Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3527/18.4T8PNF.P2.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: LUIS CORREIA DE MENDONÇA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
DANOS FUTUROS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
CRITÉRIOS
EQUIDADE
PODERES DE COGNIÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 01/16/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA PARCIALMENTE PROCEDENTE.
Sumário :

I- A lesão da integridade física e da saúde desde há muito que dá acesso aos remédios da responsabilidade civil, para ressarcimento dos tradicionais danos, patrimonial e não patrimonial.


II- A ideia de dano biológico demarca-se desta orientação tradicional: às duas tradicionais figuras do dano, associa-se uma terceira categoria chamada dano biológico que consiste no prejuízo referido à lesão in se e per se considerada da integridade física e da saúde, distinta tanto da perda económica àquela seguida como do sofrimento por ela provocado.


III- A conceitualidade do dano biológico resulta construída na base da imprescindibilidade do efeito ressarcitório diante de uma lesão à integridade pessoal ou ao direito à saúde primariamente tutelados pela Constituição (artigos 25.º e 64.º).


IV- O julgador deve recorrer à equidade para fixar a indemnização devida pelo dano biológico, ainda que se sirva, num primeiro momento, do auxílio de tabelas financeiras ou de fórmulas matemáticas.


V- Esta operação inicial consiste na utilização de um instrumento de carácter objectivo, a ajustar ulteriormente às situações ocorrentes na vida.


VI- O ideal de justiça exige um tratamento dos casos concretos que tenha em conta o valor das pessoas concretas, na sua circunstância.


VII- É adequado fixar uma indemnização de €180.000,00 (cento e oitenta mil euros) para ressarcir dano patrimonial futuro sofrido por um jovem de 27 anos, que, por virtude das sequelas de que ficou a padecer como consequência das lesões que lhe resultaram de uma colisão estradal, ficou impossibilitado de exercer a sua profissão habitual (carpinteiro de cofragem), na qual auferia retribuição anual global de €20.636,70, ainda que continuando a poder trabalhar, com menor remuneração, noutro ramo de actividade (motorista), com uma incapacidade funcional de 15 pontos.

Decisão Texto Integral:

Processo: 3527/18.4T8PNF.P2


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Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


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AA instaurou acção declarativa de condenação, com processo comum, contra Liberty Seguros, Compañia de Seguros y Reaseguros, SA - Sucursal em Portugal, com fundamento em responsabilidade civil emergente de acidente de viação.


No primeiro grau foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção e, em consequência, condenou a ré a pagar ao autor: a) a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos, a quantia global de €115.471,87 (cento e quinze mil quatrocentos e setenta e um euros e oitenta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, vencidos e vincendos deste a citação da ré e até integral e efectivo pagamento, e b) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, a quantia de €60.000,00 (sessenta mil euros), acrescida de juros de mora vincendos, à taxa de 4%, contabilizados desde a data do proferimento da sentença e até efectivo e integral pagamento.


Apelaram ambas as partes: o autor reputando de exíguos os montantes indemnizatórios arbitrados, pretendendo que fosse fixado em € 500.000,00 o montante indemnizatório para o ressarcir pelo dano patrimonial e em € 90.000,00 o valor para o compensar pelos danos não patrimoniais; a ré defendendo o exagero dos montantes arbitrados, pugnando dever a indemnização pelo dano patrimonial ser fixada entre os €30.000,00 e os €60.000,00 e a indemnização pelos não patrimoniais em quantia não superior a €30.000,00.


O segundo grau proferiu acórdão que: i) manteve a sentença quanto aos valores fixados a título de danos não patrimoniais e dano patrimonial referente a perdas salariais; ii) julgou improcedentes a apelação independente do autor e a apelação subordinada da ré; iii) anulou a sentença no segmento concernente à determinação do dano futuro, decorrente do défice funcional da integridade físico-psíquica de que o autor ficou a padecer, em vista da ampliação da matéria de facto.


Baixados os autos, foi proferida nova sentença que fixou o dano futuro, decorrente do défice funcional da integridade físico-psíquica de que o autor ficou a padecer, em €70.000,00.


Inconformado, interpôs o autor novo recurso de apelação, pugnando pelo aumento dos valores arbitrados no primeiro grau.


O Tribunal da Relação deliberou julgar procedente a apelação e, em consequência, alterou a decisão recorrida, e condenou a apelada a pagar ao apelado a quantia de duzentos €200.000,00) pelo dano patrimonial futuro, com juros de mora à taxa de 4% desde a presente decisão e até integral pagamento.


Desta feita foi a ré a interpor competente revista, cuja minuta concluiu da seguinte forma:


1. É manifestamente excessiva a indemnização arbitrada pelo Tribunal a quo (200.000,00€) para ressarcimento do dano consubstanciado no défice funcional permanente (IPG) que afeta o Autor.


2. In casu, haverá que ressarcir não uma perda de rendimentos – que não existe – mas sim a maior penosidade e esforço acrescido que o autor terá de desenvolver na sua vida diária e profissional para atingir os mesmos resultados.


3. Relevando que o recorrido, pese embora o défice funcional que o afeta, logrou obter um emprego como motorista de pesados, auferindo um rendimento salarial sensivelmente igual ao que auferia na atividade profissional que exercia na altura do acidente.


4. A indemnização atinente à incapacidade ou défice parcial permanente que afeta o autor, enquanto dano biológico de cariz não patrimonial, mesmo não implicando qualquer perda efetiva de rendimentos, deverá corresponder a um capital produtor dos rendimentos ficcionadamente perdidos, que se extinga no final do período em que, previsivelmente, esses rendimentos seriam obtidos.


5. Será, se assim suceder, pertinente recorrer, como mero auxiliar de cálculo, às conhecidas “tabelas financeiras” comumente utilizadas no cômputo das indemnizações.


6. Nesse cálculo haverá que ponderar vários fatores, tais como a idade da vítima, a retribuição líquida auferida, a incapacidade provada e o período previsível duração da vida ativa.


7. Fazendo-se as contas através do uso das conhecidas “tabelas financeiras”, tendo em consideração a idade do autor à data do acidente (27 anos), o valor do salário auferido (1.719,70€), o défice funcional permanente (15 pontos), tudo temperado à luz de critérios de equidade, chegamos a um montante na ordem dos 100.000,00 €.


8. Ao referido valor haverá então que deduzir um montante que seja equivalente ao benefício consistente no recebimento antecipado e de uma só vez do capital indemnizatório, que se nos afigura justo e adequado fazer corresponder a 1/4 do capital em causa, ou seja, 25.000,00€.


9. E haverá que levar em consideração o facto de ter resultado provada a inexistência de qualquer perda efetiva de rendimentos, em face da atual profissão do autor e rendimentos que aufere.


10.De modo que, o “dano biológico”, enquanto dano de natureza patrimonial, indexado à (teórica e ficcionada) perda de rendimentos salariais, merecerá ser ressarcido com indemnização que não exceda os 75.000,00€.


11.A douta sentença recorrida violou, entre outras normas, os artºs 465.º, 483.º, 495.º,


n.º 1, 562.º, 564.º e 566.º, todos do Código Civil».


O recorrido apresentou contra-alegações em que pugna pela confirmação do julgado..


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Constitui única questão decidenda saber se se deve alterar para montante inferior, designadamente para €75.000,00, a indemnização de €200.000,00 arbitrada pelo segundo grau para ressarcir o dano patrimonial futuro, decorrente do défice funcional da integridade físico-psíquica de que o autor ficou a padecer em consequência do evento lesivo.


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São os seguintes os enunciados de dados de facto considerados provados nas instâncias:


1. No dia 20 de Fevereiro de 2016, pelas 18h45, ocorreu um embate na Avenida ...


, na freguesia de ..., concelho de ..., na área desta comarca.


2. Nesse embate intervieram um motociclo da marca Yamaha, conduzido pelo autor, e o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-BM-.., conduzido por BB.


3. A faixa de rodagem da referida Avenida ..., naquele local, tem a largura total de 4,60m, estando dividida em duas metades, destinando-se uma delas ao sentido de trânsito ... e outra ao sentido de trânsito oposto.


4. A divisória entre ambas as metades da via era estabelecida através de uma linha longitudinal contínua, pintada no pavimento da via com tinta de cor branca.


5. O autor tripulava o motociclo Yamaha e seguia pela Avenida ..., no sentido ....


6. Ia pela metade direita da faixa de rodagem, afecta ao seu sentido de marcha, e seguia atento ao trânsito e à condução.


7. Animado de velocidade moderada, não superior a 50 km/hora.


8. Também pela Avenida ..., mas no sentido de ..., circulava o sobredito veículo ..-BM-.., conduzido pela BB.


9. Esta última, porém, seguia distraída, pois não prestava a devida atenção ao trânsito e à condução.


10. Por virtude da alegada distração que a possuía, flectiu à sua esquerda.


11. Transpôs a linha longitudinal contínua que divide ambas a metades da faixa de rodagem e invadiu a faixa destinada ao sentido ....


12. Nesta metade da via e, portanto, totalmente “fora de mão”, foi embater com a frente do ..-BM-.. na frente do motociclo tripulado pelo autor.


13. O autor, face à invasão da faixa de rodagem por onde circulava por parte do 35-BM. 19, nada pode fazer para evitar o acidente.


14. Com o embate, o autor foi projectado ao solo.


15. E o motociclo foi, por sua vez, projetado para trás e foi ainda embater num outro veículo, de matrícula ..-DL-.., que, na ocasião, circulava atrás de si e no mesmo sentido.


16. A responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ..-BM-.. havia sido transferida para a Liberty – Seguros S.A., ora demandada, através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ........12.


17. Em consequência do descrito embate, o autor foi projectado ao solo e sofreu lesões e ferimentos.


18. Foi assistido no local do embate pelos elementos do INEM e transportado, em plano duro e com colar cervical, ao Centro Hospitalar ..., em ....


19. Deu entrada nos serviços de urgência desta unidade hospitalar, politraumatizado e com queixas dolorosas.


20. Aí, após realização dos necessários exames, foram diagnosticadas as seguintes lesões:


-traumatismo facial;


- traumatismo do membro superior esquerdo;


- traumatismo do membro inferior direito;


- e escoriações e contusões múltiplas.


21. Ainda no serviço de urgência do mesmo hospital, constatou-se que o autor apresentava queixas dolorosas da mão esquerda, com deformidade do punho esquerdo, da região cervical e transição dorso-lombar.


22. O RX realizado ao punho esquerdo revelou a existência de fratura luxação.


23. Foi feita tentativa de redução manual da mencionada fratura, mas sem êxito.


24. O autor ficou internado, para ser submetido a cirurgia.


25. Cerca de 5 dias após o embate, o autor foi submetido a intervenção cirúrgica, por ortopedia, em que foi realizada redução da aludida fratura com aplicação de material de osteossíntese.


26. E manteve-se ali internado até 26 de fevereiro de 2016, data em que teve alta administrativa, não curado.


27. Passou a ser seguido na consulta externa de ortopedia do Centro Hospitalar ....


28. E passou também a ser tratado no Centro de Saúde de ..., onde fez vários curativos.


29. A partir de 11/03/2016, o autor passou a ser seguido e tratado nos serviços clínicos da ré, no Hospital de ..., na cidade do ....


30. Neste Hospital, o autor foi submetido a um total de cinco intervenções cirúrgicas.


31. Nomeadamente, foi submetido a uma intervenção cirúrgica, realizada em 14/03/2017, em que foi realizada EMOS de placa de Flower e artrodese do punho, com placa trimed de medcomtech.


32. E, em 05/09/2017, foi submetido a outra cirurgia a síndrome do túnel cárpico esquerdo.


33. Para além disso, recebeu também acompanhamento médico, proporcionado pela ré na área da psiquiatria, em virtude de revelar um estado de irritabilidade, com comportamento socialmente instável e agressividade constante com terceiros, incluindo familiares.


34. Em 25/10/2017, o autor teve alta clínica dada pelos serviços clínicos da ré, que entenderam que as lesões sofridas estavam consolidadas.


35. Ficou, todavia, o autor afetado de sequelas irreversíveis, resultantes dessas lesões, quer do foro ortopédico, quer do foro psiquiátrico.


36. Designadamente, sob o ponto de vista ortopédico, ficou a sofrer de:


- ao nível da face, fractura dos ossos do nariz com perturbação na ventilação nasal;


- ao nível do membro superior esquerdo, cicatriz rosada na face externa do punho esquerdo com vestígios de pontos de sutura nacarados, oblíqua inferoanteriormente com 2,5 cm de comprimento total, cicatriz na facepalmar da mão região tenar e na face anterior do punho linear ligeiramente rosada com 2 cm de comprimento, cicatriz rosada que se estende verticalmente pela face posterior do punho onde mede 9 cm de comprimento continuando-se pela face posterior do punho por mais 4 cm de comprimento, com largura máxima de 1 cm e mínima de 0,3 cm, cicatriz linear mediana na face palmar anterior do punho e palma da mão vertical nacarada com 1 cm de comprimento, ligeira deformidade generalizada da face posterior da região metacárpica da mão, sendo ligeiramente irregular, anquilose do punho esquerdo com prono-supinação conservada, ainda que limitada; rigidez dos dedos das mãos (esquerda e direita), sensação de hipostesia e limitação nos movimentos de pinça; e dor esporádica ao nível do punho e da mão.


37. Sob o prisma psiquiátrico, cumpre referir que o autor iniciou um quadro depressivo, com ansiedade marcada, reativo às dores, tratamentos e à incapacidade funcional.


38. De modo que apresenta humor francamente depressivo, labilidade emocional, dificuldade para tomar decisões, tendência para o isolamento, tristeza, anedonia e irritabilidade


fácil.


39. Vê o futuro com apreensão, face à manutenção das limitações e das dores, ainda que esporádicas, e perante as implicações negativas que o seu estado de saúde tem na sua vida pessoal, familiar e social.


40. As descritas sequelas psicológicas são subsumíveis a um transtorno de adaptação com humor depressivo.


41. Tais sequelas (ortopédicas e psiquiátricas) implicam que o autor esteja afectado de um défice funcional da integridade físico-psíquica de 15 pontos.


42. Os serviços médicos da ré, na ocasião da alta, atribuíram ao autor uma IPG de 8 pontos, que implica esforços acrescidos na atividade profissional.


43. As mesmas sequelas são, em concreto, impeditivas do exercício pelo autor da sua profissão habitual, sendo compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico profissional, a exigirem a sua reconversão profissional.


44. O autor nasceu em 12/03/1994.


45. Tinha a profissão de carpinteiro de cofragem, exercendo a respetiva atividade por conta e ao serviço da sociedade D............... .........., Lda., sua entidade patronal.


46. Auferia, em contrapartida do seu trabalho, as seguintes remunerações:


- retribuição base: 600,00€ x 14 meses;


- ajudas de custo: 910,00€ x 12 meses;


- subsídio de alimentação: 119,70 € x 11 meses.


47. O autor tinha uma retribuição anual global de 20.636,70€ e mensal média de 1.719,70€ (20.636,70€ :12).


48. Sendo que as sobreditas ‘ajudas de custo’ não se destinavam a fazer face a despesas que o autor tivesse de suportar por virtude do seu trabalho, integrando, portanto, o seu salário.


49. A entidade patronal proporcionava, gratuitamente, alojamento, transportes e refeições ao autor. 50. Durante o período de ITA (desde a data do embate e durante 614 dias), o autor deixou de receber salários da sua entidade patronal.


51. Nesse período, perdeu salários no montante global de cerca de 34.594,00 € (1.729,70 € x 20).


52. Por virtude das alegadas sequelas, o A. encontra-se impossibilitado de trabalhar na sua referida profissão habitual de carpinteiro de cofragem.


53. Profissão esta cujas funções exigem força, destreza e grandes esforços com os membros superiores, que o autor, por virtude das alegadas sequelas, não consegue executar.


54. De modo que, não dispondo a sua entidade patronal de possibilidade de o reconverter profissionalmente, o autor perdeu o emprego.


55. E, apesar de procurar ativamente ocupação profissional compatível com os seus conhecimentos, habilitações e limitações físicas, somente em 22 de Janeiro de 2018 logrou


conseguir novo emprego.


56. Concretamente, foi admitido nessa data, ao serviço da sociedade M. ... ...... . ........., SA.


57. Com a categoria profissional de servente.


58. Mediante o salário mensal de 580,00€, acrescido de subsídio de alimentação no valor mensal de 127,82€.


59. Pelo menos à data da propositura da acção, o autor continuava a exercer a profissão de servente na construção civil, sendo que a sobredita incapacidade implica esforços acrescidos para o respetivo exercício ou para qualquer outro.


60. A actividade profissional em causa exige resistência física e é muito cansativa, visto que exige constantes movimentação e manuseamento de objetos e cargas, com utilização dos membros superiores.


61. A sobredita desvalorização sempre será limitativa do desempenho da mencionada profissão de servente.


62. E implicará esforços acrescidos proporcionais à apurada desvalorização em qualquer outra actividade profissional compatível como as habilitações e conhecimentos do autor, que também implique esforços físicos.


63. Há cerca de 2 anos (contados do momento actual), o autor passou a exercer a profissão de motorista de pesados por conta de outrem.


64. A partir de então, passou a auferir em contrapartida do seu trabalho as seguintes remunerações ilíquidas:


- 777,05 € x 14 meses de retribuição base;


- 391,63€ x 13 meses, a título de retribuição do regime específico de trabalho dos motoristas; - - 38,85€ x 12 meses, a título de complemento salarial; 77,71€ x 13 meses, a título de subsídio noturno;


- e 135,00€ x 13 meses, a título de ajuda de custo TIR.


65. Aufere também o autor ajudas de custo no montante médio mensal de 700,00€, sendo que tais ajudas de custo se destinam a fazer face às despesas que o autor, enquanto motorista internacional, tem de suportar durante a estadia e permanência em países estrangeiros, entre as quais se destacam gastos com dormidas e refeições.


66. O autor padeceu fortes dores, em virtude das lesões sofridas.


67. Foi submetido a seis intervenções cirúrgicas, com anestesia geral.


68. Esteve internado durante vários dias.


69. Sujeitou-se a prolongados e dolorosos tratamentos, que se prolongaram até à data da alta, durante cerca de 20 meses.


70. Sendo o quantum doloris graduável em 5, numa escala de 1 a 7, o que foi reconhecido pelos serviços clínicos da ré.


71. O autor tem dificuldades, em razão das dores que o acometem, em fazer esforços com o membro inferior esquerdo.


72. As apuradas sequelas sofridas pelo autor têm uma repercussão nas actividades de desporto e de lazer graduável em 3, numa escala de 1 a 7.


73. As cicatrizes que o autor ostenta desfeiam-no, de modo que o autor sente complexos e vergonha, sendo esta desvalorização graduável em 3, numa escala de 1 a 7.


74. Antes do embate, o autor era uma pessoa alegre e extrovertida, sendo que hoje tem tendência para isolar-se e mostra-se desgostoso, triste, ansioso e revoltado.


75. Durante boa parte do período de ITA, o autor careceu de auxílio de terceira pessoa, mormente para o ajudar nas tarefas diárias, bem como o acompanhar aos tratamentos, visto não ter condições para o fazer sozinho, necessidade esta que foi causa de perturbação e transtorno


76. Com o embate ficaram destruídos: umas calças de valor em concreto não apurado, mas não inferior a 60,00€; uma camisola, de valor em concreto não apurado, mas não inferior a 30,00€; um casaco de valor em concreto não apurado, mas não inferior a 50,00€; umas botas de valor e concreto não apurado, mas não inferior a 50,00€; umas luvas, no valor de 48,78€; um capacete, no valor de 356,91€; um telemóvel Huawei, no valor de 144,98€.


77. Na avaliação do dano corporal realizada consulta médica pelo autor para intentar a presente acção, o mesmo gastou a quantia de 200,00€.


78. Em transportes, para acorrer a tratamentos, despendeu, pelo menos, a quantia de 137,20€.


79. Em virtude das lesões sofridas no acidente, o autor ficou, durante cerca de metade do período de ITA, impossibilitado de realizar as suas tarefas pessoais, tendo tido a necessidade de recorrer aos serviços de terceira pessoa, nomeadamente para o ajudar a despir, vestir, tratar da sua higiene diária e, ainda, para o acompanhar aos tratamentos.


80. Tais serviços foram desempenhados pela mãe do autor, a qual, para esse fim, deixou de executar as suas próprias atividades.


81. Por força do acidente nos autos o Instituto de solidariedade e Segurança Social, IP pagou ao autor a título de subsídio de doença respeitante a esse período, o montante de €504,54 (quinhentos e quatro euros e cinquenta e quatro cêntimos), sendo o valor subsídio diário pago nos primeiros 30 dias de € 11,71 (onze euros e setenta e um cêntimos) e o valor diário pago entre o dia 31.º dia e o 90.º dia foi de € 12,77 (doze euros e setenta e sete cêntimos).


82. O pagamento do Instituto de Segurança Social, I.P., foi feito em consequência das lesões e incapacidade para o trabalho sofridos pelo autor em consequência do acidente em causa nos autos.


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O primeiro grau condenou a recorrente, a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos pelo autor, na quantia global de €115.471,87 (cento e quinze mil quatrocentos e setenta e um euros e oitenta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora e a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, na quantia de €60.000,00.


Foi interposta apelação dessa decisão, a qual foi mantida quanto aos valores fixados a título de danos não patrimoniais e dano patrimonial referente a perdas salariais, mas anulada no segmento concernente à determinação do dano futuro, decorrente do défice funcional da integridade físico-psíquica de que o autor ficou a padecer, determinação essa feita depois no primeiro grau, que fixou a indemnização por aquele dano em €70.000,00.


A Relação deu por verificado (factos provados 52, 53, 54, 63, 64 e 65) que o apelante, por virtude das sequelas de que ficou a padecer como consequência das lesões que lhe resultaram do embate, ficou impossibilitado de exercer a sua profissão habitual (carpinteiro de cofragem), tendo tido de se sujeitar a uma reconversão profissional, da sua profissão original de carpinteiro de cofragens para motorista, passando por servente da construção civil.


Além da perda efectiva de rendimento resultante da forçada reconversão profissional, o segundo grau entendeu ter resultado ainda provado (factos provados 41, 43, 59 e 62) que o défice funcional da integridade físico-psíquica de 15 pontos implica também maior dificuldade para o exercício doutras profissões da sua área de preparação técnico-profissional.


Tendo reconhecido a existência de um dano patrimonial futuro, a segunda instância fez apelo a critérios de equidade e ao entendimento jurisprudencial, de acordo com o qual «a indemnização pelo dano futuro deve ser arbitrada equitativamente, de modo a corresponder a um capital produtor do rendimento que o lesado não irá auferir (ou cujo ganho tenha como correspectivo o esforço suplementar implicado pelo défice funcional resultante, com nexo de causalidade adequado, das lesões sofridas no evento lesivo), que se extinga no fim da sua vida provável e que seja susceptível de garantir, durante essa vida, o rendimento frustrado ou o rendimento auferido com aquele acrescido esforço…».


O acórdão recorrido foi sensível à objecção de o critério da equidade poder resvalar para o arbítrio da subjectividade do juiz. Por isso, recorreu às tabelas financeiras aplicáveis a diferentes casos de incapacidade, não sendo, porém, em caso algum «susceptíveis de dispensar ou substituir o juízo de equidade que cabe ao julgador nesta hipótese», pois que da aplicação das tabelas só poderá resultar quer ‘uma justiça abstracta, insensível à circunstância de o caso concreto ter especificidades juridicamente relevantes’, quer uma ‘justiça estática, insensível à circunstância de, entre as especificidades juridicamente relevantes do caso concreto, estarem variantes dinâmicas».


Aplicando os mencionados critérios ao caso sujeito e considerando:


i) a idade de 27 anos do autor ao tempo em que passou a exercer a profissão que vem actualmente exercendo;


ii) uma taxa de juro de 3%;


iii) um factor de 0,50% para progressão na carreira;


iv) uma perda efectiva de rendimento médio mensal de €199;


v) o valor da retribuição anual auferida (€19.201,32);


vi) uma incapacidade funcional de quinze pontos);


vii) uma esperança de vida de 78 anos;


o segundo grau concluiu que o valor encontrado na decisão recorrida «se mostra eivado de evidente avareza e distanciado dos critérios jurisprudenciais adoptados em situações com características próximas», valor que substituiu pelo valor (actualizado) de €200.000,00, que «se mostra equilibrado e equitativo, proporcionado e adequado à reparação do dano em causa, aproximando-se dos critérios ou padrões jurisprudenciais para casos que comungam de algumas semelhanças com o dos autos ou que, ao menos, servem de ponto de referência, de que são exemplo os acórdãos do STJ de 7/03/2019, Proc. nº 203/14.0T0AVR.P1.S1, de 29/10/2019, Proc. nº 7614/15.2T8GMR.G1.S1, de 29/10/2020, Proc. nº 111/17.3T8MAC.G1.S1, de 18/03/2021, Proc. nº 1337/18.8T8PDL.L1.S1, de 3/02/2022, Proc. nº 24267/15.0T8SNT.L1.S1, de 14/03/2023, Proc. nº 4452/13.0TBVLG.P1.S1, de 6/06/2023, Proc. nº 9934/17.2T8SNT.L1.S1».


A seguradora, ao invés, entende que este valor peca por exagerado, sendo antes correcto atribuir uma indemnização de €75.000.00.


Vejamos se assiste razão à recorrente.


Comecemos por enunciar alguns pontos de partida que consideramos firmes e que enquadram a deliberação que será tomada.


1) A lesão da integridade física e da saúde desde há muito que dá acesso aos remédios da responsabilidade civil, mas apenas enquanto causa de redução de rendimentos, além das despesas médicas dessa lesão derivadas e do pretium doloris.


2) A ideia de dano biológico surge em polémica com esta orientação tradicional: às duas tradicionais figuras do dano, justapôe-se uma terceira categoria chamada dano biológico que consiste no prejuízo referido à lesão in se e per se considerada da integridade física e da saúde, distinta tanto da perda económica àquela seguida como do sofrimento por ela provocado.


3) Como aduz o acórdão recorrido, citando jurisprudência deste STJ, numa compreensão ampla do dano biológico, este dano «é de valorizar (para lá do que signifique na diminuição da qualidade de vida do lesado, a ponderar e atender no âmbito do dano não patrimonial) no âmbito do dano patrimonial (sem que isso signifique uma repetição ou duplicação de valorização do mesmo dano) quando ele se repercuta na actividade laboral do lesado, seja directamente, implicando perda efectiva ou previsível de rendimentos (v. g, nos casos em que as sequelas impedem o exercício de uma profissão e a reconversão para exercício doutras actividades com remuneração inferior), seja quando implique maior esforço e dispêndio de energia no desenvolvimento da actividade propiciadora de rendimento (e assim, em última análise, maior esforço do lesado para não sofrer diminuição de rendimentos) – tal dano deve ser indemnizado na vertente patrimonial independentemente da prova do lesado sofrer ou vir a sofrer diminuição dos seus proventos futuros (isto é, diminuição da sua capacidade de ganho) se for de concluir que tal incapacidade funcional ou fisiológica, repercutindo-se nuclearmente na diminuição da condição física, resistência e capacidade de esforços por parte do lesado, irá implicar, previsivelmente, maior penosidade, dispêndio e desgaste físico na execução de tarefas e assim, se for de considerar que essa incapacidade exige do lesado um esforço suplementar físico e psíquico para obter o mesmo resultado (ao nível dos proventos económicos) da sua actividade».


4) Toda a conceitualidade do dano biológico resulta construída na base da imprescindibilidade do efeito ressarcitório diante de uma lesão à integridade pessoal ou ao direito à saúde primariamente tutelados pela Constituição (artigos 25.º e 64.º).


5) É pacífico o entendimento de que se deve recorrer á equidade, como critério para o ressarcimento do dano biológico.


6) No âmbito do chamado Direito equitativo podemos distinguir a equidade substitutiva da equidade “integrativa’’ ou supletiva. O artigo 566.º, 3, pertence a esta segunda categoria, ou seja, cumpre a função de «atribuir ao juiz o poder de completar a norma positiva recorrendo à valoração equitativa para definir aspectos particulares da relação controvertida».


7) A jurisprudência do STJ tem vindo a considerar que a indemnização pelo dano patrimonial futuro, de que o dano biológico é uma das espécies, deve ser arbitrada de modo a corresponder a um capital produtor do rendimento que o lesado não irá auferir (ou cujo ganho tenha como correspectivo o esforço suplementar implicado pelo défice funcional resultante, com nexo de causalidade adequado, das lesões sofridas no evento lesivo), que se extinga no fim da sua vida provável e que seja susceptível de garantir, durante essa vida, o rendimento frustrado ou o rendimento auferido com aquele acrescido esforço.


8) Para proceder ao cálculo indemnizatório, o julgador pode/deve recorrer a tabelas ou fórmulas quantitativas, mais ou menos sofisticadas.


9) Mas não deve ficar por aí. A experiência judiciária tem mostrado a dificuldade de adequação desse tipo de critérios às situações concretas e de qualquer modo o risco de transferência dos valores jurídicos do domínio da qualidade para o da quantidade. O ideal de justiça exige um tratamento do caso que tenha em conta o valor das pessoas (e a sua circunstância).


Feito este breve excurso, compreende-se que o eventual recurso às chamadas tabelas financeiras seja um ponto de partida, um referencial, e não um ponto de chegada, como parece ser o entendimento da recorrente.


Diz a seguradora que, no cálculo que julga correcto, se devem ponderar vários factores, tais como a idade da vítima, a retribuição líquida auferida, a incapacidade provada e o período previsível duração da vida activa, o que é verdade apenas em parte.


Com efeito, o que se deve considerar é a esperança de vida da população em Portugal, que, de acordo com os últimos dados conhecidos do PORDATA referentes a 2019, apontam para os 81,10 anos.


Isto porque, como refere o acórdão recorrido, «as necessidades básicas do lesado não cessam obviamente no dia em que deixar de trabalhar por virtude da reforma, sendo manifesto que será nesse período temporal da sua vida que as suas limitações e situações de dependência, ligadas às sequelas permanentes das lesões sofridas, com toda a probabilidade mais se acentuarão» (Acs. STJ de 28/9/95, CJ, T3:36, de 27/7/2002, CJ, T 2:128, de 10/11/2016 e de 7/03/2019, estes últimos, como os demais sem outra indicação, in www.dgsi.pt).


Levar em conta a idade de 78 anos, como fez o acórdão recorrido, parece-nos, por isso, aceitável, só pecando porventura por defeito.


Por outro lado, o acórdão impugnado ponderou, além daquela idade, e o que ainda falta para ser atingido o aludido limite, um factor índice, o qual multiplicado pelo rendimento anualmente auferido à data do acidente e novamente multiplicado pela percentagem de incapacidade funcional de 15 pontos dá um valor base da indemnização (que deve incluir também o cálculo do diferencial de remuneração devido á necessária reconversão salarial).


No entanto, como se disse, o julgador não pode ficar por aqui e dar por encerrada a sua tarefa.


Conforme se esclarece no Ac. STJ de 4.12.2007, Proc. 07A3836, «é preciso ter em conta que o valor resultante das fórmulas matemáticas ou tabelas financeiras dá-nos porém um valor estático, porque parte do pressuposto que o lesado não mais evoluiria na sua situação profissional; não conta com o aumento de produtividade; não inclui no cálculo um factor que contemple a tendência, pelo menos a médio e longo prazo, quanto à melhoria das condições de vida do país e da sociedade; não tem em consideração a tendência para o aumento da vida activa para se atingir a reforma; não conta com a inflação; nem tem em conta o aumento da própria longevidade».
Tendo acolhido, e bem, esta orientação, o segundo grau, após ter determinado o
minus indemnizatório, corrigiu-o com vários outros elementos dinâmicos, em ordem a conduzir a uma indemnização justa.
Relembremos o que em concreto foi dito: «Assim, de acordo com o critério orientador da tabela financeira do referido acórdão da Relação de Coimbra de 4/04/1995 [in, Colectânea de Jurisprudência, 1995, Tomo II, p. 26] considerando a idade do autor ao tempo em que passou a exercer a profissão que vem actualmente exercendo (em razão da reconversão forçada) – 27 anos –, uma taxa de juro de 3% (o juízo de ponderação não pode ser perturbado pela crise económico financeira que atravessamos – e atenderemos a tal taxa de juro, pois que o critério utilizado é meramente orientador e a indemnização a atribuir parte de um juízo de verosimilhança e previsibilidade a longo prazo, sendo certo que valorizando o espaço temporal a considerar, essa taxa, face ao passado, se apresenta como adequada), o valor de 2% para a inflação (os esforços que as entidades oficiais, nacionais e internacionais, vem desenvolvendo para baixar a inflação que, excepcionalmente, vem assolando a economia, permitem, num juízo de prognose a médio/longo prazo, ponderar e considerar tal taxa), atendendo a um factor de 0,50% para progressão na carreira, ponderando não só, por um lado, uma perda efectiva de rendimento médio mensal de 119€ e, noutra vertente, o valor da retribuição anual agora auferida e a considerar (19.201,32€), a incapacidade funcional de que ficou a padecer (quinze pontos) e projectando o cálculo até aos setenta e oito anos (esperança de vida que, em Portugal, para indivíduos do sexo masculino é já superior), encontram-se montantes (que se devem acrescer) superiores a setenta mil euros (70.000,00€) para a perda efectiva de rendimento e a cento e quarenta mil euros (140.000,00€) para o dano decorrente do défice funcional».



Concretizou-se: «Mais exactamente (desprezando nos cálculos todos os algarismos que, para lá da dúzia, compõem os números a operar) o valor de 70.909,84€ para a perda efectiva do rendimento (perda média mensal de 119€) e de 143.021,38€ para o dano resultante do défice funcional - dispensamo-nos de reproduzir quer a fórmula utilizada quer as operações matemáticas por ela implicadas (fórmula que poderá ser consultada no acórdão da Relação de Coimbra acima referido, devendo fazer-se as necessárias adaptações resultantes de considerarmos taxa de juros, taxa de inflação e ganhos de produtividade e promoção profissional em pontos percentuais diversos), pois, mais uma vez o dizemos, o critério é meramente orientador do juízo de equidade que, nos termos da lei, deve presidir à decisão».


Ora, afigura-se-nos que o acórdão recorrido fez bem em ter recorrido aos tópicos normalmente tidos em conta pela jurisprudência em casos similares de indemnização do dano biológico/ futuro, a saber:


- período razoável de vida activa e esperança média de vida;


- evolução profissional provável e seus reflexos a nível remuneratório;


- aumento provável dos rendimentos do lesado por força da inflação;


- taxa de rentabilidade do capital;


- percentagem de incapacidade funcional


A circunstância destes factores terem algo de aleatório, porquanto não podem deixar de assentar em meras expectativas de evolução dos salários, da evolução das condições financeiras e sociais, desde a data da produção da lesão e das sempre falíveis previsões económicas a longo prazo, não impede que devam ser ponderados e levados em conta, como foram, num juízo correctivo de equidade.


A seguradora entende que, como o lesado vai ser indemnizado com a entrega antecipada e de uma só vez do capital, deve proceder-se a uma redução de ¼ na indemnização a arbitrar, sob pena de um enriquecimento indevido do autor.


Não nos parece que tenha razão. A jurisprudência deste terceiro grau já em 2017 entendeu que na conjuntura então prevalecente de juros baixos não se justificava uma redução superior a 10% (Ac. STJ de 30/3/2017, Proc. nº 2233/10).


Hoje em dia, a conjuntura económica alia taxa de depósitos baixos a uma inflação descontrolada (sem prejuízo das aliás polémicas intervenções do BCE).


Acresce que, em recente acórdão de 10.10.2022, Proc. 9039.20.9T8SNT.L1.S1, é sustentado, com bons argumentos, que nem sempre se justifica operar a redução pretendida, mesmo como tópico adjutor da equidade, sabido que as necessidades do lesado vão evoluindo ao longo do tempo, sendo expansiva a repercussão das lesões e flutuantes as condições financeiras de mercado.


Por razões de segurança e de igualdade jurídicas, a fixação da indemnização deve respeitar o evoluir dos padrões adoptados pela jurisprudência.


Salvo o devido respeito, reputamos algo exagerado o montante fixado. O segundo grau, como vimos, consciente da necessidade de respeitar aqueles dois princípios, serviu-se do precedente de sete acórdãos do STJ.


No entanto só um deles arbitrou uma indemnização tão elevada (€200.000,00) para lesada com 44 anos de idade à data da alta, que ficou afectada de 26 pontos de incapacidade, compatível com o exercício de outras profissões da sua área de preparação técnico profissional que envolvam tarefas com pouca exigência física, ao nível da força muscular dos membros posteriores, postura curvada ou bipedestação, que, na prática, equivale a situação de incapacidade total permanente para o trabalho, dada a dificuldade em conseguir trabalho compatível com a sua diminuída capacidade física – que ao tempo do evento exercia a profissão de esteticista, não se apurando os rendimentos auferidos, ponderando-se assim rendimento equivalente ao salário mínimo nacional (Ac. STJ de 14/03/2023, Proc. nº 4452/13.0TBVLG.P1.S1).


Encontramos outros acórdãos do STJ que fixaram indemnizações iguais ou superiores a duzentos mil euros, mas para situações de índole mais grave do dano biológico:


i) Ac. de 1-03-2018, no Proc. nº 773/07.0TBALR.E1.S1: €400.000,00: sinistrado com 39 anos à data do acidente; as lesões sofridas pelo autor determinaram-lhe um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 53 pontos; as sequelas de que ficou a padecer são impeditivas do exercício da atividade profissional habitual, sendo no entanto compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico-profissional;


ii) Ac. de 23-05-2019, no Processo nº 2476/16.5T8BRG.G1.S2, € 250.000,00, considerando que a sinistrada ficou impedida de exercer a sua atividade profissional habitual de educadora de infância, mas não de exercer outras profissões da área da sua preparação técnico-profissional embora com acrescidas dificuldades; auferia uma retribuição mensal de € 1.706,20, catorze meses por ano; ficou com um défice funcional de 26 pontos; tinha 44 anos de idade à data do acidente;


iii) Ac. de 19-09-2019, no Processo nº 2706/17.6T8BRG.G1.S1, €200.000,00, tendo em conta que o recorrente: (i) ficou afetado com um défice funcional permanente de 32 pontos, que o impede de exercer a sua profissão habitual de serralheiro mecânico, bem como qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional; (ii) contava com 45 anos à data do acidente; (iii) auferia um rendimento mensal ilíquido de € 788,00, à data do acidente, que subiu cerca de dois meses depois para € 816,00, acrescido de € 80,00 de subsídio de alimentação.


Diante dos factos assentes, na envolvência de um juízo de equidade e das pautas jurisprudenciais utilizadas para a indemnização de casos similares, conclui-se ser a indemnização no valor de € 180.000,00 a adequada à situação concreta.


A responsabilidade pelo pagamento das custas assenta no princípio da causalidade: paga as custas quem a elas houver dado causa; entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for (artigo 527.º, 1 e 2 CPC).


Tendo ficado vencidas ambas as partes, a dívida de custas fixa-se na proporção do decaimento, em 15% para o autor e 85% para a ré.


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Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso interposto pela Liberty Seguros, Compañia de Seguros y Reaseguros, SA - Sucursal em Portugal e revoga-se também parcialmente o acórdão da Relação, fixando-se a indemnização devida ao autor, pelo dano patrimonial futuro, no montante de cento e oitenta mil euros, mantendo-se no restante o decidido pelas instâncias.


As custas seriam devidas, após trânsito, na proporção de 15% para o autor e 85% para a ré. No entanto, como o autor beneficia de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de custas e demais encargos, tendo em conta o que se prescreve nos artigos 10.º, 1, 13.º, 1 e 16.º, 1 da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, apenas se condena a ré nesse pagamento na proporção de 85%.


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16 de Janeiro de 2024


Luís Correia de Mendonça (Relator)


Rui Gonçalves


Leonel Serôdio