Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
828/19.8T80VR.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ISABEL SALGADO
Descritores: DECISÃO PENAL CONDENATÓRIA
MATÉRIA DE FACTO
CASO JULGADO PENAL
OPONIBILIDADE
PROCESSO SUMARISSIMO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
PODERES DA RELAÇÃO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
Data do Acordão: 06/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. A preponderância do enunciado de factos provados na fundamentação da sentença penal na acção de responsabilidade civil conexa, não tem aplicação no caso de uma decisão condenatória proferida em processo sumaríssimo.

II. Em tal circunstância, afastada a eficácia probatória prevista no artigo 623º do CPC, na ausência de prova dos pressupostos inerentes à obrigação de indemnização dos responsáveis civis, improcederá a demanda.

Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. AA intentou a presente acção declarativa em processo comum, contra BB, e CC, pedindo que estes sejam condenados, solidariamente, a pagarem-lhe:

a) a quantia de € 30.000,00, a título de indemnização pelos prejuízos patrimoniais resultantes da subtração dos bens móveis e passíveis de serem quantificáveis; b) a título de indemnização pelos prejuízos patrimoniais uma quantia resultante da subtração dos bens móveis e não passíveis de serem quantificáveis, em razão da justa ponderação e valoração dos danos sofridos, a fixar pelo tribunal, mas nunca inferior a € 5.500,00; c) a quantia de a quantia de € 2.185,50 resultante das despesas de alojamento; d) a quantia de € 30.000,00 por danos não patrimoniais resultantes de sérios e graves constrangimentos na sua atividade profissional, nomeadamente na sua incapacidade psicológica para o exercício da profissão, na sua vida pessoal, social e familiar; e) a quantia de € 1.000,00 a título de danos patrimoniais resultante de despesas com tratamentos médicos, medicamentosos e transportes; f) juros legais em vigor desde a citação e até ao seu efetivo pagamento.

Em fundamento síntese, alegou:

- Em 1.10.2014 celebrou com os RR. contrato de arrendamento para habitação de uma moradia, onde passou a residir;

- Interpelada pelos RR. para deixar o arrendado, a Autora recusou;

-No dia 13/05/2016, aproveitando a sua ausência da casa, os RR., acompanhados de familiares e amigos, arrombaram a fechadura da porta e ali se introduziram, impedindo, sob ameaça verbal e física, que a Autora ali voltasse a entrar, provocando-lhe em consequência, danos psicológicos graves, que exigiram tratamento médico por quadro clínico de stress pós-traumático desencadeado pelas ameaças de morte e agressões verbais daqueles.

- Os RR. foram condenados pelo crime de violação de domicílio, por sentença transitada.


*


Em sua defesa o Réu BB alegou que o imóvel foi arrendado por BB filho, respetivo proprietário, pugnando em síntese pela sua absolvição.

A Ré CC alegou que a Autora deixara de pagar vários meses de renda, apesar de lhe ser solicitada a sua liquidação, pugnando também pela sua absolvição.


*


Seguidos os demais trâmites , realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção , conforme dispositivo final - « (..) condenando-se os RR. BB e CC, solidariamente, a pagarem à A. a) € 2.185,50, com juros de mora desde a citação; b) os valores dos objetos discriminados no nº 13-a), m) e um dos tabletes referidos em 13.º-g) dos Factos Provados, a liquidar em incidente de liquidação (“no que vier a ser liquidado” – nº 2 do art. 609.º do CPC), com juros de mora desde a liquidação; c) € 15.000,00 por danos não patrimoniais com juros de mora desde a data da sentença, absolvendo-os quanto ao mais.»

3. Da Apelação

Inconformados, os RR. interpuseram recurso de apelação,

Na sua procedência o tribunal da Relação revogou a sentença, e os RR absolvidos dos pedidos por não verificados os pressupostos da responsabilidade civil.


*


4. Da Revista

Inconformada, agora, a Autora, interpôs recurso de revista.

As suas alegações terminam com as seguintes conclusões que se transcrevem:

«1º - Por contrato escrito, celebrado a 01/10/2014, DD e mulher CC (ora Ré) deram de arrendamento a AA (ora A.), pelo preço de € 650,00/mês, para habitação própria e permanente desta, uma moradia com 2 pisos, r/c, 1º andar e logradouro, com garagem (box), sita na Rua das ..., ..., ....

2º - A aqui recorrente. fez desta moradia a sua residência permanente (C).

3º - A aqui recorrida pretendia que a aqui recorrente desocupasse o imóvel sem ter de recorrer à via judicial, razão pela qual, conjuntamente com os demais arguidos, seus familiares, decidiram que o modo mais rápido de concretizar essa pretensão, passou por se introduzirem no locado de modo a impedirem o acesso da moradora.

4º - Pretendendo recuperar a posse do imóvel, os arguidos, a hora indeterminada ao final do dia 13 de maio de 2016, aproveitando a ausência temporária da ofendida AA, introduziram-se todos naquela residência, onde ali permaneceram.1

6º - Para o efeito, forçaram e substituíram a fechadura do portão de modo a impedirem a entrada da recorrente, como de facto sucedeu, pois quando a recorrente ali regressou horas depois, viu-se impossibilitada de aceder à sua habitação, por não conseguir abrir a porta.

7º - Algumas horas mais tarde, já no dia 14 de maio, com intervenção da força policial competente - G.N.R. - é que os arguidos abandonaram o local e a ofendida logrou aceder à sua habitação.

8º - Os arguidos sabiam que não podiam entrar – forçando e substituindo a fechadura da porta – nem permanecer, no interior daquela que sabiam ser a habitação da ofendida.

9º - Na sua ausência e sem o consentimento desta, como fizeram, em execução de plano comum, estando bem cientes que assim violavam de forma grosseira a paz, o sossego e reserva de intimidade da vida privada de quem lá vivia, bem sabendo que aquele local não era de livre acesso ao público ou à generalidade das pessoas.

10º- Por decisão proferida em 08/02/2018, no processo sumaríssimo nº 135/16.8..., de acordo com o disposto no art. 397.º, nº 1, do CPP, face à não oposição ao requerimento do Ministério Público de fls. 250 a 258, e das penas aí propostas, foram os arguidos/recorridos condenados nas seguintes penas: a arguida CC na pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 5,50, o que perfaz o montante global de € 440,00; o arguido BB na pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 5,00, o que perfaz o montante global de € 400,00, tendo a sentença, há muito, já transitado em julgado.

11º - Da prova produzida, o recorrido acompanhado da sua esposa, expressamente, admitiu ter-se deslocado ao identificado imóvel, a pedido do filho pelo que acabou por ser identificado pela GNR quando esta se deslocou ao local.

12º- O Recorrido não deduziu qualquer oposição ao identificado processo sumaríssimo, conformando-se com a decisão que veio ali a ser proferida e que o condenou pela prática, em coautoria, do identificado crime de violação de domicílio p. p. pelo art. 190º nº1 e 3 do Código Penal.

13º - A recorrente, após a ocorrência dos factos, e perante as ameaças de que foi alvo, não mais pernoitou naquela residência, por recear que não estivessem reunidas condições de segurança, isto é, que a mesma voltasse a ser invadida.

14º - A recorrente. e o seu namorado pernoitaram até 12/07/2016 numa unidade hoteleira da região de ... – Park Hotel de ..., o que importou no pagamento da quantia de € 2.185,50, montante que foi suportado por ambos.

15º - A aqui recorrente, ficou bastante traumatizada do ponto de vista psicológico, demonstrando alguma relutância em sair sozinha à rua, denotando um constrangimento e uma enorme falta de liberdade nas suas deslocações.

16º - Teve de passar a frequentar consulta de psiquiatria por apresentação de quadro clínico de stress pós-traumático, desencadeado pelo comportamento da Ré, do marido desta e dos amigos que ocupavam a sua residência.

17º - A aqui recorrente. apresentava um quadro de sintomas psicopatológicos de ansiedade e depressão e sintomas psicossomáticos como: a) taquicardia e dores musculares; b) passou a ter insónias e pesadelos recorrentes; c) também padeceu de pensamentos intrusivos de revivência dos acontecimentos; d) durante cerca de dois anos deixou de conviver e assegurar uma vida social ativa como o fazia até à data dos acontecimentos e passou a mergulhar no isolamento social; g) foi obrigada a tomar medicação psicofarmacológica; h) esteve em regime de incapacidade temporária para o trabalho de 04/09/2016 a 18/10/2016 e de 09/10/2018 a 07/11/2018.

18º- O comportamento dos Réus causou à A. profunda angústia, sentindo-se profundamente vexada na sua dignidade pessoal e constrangida na sua liberdade.

19º - Da factualidade julgada provada e, bem assim, daquela outra julgada como não provada, resultou expressa a condenação pela Meritíssima juíza “a quo” dos Réus, “solidariamente, a pagarem à A.: a) € 2.185,50, com juros de mora desde a citação) os valores dos objetos discriminados no nº 13-a), m) e um dos tabletes referidos em 13.º-g) dos Factos Provados, a liquidar em incidente de liquidação (“no que vier a ser liquidado” – nº 2 do art. 609.º do CPC), com juros de mora desde a liquidação; c) € 15.000,00 por danos não patrimoniais com juros de mora desde a data da sentença.” 20º - Os RR. vão absolvidos quanto ao mais.

21º -Como resulta do douto acórdão sob recurso a Relação na reapreciação da decisão sobre a matéria de facto e sobre matéria de direito relativa aos pressupostos da responsabilidade civil,

22º - Com base nos elementos probatórios disponíveis e, especialmente da prova documental patenteada nos autos, o Tribunal da Relação concluiu pela ausência de prova, revogando, em consequência, nesta parte, a decisão proferida em primeira instância e, assim absolvendo os Réus do pedido.

23º - Dito isto e, em estrita subsunção, impõe-se concluir que apesar de o art. 662º, nº4, determinar que as decisões da Relação proferidas em sede de facto são irrecorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça, esta delimitação não é totalmente rígida, tendo poderes para sindicar o mau, ou o não uso da prorrogativa que o art. 662 º confere à Relação, quando tal se imponha por violação de regras de direito probatório material.

24º - Na verdade, se forem desconsiderados factos que se mostrem necessários para constituir base suficiente para a decisão de direito, o Supremo pode determinar a baixa do processo para efeitos do disposto no art.682º nº 3 do CPC.

25º- Constituindo jurisprudência dominante que, sem embargo de outras intervenções previstas nos artigos 682º e 683º do CPC, o Supremo Tribunal de Justiça não pode ficar indiferente a erros de apreciação da prova que resultem da violação do direito probatório material, visto que estas situações constituem verdadeiros erros de direito, assim integradas nas competências do Supremo.

26º - Por outro lado, deverá também o Supremo introduzir modificações na decisão sobre a matéria de facto quando tenham sido desconsiderados o valor probatório de determinado documento ou, tenham sido desatendidos os efeitos legais de uma declaração confessória, pois que estes tipos de declarações pela sua força probatória plena são insuscetíveis de ser afastados por outro meio de prova.

27º - Em conclusão, ainda que na sua matriz essencial o recurso de revista siga o modelo da cassação, os artigos 682º e 684º, evidenciam que o Supremo não se limita a anular, confirmar ou revogar as decisões das Relações.

28º - A causa de pedir incidiu sobre a violação dos deveres legais dos locadores do imóvel, visto que, dispõe o nº 1 do art. 1037.º do C. Civil, que o locador não pode praticar atos que impeçam ou diminuam o gozo da coisa pelo locatário!

29º- Salvo as exceções taxativas que a própria norma salienta, a regra geral é imperativa e contém uma obrigação de non facere sendo de cumprimento obrigatório mesmo que haja convenção em contrário, o que não é o caso!

30º - A presente ação resulta de apuramento da responsabilidade civil contra a locadora, respondendo a ré/recorrida em sede de responsabilidade contratual e o réu/recorrido em sede de responsabilidade extracontratual por não existir uma relação contratual entre as partes contratuais.

31º - A responsabilidade obrigacional exige os mesmos pressupostos reclamados pela responsabilidade civil extracontratual, ou seja, o facto, a ilicitude, o dano e o nexo de causalidade!

32º - Segundo o art. 799.º nº 1, do C. Civil a presunção de culpa – constitui de facto, uma presunção de ilicitudes.

33º - In casu, a responsabilidade do aqui recorrido é igualmente responsável civilmente devido ao facto de ter praticado factos ilícitos, conforme resulta da sua condenação em sede criminal!

34º - Não deverão restar dúvidas que o recorrido incorreu na prática de factos ilícitos passíveis de dever a indemnização, em consequência dos danos causados na esfera jurídica patrimonial e não patrimonial da recorrente!

35º - Nos termos do art. 623.º do C. Processo Civil (CPC), a condenação transitada em julgado proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível da existência dos factos constitutivos que baseou a condenação “em quaisquer ações civis em que se discutam as relações jurídicas dependentes da prática da infração”.

36º - Em relação a quem for condenado pela infração, constitui presunção juris et de jure, isto é, a condenação opera integralmente, sem restrições, a autoridade do caso julgado ou a sua eficácia (Acórdão da RP, de 09/09/2019 – CJ, Ano XLIV – IV – 171/172).

37º - Desse modo, encontra-se totalmente vedado ao recorrido a possibilidade de ilidir aquela presunção, visto que só os terceiros, alheios ao processo, se permitem poder ilidir essa presunção juris et de jure!

38º - Em consequência, estando vedada a possibilidade ao recorrido de ilidir a presunção da existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo penal na presente ação civil, tem de ser condenado pelos danos resultantes da prática do ilícito penal por si cometido!

39º - Também à aqui recorrida se encontra vedada a possibilidade de ilidir a presunção juris et de jure do art. 623.º do CPC, porque é parte interveniente no contrato de arrendamento de 01/10/2014, subscrevendo-o.

40º - Nos termos do art.º 623.º do C.P. Civil a condenação definitiva proferida no processo penal não constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer ações civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração.

34º – Não deverão restar dúvidas que o recorrido incorreu na prática de factos ilícitos passíveis de dever a indemnização, em consequência dos danos causados na esfera jurídica patrimonial e não patrimonial da recorrente!

35º - Nos termos do art. 623.º do C. Processo Civil (CPC), a condenação transitada em julgado proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível da existência dos factos constitutivos que baseou a condenação “em quaisquer ações civis em que se discutam as relações jurídicas dependentes da prática da infração”.

36º - Em relação a quem for condenado pela infração, constitui presunção juris et de jure, isto é, a condenação opera integralmente, sem restrições, a autoridade do caso julgado ou a sua eficácia (Acórdão da RP, de 09/09/2019 – CJ, Ano XLIV – IV – 171/172).

37º - Desse modo, encontra-se totalmente vedado ao recorrido a possibilidade de ilidir aquela presunção, visto que só os terceiros, alheios ao processo, se permitem poder ilidir essa presunção juris et de jure!

38º - Em consequência, estando vedada a possibilidade ao recorrido de ilidir a presunção da existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo penal na presente ação civil tem de ser condenado pelos danos resultantes da prática do ilícito penal por si cometido!

39º -Também à aqui recorrida se encontra vedada a possibilidade de ilidir a presunção juris et de jure do art. 623.º do CPC, porque é parte interveniente no contrato de arrendamento de 01/10/2014, subscrevendo-o.

40º - Nos termos do art.º 623.º do C.P. Civil a condenação definitiva proferida no processo penal não constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer ações civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração.

48º - Condenação em sede criminal – crime de violação do domicílio - constitui a recorrida na obrigação de indemnizar pelos danos patrimoniais e não patrimoniais causados na esfera jurídica da recorrente, até porque, in casu, a violação do domicílio é uma conduta tipificada na lei penal como crime.

49º- Salvo o devido respeito, que é muito, os recorridos têm de ser responsabilizados pelos danos patrimoniais e não patrimoniais causados na esfera jurídica da recorrente!

50º - Ao serem condenados na prática do crime de violação de domicílio, tornaram-se responsáveis pelo que estava no seu interior e que sabiam pertencer á recorrente que era possuidora de título negocial legítimo para o efeito.

51º - O desaparecimento de bens integradores da sua esfera patrimonial resultou de uma ação protagonizada, entre outros, pelos recorridos, colocando o domicílio da recorrente acessível a terceiros.

52º - Encontra-se amplamente provado, que violaram a morada de família da recorrente, franquearam a entrada a terceiros e impediram a entrada da sua legítima detentora.

53º - Os aqui recorridos. devem indemnizar a A. por esta despesa por ter sido devida a facto ilícito deles – a violação do domicílio e as ameaças feitas sobre ela caso tentassem aceder ao local arrendado.

54º - O art. 496.º, nº 1, do C. Civil manda atender os danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito, visto terem a gravidade para serem indemnizados, os danos não patrimoniais que excedam os limites “de tolerabilidade civil”, os custos normais da vida em sociedade.

55º - O art. 496.º do C. Civil tanto se aplica (doutrina e jurisprudência quase unânimes) na equiparação dos pressupostos quanto à responsabilidade civil extracontratual como à contratual. - Acórdãos do STJ, de 27/01/1993 – BMJ nº 423 – 494/502; e 09/12/1993 – BMJ nº 342 – 342/353; e CJ/S, Ano I – III – 174/178.Termos em que, deve ser concedida revista, revogando-se o douto acórdão recorrido, assim se fazendo JUSTIÇA!»


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Os Réus contra-alegaram, pugnando pela improcedência da revista e a subsistência do julgado absolutório ditado pela Relação.

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II. Objecto do Recurso

Atestados os pressupostos gerais de recorribilidade e tendo em conta os fundamentos do recurso, a revista é admitida, de acordo com o disposto nos artigos 629º, nº1 ex vi artigo 679º e, artigos 671º, nº1, e 674º, nº1, al) a e c), todos do CPC.

Delimitado o tema decisório pelas conclusões recursivas em interface com o acórdão impugnado, importa decidir se, a alteração pela Relação a decisão da matéria de facto contende com a aplicação in casu do disposto no artigo 623 do CPC.

III. Fundamentação

A. Os Factos

Vem assente das instâncias a seguinte factualidade:

1 - Por contrato escrito, celebrado a 01/10/2014, DD e mulher, CC (ora Ré) deram de arrendamento a AA (ora A.), pelo preço de € 650,00/mês, para habitação própria e permanente desta, uma moradia com 2 pisos, r/c, 1º andar e logradouro, com garagem (box), sita na Rua das ..., ..., ... – fls. 15/16 (A).

2 - O contrato foi celebrado pelo prazo de um ano, com início a 01/10/2014, renovando-se automaticamente, se as partes não se opusessem à sua renovação – fls. 15/16 (B).

3 - A Autora fez desta moradia a sua residência permanente (C).

4 - O Ministério Público, no processo sumaríssimo nº 135/16.8..., ao abrigo do disposto no art. 392.º, nº 1, do CPP, requereu que fosse aplicada pena de multa aos ali arguidos DD, CC, BB, EE e FF, imputando-lhes a prática, em coautoria material, de um crime de violação de domicílio p. e p. pelo art. 190.º, nºs. 1 e 3, do C. Penal – fls. 44/48 (D).

5-E imputou-lhes a prática dos seguintes factos: “Em outubro de 2014, o arguido DD arrendou à ofendida AA a moradia com 2 pisos, logradouro e garagem, sita na Rua das ... em ..., ..., na qual esta passou a habitar. Entretanto, porque se incompatibilizou com a arrendatária e pretendia que esta desocupasse o imóvel sem ter de recorrer à via judicial, o arguido DD e arguida CC, sua esposa, juntamente com os demais arguidos, também seus familiares, decidiram que o modo mais rápido de concretizar essa pretensão, passaria por se introduzirem no locado de modo a impedirem o acesso da moradora. E assim, pretendendo recuperar a posse do imóvel, os arguidos, a hora indeterminada ao final do dia 13 de maio de 2016, aproveitando a ausência temporária da ofendida AA, introduziram-se todos naquela residência, onde permaneceram. Para o efeito, forçaram e após substituíram a fechadura do portão de modo a impedirem a entrada daquela, como de facto sucedeu, pois quando a ofendida AA ali regressou horas depois, viu-se impossibilitada de aceder à sua habitação, por não conseguir abrir a porta. E, só horas mais tarde, já no dia 14 de maio, com intervenção da G.N.R. é que os arguidos abandonaram o local e a ofendida logrou aceder à sua habitação. Os arguidos sabiam que não podiam entrar – forçando e substituindo a fechadura da porta – nem permanecer, no interior daquela que sabiam ser a habitação da ofendida, na ausência e sem o consentimento desta, como fizeram, em execução de plano comum, estando bem cientes que assim violavam de forma grosseira a paz, o sossego e reserva de intimidade da vida privada de quem lá vivia, bem sabendo que aquele local não era de livre acesso ao público ou à generalidade das pessoas. Em toda a sua atuação, agiram os arguidos livre, voluntária e conscientemente, em comunhão de esforços e intentos, bem sabendo que adotavam comportamentos que lhes não eram permitidos e que são punidos por lei criminal” – fls. 44/48 (E).»

6 - O Ministério Público arquivou, por ausência de indícios suficientes, os factos denunciados pela ora A. que imputava aos arguidos a subtração de bens que constituíam o recheio da habitação – fls. 44 verso (F).

7 - Por decisão proferida, a 08/02/2018, no processo sumaríssimo nº 135/16.8..., em que são arguidos DD, CC, BB, EE e FF, pela prática, a 14/05/2016, em coautoria material, de um crime de violação de domicílio p. e p. pelo art. 190.º, nºs. 1 e 3, do C. Penal, de acordo com o disposto no art. 397.º, nº 1, do CPP, face à não oposição ao requerimento do Ministério Público de fls. 250 a 258, e das penas aí propostas, foram os arguidos condenados nas seguintes penas: - o arguido DD na pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 6,00, o que perfaz o montante global de € 480,00; - a arguida CC na pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 5,50, o que perfaz o montante global de € 440,00; - o arguido BB na pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 5,00, o que perfaz o montante global de € 400,00; - a arguida EE na pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 5,00, o que perfaz o montante global de € 400,00; - a arguida FF na pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 5,00, o que perfaz o montante global de € 400,00 – fls. 17/18 (G).

8 – O R. BB nasceu a .../.../1945 e casou catolicamente, a .../.../1968, com EE - fls. 108/108v.

9 - No dia 13/05/2016, ao princípio da noite, aproveitando a ausência da A. e do seu namorado, o marido da Ré, DD, acompanhado de amigos, introduziram-se na residência, por via de arrombamento da fechadura da porta, substituindo-a por outra.

10 - Chegados ao local, a Autora e o seu namorado, constataram que a sua residência se encontrava ocupada por estranhos, tendo sido impedidos de poder aceder livremente ao arrendado, aos seus bens e pertenças, bem como ao recheio da habitação.

11 - E foram ainda ameaçados de violência sobre as suas pessoas, caso persistissem em tentar aceder ao arrendado ou se mantivessem nas redondezas.

12 - A Autora viu-se obrigada a chamar ao local uma força policial e foi só no dia 14 de maio, já com a intervenção da Guarda Nacional Republicana, que os ocupantes abandonaram o arrendado e a Autora. pode aceder á sua habitação.

13 - Durante o período em que a Autora. e o namorado estiveram impedidos de aceder ao arrendado, dele desapareceram os seguintes objetos: a) um computador portátil, propriedade da A.; b) um computador portátil marca “toshiba”, propriedade do namorado da A.; c) uma máquina de filmar e de fotografia de marca “Toshiba”, propriedade do namorado da A.; d) um relógio em ouro, propriedade do namorado da A.; e) dois fios em ouro de homem, propriedade do namorado da A.; f) uma máquina de matrículas, propriedade da empresa t.. ..........; g) dois tablets, um dos quais propriedade da Autora.; h) cinco telemóveis, propriedade do namorado da Autora.; i) várias moedas de prata antigas de coleção, propriedade do namorado da Autora.; j) uma máquina de diagnósticos auto, propriedade da empresa t.. ..........; k) uma lavadora de alta pressão, propriedade da empresa t.. ..........; l) um LCD, propriedade do namorado da Autora.; m) um par de óculos, propriedade da Autora.; n) um par de óculos, propriedade do namorado da Autora.

14 - A Autora, após a ocorrência dos factos, e perante as ameaças de que foi alvo, não mais pernoitou naquela residência, por recear que não estivessem reunidas condições de segurança, isto é, que a mesma voltasse a ser invadida.

15 - As relações entre a Autora e os seus senhorios só começaram a degradar-se quando aquela deixou de pagar as rendas.

16 -Os senhorios interpelaram-na, então, para pagar as rendas ou deixar o arrendado, desocupando o mesmo voluntariamente, o que a Autora recusou.

17 - Em maio de 2016 a Autora já tinha mais de cinco meses de rendas em atraso.

Não se provou qualquer outro facto com interesse para a boa decisão da causa(..)


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B. Enquadramento Jurídico

Sustenta a recorrente que deverá ter-se por assente a factualidade subjacente à responsabilidade civil dos Réus pelo ressarcimento dos danos que sofreu, face à presunção juris et juris decorrente da sua condenação pela prática do crime de violação de domicílio no processo sumaríssimo referido nos pontos 4 a 7 dos factos provados, que a Relação indevidamente desconsiderou, alterando a decisão de facto.

No que compreende os poderes restritos deste Supremo Tribunal na reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, dispõe o artigo 674º, nº3, do CPC:

«(…) o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova

A recorrente alude repetidamente ao disposto no artigo 623º do CPC e à oponibilidade a terceiros da decisão penal condenatória, em contraste com a presunção inilidível da prática dos factos pelos quais os RR. foram condenados no processo sumaríssimo, invoca, por conseguinte, violação de regra de direito probatório em fundamento da pretendida alteração da decisão sobre a matéria de facto, passível de sindicância pelo Supremo.

Analisemos.

O artigo 623º do CPC sobre a epígrafe “Oponibilidade a terceiros da decisão penal condenatória eficácia”, estabelece - «A condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer ações civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração.»

Trata-se do normativo que atina à eficácia extraprocessual da prova produzida no processo penal, ou, tomando as palavras de Lebre de Freitas, a norma prende-se com a eficácia probatória da própria sentença, independentemente das provas com base nas quais os factos tenham sido dados como assentes”. 2

Os artigos 623º e 624º do actual CPC correspondem, nos seus precisos termos, ao que dispunham os artigos 674º-A e 674º-B quanto à matéria da eficácia da decisão penal nas acções não penais no anterior CPC, com as alterações introduzidas pelo DL 329-A/95, de 12.12. 3

No âmbito do processo penal, os pretéritos artigos 153º e 154º do Código de Processo Penal de 1929, que dispunham sobre os efeitos das sentenças penais condenatórias e absolutórias nas acções não penais, não têm hoje correspondência no CPP actual.

Maia Gonçalves assinala - “Na verdade, a ação penal e a ação civil são reconhecidas e decisivamente distintas nos seus pressupostos fundamentais. Não há coincidência entre os pressupostos da culpa criminal e os pressupostos da indemnização civil. Nomeadamente: nem o ilícito criminal se confunde com o ilícito civil, nem a culpa criminal se pode confundir com a culpa civil, sempre, aliás, subsistindo a possibilidade de haver lugar a responsabilidade civil onde esteja de todo ausente a responsabilidade criminal, como será o caso da responsabilidade objetiva, pelo simples risco4

Cristina Dá Mesquita, debruçando-se sobre a evolução legislativa da matéria, refere -

« Desta forma, o CPP de 1987 compreende uma opção de abandonar a regulação dos artigos 153.º e 154.º do CCP de 1929 (…), em sintonia com um modelo de independência da prova na ação de responsabilidade civil fundada na prática do crime instaurada em separado enquanto matéria da lei civil (substantiva e adjetiva) o que é coerente com a nova filosofia do sistema jurídico, em particular, a já assinalada reconfiguração dos direitos de indemnização do lesado ao abrigo dos institutos de natureza civil.»5

Na jurisprudência do Supremo Tribunal, explicitando o âmbito da previsão e alcance do artigo 623º do CPC, refere o recente acórdão de 8.02.2022:

«(…) estabelece, em relação a terceiros, uma presunção ilidível no que se refere à «existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer acções cíveis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração». Em termos de procedimento probatório, a actuação desta presunção implica que o sujeito que dela beneficia está dispensado de provar os factos, apurados na sentença penal, que revestem na acção civil (em que se discutam relações jurídicas dependentes ou relacionadas) a categoria de “factos constitutivos” (em relação ao arguido). A “prova” da base da presunção cumpre-se com a junção da certidão da sentença condenatória definitiva e o autor fica desonerado de demonstrar os “factos presumidos” (os factos que constam da fundamentação da sentença penal) que lhe aproveitam enquanto pressuposto da norma ou do regime que invoca; porém, aos terceiros estranhos ao processo penal, em homenagem ao princípio do contraditório, a lei permite que essa imposição factual fora do processo penal possa ser afastada”.6

Constatamos, pois, que no tocante à sentença penal condenatória, o legislador caminhou do patamar da sua eficácia (em relação a terceiros) erga omnes, para o degrau inferior, traduzido na consagração de uma presunção legal, ilidível, da prática dos factos.

Seguindo o novel enquadramento probatório, que vai além da letra do artigo 623º do CPC, o réu condenado pela prática do crime, cabe o ónus da prova do contrário no âmbito do processo civil, fazendo prevalecer o princípio do contraditório sobre a segurança jurídica.


*


Feitas as breves considerações gerais sobre a questão em debate, o caso em juízo.

Os Réus foram condenados no âmbito de processo sumaríssimo pela prática do crime de violação de domicílio, na sequência da queixa da Autora, uma vez que, contra a sua vontade, se introduziram na sua casa e qual arrendara e era propriedade do filho do Réu e marido da Ré.

A Autora demanda agora os Réus no âmbito de responsabilidade civil a fim de ser ressarcida dos danos morais e patrimoniais que a sua conduta alegadamente lhe provocou.

Na primeira instância os Réus foram condenados a indemnizar a Autora.

A Relação, reapreciando os depoimentos e documentos,7 alcançou convicção probatória diversa do primeiro grau sobre a decisão de facto , nos termos da motivação que se transcreve no essencial - « Da conjugação destes depoimentos muito credíveis, podemos concluir que, na noite do dia 13 de Maio, o senhorio, filho do aqui Réu, introduziu-se na moradia arrendada à Autora com amigos, numa atitude de desespero por não receber a renda e, aquando da chegada da Autora e do namorado, impediu-os de nela entrar, com ameaças. Os Réus não tiveram participação nos factos ocorridos na noite do dia 13 de Maio, pois apenas foram vistos, no dia seguinte, no interior da mesma, sendo que o Réu, acompanhado da mulher (pais do senhorio), pessoas de idade (o Réu nasceu em .../.../1945) encontravam-se, nas palavras do militar da GNR, a testemunha GG, nervosos, combalidos e alterados, tendo o filho, o senhorio, pedido autorização para abandonarem o local pois estavam com problemas de saúde, o que foi atendido. Os problemas de saúde do Réu estão devidamente documentados nos presentes autos. (…) Como acima tivemos oportunidade de salientar, a Autora e namorado, a testemunha HH, reconheceram que os Réus não estavam presentes na habitação na noite do dia 13 de Maio, nem praticaram o acto de arrombamento e/ou ameaças à sua integridade física. Assim sendo, impõe-se a alteração da decisão da matéria de facto nesta parte8

E, concluiu, perante a factualidade (agora) assente - excluída a participação dos Réus nos acontecimentos imputados – pela absolvição dos Réus, mais considerando que a sentença incriminatória proferida não oferece as garantias exigíveis de certeza jurídica como «(..)no âmbito de um processo sumaríssimo, não estando sem realização da audiência de julgamento, em consequência de não ter sido deduzida oposição ao requerimento do Ministério Público (cfr. arts. 392 a 397.º do C.P. Penal) a presunção inilidível não se justifica.»

A alteração sobre a matéria de facto do acórdão recorrido não afrontou regra de direito probatório.

A Relação actuou nos estritos limites dos poderes deveres estabelecidos no artigo 662º, nº1, do CPC, sendo que as questões que se prendem com a apreciação de prova sujeita ao princípio da livre apreciação, constituem matéria que extravasa a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no referente à decisão de facto das instâncias - artigos 674.º, n.º 3, do CPC.

Resultando a mesma da sua livre apreciação das provas (testemunhal e documental-artigos 361º, 363º, nº3 e 396º do CCivil) quanto à ocorrência dos factos imputados aos Réus, não constitui obstáculo legal a sentença condenatória em processo sumaríssimo, por natureza com ausência de todas as garantias de defesa dos arguidos, que assim não justifica a eficácia probatória da fundamentação da sentença penal prevista no artigo 623º do CPC.

De resto, quanto à extensão da funcionalidade do artigo 623º do CPC no domínio do processo contraordenacional e, em paridade de argumentos, ao processo sumaríssimo, o Supremo Tribunal de Justiça vem se pronunciando pelo seu claro afastamento.

Como ilustra e aprofunda o recente aresto prolatado em 9.05.2024 nesta 2ª secção, que acolhemos na íntegra para a fundamentação da decisão e que se transcreve:9

«-Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.10.2018 (Proc. 826/14.8T8GRD.C1.S2), onde se diz: “O art. 623.º do CPC (oponibilidade a terceiros da decisão penal condenatória) apenas se aplica quando está em causa uma decisão condenatória em processo penal e já não em processo de contra-ordenação, pelo que a circunstância de a entidade patronal do sinistrado ter sido condenada em coima, no âmbito de um processo contra-ordenacional, por ter omitido os procedimentos de segurança a que se achava adstrita, não impunha que os factos que aí foram dados como provados fossem extraídos para o processo cível”.

- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.04.2016 (Proc. 127/10.0TBPDL.L1. S1), onde se lê: “O regime do disposto no art. 623.º do CPC não deve ser aplicado em caso de condenação definitiva de um sujeito em processo de contra-ordenação”.

- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.10.2015 (Proc. 1549/10.2TBFLG.P1.S1), onde se afirma: “I - O art. 623.º do NCPC (2013), referindo-se à condenação definitiva proferida no processo penal, somente em relação a esta estabelece a presunção, que se impõe ao juiz cível, e que é ilidível, no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime. II - A decisão judicial homologatória de medida tutelar educativa proferida no âmbito do art. 104.º, n.º 4, da LTE, aprovada pela Lei n.º 166/99, de 14-09, não se equipara a sentença penal a que possa aplicar-se o disposto no art. 623.º do NCPC. III - Limitando-se o efeito do caso julgado da decisão homologatória à concordância dada por todos os intervenientes relativamente à medida tutelar educativa proposta pelo MP, não podem em ele incluir-se os factos qualificados na lei como crime e imputados ao menor como justificativos da sua aplicação”.

A favor deste entendimento podem convocar-se, de acordo com o citado Acórdão de 5.04.2016, desde logo, dois argumentos – argumento literal e o argumento teleológico.

Quanto ao argumento literal: “Nos termos do art. 9º nº 3 do C. Civil “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”, donde decorre que quando o legislador se referiu, no dito art. 623º, ao processo penal, só a este se quis referir. Não é compreensível, se fosse intenção do legislador integrar na dita disposição a decisão proferida no processo de contra-ordenação, não lhe tivesse feito uma referência expressa, tanto mais que nas diversas reformas ocorridas posteriormente à introdução do dispositivo no sistema legal, não diligenciou por qualquer modificação nesse sentido (inserindo aí as decisões contra-ordenacionais). Ou seja, o que o legislador quis dizer na formulação do art. 623º foi precisamente o que disse, o que serve para excluir qualquer a interpretação extensiva da norma[8], visto que esta só terá lugar, como é sabido, quando se conclua “pela certeza de que o legislador se exprimiu restritivamente, dizendo menos do que pretendia (minus dixit voluit”) – in Parecer nº 71/76 da PGR de 8-7-1976, BMJ 263º, 103”.

Quanto ao argumento teleológico: “o direito contra-ordenacional não se identifica, nem material nem formalmente com o processo penal. (…) A este propósito não será demais focar que, estando o processo penal imbuído do objectivo primacial da descoberta da verdade material (o que não sucede com o processo de mera ordenação social, que postula e sanciona meras regras de convivência social, decorrentes do crescente intervencionismo do Estado), compreende-se que à sentença penal seja atribuída uma peculiar segurança e que, por isso, o legislador de 1995 lhe tenha conferido a confiança necessária de forma a estabelecer a presunção a que alude o dito dispositivo, “no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal”. Isto é, o legislador entendeu existirem condições para o juiz cível confiar e acreditar no julgamento efectuado no processo penal, quanto aos ditos elementos”.

Em aplicação analógica a sentença condenatória proferida em processo sumaríssimo, cuja tramitação, como se viu especificadamente no caso sub judice, não ofereceu garantia sequer da identificação correcta dos arguidos- Réus, comprovada pela confissão da Autora e namorado em audiência, afirmando que não viram aqueles no local no dia em que alegadamente ocorreu a violação do seu domicílio.10

Circunstância que acentua o carácter “nominal da condenação” dos Réus no processo sumaríssimo, que não estiverem presentes em audiência para a respetiva identificação, nem tiveram hipótese de se defenderem.

Por último, com interesse na questão sob o prisma da força probatória da sentença enquanto documento autêntico - artigo 371º, nº1, do Código Civil- factor também ponderado no acórdão recorrido, vem a propósito a conclusão extraída no estudo elaborado pela Professora Maria José Capelo: «Em síntese, na sentença, enquanto documento narrativo, perspectiva-se o juiz como ‘testemunha privilegiada’, sendo que, na parte em que é dispositiva, fica demonstrada a existência de uma decisão. Nada mais é possível retirar desse papel probatório enquanto documento autêntico. Dir-se-á que a função de meio de prova, enquanto documento dotado de força probatória plena, termina quando ‘começa’ a eficácia da decisão nele contida”.11


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Para concluir que a preponderância do enunciado de factos provados na fundamentação da sentença condenatória penal em processo sumaríssimo não é de estender à acção de responsabilidade civil conexa.

Donde, sem necessidade de outro desenvolvimento, não resultando provada a factualidade subjacente à responsabilidade civil em que assenta a demanda, impõe-se a absolvição dos Réus do pedido.

IV- Decisão

Pelas razões expostas, improcede a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

As custas são a cargo da Autora.

Lisboa, 18.06.2024

Isabel Salgado (relatora)

Maria da Graça Trigo

Catarina Serra

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1. Certamente, por lapso de escrita foi omitido o 5º da sequência numérica.

2. In Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, Coimbra Editora, pág.691; o artigo 624º do CPC actual correspondia aos artigos 624ºA e 624ºB do CPC de 1961, na alteração introduzida pelo DL 392-A/95, de 12.12.

3. Do seu Preâmbulo consta a propósito “ (…)no que se refere à disciplina dos efeitos da sentença, assume-se a regulamentação do caso julgado penal, quer condenatório, quer absolutório, por acções conexas civis conexas com as penais, retomando um regime que, constando originariamente do Código de Processo Penal de 1929, não figura no actualmente em vigor; adequa-se, todavia, o âmbito da eficácia erga omnes da decisão penal condenatória às exigências decorrentes do princípio do contraditório, transformando a absoluta e total indiscutibilidade da decisão penal em mera presunção, ilidível por terceiros, da existência do facto e respectiva autoria”.

4. in Código de Processo Penal Anotado, 5ª edição, Coimbra, 1982, pág. 239“

5. In “Prova na ação de responsabilidade civil fundada na prática de crime e factos provados na fundamentação da sentença penal”, in https://julgar.pt/.

6. No proc.º 807/17.0T8STS-B. P1.S1, in ww.dgsi.pt.

7. O réu os pontos 11 (ameaças), 15 a 18 dos factos provados da sentença; a ré, pontos 9, 10 e 11 dos factos provados referentes à sua participação na violação do domicílio da Autora.

8. Cfr. entre o demais consta «(..) a Autora confessou em audiência, reduzida a escrito, que apenas conheceu o Réu, pai do senhorio, no dia 14 de Maio de 2016 quando voltou a ter acesso ao imóvel arrendado com a GNR. Nunca recebeu ameaças do Réu.» (negrito nosso)

9. No proc n.º 5727/06.0TVLSB.L1. S2, e relatora Catarina Serra e membro deste colectivo.

10. A Autora veio aliás durante a fase dos articulados referir que tinha incorrido em lapso na identificação do Réu como dono e celebrante no contrato de arrendamento da casa.

11. In a Sentença entre a Autoridade e a Prova, cit., pág. 103/ 114., Apud Ac.STJ de 9.05.2024-v. nota anterior.