Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02A1274
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RIBEIRO COELHO
Descritores: OMISSÃO DE PRONÚNCIA
NULIDADE DE SENTENÇA
PODERES DA RELAÇÃO
Nº do Documento: SJ200205210012741
Data do Acordão: 05/21/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 793/01
Data: 10/04/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: REVOGADO O ACÓRDÃO RECORRIDO
Sumário :
Incorrendo o saneador-sentença em nulidade por omissão de pronúncia, impunha-se à Relação anulá-la e conhecer da apelação, o que não tendo sido feito, importa que o STJ anule o referido saneador-sentença, ordenando que os autos baixem á Relação a fim de conhecer da apelação.
V.G.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Na 2ª Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial de Guimarães foi proposta por Fundo de Reestruturação e Internacionalização Empresarial ... ...., representado pela sua sociedade gestora Empresa-A, SA., uma acção declarativa pela qual pediu que se declarassem nulas, anuladas ou inexistentes todas as deliberações sociais tomadas na assembleia geral de 29/9/99 da ré Empresa-B, Lda., relativas à propositura de execuções de sentença pela ré.
O seu fundamento é, no essencial e sinteticamente, o de na assembleia geral ter sido admitida a intervenção de um não sócio - isto é, do cessionário de quotas sociais em cessões não autorizadas pela sociedade.
Após contestação e réplica foi proferido despacho saneador que julgou a acção procedente, declarando nulas as deliberações impugnadas.
A apelação da ré foi julgada improcedente pela Relação do Porto, sendo pela mesma ré interposto contra o acórdão por esta proferido um recurso de revista em que, pedindo-se a sua revogação, se formulam, alegando, as seguintes conclusões:

1. O acórdão recorrido violou o disposto na 1ª parte do nº 2 do art. 660º e al. d) do nº 1 do art. 668º do CPC, ao não julgar nula a decisão proferida em 1ª instância que julgou inválidas as deliberações impugnadas por violação do disposto no art. 230º do CSC sem ter apreciado se o consentimento às cessões de quotas efectuadas foi validamente prestado na assembleia geral da ré realizada em 3/2/99, questão que foi suscitada nos art.s 83º a 99º da contestação, onde se verteu matéria que, por não ter sido impugnada e estar provada pela cópia da respectiva acta, nos termos do disposto no art. 63º, nº 1 do CSC (cfr. doc. nº 12 junto com aquela peça), que igualmente não foi impugnada, deveria ter sido dada como provada.
2. O acórdão recorrido violou, ainda, o disposto na 1ª parte do nº 2 do art. 660º e al. d) do nº 1 do art. 668º do CPC, ao não julgar procedente a nulidade da decisão proferida na 1ª instância que não conheceu os factos articulados pela ré nos art.s 227º a 240º e 124º a 197º da contestação, por o autor abusar manifestamente do direito que invoca, nos termos do art. 334º do CC.
3. As deliberações impugnadas nunca poderiam ser julgadas nulas nos termos do disposto na al. d) do nº 1 do art. 56º do CSC, já que esse preceito apenas pune as deliberações cujos efeitos contrariem preceitos imperativos, e o fim visado por aquelas, sendo, como é, apenas a interposição de acções executivas contra alguns dos seus sócios, não só não é proibido como é necessário à tutela dos interesses da sociedade recorrente.
4. A sociedade prestou validamente o seu consentimento às questionadas cessões de quotas na assembleia geral realizada a 11/9/98, posto que as deliberações aí tomadas nesse sentido colheram os votos correspondentes a mil e cinquenta milhões de escudos e foram expressos por quem delas era titular, quer a sociedade os considerasse como tal, os cedentes, quer a mesma reputasse como dono das quotas o cessionário Dr. AA, totalizando os votos contrários tão somente setecentos e vinte e dois milhões de votos pelo que aquelas cessões são plenamente eficazes, conferindo o estatuto de sócio do Dr. AA.
5. A assim não se entender, sempre ter-se-á -sic- de julgar validamente prestado o consentimento da sociedade, deliberado na assembleia geral de 3/2/99, onde a deliberação de prestação de consentimento às cessões efectuadas pelo BB ao Dr. AA foram aprovadas com 1.051.000 votos favoráveis e maioritários da sócia CC, que votou por si e em representação de DD, EE e BB e com 722.000 votos contrários dos Fundos sócios e esse consentimento é quanto bastaria para tornar plenamente eficazes todas as subsequentes cessões, que estariam então dispensadas de qualquer consentimento, por terem sido efectuadas a quem já adquirido a qualidade de sócio, conforme aliás dispõe a parte final do nº 2 do art. 228º do CSC.
6. O cessionário das quotas assinou a convocatória para a assembleia geral, na sua qualidade de gerente da sociedade, da qual constavam todos os elementos relevantes das cessões efectuadas, pelo que efectuou validamente o pedido de consentimento e a comunicação à sociedade, nos termos e para os efeitos do disposto no nº1 do art. 230º e nº 2 do art. 228º do CSC.
7. Os acordos parassociais não podem condicionar o consentimento das cessões de quotas, nos termos do disposto na 1ª parte do nº 5 do art. 229º do CSC, a contrario sensu, nem com base neles se pode impugnar qualquer acto da sociedade, nos termos do nº 1 do art. 17º daquele diploma legal, pelo que o acórdão recorrido, ao assim não entender, violou o disposto nas referidas normas.
Houve resposta em que a parte recorrida defendeu a improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Nas duas primeiras conclusões a recorrente começa por imputar ao acórdão recorrido duas violações de lei de processo.
Nos termos conjugados dos art.s 722º, nº 1 e 754º, nº 1 e 3 do CPC - diploma do qual serão as normas que adiante referimos sem outra identificação -, nada obsta a que o faça, visto impugnar decisão que pôs termo ao processo.
Ambas as violações de lei de processo que vêm submetidas a este Supremo Tribunal respeitam à tomada de posição que no acórdão recorrido teve lugar quanto a duas nulidades por omissão de pronúncia imputadas ao saneador-sentença que julgou a acção procedente.
A primeira consistirá em nele se não ter julgado nula a decisão da 1ª instância que teve como inválidas as deliberações impugnadas sem ter apreciado se o consentimento nas cessões de quotas efectuadas foi validamente prestado na assembleia geral da ré realizada em 3/2/99, nulidade que a ora recorrente invocou na conclusão 3ª que formulou enquanto apelante.
E fê-lo depois de na conclusão 2ª das mesmas alegações ter defendido que devia ser acrescentada à factualidade dada como assente a matéria constante dos art.s 83º a 99º da contestação, respeitante a essa assembleia geral de 3/2/99.
O acórdão recorrido abordou a matéria dessa conclusão 2ª, aludindo a passagens da factualidade dada como assente no saneador-sentença a propósito da referida assembleia geral - nas quais se retivera que "...ocorreu em 3/2/99 a reunião da assembleia geral com a ordem de trabalho constante da convocatória para a assembleia geral ... "e que" ... o A. impugnou todas as deliberações em que foi admitido a participar e a votar, com a inerente qualidade de sócio, AA ...", designadamente a "...assembleia geral de 3/2/99, objecto do proc. nº 125/99, do 4º J.C. desta comarca... " -, e concluiu no sentido de que a apelante não tinha razão e de que nada havia a alterar nessa factualidade.

E disse também o seguinte:
"Ora, o que está em causa nos presentes autos é a assembleia geral de 29 de Setembro de 1999. Logo, e ao contrário do que pretende a apelante, não cabia ao Sr. Juiz apreciar a validade das deliberações tomadas naquela assembleia geral".
Embora não tenha sido feita expressamente a ligação desta afirmação à dita conclusão 3ª que lhe fora submetida, a passagem, que transcrevemos, do acórdão recorrido procede, claramente, à sua apreciação em sentido negativo; na verdade, sendo argumentado que o Senhor Juiz não apreciara uma dada questão que pela apelante era tida como necessária e que tal envolvia nulidade, a afirmação de que essa questão não tinha que ser apreciada nega que essa nulidade tivesse sido cometida.
A nulidade por omissão de pronúncia traduz-se na indevida não apreciação de uma questão submetida ao juiz pelas partes.

Sabe-se, de acordo com a matéria de facto dada como assente, que:
1. Em 1996 o FRIE/Sulpedip - Retex, o FRIE PME/Capital Retex, o FRIE/Norpedip, e o FRIE/Norpedip Retex eram sócios da ré através da titularidade de quatro quotas, nos valores de 361.000.000$00, 216.500.000$00, 46.500.000$00 e 98.000.000$00, respectivamente;
2. Em 1997 um sócio, BB, cedeu a sua quota, no valor nominal de 87.100.000$00, a um terceiro, AA, sendo o respectivo registo feito provisoriamente por a cessão não ter sido consentida pela sociedade;
3. E no ano seguinte o mesmo sócio e ainda os sócios DD, EE e CC cederam ao mesmo AA outras quotas - uma de 111.800.000$00 o primeiro, três de 215.000.000$00, 167.500.000$00 e 286.000.000$00 o segundo, uma de 80.400.000$00 a terceira e outra de 103.200.000$00 a mesma CC e o quarto, já que a este cabia nela o usufruto e àquela a nua propriedade;
4. Os respectivos registos foram feitos como definitivos por se considerar que se tratava de cessões feitas a quem já era sócio, mas, posteriormente, houve sentença que determinou a rectificação destes últimos registos no sentido de passarem a constar como provisórios por natureza, situação que se mantém;
5. Não houve pedido escrito para as referidas cessões de quotas com indicação do cessionário e de todas as condições da cessão;
6. Em acordo celebrado em 1995 entre os FRIE e os restantes sócios da ré, mais tarde cedentes nas cessões referidas em 2. e 3., foi acordado em que estes só poderiam transmitir as suas quotas com expresso consentimento, dado por escrito, dos FRIE;
7. O recorrido não deu consentimento escrito para as cessões nem as autorizou;
8. O cessionário foi admitido a votar nas assembleias gerais de 19/6, 6/7 e 11/9/98 e nas de 3/2 e 6/7/99 - esta continuada em 11/7 29/9/99 -, tendo o autor, ora recorrido, impugnado judicialmente todas as deliberações aí tomadas;
9. Na assembleia geral de 11/9/98 interveio como sócio o AA, tendo igualmente estado presente a AA, por si e representando os mesmos BB, DD e EE, a qual, em seu nome e no dos seus representados, disse que, não sendo já sócios, declaravam autorizar e consentir nas cessões efectuadas;
10. Na assembleia geral de 29/9/99 foi deliberado, com o voto do mesmo AA, intentar execuções de sentença contra os referidos CC, BB, EE e DD.

O saneador-sentença considerou que, não sendo AA cônjuge, ascendente ou descendente dos cedentes e não tendo antes das cessões a qualidade de sócio nem havendo no pacto social uma cláusula de livre transmissibilidade de quotas, aquelas cessões, porque não consentidas pela sociedade, eram ineficazes para com a sociedade, nos termos do art. 228º, nº 2 do CSC, e que, por isso, as deliberações impugnadas não tinham sido validamente tomadas dada a intervenção de quem não era sócio.
No entanto, nos art.s 83º a 99º da contestação a ré alegara, em resumo, que em assembleia geral de 3/2/99 haviam sido aprovadas, com os votos favoráveis dos sócios CC, BB, DD e EE e os votos contrários dos FRIE, deliberações prestando o consentimento da ré às cessões feitas pelo BB, o que, designadamente na medida em que ficava consentida a primeira de todas as cessões, dispensava em relação às restantes a prestação de idêntico consentimento, uma vez que ficavam sendo cessões feitas a quem já era sócio.
Visando esta acção a declaração de inexistência ou de nulidade das deliberações tomadas em 29/9/99 ou a sua anulação, e assentando a respectiva invalidade na circunstância de na assembleia geral onde foram tomadas ter havido intervenção de quem não era sócio porquanto era cessionário de quotas em cessões não consentidas, esta argumentação da ré configura-se como um facto impeditivo daquela invalidade.
E isto porque as duas cessões feitas pelo BB, tendo sido feitas sem consentimento, o teriam sido "a posteriori".
A mesma função processual tem, aliás, o que se passou na assembleia geral de 11/9/98.

Ora, e apesar de ter dedicado atenção a esta última e ter tido como irrelevante o que lá se passou - cfr. facto nº 9 supra - nada se disse, porém, na sentença quanto ao que se passou em 3/2/99.
Sobre esta omissão disse o acórdão recorrido que a mesma tinha toda a razão de ser, como se vê da correspondente passagem que acima transcrevemos.
Mas mal, a nosso ver.
Assinale-se, desde logo, que a matéria de facto está insuficientemente averiguada a este propósito. Na verdade, enquanto que o saneador-sentença, com o acordo do acórdão recorrido, consagrou ter o AA participado e votado na assembleia geral de 3/2/99, tal não foi alegado na petição inicial - cfr. os seus art.s 108º a 142º, onde se alude à intervenção da sócia CC e seus representados -, nem na contestação - onde, neste aspecto, se alegou o mesmo que na petição -, nem na acta respectiva, junta por cópia a fls. 209 e segs. - em especial, a fls. 220 e 222 e verso -, o que justificaria o uso, neste momento, dos poderes conferidos pelo art. 729º, nº 3.
Por outro lado, embora o objecto desta acção seja o que foi deliberado em 29/9/99, a verdade é que a validade do que consta das deliberações aí aprovadas passa, determinantemente, pela legitimidade da intervenção do AA, cuja qualidade de sócio é discutida.
E esta qualidade, de acordo com o que a ré alegou, terá ficado regularizada com as autorizações deliberadas em 3/2/99 - o que não pode, por isso, deixar de ser apreciado no âmbito do litígio aqui estabelecido.
Tal como, aliás, não poderá também deixar de ser apreciada a questão de abuso do direito que a estas autorizações é imputado nos art.s 126º e segs. da petição.

Incorreu, pois, o saneador-sentença em omissão de pronúncia que constitui a nulidade prevista na 1ª parte da al. d) do nº 1 do art. 668º.
Tal impunha à Relação o dever de anular a decisão apelada e de, em cumprimento do art. 715º, nº 1, conhecer do objecto da apelação, além do mais através da necessária pronúncia sobre a questão indevidamente omitida.
Estando a ser apreciada em outro processo a validade das deliberações tomadas em 3/2/99, duas alternativas são possíveis nestes autos: ou a sua apreciação incidental nos termos do art. 96º, ou a ponderação da eventual natureza prejudicial daqueloutra acção - que o recorrido informou ter sido já decidida, mas ignorando-se se o foi já definitivamente.
Não se tendo assim procedido, compete a este STJ, na procedência do recurso, anular o saneador-sentença e mandar que a Relação volte a conhecer da apelação, não podendo agora isso ser feito com uso, como sucedeu no acórdão recorrido, do art. 713º, nº 5 por desaparecer a decisão para a qual se remeteu.

A segunda violação de lei de processo imputada ao acórdão recorrido consistirá em não ter julgado procedente a nulidade da decisão proferida na 1ª instância que não conheceu os factos articulados pela ré nos art.s 227º a 240º e 124º a 197º da contestação, nos quais se defendera que, a serem inválidas as deliberações impugnadas, o autor abusava manifestamente do direito ao invocá-las.
Esta nulidade foi arguida na conclusão 1ª formulada nas alegações da apelante.
O acórdão recorrido abordou expressamente essa questão.
Analisou as alegações de facto na contestação e concluiu que as mesmas não podiam fundar a imputação de abuso do direito ao aí apelado.
E rematou a sua análise dizendo:
"Infere-se, pois, que o alegado pela R. não poderia consubstanciar uma situação de abuso de direito, pelo que não ocorre a apontada nulidade da decisão recorrida".
Aqui a razão está, mais uma vez, do lado da recorrente.
Embora os art.s 143º a 145º da contestação, invocados no acórdão recorrido, pareçam apontar no sentido de que os FRIE não deram nunca o seu acordo a que viessem a ser realizadas as cessões de quotas, acima referidas, o contrário parece ser o que consta dos art.s 141º e 233º do mesmo articulado, designadamente quando no primeiro deles se fala no conhecimento, por parte da administração da PME Capital e da PME Investimentos, do projecto de cessão de quotas ao AA e quando no segundo se refere o acordo de todos os sócios quanto a tal.
Assim, e sem que aqui se esteja a deixar afirmada a suficiência dos factos alegados a este propósito pela ré, deve dizer-se que a questão do abuso do direito por parte do autor foi também indevidamente omitida no saneador-sentença, gerando nulidade do mesmo por razões legais idênticas às acima mencionadas.
Esta questão fica, também, abrangida pelo dever que sobre a Relação impende por força do art. 715º, nº 1.
A matéria das restantes conclusões - 3ª a 7ª - está, naturalmente, prejudicada; não havendo pronúncia válida das instâncias sobre elas, e visando o recurso a reapreciação do já decidido, e não a prolação de decisões sobre questões ainda não apreciadas - a não ser que sejam de conhecimento oficioso, o que não é o caso -, não pode o STJ fazê-lo.

Nestes termos, revoga-se o acórdão recorrido, anula-se o saneador-sentença proferido na 1ª instância e manda-se que na Relação, se possível com intervenção dos mesmos Excelentíssimos Desembargadores, de novo se tome conhecimento da apelação.
Custas pelo recorrido.

Lisboa, 21 de Maio de 2002
Ribeiro Coelho
Garcia Marques
Ferreira Ramos.