Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | SIMAS SANTOS | ||
Descritores: | AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO DEPOIMENTO DE TESTEMUNHA VIOLAÇÃO MATÉRIA DE FACTO PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA VIOLÊNCIA CO-AUTORIA INSTIGAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | SJ200503170006455 | ||
Data do Acordão: | 03/17/2005 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T J ENTRONCAMENTO | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 371/01 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA. | ||
Decisão: | CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA. | ||
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Sumário : | 1 - Se no julgamento de crimes sexuais contra menor o Tribunal usar na audição da ofendida expressões como "Vá, esforça-te um pouco mais, ajuda-nos!"; "só mais um esforço..", "eu prometo que não te faço mais perguntas!"; "os passos que já deste foram importantes"; "olha, não me digas que vais morrer na praia!"; "estão aqui alguns homens na sala, mas nem todos são violadores", que criaram "situações de espontaneidade provocada" isso não anuncia um préjuízo sobre a culpabilidade do arguido que viole o princípio da presunção de inocência e ponha em causa a imparcialidade do Tribunal. 2 - Essas expressões traduzem antes um esforço do Tribunal no sentido de obter a colaboração das menores da descoberta da verdade em crimes sexuais, domínio onde se faz sentir, como é sabido, uma grande dificuldade e retraimento das vítimas na recordação, no reviver, em público das situações por que passaram, e que muitas vezes se traduz numa verdadeira penalização secundária. 3 - Tem decidido o Supremo Tribunal de Justiça, a uma só voz, que para conhecer de recurso interposto de um acórdão final do tribunal colectivo relativo a matéria de facto, mesmo que se invoque qualquer dos vícios previstos no art. 410 do CPP, é competente o tribunal de Relação, não podendo o recorrente suscitar essa questão perante aquele Tribunal designadamente se a 2.ª Instância já se pronunciou. 4 - A violência ou ameaça grave, bem como constranger outro, inscrevem-se seguramente na matriz do crime de violação, sendo constranger: compelir, obrigar à força, violentar, coagir, que acontece se o arguido de mais de 49 anos, sargento-ajudante da GNR ameaça a menor de 13 anos, mostrando a pistola, que lhe batia e matava os seus pais, de que se dizia amigo, para assim a conseguir violar 5 - Destaca-se como elemento nuclear do crime continuado, uma diminuição considerável da culpa do agente derivada de um quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que facilite ao agente a prática de actos de execução de um tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico. 6 - O pressuposto da continuação criminosa será assim a existência de uma relação que, de fora, e de modo considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito. 7 - O que não sucede se o arguido cultivou a relação com os pais da menor violada e se aproveitou dela para se aproximar da menor e criou intencionalmente, em cada uma das vezes, as circunstâncias favoráveis, mas diversas, à consumação dos crimes. 8 - Se foi por iniciativa do arguido que se teve a certeza da gravidez, foi ele que convenceu a menor a abortar, foi ainda ele que escolheu a abortadeira em concreto, a contactou e satisfez as condições por esta colocadas para levar a cabo a sua actividade e conduziu a menor à casa daquela para aí abortar e a levou de volta a casa, e obteve uma receita médica de uma antibiótico que mandou aviar para a menor e pagou o custo do aborto, está-se mais perto da co-autoria do que da instigação, uma vez que a co-arguida surge como o elemento técnico desencantado pelo arguido para levar a cabo as manobras abortivas. 9 - Não merece censura a decisão que puniu o arguido como instigador de aborto agravado pelo intuito lucrativo se foi ele que convenceu a co-arguida a realizar as manobras abortivas pagando-lhe o preço pedido. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1.1. O Tribunal Colectivo do Entroncamento (proc. n.º 371/01) procedeu ao julgamento dos arguidos, AMSG e MTSP, ambos com os sinais nos autos, sendo imputados ao primeiro, em concurso real, a prática de 1 crime de violação agravado continuado dos art.ºs 30, n.º 2, 164, n.º 1, e 177, n.º 3, do C. Penal (menor BPCG), 4 crimes de violação agravados dos art.ºs 164.º, n.º 1, e 177.º, n.º 4, do C. Penal (menor ALCG ) e, como co-autor, de 1 crime de aborto agravado dos art.ºs 26.º, 28.º, 140.º, n.º 1, e 141.º, n.º 2, do C. Penal, e, à arguida, a prática, em co-autoria material, de 1 crime de aborto agravado dos art.ºs 140.º, n.º 1 e 141.º, n.º 2, parte final, do C. Penal. O pai das menores formulou pedidos de indemnização cível contra os arguidos pedindo a condenação do primeiro arguido a pagar-lhes a quantia de € 150.000,00 (€ 75.000 a título de compensação pelos sofrimentos de cada uma das referidas menores) e a condenação solidária de ambos os arguidos a pagar a quantia de € 5.000 pelos sofrimentos e danos na saúde sofridos pela menor BPCG. Por acórdão de 5-1-2004 foi julgada parcialmente procedente a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido, totalmente procedente a acusação deduzida contra a arguida e ainda parcialmente procedentes os pedidos cíveis deduzidos contra os arguidos e decidido: - Condenar o arguido como autor de 2 crimes de violação agravados dos art.ºs 26.º, 1.ª parte, 164.º, n.º 1, e 177.º, n.º 4, do C. Penal, nas penas de 6 anos de prisão por cada um, como autor de 2 crimes de abuso sexual de crianças dos art.ºs 26.º, 1.ª parte, e 172.º, n.º 2 do C. Penal, nas penas de, respectivamente, 4 anos e 6 meses de prisão e 5 anos de prisão, e como instigador de 1 crime de aborto agravado dos art.ºs 26.º, última parte, 140.º, n.º 2, e 141.º, n.ºs 1 e 2 do C. Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, e, em cúmulo jurídico na pena única de 14 anos e 3 meses de prisão; - Condenar a arguida como autora material de 1 crime de aborto agravado, dos art.ºs 26, 1.ª parte, 140, n.º 2, e 141, n.ºs 1 e 2 do C. Penal, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, subordinada à condição resolutiva de no prazo de 18 meses pagar à BPCG a quantia de € 5.000 que lhe foi arbitrada a título de compensação por danos não patrimoniais; - Condenar o arguido a pagar à ALCG a quantia de € 30.000, a título de danos não patrimoniais, a que acrescem juros de mora vincendos contados a partir do dia imediato à leitura da decisão e até efectivo e integral pagamento e sem prejuízo da aplicação de ulteriores taxas supletivas de juros de mora aos juros corridos na sua vigência, absolvendo-o do restante peticionado por esta lesada, e condenar solidariamente ambos os arguidos a pagar à BPCG a quantia de € 5.000, a título de danos não patrimoniais, a que acrescem juros de mora vincendos contados a partir do dia imediato à leitura da mesma decisão e até efectivo e integral pagamento e sem prejuízo da aplicação de ulteriores taxas supletivas de juros de mora aos juros ocorridos na sua vigência, absolvendo-se os demandados do restante peticionado por esta lesada. - Absolver o arguido dos restantes crimes constantes da acusação. 1.2. Inconformado, o arguido recorreu para a Relação de Évora (proc. n.º 1607/04) que, por acórdão de 30.11.04, julgou parcialmente procedente esse recurso e: - Alterou a matéria de facto dada como provado sob os n.ºs 21 e 67, do acórdão da 1.ª Instância; - Revogou esse acórdão, na parte em que condenou o arguido pela prática de 2 crimes de abuso sexual de crianças dos art.ºs 26, 1.ª parte, e 172.º, n.º 2, do C. Penal, nessa parte absolvendo o arguido; - Revogou o mesmo acórdão, na parte em que condenou o arguido como autor material de cada um de 2 crimes de violação agravada, dos art.ºs 26, 1.ª parte, 164, n.º 1 e 177, n.º 4, do C. Penal, na pena de 6 anos de prisão, e, em substituição, condenou-o como autor de 2 crimes de violação dos art.ºs 26, 1.ª parte, e 164, n.º 1 do C. Penal, por cada um destes, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão; - Revogou o mesmo acórdão, na parte em que condenou o arguido pela prática, como instigador, de 1 crime de aborto agravado dos art.ºs 26.º, última parte, 140.º, n.º 2, e 141.º, n.ºs 1 e 2, do C. Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão e, em substituição, condenou-o como autor desse crime na pena de 2 anos de prisão. - E condenou-o na pena única de 8 anos de prisão (2 penas de 4 anos e 6 meses de prisão e 1 pena de 2 anos de prisão) - Revogou o acórdão da 1.ª Instância na parte em que, a título de danos não patrimoniais, condenou o arguido a pagar à ALCG a importância de € 30.000,00 e, em substituição, condenou-o a pagar à mesma, a título de danos não patrimoniais, a importância de € 15.000,00, acrescida de juros vincendos desde a condenação em 1.ª instância e até efectivo e integral pagamento. - No mais, confirmou o acórdão da 1.ª Instância. No recurso juntou o recorrente um parecer doutoral. 2.1.1. Ainda inconformado recorreu o arguido para este Supremo Tribunal de Justiça, concluindo na sua motivação: 1 - O Tribunal da Relação decidiu erradamente ao considerar que o Tribunal a quo não formulou qualquer juízo de perigosidade e de culpabilidade em relação ao arguido, nem violou o principio da presunção da inocência; 2 - As regras e comandos contidos no artigo 138°, n.° 2 do Código de Processo Penal, dirigem-se a todos os agentes judiciários, Magistrados incluídos; 3 - Por isso, o método utilizado pelo Tribunal da 1.ª Instância na audição da lesada BPCG, criou situações de espontaneidade provocada", ao serem utilizadas, repetidamente e ao longo das várias horas que durou a audição, pelos Srs. Magistrados, expressões tais como Vá Bruna, esforça-te um pouco mais, ajuda-nos!"; "só mais um esforço.. . eu prometo que não te faço mais perguntas!"; "os passos que já deste foram importantes"; "olha BPCG, não me digas que vais morrer na praia!"; « estão aqui alguns homens na sala, mas nem todos são violadores»; 4 - Por outro lado, o Tribunal de 1 Instância formulou previamente pré-juízo de perigosidade em relação ao ora recorrente, ao defender no despacho acerca da reapreciação da prisão preventiva a inabitual liberdade de movimentos do arguido", ao defender a "necessidade de manter o arguido sem contacto visual com o exterior, ao entender que não seria permitido conversar com os agentes que o acompanhavam e com terceiros e nem sequer se encontrava algemado, e ao entrar pela porta de acesso principal deste Tribunal, em vez de entrar pela porta de acesso reservado aos arguidos detidos»; 5 - As referidas intervenções traduzem a existência de um pré-juízo de culpabilidade em relação ao recorrente, conjugado com a utilização da expressão " estão aqui alguns homens na sala, mas nem todos são violadores", sugerindo que um já era violador, a saber o arguido AMSG; 6 - O Tribunal evidenciou com tais comportamentos que já considerava o recorrente culpado, no início do julgamento, e antes da sua eventual culpabilidade ser apurada, através dos mecanismos legais; 7 - Os factos mencionados nas conclusões 1 a 6, traduzem uma postura violadora do principio da presunção da inocência, prevista no artigo 32°, n.° 2 da CRP, que é um principio fundamental do processo penal, tendo também em consideração o contido no artigo 200, n.° 4, da mesma CRP, e no parágrafo único do artigo 6° do CEDH; 8 - Assim, mostra-se violado o preceituado nos artigos 138°, n.° 2 do Código Penal, e 32°, n.° 2, 20°, n.° 4 da Constituição da República Portuguesa e parágrafo único do artigo 6° da CEDH, aplicável ao ordenamento jurídico português; 9 - Tal actuação do Tribunal constitui nulidade insanável, invocável nomeadamente nos termos do artigo 4 10°, n.° 3 do CPP, e conduzirá à repetição do julgamento, o que se requer seja ordenado em primeira mão; 10 - O Tribunal da Relação de Évora decidiu erradamente quando entendeu não ter existido alteração substancial dos factos; 11 - Pois, do ponto de vista jurídico-positivo, o artigo 39°, n.° 1 do CPP, proíbe que uma alteração substancial dos factos descritos seja tida em conta pelo Tribunal, para efeitos da condenação do arguido, e a sentença que não respeitar esta proibição é nula, nos termos do artigo 379°, n.° 1 b) do CPP, o que sucede no caso dos autos; 12 - Enunciado o cotejo entre as imputações contidas na acusação deduzida pelo Ministério Público e o teor da condenação, verifica-se que o Tribunal Judicial do Entroncamento condenou o recorrente como instigador de um crime de aborto, p.p. artigos 26°, última parte, 140°, n.° 2 e 141°, n.° 1 do Código Penal, o que foi mantido pelo Tribunal da Relação de Évora, enquanto a acusação imputava ao arguido a co-autoria de crime p.p. nos artigos 26°, 28°, 1400, n.° 1 e 14 1°, n.° 2 do Código Penal; 13 - O Tribunal Judicial do Entroncamento permitiu que uma alteração substancial dos factos fosse tida em conta, para efeitos de condenação do recorrente, o que foi erradamente mantido pelo Tribunal da Relação de Évora, e que permitiu que o recorrente fosse condenado por crime diverso (art. 1, n.° 1, al. f) do CPP), do que lhe era imputado pela acusação; 14 - O vicio em causa encontra-se previsto no artigo 379°, n.° 1, al. b) do Código do Processo Penal, e sanciona com nulidade a decisão condenatória, o que se indica no vertente; 15 - Assim, encontra-se também violado o preceituado nos artigos 359°, n.° 1, 379°, n.° 1 b) e 1, n.° 1, al. f) do CPP e 26°, última parte, 140°, n.° 2 e 14 1°, nos i e 2 do Código Penal; 16 - O n.° 21 dos factos provados, com a nova redacção que lhe foi dada pelo Tribunal da Relação de Évora, padece dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição entre a fundamentação e a decisão, e erro notório na apreciação da prova, previstos no n.° 2 do art. 410° do CPP; 17 - O Tribunal errou ao dar como assente a existência de relações sexuais entre o recorrente e a lesada ALCG, sem cuidar de apurar a articulação entre a situação de convalescença do recorrente no período entre Novembro de 2000 e os primeiros meses de 2001; 18 - O Tribunal errou ao não procurar aprofundar os dias e as horas dessas ocorrências; 19 - O Tribunal errou ao não cuidar de verificar a data ou datas em que o recorrente foi submetido a intervenção cirúrgica, o período em que usou tala gessada, o período em que usou canadianas e fez fisioterapia, e os reflexos dessa situação na capacidade de movimentação do arguido no período compreendido entre Novembro de 2000 e os primeiros meses de 2001, e da capacidade do arguido para se movimentar no interior do veiculo automóvel, para efeitos de despir a ALCG e de tirar as suas cuecas, calças, tirar a arma e manter relações nessas circunstâncias; 20 - O Tribunal errou ao não procurar articular os períodos de eventual relacionamento sexual com o local de trabalho do recorrente, na data dos factos, com as horas de entrada e de saída do local de trabalho, em Santarém, tendo os factos ocorrido na zona do Entroncamento; 21 - O Tribunal errou nos pontos 25, 29, 30 e 33, ao dar como provado que o recorrente introduziu o seu pénis erecto na vagina da mesma, na medida em que não existiu qualquer outra testemunha da ocorrência para além da lesada ALCG , e esta nunca utilizou em julgamento a expressão " pénis erecto"; 22 - O Tribunal errou ao dar relevância ao depoimento da mesma, no que a tal diz respeito, sem ter em conta um conjunto de depoimentos de várias testemunhas, tais como PM, TM e JM, RB, JS e de PG, que afirmaram ter mantido relações sexuais com a mesma, em data anterior à dos factos em discussão no processo; 23 - O Tribunal errou ao dar credibilidade a essa parte do depoimento da lesada ALCG , quando noutra parte o mesmo Tribunal entendeu que certos segmentos do depoimento não foram credíveis; 24 - O Tribunal errou, caindo nos vícios apontados no n.° 2 do art. 410° do CPP, ao dar como assentes os factos dos artigos 24, 28 e 66, ao não articular os factos 1 a 19 com os que constam de 20 a 33; 25 - O Tribunal de 1ª Instância deu como assente que em data anterior a Novembro de 2000, a ALCG tinha presenciado potenciais actos sexuais do arguido com a irmã BPCG, sem que em relação a essas constasse a existência de qualquer pistola ou a existência de ameaças; 26 - De acordo com a experiência comum, a ALCG poderia ser um factor de perigo para o recorrente em tais circunstâncias, nomeadamente, podendo contar aos seus pais as ocorrências que teria presenciado entre o arguido e a irmã; 27 - Da forma como está construído o artigo 19 dos factos assentes, ("fazia com que a ALCG os acompanhasse"), parece até que o recorrente se queria atirar para boca do lobo, ou que tinha gozo na presença da ALCG em tais circunstâncias (algumas dessas saídas); 28 - Mas não consta desse facto 19 que a ALCG tenha sido obrigada ou compelida à força, a presenciar tais actos sexuais; 29 - É credível à luz da lógica e da experiência comum que o recorrente necessitasse de ameaçar com uma pistola a ALCG ou de ameaçar que contava aos pais, só na altura em que manteve relacionamento sexual com ele, quando já antes havia muitos outros motivos para essas potenciais ameaças? 30 - O Tribunal errou e fez uma apreciação incorrecta da prova no que respeita a esses artigos; 31 - O Tribunal errou ao considerar como não provado o facto XXXI, dado que em face da prova existente nos autos, é patente que existiu um processo cível interposto pelo recorrente contra os pais das lesadas, que correu pelo Tribunal Judicial de Abrantes, sob o n.° 2/02, do 1° Juízo, no qual ficou provado, após recurso para o Tribunal da Relação de Évora, a existência de vários empréstimos do recorrente aos pais, em datas anteriores aos factos, e até posteriores à instauração da queixa crime; 32 - Só devido a uso de critérios arbitrários e insustentáveis se deu esse facto como não provado, tendo o mesmo interesse ser dado como provado, na medida em que o recorrente considera ter sido vítima de vingança e de uma cabala por parte dos Assistentes e lesadas, exactamente por causa de tais empréstimos; 33 - Relativamente ao facto constante do artigo 52, o Tribunal errou ao não articular esse facto com os empréstimos efectuados pelo recorrente ao dito casal, e ao não aprofundar a possibilidade, que para o recorrente, é certeza, desse cheque ter sido entregue à mãe das lesadas - CMRC - que o utilizou como quis e junto de quem quis, sendo o recorrente alheio à entrega do mesmo a MTSP; 34 - Faltaram no processo elementos suficientes para uma decisão certa, segura, adequada, quanto a esse artigo 52, pelo que existe erro manifesto na apreciação da prova; 35 - Todos esses pontos da matéria de facto se encontram incorrectamente julgados e devem ser alterados por esse Tribunal Superior, nos termos dos artigos 434° do CPP em conjugação com o artigo 410°, n.° 2, em virtude da existência dos fundamentos já apontados para esse efeito, o que determinará o reenvio do processo À instância para novo julgamento, nos termos do 426° do Código de Processo Civil; 36 - Inexiste na matéria de facto dada como assente qualquer referência à existência de resistência séria por parte da lesada ALCG , ou uma vontade contrária à actuação do recorrente; 37 - Como tal, não existem nos autos elementos de facto nem de Direito, suficientes para se considerar objectiva e subjectivamente preenchido o tipo penal do artigo 164° do Código Penal, cuja norma se encontra, aliás, violada; 38 - Contudo, a entender-se de modo diferente, o que se admite como hipótese, deve decidir-se que a conduta do recorrente configura a verificação de crime de forma continuada, tendo o Tribunal da Relação decidido erradamente ao condenar o recorrente como autor de dois crimes de violação autónomos: 39 - A darem-se como verificados os factos, estamos presente um crime continuado, na medida em que se encontra em causa o mesmo tipo de crime, existindo unidade do injusto objectivo da acção e do resultado, sendo que as diversas resoluções do recorrente se conservam dentro de uma «linha psicológica continuada", e que existem circunstâncias exógenas que facilitavam a execução, com relação de conhecimento com os pais e a frequência da casa de habitação; 40 - Assim, conjugando tal ponto de vista com o preceituado nos artigos 40°, 40, n.° 1, 43°, n° 1 e 72°, n.° 2 do Código Penal, deve nessa parte ser fixada uma pena única não superior a três anos; 41 - O Tribunal da Relação de Évora errou ao manter a condenação do arguido como instigador de um crime de aborto agravado, na forma consumada, p.p. nos artigos 26°, última parte, 140°, n.° 2, 14 1°, n°s 1 e 2 do Código Penal; 42 - Na nossa ordem jurídica a instigação encontra-se inserida no universo da autoria e consubstancia a conduta em que: a) alguém, dolosamente, determina outra pessoa à prática do facto; b) desde que haja execução ou começo de execução, sendo que a determinação de outrem à prática de um facto acontece quando alguém consegue criar em outra pessoa a firme decisão de esta querer praticar uma infracção; 43 - Contudo, a regra da acessoriedade impõe que o instigador só seja punido quando o autor imediato executa ou começa a executar o facto ilícito e típico; 44 - E nos casos em que o consentimento é elemento do tipo, revela-se jurídico-penalmente ilegítima a compreensão que ancora com a instigação na determinação dolosa do consentimento, pois, tal determinaria, por um lado, um alargamento intolerável das margens de punibilidade e, por outro, enredaria o discurso argumentativo em um paradoxismo; 45 - O Tribunal da Relação de Évora errou ao condenar o recorrente por ter dolosamente determinado BPCG a aceitar a interrupção da gravidez, porquanto, pela conjugação dos artigos 26° e 140°, n.° 2, do Código Penal, apura-se que a determinação dolosa do consentimento (que não é ainda o facto ilícito típico), configura jurídico-penalmente um facto não punível; 46 - A argumentação do Tribunal encerra um paradoxo, na medida em que ao sustentar que o consentimento foi instigado, situa-se numa linha interpretativa que conduzirá à irrelevância do consentimento - pela razão singela de um consentimento instigado não traduzir uma vontade livre (artigo 38°, n.° 2 do Código Penal) - mas quando se condena o recorrente por ter instigado um aborto consentido pela mulher grávida, pressupõe a relevância juridico-penal de tal consentimento; 47 - Deste modo, o Tribunal cometeu um erro notório na apreciação da prova, porque a factualidade provada não comporta o manifesto juízo de que o recorrente teria dolosamente determinado outrem à prática do aborto, o que se invoca nos termos e para os legais efeitos do artigo 410° n.°2 - C, do Código de Processo Penal; 48 - Não se provou que o recorrente tivesse criado em BPCG a resolução firme de cometer o crime de aborto; 49 - A remuneração entregue à enfermeira reformada MTSP e co arguida no processo, não é suficiente para sustentar que o arguido criou nesta a resolução firme de cometer o crime de aborto; 50 - Viola o principio da dupla valoração (art. 71°, n.° 2 do Código Penal), considerar a remuneração para efeitos do agravamento do crime de aborto (art. 141°, n.° 2 do Código Penal) e para efeitos de fundamentação da punição do instigador; 51 - Os poderes de cognição e de decisão do Tribunal de julgamento exercem-se nos limites do objecto do processo definido heteronomamente, sendo que a referida vinculação temática do Tribunal visa assegurar um efectivo direito de defesa do arguido; 52 - Em face do exposto, o recorrente deverá ser absolvido pela prática de instigador de um crime de aborto agravado; 53 - Mostram-se violados os preceitos contidos nos artigos 26°, última parte, 38°, n.° 2, 71°, n.° 2, 140°, n.° 2, 141°, nos i e 2 do Código Penal; 54 - Se se entender de modo diferente, não deverá ser aplicada ao arguido, por este crime, pena superior a um ano de prisão; 55 - E operado o cúmulo jurídico, a pena global a aplicar ao recorrente não poderá ser superior a quatro anos de prisão; 56 - Inexistem fundamentos para a condenação do recorrente no pagamento de indemnização a título de danos não patrimoniais, a qualquer das lesadas; 57 - Mostram-se violados os preceitos contidos nos artigos 562°, e 496°, n.° 1 do Código Civil; 58 - Se se entender de modo diferente, o que se admite como hipótese, em face do supra exposto, a indemnização a arbitrar à lesada ALCG não deverá ser superior a €. 5.000,00 (cinco mil euros), e a indemnização a fixar à lesada BPCG não deverá ser superior a € 1.000,00 (mil euros). 2.1.2. Respondeu o Ministério Público pronunciando-se pela rejeição do recurso por ser manifestamente improcedente, quanto às questões de falta de imparcialidade do tribunal de primeira instância, de nulidade por alteração substancial dos factos, de inexistência de elementos de facto e de direito para o preenchimento, objectivo e subjectivo, do tipo legal de crime do artigo 164° do Código Penal e da verificação deste na forma continuada, e da absolvição da prática, como instigador, do crime de aborto agravado, e improcedente, quanto às demais questões que suscita. 2.1.3. Também respondeu o assistente que concluiu pelo improvimento do recurso. 2.2.1. Recorreu igualmente o Ministério Público que pede a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por outro, que reponha em toda a sua plenitude a decisão condenatória proferida em primeira instância, concluindo na sua motivação: 1 - Quando um tribunal da Relação conhece, em recurso, da matéria de facto, quando reaprecia esta para que possa apurar dos vícios que podem inquinar a decisão proferida em tal domínio, tem, necessariamente, de fazer incidir a sua análise sobre todos os meios de prova que sobre determinado facto foram produzidos. 2 - Só procedendo nesses termos e com essa amplitude estará em perfeitas condições de decidir se determinado facto foi bem ou mal julgado, se as provas sobre ele produzidas não comportam nem permitem a decisão alcançada pela primeira instância, se as conclusões que da análise desses meios de prova foram extraídas sobre esse dito facto são lógicas, coerentes e fundamentadas, não contraditórias nem insuficientes, se não laborou em erro. 3 - E só assim procedendo estará em condições de afirmar se a convicção adquirida pela primeira instância sobre um dado facto, à luz do principio da livre apreciação da prova, é segura e isenta de dúvida. 4 - Enferma do vício de erro notório na apreciação da prova - Código de Processo Penal, artigo 410°, n.° 2, alínea c) - o acórdão da Relação que, reapreciando a matéria de facto assente como provada e não provada pela primeira instância a altera e considera fazer valer o princípio in dubio pro reo sobre determinado facto e o conhecimento que dele tem o autor do facto-crime, não procedeu a uma análise e apreciação de todos os meios de prova que sobre aquele facto foram produzidos. 5 - Viola a livre convicção adquirida pelo julgador da primeira instância e o principio da livre apreciação da prova - Código de Processo Penal, artigo 127° - o acórdão da Relação que, reapreciando a matéria de facto naquela assente como provada e não provada a altera, se apenas parcialmente aprecia e analisa os meios de prova produzidos sobre determinado facto e extrapola a motivação da sua decisão para além do que objectivamente permitem as regras da experiência e da vida. 6 - Ao revogar o acórdão da primeira instância, absolvendo o arguido da prática de dois crimes de abuso sexual de criança e desagravando a condenação do mesmo de dois crimes de violação agravados para dois crimes de violação (simples), em função das alterações que introduziu na matéria de facto provada e não provada apurada em primeira instância, nos termos e com a amplitude que supra se deixaram expressos, o acórdão recorrido violou também o disposto nos artigos 26, 1.ª parte, 172°, n.° 2 e 177°, n.° 4, todos do Código Penal, 7 - Como violado resultou o disposto nos n.°s 1 e 2 do artigo 71° e nos n.°s 1 e 2 do artigo 77°, do mesmo diploma legal. 8 - Por isso que, o acórdão objecto do recurso deverá ser revogado e substituído por outro, que reponha em toda a sua plenitude a decisão condenatória proferida em primeira instância. 2.2.2. Respondeu o arguido a este recurso, concluindo: 1 - O Tribunal da Relação de Évora ao dar como não provado que i AMSG tinha perfeito conhecimento da idade da BPCG e da ALCG , incidiu a sua análise sobre todos os meios de prova que sobre esse facto foram produzidos; 2 - Assim, essa não prova do facto resultou de uma análise dos meios de prova de forma lógica, coerente, fundamentada e não contraditória, nem insuficiente, segura e isenta; 3 - O Tribunal da Relação de Évora não enfermou no vicio de erro notório na apreciação da prova, ao reapreciar a matéria de facto, no que respeita a esse aspecto particular, e ao fazer valer o principio in dubio pro reo, sobre determinado facto, tendo procedido à análise e apreciação de todos os meios de prova que sobre aquele facto foram produzidos; 4 - O Acórdão da Relação, no que respeita ao facto indicado em 1) não violou o principio da livre convicção adquirida pelo julgador da primeira instância, bem como o da livre apreciação da prova, dado que apreciou, na totalidade, os meios de prova produzidos sobre esse facto, usando as regras da experiência e da vida; 5 - Ao revogar o Acórdão da ia instância, absolvendo o arguido da prática de dois crimes de abuso sexual de crianças e desagravando a condenação do mesmo, de dois crimes de violação agravados, para dois crimes de violação (simples), em função das alterações introduzidas na matéria de facto, provada e não provada, o Acórdão da Relação de Évora não violou o disposto nos artigos 26°, 1 parte, al. 72°, n.° 2, 177°, n.° 4, 71°, n.ºs 1e 2, 77°, n.ºs 1 e 2 do Código Penal; 6 - Nesse particular e que absolveu o arguido, conforme o referido em 5), o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, deve manter-se. 7 - Devem considerar-se como não escritas a parte das alegações de recurso em que foram efectuadas transições, nomeadamente de fis. 20 a 24, dado que se trata de renovação de meios de prova, não admissível em recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. 3. O Ministério Público neste Supremo Tribunal de Justiça teve vista dos autos. Colhidos os vistos legais teve lugar a audiência. Nela o Ministério Público pronunciou-se pelo improvimento do recurso do Ministério Público, pois que se não vê o erro notório invocado. Quanto ao recurso do arguido sustentou que não se vê ofensa à imparcialidade do tribunal, na forma como foram interrogadas as ofendidas, até porque o arguido teve oportunidade de reagir contra essa conduta do tribunal e se s ativesse considerado lesiva, teria reagido o que não fez. E fora dos prazos do art. 44.º do CPP já não é possível reagir. A alteração de co-autor do crime de aborto para a de instigador não é alteração substancial dos factos, como resulta da al. f) do n.º 1 do art. 1.º do CPP. Não se verificam vícios da matéria de facto, não sendo incompatíveis os n.ºs 21 e 37 da matéria de facto. Quanto à resistência ou oposição da ALCG , posta em causa pelo arguido, ela resulta dos n.ºs 24, 28 e 66 da matéria de facto. Quanto à instigação do aborto não se refere a mesma ao consentimento da menor, mas à actividade da abortadeira. Considera, neste âmbito que se a remuneração no crime de aborto estabelece a instigação não pode servir, sob pena de violação do princípio ne bis in idem, para agravar o crime, pelo que a punição deve ser pelo crime simples. As assistentes, consideraram que o tipo de interrogatório é o adequada para as vítimas menores de crimes sexuais, que a mudança de co-autoria para instigação não é alteração substancial de factos, que a matéria de facto está definitivamente fixada e o que oferece o recorrente é a sua visão subjectiva da prova produzida. Quanto à resistência da ALCG se deve atender à sua idade (13 anos) e origem humilde, quando o arguido era oficial da GNR. Se verifica concurso real de infracções e não crime continuado, pois que não circunstância exterior ao agente que diminua a culpa, antes a proximidade com as menores foi procurada pelo arguido para cometer os crimes. Que o arguido foi co-autor no crime de aborto e não instigador, pois desempenhou um papel essencial no cometimento do crime. Deve, finalmente, ser mantida a pena. O arguido aderiu à posição expressa pelo Ministério Público quanto ao recurso trazido por esta Magistratura e manteve e reafirmou a posição assumida na sua motivação de recurso e respectivas conclusões, criticando a matéria de facto fixada e o valor dado a documentos que juntou. Sustentou que eu não devia ser condenado pela prática do crime do art. 164.º e subsidiariamente que se tratou de crime continuado e não um concurso real, pois os conhecimentos com a família tinham facilitado a prática dos crimes. A pena em todo o caso deveria baixar, pois tem 49 anos, é primário e tem tido um comportamento exemplar na cadeia. Cumpre, pois, conhecer e decidir. E conhecendo. 3.1. São as seguintes questões suscitadas: - Falta de imparcialidade da 1.ª Instância (recurso do arguido); - Alteração substancial dos factos (recurso do arguido); - Vícios da decisão da matéria de facto (recurso do arguido e do Ministério Público) - Violação da livre convicção adquirida pelo julgador da primeira instância e do princípio da livre apreciação da prova (recurso do Ministério Público) - Culpabilidade quanto ao crime de violação (recurso do arguido); - Concurso dos dois crimes de violação e pena concreta (recurso do arguido) - Instigação no crime de aborto (recurso do arguido); - Pena pelo crime de aborto e pena única (recurso do arguido); - Indemnização (recurso do arguido) 3.2 Sustenta o recorrente que se verifica uma nulidade insanável do art. 410.º, n.º 2 do CPP, por pré-juizo de perigosidade e de culpabilidade do arguido, por parte do Tribunal Colectivo que violou o princípio da presunção da inocência e que deve conduzir à repetição do julgamento (conclusão 9.ª). Defende que, dirigindo-se as regras e comandos do n.º 2 do art. 138° do CPP também aos Magistrados (conclusão 2.ª), não podia o tribunal usar na audição da ofendida BPCG expressões como "Vá Bruna, esforça-te um pouco mais, ajuda-nos!"; "só mais um esforço..", "eu prometo que não te faço mais perguntas!"; "os passos que já deste foram importantes"; "olha Bruna, não me digas que vais morrer na praia!"; "estão aqui alguns homens na sala, mas nem todos são violadores", que criaram "situações de espontaneidade provocada" (conclusão 3.ª). E que anunciam um pré-juízo sobre a culpabilidade do arguido (conclusão 5.ª) e sobre a sua perigosidade (conclusão 4.ª), o que viola o princípio da presunção de inocência consagrado constitucionalmente e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (conclusões 6.ª a 8.ª). Decidiu a Relação sobre esta questão o seguinte: «5.1 - Quanto à invocada falta de imparcialidade do tribunal recorrido (por, segundo diz o recorrente, o tribunal ter utilizado um método de inquirição/audição em particular da ofendida BPCG que criou situações de "espontaneidade provocada", ao serem utilizados repetidamente expressões como "vá Bruna esforça-te um pouco, ajuda-nos", "só mais um esforço... eu prometo que não te faço mais perguntas", "os passos que já deste já foram importantes", "ajuda-nos a encerrar o assunto", "olha Bruna não me digas que vais morrer na praia", "estão aqui alguns homens na sala mas nem todos são violadores", assim também formulando um prejuízo de culpabilidade em relação ao recorrente, evidenciador de que já o considerava culpado antes daquela ser apurada de acordo com os mecanismos legais, assim igualmente se violando o princípio de presunção de inocência do arguido), entendemos não assistir qualquer razão ao recorrente pois, embora seja verdade, como aliás resulta da gravação da audiência, que os Senhores Juízes às vezes tenham utilizado aquelas expressões em especial durante o interrogatório da BPCG, tal, como também evidencia a dita gravação, resultou das dificuldades que, como é normal neste tipo de crimes referentes à intimidade e à vida sexual das pessoas, o Tribunal sentiu por a menor se mostrar inibida, com vergonha e sentir dificuldades em, perante o tribunal, se referir a esses factos de natureza sexual que constavam da acusação. Sustenta o recorrente que, enunciado o cotejo entre as imputações contidas na acusação deduzida pelo M.º P.º e o teor da condenação se verifica que a 1.ª Instância o condenou como instigador de um crime de aborto dos art.ºs 26°, última parte, 140°, n.° 2 e 141°, n.° 1 do C. Penal, o que foi mantido pela Relação, enquanto a acusação imputava ao arguido a co-autoria de crime dos art.ºs 26°, 28°, 140.º, n.° 1 e 14 1°, n.° 2 do mesmo diploma (conclusão 12), permitindo que uma alteração substancial dos factos fosse tida em conta, para efeitos da sua condenação do recorrente, o que foi erradamente mantido pela Relação, e que permitiu que o recorrente fosse condenado por crime diverso ( art. 1, n.° 1, al. f) do CPP), do que lhe era imputado pela acusação (conclusão 13), ocasionando a nulidade da decisão condenatória ¯ art. 379°, n.° 1, al. b) do CPP (conclusão 14). Esta resenha permite apreender que o recorrente embora continue a invocar uma alteração substancial dos factos geradora de nulidade da decisão que o condenou, mudou o ângulo de abordagem da questão. Com efeito, perante a Relação questionou, neste capítulo, a alteração introduzida nos factos referentes ao conhecimento que tinha da idade das menores e às ameaças que fez às ofendidas, como resulta das conclusões 45 a 48 da sua motivação de recurso então apresentada. E foi essa a questão que foi decidida desfavoravelmente para as suas pretensões pela Relação, como resulta inequivocamente do ponto 5.2. do acórdão deste Tribunal Superior, cuja parte inicial se transcreve: «5.2 - Invoca também o arguido uma nulidade que integra no art.º 410.º n.º 3, do C. P. Penal, por o tribunal, com base nas declarações da ALCG , ter promovido, segundo o recorrente, uma alteração substancial dos factos, prevista no art.º 359.º, n.ºs 1 e 2, do C. P. Penal, e não uma alteração não substancial prevista no art.º 358.º, como considerou o tribunal, em particular no que concerne à circunstância de considerar que o recorrente sabia que a mesma tinha treze anos de idade, e que o mesmo tirou uma pistola do bolso das calças, dizendo "sabes para que isto serve" e "se contares alguma coisa aos teus pais eu mato-os", assim introduzindo, ainda segundo o recorrente, factos substanciais que tiveram repercussões agravativas na medida da punição. O que significa que a questão agora é apresentada é nova, toda a vez que não foi colocada perante a Relação, no recurso dirigido a esse Tribunal Superior. Ora, como é sabido, os recursos destinam-se a obter o reexame pelo Tribunal Superior das decisões tomadas pelo Tribunal recorrido e não para obter daquele a pronúncia ex novo de questão, não colocada, e por isso não apreciada, por este. Assim, não tendo a questão sido colocada perante a Relação, dela não se tomará agora conhecimento. 3.5. Vícios da decisão da matéria de facto Continua o arguido a impugnar, no recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, a matéria de facto fixada pela 1.ª Instância e alterada parcialmente pela Relação. E invoca a existência de erro notório (conclusões 16 a 33 e 47), insuficiência da matéria de facto provada para a decisão (conclusões 16 e 34) e contradição entre fundamentação e a decisão: (conclusão 16). Por sua vez, o Ministério Público sustenta que a decisão de facto da Relação, na parte em que altera a decisão da 1.ª Instância, enferma de erro notório na apreciação da prova, quando reaprecia a matéria de facto e considera fazer valer o princípio in dubio pro reo sobre determinado facto e o conhecimento que dele tem o autor do facto-crime, não tendo procedido uma análise e apreciação de todos os meios de prova que sobre aquele facto foram produzidos (conclusão 4). Estas pretensões não podem, no entanto proceder. Culpabilidade quanto ao crime de violação Sustenta o arguido que não há na matéria de facto dada como assente qualquer referência a resistência séria por parte da ALCG , ou uma vontade contrária à actuação do recorrente (conclusão 36), pelo que não existem nos autos elementos de facto nem de Direito, suficientes para se considerar objectiva e subjectivamente preenchido o tipo penal do art. 164° do C. Penal (conclusão 37). Mas não lhe assiste razão. Dispõe o n.º 1 do art. 164.º do C. Penal que quem, por meio de violência, ameaça grave (...), constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos. A violência ou ameaça grave, bem como constranger outro, inscrevem-se seguramente na matriz do crime de violação pelo qual o arguido vem condenado. Constranger é compelir, obrigar à força, violentar, coagir. Ora foi isso o que fez o arguido, de acordo com a matéria de facto dada como provada. Com efeito, como notou o Ministério Público em audiência deste Tribunal, está provado que no interior do veículo onde conduzira a ALCG a local propício às suas intenções, o arguido tirou uma pistola de um bolso das calças e colocou-a sobre o "tablier" do veículo, dizendo "sabes para que serve isto" e "se contares alguma coisa aos teus pais eu mato-os" (cfr. n.º 24 da matéria de facto), após o que se colocou sobre aquela, que se mantinha no banco ao lado do banco do condutor e introduziu o pénis erecto na sua vagina (cfr. n.º 25. da matéria de facto). Uma segunda vez, o arguido deslocou-se a casa dos pais das menores e, aproveitando a circunstância de se encontrarem apenas a ALCG e a irmã mais nova, DRCG, logo se agarrou àquela (cfr. n.º 26 da matéria de facto), despiu aquela na presença da irmã (cfr. n.º 27 da matéria de facto), e como a ALCG tentasse fugir dizendo que ia contar aos pais, o arguido disse que se ela contasse aos pais lhe batia e os matava (cfr. n.º 28 da matéria de facto). O que basta para afastar a pretensão do recorrente. 3.7. Crime continuado na violação e pena concreta Sustenta o arguido, subsidiariamente, que então se configura um crime continuado e não dois crimes (conclusão 38), pois se encontra em causa o mesmo tipo de crime, existindo unidade do injusto objectivo da acção e do resultado, sendo que as diversas resoluções do recorrente se conservam dentro de uma «linha psicológica continuada", e que existem circunstâncias exógenas que facilitavam a execução, com relação de conhecimento com os pais e a frequência da casa de habitação (conclusão 39) Assim, conjugando tal ponto de vista com o preceituado nos artigos 40°, 40, n.° 1, 43°, n°1 e 72°, n.° 2 do Código Penal - defende o recorrente - deve nessa parte ser fixada uma pena única não superior a 3 anos (conclusão 40) No que tange ao crime de violação, estamos perante dois crimes, em concurso real e efectivo, e não, como diz o recorrente, perante um único crime na forma continuada. Sustenta o arguido que a regra da acessoriedade impõe que o instigador só seja punido quando o autor imediato executa ou começa a executar o facto ilícito e típico (conclusão 43) e quando o consentimento é elemento do tipo não é legítima a compreensão da instigação na determinação dolosa do consentimento, o que determinaria um alargamento intolerável das margens de punibilidade e enredaria o discurso argumentativo em um paradoxo (conclusão 44), enquanto sustenta que o consentimento foi instigado, logo não livre e irrelevante (art. 38°, n.° 2 do C. Penal), quando o aborto consentido pela mulher grávida, pressupõe a relevância juridico-penal de tal consentimento (conclusão 46) Não devia, assim, ter sido o arguido condenado por ter dolosamente determinado a ofendida a aceitar a interrupção da gravidez, pois que face aos art.ºs 26° e 140°, n.° 2, do C. Penal, a determinação dolosa do consentimento (que não é ainda o facto ilícito típico), configura um facto não punível penalmente (conclusão 45), sendo certo que se não provou que o recorrente tivesse criado em BPCG a resolução firme de cometer o crime de aborto (conclusão 48) A remuneração entregue à co-arguida no processo, não é suficiente para sustentar que criou nesta a resolução firme de cometer o crime de aborto (conclusão 49) e viola o princípio da dupla valoração (art. 71°, n.° 2 do C. Penal), considerar a remuneração para efeitos do agravamento do crime de aborto (art. 141°, n.° 2 do C. Penal) e para efeitos de fundamentação da punição do instigador (conclusão 50). Mas também aqui lhe não assiste razão. Resulta da matéria de facto provada que a BPCG engravidou em consequência das relações sexuais tidas com o arguido que, tendo conhecido por ela, a 15.07.2001, a ausência da sua menstruação há dois meses, logo diligenciou pela realização de um teste de gravidez que deu resultado positivo e, visando interromper aquela gravidez, dirigiram-se à casa da arguida, depois de o arguido ter previamente estabelecido contacto telefónico com esta e, uma vez aí, entrando o arguido e a BPCG, o arguido transmitiu à arguida que a menor era filha de um amigo dele, que ficara grávida do namorado e que precisava de abortar, tendo a arguida logo acordado proceder no dia seguinte à interrupção daquela gravidez e dado logo um supositório à BPCG para esta colocar nessa noite. No dia seguinte (16.07.2001), o arguido levou de novo a BPCG a casa da arguida, onde a deixou sozinha e aí a foi buscar, passado algum tempo e já após a arguida ter feito o aborto na BPCG, entregando à arguida para pagamento de tal actividade, um cheque no montante de 80.000$00 da sua conta, que a esta creditou na sua conta no dia seguinte (n.ºs 38, 40 a 45, 52 e 60 dos factos provados). Perante esta matéria de facto, não restam dúvidas, como decidiram as instâncias, que o arguido agiu, livre voluntária e conscientemente, com o propósito de levar a BPCG a interromper a sua gravidez, da qual era ele o autor. Mas esse não foi o único acto conducente à determinação da co-arguida. Na verdade, daquele complexo de factos resulta ainda que a determinou a praticar o aborto remunerado, através dos contactos que estabeleceu e que lhe permitiram localizá-la, antes de ter sido efectuada qualquer remuneração, o que só teve lugar depois de concretizado aquele. Daí que não se mostre violado o principio da dupla valoração. Aliás, Damião da Cunha (Comentário Conimbricense do Código Penal, vol. 1.º, 164), indica como exemplo da instigação do crime de aborto com intenção lucrativa, a actuação daquele que oferece a remuneração pelas manobras abortivas, devendo entender-se que o crime que instiga é esse aborto (agravado) e não outro que (simples) não teve lugar. E a comparticipação do arguido, foi-o também no dolo quanto à intenção lucrativa (art. 29.º do C. Penal). 3.9. Medida concreta da pena pelo crime de aborto e única O recorrente só questionou a medida concreta da pena pelos crimes de violação no quadro do crime continuado, que entendeu verificar-se, não o fazendo no quadro do concurso real de infracções. Quanto ao crime de aborto, sustenta que não deveria ser aplicada pena superior a um ano de prisão (conclusão 54), e, operado o cúmulo jurídico, a pena global a aplicar ao recorrente não poderia ser superior a quatro anos de prisão (conclusão 55). A decisão recorrida, depois de enunciar os princípios a que se deve atender na dosimetria penal, decidiu: «Os crimes aqui em causa (...) são punidos, em abstracto, cada um dos dois primeiros, com a pena de prisão de 3 a 10 anos, e o último, com a pena de prisão de 40 dias a 4 anos (...) Indemnização Continua a sustentar o recorrente que inexistem fundamentos para a condenação do recorrente no pagamento de indemnização a título de danos não patrimoniais, a qualquer das lesadas (conclusão 56), mas, a entender-se diferentemente, a indemnização a arbitrar à lesada ALCG não deverá ser superior a €. 5.000,00 (cinco mil euros), e a indemnização a fixar à lesada BPCG não deverá ser superior a €. 1.000,00 (conclusão 58) Parte para essa posição da ideia, que também vem sustentando, de que não cometeu qualquer facto ilícito gerador de responsabilidade civil. E no que respeita à discordância com os montantes das indemnizações arbitradas, nada se escreve, quer nas conclusões, que se retomaram, quer no texto da motivação que se limita a reproduzir a conclusão 58.ª (fls 1764), sobre as razões que imporiam uma redução dessas indemnizações. Ora, afastadas as pretensões do recorrente quanto à sua absolvição pela prática dos factos que lhe foram imputadas, mostra-se despida de conteúdo a impugnação dos montantes das indemnizações. Ora, não cabe ao Supremo Tribunal de Justiça substituir-se ao recorrente na revisão integral das decisões em causa, para tentar determinar se algum censura (qual?) merecem. De todo o modo, sempre se dirá, que se decidiu na decisão recorrida: «8 - Relativamente aos € 30.000,00 em que o Tribunal a quo condenou o arguido a pagar à ofendida ALCG , a título de indemnização por danos não patrimoniais, consideramos que, face à referida alteração da matéria de facto provada e à consequente absolvição do arguido, no que tange aos dois crimes de abuso sexual de crianças, e igualmente terem deixado de ser tidos como agravados os dois crimes de violação, entendemos que tal montante passou a estar algo exagerado. |