não fosse, a verdade é que também não se quedou, após o exercício do contraditório, indiciariamente demonstrado que o requerente não consiga aceder ao seu prédio; logo, o periculum in mora justificativo da antecipação da tutela jurisdicional não se encontra verificado.”


5.2. O acórdão fundamento indicado pelo Recorrente enfrentou igualmente esta questão dos requisitos correspondentes à servidão com tal causa legalmente tipificada no art. 1549º do CCiv.; argumentando:


“Segundo o art. 1543º do Código Civil/CC a servidão predial constitui um encargo imposto num prédio (prédio serviente) em benefício exclusivo de outro prédio (prédio dominante), pertencente a dono diferente.


Caracteriza-se por ser um direito real de gozo sobre coisa alheia ou direito real limitado, mediante o qual o dono de um prédio tem a faculdade de usufruir ou aproveitar de vantagens ou utilidades de prédio alheio (ius in re aliena) em benefício do seu.


Como ensinava Carlos Mota Pinto: “As servidões legais traduzem-se no poder de constituir coercivamente uma servidão, estendendo-se esta designação à própria servidão constituída, sendo voluntária a que resulta do acordo das partes, sem haver preceito legal que a imponha”. E acrescentava: “Há, porém, certas hipóteses em que a lei prevê a possibilidade de um individuo, mediante o exercício de um direito potestativo, criar uma servidão, falando-se, então, em servidão legal e uma dessas hipóteses são as chamadas servidões legais de passagem”in Direitos Reais (lições coligidas por Álvaro Moreira e Carlos Fraga, 4º ano jurídico de 1970-71), Almedina, em particular no que respeita à natureza e aos tipos de servidão, págs. 319 a 334.


Igualmente, Luís Carvalho Fernandes escreve que: “Servidões legais no Código Civil são as de passagem reguladas no art. 1550º”. E que: “A constituição coactiva ou coerciva das servidões é própria das servidões legais, o que não significa, como logo se deixa ver da simples leitura do n.º 2 do art. 1547º, a exclusão da possibilidade de, em relação a elas, se verificar a constituição voluntária. Mais, é a falta de constituição voluntária que legitima o recurso à via coerciva”in Lições de Direitos Reais, 4ª edição, 2005, Quid Juris/sociedade editora, em especial, págs. 433 a 445 (servidões prediais/noção e características).


Temos, pois, que o decisivo critério diferenciador entre servidões legais e voluntárias reside exclusivamente na circunstância de as primeiras, ao invés do que acontece com as últimas, poderem ser impostas coactivamente.


Sabemos também que o encrave dum prédio tanto pode ser absoluto, se não tiver qualquer comunicação com a via pública, como relativo, se não tiver condições de a estabelecer sem excessivo incómodo ou dispêndio ou a comunicação que tem com a via pública se mostra insuficiente (…).


Não esquecendo o caso decidendi, a par da usucapião, a destinação do pai de família constitui uma forma originária não negocial de constituição de servidões aparentes, contínuas ou descontínuas – arts. 1547º e 1549º do CC.


Esta última disposição legal regula a hipótese frequente de dois prédios distintos, ou duas fracções de um só prédio, terem pertencido ao mesmo dono e ter-se estabelecido, entre esses prédios ou fracções, uma relação de dependência por força da qual um dos prédios ou uma das fracções presta utilidade ao outro ou à outra.


Enquanto aqueles prédios ou fracções do mesmo prédio pertencerem ao mesmo dono, por imperativo da conhecida máxima nemini res sua servit, a servidão não existe, pois, no nosso ordenamento jurídico, não é admissível, a servidão do proprietário.


Surgirá, porém, automaticamente, a figura jurídica da servidão, se os dois prédios ou as duas fracções se separarem, e passarem a ser de proprietários diferentes.


E constitui-se, assim, a servidão por destinação do pai de família verificados que estejam os requisitos previstos no citado art. 1549º do CC:


1. Os dois prédios ou as duas fracções de um só prédio tenham pertencido ao mesmo dono;
2. Relação estável de serventia de um prédio a outro, correspondente a uma servidão aparente, revelada por sinais visíveis e permanentes (destinação);


3. Separação dos prédios ou fracções em relação ao domínio (separação jurídica), e inexistência de qualquer declaração no respectivo documento contrária à destinação.


Sobre essa matéria consignou-se na sentença objecto de recurso que se está a sindicar agora do ponto de vista jurídico:


“-…-


A servidão constituir-se-á desde que exista uma relação de serventia entre os dois prédios que deixam de ter o mesmo dono, sendo indiferente o título (servidão, mera tolerância, licença administrativa, contrato com eficácia obrigacional, etc.) em que assenta a utilização dos prédios ou terrenos intermédios (vide Antunes Varela, RLJ, ano 115º, pág. 222).


Infere-se do artigo 1549º que a constituição da servidão por destinação do pai de família pressupõe o concurso dos seguintes requisitos fundamentais:


a) - Que os dois prédios ou as duas fracções de um só prédio tenham pertencido ao mesmo dono;
b) - Uma relação estável de serventia de um prédio a outro, correspondente a uma servidão aparente, revelada por sinais visíveis e permanentes (destinação);


c) - Separação dos prédios ou fracções em relação ao domínio (separação jurídica), e inexistência de qualquer declaração no respectivo documento contrária à destinação.


Quanto ao primeiro dos requisitos:


O essencial é que os dois prédios ou as duas fracções do prédio, tenham pertencido ao mesmo dono. Tanto faz que os prédios sejam rústicos ou sejam urbanos, que um seja rústico e o outro urbano, não constituindo nenhum obstáculo à solução a diferente aplicação dada a cada um dos prédios. Tão pouco se pode contestar a possibilidade de a servidão se constituir por esta via sobre dois ou mais prédios. O facto de a letra da lei se referir apenas à serventia de um prédio para com outro não impede, de modo nenhum, que ela abranja inequivocamente pelo seu espírito a hipótese de os sinais atestarem a utilização de dois ou mais prédios em proveito de um outro, como tantas vezes acontece na serventia de aqueduto feita através de vários prédios e na serventia de passagem quando um o prédio se encontra encravado, no meio de outros.


Assim, não importa nem que exista mais de um prédio serviente (a favor do mesmo prédio dominante), nem importa que a servidão beneficie mais do que um prédio.


Ora, no caso destes autos os dois prédios – “B... e “A...” - pertenceram, efectivamente, a dada altura, aos mesmos donos pois que ambos eram do casal EE e FF. Após a morte do FF em 1948, os prédios ficaram a pertencer à EE e filhos que os partilharam cabendo à GG o “B... e ao HH a “A...”.


Quanto ao segundo dos requisitos:


Torna-se necessária a existência de sinais visíveis e permanentes, reveladores da serventia de um prédio para com outro mas não é indispensável que os sinais existam em ambos os prédios.


Podem os sinais estar em ambos ou apenas num dos prédios, visto a lei falar explicitamente nos sinais postos em um ou em ambos.


Ora, no caso concreto destes autos, está provado que, “Existia, até pouco depois da compra pelos RR. da «A...» e desde, pelo menos, 1950 um caminho com largura suficiente para um carro de bois e/ou uma camioneta, que parte da via pública, junto ao campo de futebol e, entra, pelo lado norte, no prédio referido em B), seguindo por dentro deste no sentido aproximado de Norte para Sul, até atingir o leito de curso de água, sobre o qual existia uma ponte, cuja estrutura de suporte assentava do lado norte do prédio referido em B) e, do lado sul no prédio referido em A)”.


O enfoque terá de ser na prova de que este caminho existia desde, pelo menos, 1950. Não se provou que a sua existência fosse anterior àquela data. A data – 1950 – é importante, que ambos os prédios passaram a ter donos diferentes.


Como referimos supra, o caminho que constituirá a servidão formada por destinação de pai de família tem de pré-existir em relação ou à divisão dos terrenos ou à separação dos proprietários, consoante os casos.


A prova de tal pré-existência constitui ónus do A. por se tratar de facto constitutivo do direito a que o mesmo se arroga (art. 342º nº 1 do Código Civil) sendo que a sua não prova fará falecer a pretensão.


In casu, os AA. não provaram a pré-existência do caminho em relação à separação de proprietários, dado que apenas provaram a existência do mesmo desde 1950, data precisamente da separação. Note-se aliás que tudo na matéria de facto se conjuga para que o caminho apenas haja existido desde 1950.


Na verdade, na resposta ao art. 8º da base instrutória refere-se que, “durante os cerca de 60 anos”, referindo-se ao período entre 1950 e 2010 (data da queda da ponte). E se dúvidas existissem bastaria relembrar que o constante da alínea L) da matéria de facto assente advém do art. 23º da p.i. pois que são os AA. que referem que, “durante todos os cerca de 60 anos desde aquela separação de domínio (…) sempre acederam ao mesmo através do dito caminho e ponte”.


Assim, este requisito não se mostra preenchido.


Quanto ao terceiro dos requisitos:


Essencial é que os sinais sejam um resultado da actividade voluntária do homem. E não mera orogenia, de puro resultado da natureza.


Assim, a existência dum caminho, em si mesma, porque, necessariamente, comporta contornos a limites patentes e perceptíveis é um sinal visível e permanente revelador duma servidão de passagem, o que é, igualmente, relevante (objectivamente), pois que tais sinais são, também, um resultado da actividade do homem, de exercitar a passagem e que, em si, como tal, assim a sinalizam.


Resulta do exposto que a servidão se constitui no momento em que os prédios ou fracções passam a pertencer a proprietários diferentes e tem na origem o acto voluntário consistente na colocação do sinal ou sinais visíveis e permanentes. O acto constitutivo é o da separação jurídica dos prédios do mesmo proprietário, sendo que aquele sinal ou sinais (presuntivos do acto de destinação) deverão preexistir a tal separação, aplicados pelo anterior proprietário.


Torna-se assim fundamental a existência de um conjunto de circunstâncias, materiais e objectivas, reveladoras da relação de serviço entre os dois prédios ou fracções, que pertencem a donos diferentes, sendo a essas que a lei atribui o efeito constitutivo da servidão cuja ratio será precisamente a presunção do acto de destinação.


Considerando os factos provados, não se pode deixar de considerar que os AA. não provaram a existência de uma servidão constituída por pai de família.


-…-”

- Quid juris?

O raciocínio jurídico expresso na sentença recorrida e que acima destacamos parte do pressuposto fáctico de que os AA. não fizeram prova da existência do caminho mencionado no art. 3º da BI, anteriormente à separação da A... em relação ao B... ocorrida em 1950 e passando a ter proprietários distintos – L) dos factos assentes.


Acontece que este Tribunal dentro das suas competências deu parcial procedência ao recurso sobre a decisão de facto, dando também como provado que:


- Antes da data referida em L), o acesso ao prédio referido em A) por pessoas, animais, tractores e outras viaturas sempre se fez através do prédio referido em B) – art. 2º da BI;


- E por caminho com largura suficiente para um carro de bois e/ou uma camioneta, que parte da via pública, junto ao campo de futebol e, entra, pelo lado norte, no prédio referido em B), seguindo por dentro deste no sentido aproximado de Norte para Sul, até atingir o leito de curso de água, sobre o qual existia uma ponte, cuja estrutura de suporte assentava do lado norte do prédio referido em B) e, do lado sul no prédio referido em A) – artº3º da BI;


- Na sequência do referido em 13º (cheias de Fevereiro de 2010 que fizeram ruir a ponte), os RR. impediram os AA. de aceder ao prédio referido em A) através do caminho a que se alude na resposta ao art. 3º da BI – arts. 14º e 15º da BI.


Face a estes “novos” factos não podemos deixar de reconhecer a servidão de destinação de pai de família reivindicada pelos AA. e constitui o pedido principal na acção intentada contra os RR..


Como dissemos aquando do pronunciamento sobre a Questão de Facto (supra II) este Tribunal de Recurso formou a convicção de que a ponte de madeira que ligava a A... ao B... é anterior à partilha dessas parcelas e o caminho que partia do campo da bola até essa mesma ponte é que era, em regra e salvo alturas de cheias no leito que separa tais propriedades, utilizado pelos AA. e seus antecessores nas actividades agrícolas que desempenhavam nesses campos, designadamente, quando, os donos eram os mesmos.


Cai assim por terra o argumento que está na base do não reconhecimento pelo Tribunal a quo da servidão em apreço (destinação de pai de família).


Como lembra ainda, Luís Carvalho Fernandes, “esta modalidade de constituição de servidão pressupõe a verificação de um conjunto de elementos, i.e, depende de um facto complexo de formação sucessiva” – ob. cit. pág. 44.


Ou seja, a verificação dos aludidos requisitos que, in casu, são inquestionáveis: Os dois prédios pertenceram ao mesmo dono; sempre houve serventia de um prédio a outro conforme revelam os sinais visíveis e permanentes (destinação confirmada pela inspecção ao local e a prova testemunhal valorada por este Tribunal); em 1950 deu-se a separação dos prédios em relação ao domínio; e inexiste qualquer declaração na escritura de partilha/L) contrária à destinação (elemento negativo).


E como já ficou dito, este tipo de servidão não é incompatível com a igual existência do caminho a Sul que bordeja os prédios serviente e dominante ou ainda a qualquer outro modo de aceder ao B....


Isto porque, ficou demonstrada a sua utilidade própria, por ser mais directa e consonante com o passado comum dos prédios em causa.


Diremos mesmo que o caso vertente é paradigmático da servidão abstractamente prevista no art. 1549º do CC (constituição de servidão por destinação de pai de família).


Não havendo dúvidas sobre essa constituição de servidão legal gozam os AA. dum direito potestativo sobre os RR. susceptível de ser coactivamente exercido pela via judicial.


(…).”


5.3. Daqui decorre que, na medida em que se reflecte a apreciação dos requisitos do art. 1549º do CCiv.:


(i) ambos os acórdãos não se afastam, antes partilham em comunhão o elenco de requisitos de constituição de uma servidão legal de passagem por “destinação de pai de família”;


(ii) as situações fáctico-materiais litigiosas não são equiparáveis para a apreciação da subsunção jurídica relativa à susceptibilidade de se constituir tal servidão, tendo em conta, particularmente, a matéria de facto considerada pelo acórdão fundamento (depois de reapreciação) quanto, no domínio do requisito correspondente aos “sinais visíveis e permanentes reveladores da serventia de um prédio para com outro”, à pré-existência (à separação dos prédios ou fracções) de um “caminho que constituirá a servidão formada por destinação de pai de família”; ao invés, no acórdão recorrido, a ponderação da matéria de facto levou à conclusão de serem inexistentes os ditos “sinais” e, por isso, a insusceptibilidade da existência da servidão de passagem reivindicada nesses termos (ainda que em sede de procedimento cautelar e com os seus pressupostos e efeitos próprios) pelo Requerente e Recorrente para superar o encravamento do seu prédio urbano, onerando o ou os prédios urbanos confinantes dos Requeridos e Recorridos (sem prejuízo do repetido inconformismo do Recorrente, que se verifica igualmente na resposta dada ao despacho do art. 655º, no que toca à subsunção jurídica da factualidade levada a cabo pela Relação).


Em conclusão.


São estes os motivos que bastam para asseverar que nenhuma das duas questões de direito alegadas pelo Recorrente podem ser admitidas em revista, à luz da impugnação recursiva da al. d) do art. 629º, 2, do CPC.


III) DECISÃO


Em conformidade, julga-se não tomar conhecimento do objecto do recurso de revista.


Custas pelo Recorrente.


STJ/Lisboa, 9/7/2024


Ricardo Costa (Relator)


Luís Espírito Santo


Maria Amélia Ribeiro


SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).





__________________________________________________

1. ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 629º, págs. 54 e ss. Na jurisprudência do STJ, v. os Acs. de 7/9/2020, processo n.º 344/17, Rel. HENRIQUE ARAÚJO, e de 15/12/2020, processo n.º 1413/16, Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.↩︎

2. Por todos, com ampla adesão no STJ, v. ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, “Artigo 629º”, Código de Processo Civil anotado, Vol. I, Parte geral e processo de declaração, Artigos 1.º a 702.º, Almedina, Coimbra, 2018, pág. 754.↩︎

3. Recentemente, convergente, v. o Ac. do STJ de 11/6/2024, processo n.º 14867/23, Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.↩︎

4. Neste sentido, perante os “modos de constituição” das servidões, v. RUI PINTO DUARTE, Curso de direitos reais, 4.ª ed., Principia Editora, Parede, 2020, págs. 317 e 318-319.↩︎