Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1715/15.4T8SLV-C.E1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: CONTRATO DE EMPREITADA
PRAZO DE CADUCIDADE
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
NEXO DE CAUSALIDADE
DEFEITO DA OBRA
MORA
Data do Acordão: 07/04/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / EMPREITADA.
Doutrina:
- João Cura Mariano, Responsabilidade contratual do empreiteiro pelos defeitos na obra, 144 e 172-173.
- P. Lima / A. Varela, “Código Civil” Anotado, II, 3.ª ed., nota 1, 824.
- Pedro Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, 141, 348 e 351 a 353.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1221.º, 1222.º, 1223.º, 1224.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 28-11-2013 (PROC. N.º 844/04.4TBCTX.E1.S1); 28-09-2006 (PROC. N.º 06B2127); 15-04-2004 (PROC. N.º 04B862); 16-04-1996 (PROC. N.º 087859); 14-03-1995 (NO B.M.J., 445º/464); 10-12-1993 (C.J./S.T.J. 3.º); 11-05-1993 (C.J./S.T.J. 2.º); 17-05-1983 (PROC. N.º 070626, TAMBÉM NO B.M.J. 327.º/646); E 05-07-1977 (PROC. N.º 066524).

-*-

JURISPRUDÊNCIA DAS RELAÇÕES:

-ACÓRDÃOS: DA RELAÇÃO DE COIMBRA DE 22-03-2011 (PROC. N.º 157240/09.1YIPRT.C1), 4-05-2010 (PROC. N.º 193/09.1TBCVL-A.C1) E 30-06-2009 (PROC. N.º 486/03.1TBCBR.C1); DA RELAÇÃO DE LISBOA 18-09-2008 (PROC. N.º 4444/2008-2), 18/5/99 (NA C.J. 3.º) E DE 23-02-1995 (NA C.J. 1.º/145); E DA RELAÇÃO DO PORTO DE 9-5-1996 (NA C.J. 3.º/185).
Sumário :

I - No âmbito do contrato de empreitada, o prazo de caducidade estabelecido pelo art. 1224.º do CC atinge os direitos previstos nos precedentes arts. 1221.º a 1223.º, mas o de indemnização, neste último consagrado, apenas respeita aos prejuízos que tenham um nexo de causalidade com os vícios ou defeitos da obra.

II - Por isso, não está sujeito à caducidade aí prevista o direito à indemnização pela mora no cumprimento do prazo de conclusão e entrega da obra, antecipadamente estipulada pelos contraentes.



Decisão Texto Integral:

                                                                                             

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
           


1) AA Lda intentou esta ação contra BB, CC e DD, pedindo a condenação destes a pagar-lhe a quantia de € 34.026,63, acrescida dos juros de mora, que alegou corresponder ao montante por liquidar do preço dos trabalhos que realizou, no âmbito de um contrato de empreitada que celebrou com os RR.
2) Em 9/7/2015, os RR, reconvencionalmente, peticionaram da A o pagamento da quantia de € 130.881,92, que, segundo alegaram, equivale à indemnização que ambas as partes, contratualmente, haviam antecipadamente fixado pelo atraso na entrega da obra, que a A apenas veio a concretizar em 7-01-2009, quando se vinculara a fazê-lo até 13-06-2008.
3) Na sua réplica, a A, ao abrigo do art. 1224º do CC, invocou a caducidade do direito exercido pelos RR.
4) Foi proferido despacho saneador, julgando improcedente tal excepção.
5) A Relação de Évora confirmou essa decisão de 1ª instância, com uma fundamentação idêntica à desta e que foi assim sintetizada: «No âmbito do contrato de empreitada, o pedido de indemnização decorrente do atraso no cumprimento do prazo de entrega da obra, em consonância com o estipulado, não está sujeito às regras da caducidade a que alude o artº 1224º do CC, mas às regras gerais da prescrição».

6) A A interpôs recurso de revista excepcional desse acórdão, delimitando o seu objecto com conclusões que colocam a questão de saber se está sujeito às regras da caducidade previstas no art. 1224º do CC o direito exercido pelos recorridos a uma indemnização pelo atraso na conclusão e entrega da obra, por força de cláusula penal estipulada no contrato de empreitada.

7) A Formação deste Supremo Tribunal prevista no nº 3 do artigo 672º do CPC admitiu o recurso de revista, ao abrigo do nº 1 c) do mesmo artigo, por considerar verificada a contradição apontada pela recorrente entre o decidido no acórdão recorrido e no acórdão da RL de 2-11-2010 (P. 3420/05TVLSB.L1-1), de cujo sumário se destaca o seguinte segmento: «A cláusula penal moratória tem a natureza de indemnização e, por isso, não deixa de estar sujeita ao prazo de caducidade do direito de reparação dos defeitos da obra, de redução do preço ou de indemnização».  

*
Importa apreciar a questão enunciada e decidir, para o que releva o antecedentemente relatado.
         
Estatui o nº 1 do invocado art. 1224º que «Os direitos de eliminação dos defeitos, redução do preço, resolução do contrato e indemnização caducam, se não forem exercidos dentro de um ano a contar da recusa da aceitação da obra ou da aceitação com reserva, sem prejuízo da caducidade prevista no artigo 1220.º» ([1]).
Ora, segundo pensamos, o sentido interpretativo sustentado pela recorrente para a norma do invocado art. 1224º, intimamente conexa com a do precedente art. 1223º, não respeitaria as regras de interpretação impostas pelo art. 9º do CC, não só porque não colheria na letra da lei uma perfeita correspondência verbal, mas também porque contornaria os aspectos de ordem sistemática, histórica e racional envolvidos: a interpretação não deve cingir-se à sua expressão literal acabada de transcrever, embora sem dela prescindir, mas reconstituir, a partir dos textos, o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e presumindo que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Com efeito, desde logo, os citados preceitos incluem os diversos artigos (1218º a 1226º) que, dentro do Capítulo do CC alusivo ao contrato de empreitada, integram a Secção III, que rege, especificamente, os efeitos jurídicos conexos com os «defeitos da obra», como logo se constata pela respectiva epígrafe.
E os arts. 1221º, 1222° e 1223° do CC, tal como vem sendo consensualmente entendido, pela forma como estão redigidos, impõem que o lesado com a defeituosa execução da obra, para se ressarcir dos seus prejuízos, exerça os direitos por eles conferidos, não arbitrariamente, mas com subordinação à ordem neles estabelecida, portanto que exija: em 1° lugar, a eliminação dos defeitos, ou, caso não possam ser eliminados, nova obra; seguidamente, a redução do peço, ou a resolução do contrato, no caso de os defeitos tornarem a obra inadequada ao fim a que se destinava; e, só em último lugar, a indemnização, nos termos gerais, ou seja, nos dos arts. 562º e ss.
Por assim ser, o incumprimento definitivo do contrato de empreitada pelo empreiteiro desencadeia os efeitos jurídicos previstos, nos termos gerais, nos arts. 790º e ss, mormente aqueles a que se referem os arts. 798º e 808° (responsabilidade do inadimplente), ou seja, confere ao dono da obra, a par do direito à resolução, o direito a indemnização dos prejuízos sofridos, nomeadamente os decorrentes da mora (804º e ss), no caso de inobservância do prazo acordado. Diferentemente, a actuação dos acima citados normativos pressupõe a execução completa do contrato, embora com defeitos, pelo que a indemnização a que se reporta o aludido art. 1223º é somente a que se prende com o cumprimento defeituoso, ou, mais precisamente, com os prejuízos decorrentes dos vícios ou defeitos da obra que não sejam inteiramente compensados com a eliminação destes. Por isso, a reparação prende-se apenas com os prejuízos que tenham um nexo de causalidade com tais vícios ou defeitos da obra e não pode ser exigida autonomamente, por ser subsidiária e complementar relativamente aos pedidos de eliminação dos defeitos, de substituição da prestação e de redução do preço.

Realmente, o direito a essa indemnização não só não constitui uma alternativa aos apontados meios, pois pressupõe o seu acionamento, como visa apenas os prejuízos deles complementares, quando os mesmos faltarem ou forem insuficientes para a integral reparação ([2]). Sobre este tema, discorreu assim Pedro Romano Martinez ([3]):

«Não obstante esta estreita relação com as regras gerais, a obrigação de indemnizar em caso de defeito da prestação, ao contrário do que se passa noutros ordenamentos jurídicos, não é independente das restantes acções edilícias, pois está sujeita a idênticos pressupostos e é complementar destas. (…) No sistema jurídico português, esta indemnização não pode ser pedida em alternativa aos outros meios jurídicos estabelecidos para a hipótese de cumprimento defeituoso, pois é meramente subsidiária. A indemnização não funciona em alternativa, mas sim como complemento dos restantes meios jurídicos que são postos à disposição do comprador e do dono da obra, sempre que seja efectuada uma prestação defeituosa.

(…) Ora, qualquer destes três meios tem em vista reconstituir a situação natural. Sendo esta a regra no direito civil (artºs 562º e 566º, nº 1), a indemnização por sucedâneo pecuniário, prevista nos artºs 910º, 915º e 1223º, só se justifica na medida em que os outros meios não se possam efectivar, ou em relação a prejuízos que não tenham ficado totalmente ressarcidos.».
Retornando, agora, à norma do art. 1224º invocado no recurso, constata-se que, com ela, o legislador cuidou do interesse da certeza e estabilidade das relações jurídicas como faz, em geral, quando estatui em matéria de caducidade. Mas, foi movido, ainda, por uma outra preocupação como, claramente, salientam P. Lima / A. Varela ([4]): «A necessidade de fixar um prazo curto para o exercício dos direitos de eliminação dos defeitos, redução do preço, resolução do contrato e indemnização é reconhecida na generalidade das legislações. “Decorrido longo prazo, escreve Vaz Serra (...), pode ser difícil averiguar se a obra tinha vícios e seria prejudicial à segurança do tráfico jurídico que os vícios fossem invocados.”
Ora, a consagração de prazos (bastante) curtos para a efectivação dos direitos resultantes da descoberta de tais defeitos – tanto para a denúncia destes, como para o exercício dos direitos do dono da obra – foi, precisamente, o meio encontrado para mitigar o apontado risco e, assim, tutelar também um valor que não deixa de estar ligado à segurança jurídica, a par do interesse do empreiteiro em ver definida a sua responsabilidade pelos defeitos na obra no mais curto espaço de tempo após a sua conclusão.
No entanto, «Já não há razão para se fixarem prazos curtos, se os direitos invocados pelo dono da obra não se fundarem em defeitos desta, mas em qualquer outro facto, como na mora ou no não cumprimento da obrigação. Daí a enumeração taxativa, feita no artigo 1224º, dos direitos sujeitos a caducidade. A indemnização a que ele se refere é a prevista no artigo anterior. O pedido, por exemplo, duma indemnização pelo não cumprimento está já sujeito às regras gerais da prescrição.» ([5]).
Por consequência, conforme resulta expressamente da redacção deste art. 1224º, tais prazos de caducidade apenas se aplicam aos direitos do dono da obra previstos naqueles arts 1221º, 1222º e 1223º, do CC, que visam reparar unicamente o prejuízo consubstanciado na existência de defeitos na obra e não quaisquer outros danos ([6]).
Claro que, como informa Pedro Romano Martinez ([7]), «Há quem considere que, como o resultado não é obtido a tempo, a mora é um defeito temporal do cumprimento», mas o mesmo Autor logo adianta: «A ideia não está, em si, errada, só que a referência ao termo “defeito” pode levar a que se estabeleça uma confusão entre mora e cumprimento  defeituoso. Assim sendo, a mora deve ser só qualificada como uma falta temporal do cumprimento».
Concluindo, o questionado prazo de caducidade estabelecido pela invocada norma do art. 1224º atinge apenas o direito de indemnização consagrado no precedente artigo 1223º que, por sua vez, visa regular somente a reparação dos prejuízos radicados nos defeitos da obra e não os consubstanciados noutra fonte como são os causados pela demora da conclusão da obra, em que se fundamentava o pedido formulado contra a ora recorrente.

Portanto, improcede o recurso.


*
Síntese conclusiva:
1. No âmbito do contrato de empreitada, o prazo de caducidade estabelecido pelo art. 1224º do CC atinge os direitos previstos nos precedentes artigos 1221º a 1223º, mas o de indemnização, neste último consagrado, apenas respeita aos prejuízos que tenham um nexo de causalidade com os vícios ou defeitos da obra.
2. Por isso, não está sujeito à caducidade aí prevista o direito à indemnização pela mora no cumprimento do prazo de conclusão e entrega da obra, antecipadamente estipulada pelos contraentes.

*

Decisão:
Pelo exposto, acorda-se em negar a revista e, por consequência, em confirmar a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.           


Lisboa, 4/7/2017


Alexandre Reis

Lima Gonçalves

Cabral Tavares

-------------------------------------------------



[1] Este artigo 1220º, por sua vez, prescreve que «o dono da obra deve, sob pena de caducidade dos direitos conferidos nos artigos seguintes, denunciar ao empreiteiro os defeitos da obra dentro dos trinta dias seguintes ao seu descobrimento».
[2] Neste sentido, os Acórdãos deste Tribunal de 28-11-2013 (P. 844/04.4TBCTX.E1.S1 - Oliveira Vasconcelos); 28-09-2006 (P. 06B2127 - Mota Miranda: «o direito de indemnização previsto no art. 1223.º do CC reporta-se a danos que não podem ser ressarcidos com a eliminação dos vícios, danos não reparados apesar da eliminação dos defeitos; é um direito que não pode ser exercido em alternativa a qualquer dos outros meios jurídicos previstos nos arts. 1221.º e 1222.º do CC»); 15-04-2004 (P. 04B862 - Quirino Soares); 16-04-1996 (P. 087859 - Amâncio Ferreira: «O direito a indemnização previsto no artigo 1223 do CCIV66 respeita a outros prejuízos que não sejam compensados com a simples eliminação dos defeitos ou com a redução do preço da empreitada»); 14-03-1995 (in BMJ, 445º/464); 10-12-1993 (CJSTJ 3º- Ferreira da Silva); 11-05-1993 (CJSTJ 2º-Ramiro Vidigal); 17-05-1983 (P. 070626 - Joaquim Figueiredo, também in BMJ 327º/646); e 05-07-1977 (P.066524 - Alves Pinto: «Se uma piscina, à data da sua entrega, funcionava, embora com defeitos, é infundada a invocação da cláusula penal estabelecida para o incumprimento da sua atempada entrega. Dos defeitos ou vícios apontados resulta para o dono da obra, nos termos do disposto no artigo 1223 do C.CIV., um possível direito de indemnização que, todavia, nada tem a ver com a cláusula penal convencionada entre as partes contratantes.»). Também as Relações se têm pronunciado em tal sentido, designadamente nos seguintes acórdãos: da RC de 22-03-2011 (157240/09.1YIPRT.C1 - Fonte Ramos), 4-05-2010 (193/09.1TBCVL-A.C1 - António Magalhães) e 30-06-2009 (486/03.1TBCBR.C1- Sílvia Pires); da RL 18-09-2008 (P. 4444/2008-2 - Farinha Alves), 18/5/99 (CJ 3º-Santana Guapo) e de 23-02-1995 (CJ 1º/145-Santos Bernardino); e da RP de 9-5-1996 (CJ 3º/185).
[3] In “Cumprimento Defeituoso em Especial na Compra e Venda e na Empreitada”, pp. 348 e 351 a 353.
[4] In CC Anot., II, 3ª ed., nota 1, p 824.
[5] P. Lima / A. Varela, in ob. e loc. cit.
[6] Também neste sentido, João Cura Mariano, in “Responsabilidade contratual do empreiteiro pelos defeitos na obra”, pp. 144 e 172-173.
[7] Ob. cit., p. 141.