Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
19575/20.1TPRT.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ORLANDO DOS SANTOS NASCIMENTO
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ATROPELAMENTO
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
CÁLCULO
DANO ESTÉTICO
DANO BIOLÓGICO
DANO NÃO PATRIMONIAL
INCAPACIDADE PERMANENTE PARCIAL
RECURSO DE REVISTA
AÇÃO DE CONDENAÇÃO
Data do Acordão: 09/18/2025
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação:
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
Independentemente da qualificação do dano estético em si mesmo, como dano autónomo, como dano biológico ou como dano de natureza não patrimonial na dicotomia entre danos de natureza patrimonial e danos de natureza não patrimonial, existindo, esse dano não pode deixar de ser indemnizado, como decorre dos princípios consagrados nos art.ºs 562.º, 564.º e 566.º, do C. Civil.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


1. RELATÓRIO.

AA propôs contra Companhia de Seguros Allianz Portugal, S. A esta ação declarativa comum pedindo a sua condenação a indemnizá-la pelos danos que lhe advieram de acidente de atropelamento ,em D de M de 2015, pelo veículo V1, com contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel outorgado com a R, sendo a título de danos não patrimoniais no valor de € 40.000,00, a título de dano biológico no valor de € 40.000,00, a título de dano estético o valor de € 20.000,00 e a título de danos não patrimoniais futuros o valor de € 50.000,00.

Citada, contestou a R, impugnando os valores pedidos pela A, que, além do mais, considera desproporcionais aos danos.


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Lusitânia Cª de Seguros deduziu intervenção principal provocada, que foi admitida, pedindo a condenação da R a entregar-lhe valores que despendeu com a A em virtude do mesmo atropelamento, por força da responsabilidade que lhe advinha de seguro por acidente de trabalho.

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Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, julgando a ação parcialmente procedente e condenando a R a pagar à A a quantia de € 100.000,00, sendo € 50.000,00 a título de dano patrimonial, dano biológico e € 50.000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até pagamento, no mais absolvendo a R, julgando procedente o pedido da interveniente, condenando a R a entregar-lhe o valor de € 51.081,07, acrescido de juros de mora à taxa legal, desde a citação/notificação e até integral pagamento, contados desde a citação e desde a notificação de cada uma das quantias que foi sendo ampliada.

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Inconformada com a sentença, a R interpôs recurso de apelação, pugnando, além do mais pela redução da indemnização relativa a danos não patrimoniais para € 25.000,00 e a título de dano biológico na vertente patrimonial para €. 30.000,00.

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A A contra-alegou e interpôs recurso subordinado, pedindo a condenação da R a entregar-lhe a quantia de € 150.000,00 pedida.

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O Tribunal da Relação julgou improcedente a apelação da R e o recuso subordinado da A, confirmando a sentença quanto ao valor total da indemnização arbitrada, mas fixando-a em € 50.000,00 quanto a danos não patrimoniais atuais e futuros, € 5.000,00, a título de dano estético e € 45.000,00 a título de dano biológico.

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De novo inconformada, a R/apelante interpôs recurso de revista, formulando as seguintes conclusões:

1. Considerando (i) a incapacidade parcial permanente de que a Autora ficou a padecer, de 13 pontos (facto provado 13 da sentença); (ii) o valor salarial mensal médio à data da consolidação médico legal das lesões, que, quanto a mulheres no grupo etário de 55 a 64 anos ascende a 991,90 (12 vezes ao ano); (iii) a idade de 54 anos à data do acidente; (iv) o tempo médio de vida de 83 anos quanto a mulheres;(v) a idade legal de reforma; (vi) a indemnização já fixada quanto aos danos não patrimoniais (vii) os critérios de equidade (viii) os valores que têm sido atribuídos pela jurisprudência em situações similares, os valores recebidos e a receber a título de acidente de trabalho (cfr. factos provados 12 e 27, montantes que embora não sejam de compensar diretamente [conforme decidido pelo Tribunal a quo], não podem deixar de ser tidos em consideração no cômputo global do dano patrimonial da lesada) e (x) o recebimento imediato da indemnização, sempre se dirá que o montante de Eur. 45.000,00 fixado a título de dano biológico na vertente patrimonial é excessivo para o caso concreto, indemnização que jamais poderá ser superior a Eur. 30.000,00.

2. No caso concreto, foi dado como provado que a A. tinha 54 anos à data do acidente, que por via do mesmo padece de sequelas valoráveis com 13 pontos de incapacidade (com esforços suplementares para o exercício da atividade habitual), que pelas suas lesões foi fixado um quantum doloris de grau 4 e o dano estético de grau 3, numa escala máxima de 7 pontos, não tendo sido fixado qualquer prejuízo sexual.

3. Assim, atendendo o caso concreto e os padrões que têm vindo a ser seguidos pela jurisprudência (conforme acórdãos supra citados), sempre se dirá que a indemnização fixada pelo Tribunal a quo a título de danos não patrimoniais em Eur. 50.000,00 é manifestamente suficiente para indemnizar a Autora de todos os seus danos não patrimoniais, incluindo o dano estético, não sendo necessária qualquer autonomização do mesmo.

4. Caso assim não seja entendido, e se entenda que o dano estético (ao contrário de outros danos não patrimoniais) deve ser autonomizado, sempre se dirá que assim sendo deve o dano não patrimonial fixado ser reduzido no exato montante de tal autonomização.

5. Ao ter decidido como decidiu, o Tribunal a quo violou a lei substantiva vertida nos artigos 473.º, 564.º e 566.º do Código Civil, o que se invoca nos termos do previsto no artigo 674.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Civil.


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A A contra-alegou, pugnado pela denegação da revista.

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2. FUNDAMENTAÇÃO.

A) OS FACTOS.

O acórdão recorrido julgou:

A.1. Provados os seguintes factos:

1- No dia D de M de 2015, pelas 9.50 horas, a autora AA, foi vítima de atropelamento por veículo automóvel, na cidade do Porto;

2- Com efeito, quando atravessava a passadeira com sinal verde para peões, ao cimo da Rua 1 no cruzamento com a Rua 2, a autora sofreu um embate causado por um veículo automóvel que surgiu pelo seu lado direito, atingindo os seus membros inferiores e provocando-lhe imediata queda no solo (cfr. participação de acidente elaborada pela PSP junto aos autos como doc. nº 1 da petição inicial;

3- O veículo automóvel com matrícula V1, Furgão de marca IVECO, modelo 35C18 F E4, que estava na posse da empresa de transportes "J..., Lda" e era conduzido por BB, motorista profissional e seu trabalhador, provinha da Rua 2, no cruzamento com a Rua 1, com perfeita visibilidade e com o piso em bom estado e com o tempo seco;

4- Tendo o seu condutor virado à esquerda com sinal verde para os veículos, mas totalmente desatento e sem o cuidado de respeitar a circunstância de o semáforo na Rua 1 se encontrar, naquele momento, com sinal verde para peões que ali atravessavam a rua na passadeira, vindo a atingir a autora, prostrando-a no piso de paralelepípedo em granito;

5- Mediante o embate e as lesões sofridas, foi accionada a emergência médica e providenciado transporte imediato da autora para o Hospital Santo António, no Porto, onde foi alvo de exames de diagnóstico (diversos Raios X e análises clínicas), mediante queixas dirigidas especialmente a “ambos os membros inferiores” (doc. nº 2 junto com a petição inicial);

6- No dia seguinte, autora foi submetida a intervenção cirúrgica a fractura nos pratos tibiais externos do membro inferior esquerdo, com osteossíntese com placa (doc. nº 2 junto com a petição inicial);

7- No dia 19.12.2015, aquando do internamento subsequente, mediante uma dor muito forte que persistia no joelho direito, foi chamado médico-ortopedista que assinalou “Chamada por gonalgia direita” e detetou “Dor à palpação do LLI [ligamento lateral interno] no seu trajecto”, pedindo raio X (doc. junto com a petição inicial);

8- A autora esteve internada no Hospital Santo António até 21.12.2015 (docs. 2 e 4 juntos com a petição inicial);

9- Em virtude de, no momento do acidente de viação, a sinistrada se encontrar a caminho do seu local de trabalho, sito no ..., na Rua 3, no Porto, o sinistro foi qualificado também como acidente de trabalho, pelo que a autora teve acompanhamento clínico subsequente no Hospital de Santa Maria, no Porto, a cargo da seguradora Lusitânia Seguros, para a qual, mediante a apólice n.º .....75, a sua entidade empregadora (Global Notícias Media Group S. A.) tinha transferido a responsabilidade infortunística por acidentes de trabalho;

10- Na sequência de tratamentos e sessões de fisioterapia nos serviços clínicos do Hospital Santa Maria, a A. recebeu declaração de alta no dia 16.12.2016;

11- No processo especial de acidente de trabalho com o n.º 23458/16.1..., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo do Trabalho do Porto – Juiz 1, ficou fixada à autora uma IPP para a actividade laboral de 26,88%, em adesão ao laudo do perito de Medicina Legal (docs. 5 e 6 juntos com a petição inicial);

12- Em consequência da referida incapacidade parcial permanente de 26,88% fixada para o trabalho, e dos vencimentos pagos pela entidade empregadora, a autora recebe uma pensão anual e vitalícia no montante de Eur. 3.648,72, paga em duodécimos e anualmente atualizável, tendo pago entre 16 de dezembro de 2016 e 31 de outubro de 2024 o montante global de Eur. 30.487,13 a esse título;

13- Em virtude do acidente de viação acima relatado, resultaram para a autora as lesões e consequências melhor descritas no relatório do INML junto aos autos, datado de 28.09.2023, que aqui se considera por integrado nos seus dizeres e que assim conclui:

“− A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 26/10/2016.

− Período de Défice Funcional Temporário Total fixável em 6 dias

− Período de Défice Funcional Temporário Parcial fixável em 310 dias

− Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total fixável em 301.

− Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial fixável em 15 dias.

- Quantum Doloris fixável no grau 4/7.

− Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 13 pontos.

− As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares

− Dano Estético Permanente fixável no grau 3/7.

− Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 3/7.

− Ajudas técnicas permanentes: ajudas técnicas - auxiliar de marcha.”

14- Posteriormente, em esclarecimentos solicitados, o INML, em “aditamento” de 29.02.2024, admitiu

“dano sequelar em ambos os joelhos, com limitação da flexão do joelho esquerdo e instabilidade anterior e posterior do joelho direito.

Tendo em conta o atrás exposto, os médicos peritos mantêm o parecer de que a Examinada necessita de um auxiliar da marcha”;

15- Em consequência do sinistro, a autora sofreu danos não patrimoniais, sofrendo ainda hoje de sequelas permanentes, quer do ponto de vista físico/biológico, quer do ponto de vista psicológico/moral;

16- A autora tinha, à data do acidente, 54 anos, porquanto nasceu a 25-04-1961;

17- Sentia-se bem consigo própria, era uma pessoa bem-disposta, com alegria de viver e com saúde;

18- Exercia a profissão de técnica administrativa na sociedade Global Notícias Media Group S. A., grupo proprietário de diversos títulos de comunicação social, gostando muito que fazia;

19- Apesar de divorciada e de viver sozinha, mantinha vida social, convivendo com amigos;

20- Tudo mudou após o acidente, passando a autora a sofrer de dores/incómodos permanentes;

21- Coisas simples como estar de pé, imprescindível, por exemplo, para quem cozinha ou trata das diversas lides domésticas, o que lhe tem exigido um significativo esforço acrescido e obrigado a andar constantemente de canadiana e/ou a solicitar ajuda de terceiros, de forma a atenuar as dificuldades que passou a sentir na respectiva execução;

22- No momento do acidente, imediatamente após, durante o internamento, no regresso a casa e tentativa de adaptação à incapacidade, durante os tratamentos subsequentes de fisioterapia e mesmo depois da alta médica e regresso ao trabalho, a autora tem atravessado períodos de sofrimento e instabilidade emocional;

23- Quando sofreu o embate e após o mesmo, durante a assistência que lhe foi dada, a autora receou pela sua própria vida;

24- Sofreu dores durante o acidente, após o mesmo, bem como nos tratamentos a que foi submetida, tendo necessitado e continuando a necessitar de tomar medicação, incluindo analgésica;

25- Antes do acidente, a autora era vista como uma pessoa saudável, independente, bem-disposta, com alegria de viver, vendo-se obrigada a alterar por completo as rotinas diárias e sociais anteriores ao acidente, deixando de se deslocar com frequência a estabelecimentos comerciais, como ir a estabelecimentos de diversão ou sair para caminhadas, sendo que, a nível profissional, a carreira da autora também resultou afectada, na medida em que obrigou a esforços físicos acrescidos em deslocações, limitando a sua progressão na carreira profissional;

26- Antes do acidente, no ano de 2015, a autora auferia o montante anual ilíquido de €17.840,35 a título de rendimentos do trabalho (doc. 14 junto com a petição inicial);

27- Na sequência do processo especial por acidente de trabalho acima referido e em consequência da sentença aí proferida e transitada em julgado, a interveniente Lusitânia – Companhia de Seguros, pagou à autora, até ao momento, a quantia global de 51.081,07 euros, tendo pago, discriminadamente, os seguintes montantes:

a. Eur. 16.783,19 a título de pensões vencidas entre 16 de dezembro de 2016 e 31 de maio de 2021;

b. Eur. 4.338,58 a título de ajuda de terceira pessoa;

c. Eur. 911,59 a título de despesas com ambulatório;

d. Eur. 70,00 a título de despesas com EAD-TAC;

e. Eur. 9.192,16 a título de indemnização pela Incapacidade Temporária Absoluta;

f. Eur. 919,21 a título de indemnização pela Incapacidade Temporária Parcial de 40%;

g. Eur. 287,92 a título de despesas com juros;

h. Eur. 1.589,50 a título de despesas com medicina física e de reabilitação

i. Eur. 1.040,73 a título de despesas com subsídios;

j. Eur. 5,25 a título de despesas com transporte próprios;

k. Eur. 2.239,00 a título de despesas com transporte de táxi;

l. Eur. 11.171,14 a título de pensões pagas entre 01 de junho de 2021 e 31 de março de 2024;

m. Eur. 2.532,80 a título de pensões pagas entre 01 de abril de 2024 e 31 de outubro de 2024.


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B) O DIREITO APLICÁVEL.

O conhecimento deste Supremo Tribunal, quanto à matéria dos autos e quanto ao objeto da revista, é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 635.º, n.º 2, 639.º 1 e 2, do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso), observando, em especial, o estabelecido nos art.ºs 682.º a 684.º, do C. P. Civil.

Atentas as conclusões da revista, acima descritas, as questões submetidas ao conhecimento deste Tribunal pela Recorrente consistem em saber se a) a indemnização a título de dano biológico deve ser fixada em € 30.000,00, b) a indemnização a título de danos não patrimoniais no valor de € 50.000,00 é suficiente para indemnizar a Autora de todos os seus danos não patrimoniais, incluindo o dano estético, c) caso se entenda que o dano estético deve ser autonomizado, deve o dano não patrimonial ser reduzido no exato montante de tal autonomização.

Conhecendo.

1: Quanto à primeira questão, a saber se a indemnização a título de dano biológico deve ser fixada em € 30.000,00,

O acórdão recorrido arbitrou à A/recorrida o valor de € 45,000,00 a título de indemnização relativa ao dano biológico.

A esse mesmo título a sentença da 1ª instância tinha arbitrado indemnização no valor de € 50,000,00.

Pretende a Recorrente, como já o fizera na apelação, que esse valor seja reduzido para € 30.00,00.

Na apreciação desta questão importa, antes de mais registar que, como da sua própria formulação resulta, a autonomização indemnizatória deste dano em face da clássica dicotomia entre danos patrimoniais e danos não patrimoniais/morais é pacífica nos autos, prefigurando-se como longínqua, quer a sua autonomização legislativa pela al. b) do art.º 3.º da Portaria n.º 377/2008, de 26 de maio, dispondo que “São indemnizáveis ao lesado, em caso de outro tipo de dano corporal:…

b) O dano pela ofensa à integridade física e psíquica (dano biológico), de que resulte ou não perda da capacidade de ganho, determinado segundo a Tabela Nacional para Avaliação de incapacidades Permanentes em Direito Civil”, quer o seu percurso jurisprudencial no Supremo Tribunal de Justiça1, no qual destacamos, entre outros, os acórdãos de 4/10/2005, 4/10/2007, 19/05/2009, 27/10/2009, 20/1/2011, 15/9/2016, 18/10/2017, 14/12/2017. 18/10/2018 e 8/1/20192.

Esta questão da revista centra-se, pois, tão só, na fixação do valor indemnizatório, uma vez que a existência do dano e a sua valoração autónoma foi pacificamente aceite pelas partes, quer em face da sentença, quer em face do acórdão recorrido.

Para os Recorrentes esse valor indemnizatório deve ser reduzido para € 30.000,00 tendo em atenção “… (i) a incapacidade parcial permanente de que a Autora ficou a padecer, de 13 pontos (facto provado 13 da sentença); (ii) o valor salarial mensal médio à data da consolidação médico legal das lesões, que, quanto a mulheres no grupo etário de 55 a 64 anos ascende a 991,90 (12 vezes ao ano); (iii) a idade de 54 anos à data do acidente; (iv) o tempo médio de vida de 83 anos quanto a mulheres;(v) a idade legal de reforma; (vi) a indemnização já fixada quanto aos danos não patrimoniais (vii) os critérios de equidade (viii) os valores que têm sido atribuídos pela jurisprudência em situações similares, os valores recebidos e a receber a título de acidente de trabalho (cfr. factos provados 12 e 27, montantes que embora não sejam de compensar diretamente [conforme decidido pelo Tribunal a quo], não podem deixar de ser tidos em consideração no cômputo global do dano patrimonial da lesada) e (x) o recebimento imediato da indemnização…”.

Os Recorrentes não demonstram em que medida é que esta complexa fórmula de cálculo que apresentam a este Supremo Tribunal de Justiça conduz ao valor de € 30.000,00 em vez dos 45.000,00 arbitrados pelo acórdão recorrido, como já o não tinham logrado fazer em relação ao valor que foi arbitrado pela 1.ª instância.

Não obstante, vejamos.

O acórdão recorrido, depois de extensa transcrição de jurisprudência na delimitação do conceito de dano biológico, concluiu que “…ponderado o valor salarial mensal médio à data da consolidação médico-legal das lesões, acessível em www.pordata.pt/Portugal, o défice funcional permanente de 26,88%, a idade da Autora, a esperança média de vida até aos 83 anos (e todos os demais elementos pertinentes retirados da matéria de facto assente), as taxas de juro das aplicações financeiras e a inflação, recorrendo à equidade, afigura-se que o montante de € 45.000,00 é adequado para o ressarcimento do dano em causa (destacado fica deste valor a quantia devida a título de dano estético, conclui-se pela mesma indeminização fixada pelo tribunal a quo: €50.000,00)”.

Ora, para aferição do valor indemnizatório do dano agora em causa, para além dos itens a que se reportam, quer as alegações da revista, quer o acórdão que impugna importa, antes de mais, identificar o dano em si mesmo.

Nessa identificação, guiados pela fórmula precursora e lapidar da al. al. b) do art.º 3.º da Portaria n.º 377/2008, de 26 de maio, não podemos deixar de considerar dois princípios base.

O primeiro é que esse dano é constituído por uma ofensa à integridade física e psíquica.

O segundo é que dessa ofensa pode ou não resultar perda da capacidade de ganho. No caso sub judice sabemos já que a ofensa à integridade física determinou perda da capacidade geral de ganho e que esta perda de capacidade foi objeto de indemnização pelos parâmetros da indemnização de danos no âmbito da legislação relativa a acidentes de trabalho, pelo que a indemnização agora a arbitrar se deverá situar para além do que já foi indemnizado, objetivamente conexo à atividade desempenhada pela A/recorrida e respetiva remuneração.

Relativamente ao primeiro principio, a ofensa à integridade física que afetou, continua e continuará a afetar a Apelada/recorrida é constituída, grosso modo, por uma mutilação do seu corpo, identificada na matéria de fato provada, sendo constituída, nomeadamente, pelas sequelas de fratura nos pratos tibiais externos do membro inferior esquerdo que foi objeto de intervenção cirúrgica com osteossíntese com placa (N.º 6 dos factos provados), afetação dos joelhos (N.º 7 dos factos provados), com limitação da flexão do joelho esquerdo e instabilidade anterior e posterior do joelho direito, sequelas que lhe determinam a perda de mobilidade autónoma e a obrigam permanentemente a socorrer-se de “auxiliar de marcha”, vulgo canadiana, muleta ou outro (!) (N.ºs 13 e 14 da matéria de facto provada).

A essas sequelas/mutilações permanentes na integridade física da A/recorrida acresce “…uma cicatriz nacarada linear cirúrgica oblíqua inferiomedialemente que se estende desde a face externa do joelho até à face anterolateral do 1/3 superior da perna com 13cm de comprimento…” (N.º 13 dos factos provados da sentença), que o acórdão recorrido autonomizou do dano biológico como dano estético, quando a 1ª instância tinha integrado essa sequela/mutilação no dano biológico e como tal lhe arbitrando indemnização.

Por sua vez, a ofensa à integridade psíquica da A/recorrida, nascido em D/M/1961 é demonstrada pela afetação da sua personalidade na atitude e possibilidades perante a vida, no antes e no depois da lesão permanente à sua integridade física:

17- Sentia-se bem consigo própria, era uma pessoa bem-disposta, com alegria de viver e com saúde; 18- Exercia a profissão de técnica administrativa na sociedade Global Notícias Media Group S. A., grupo proprietário de diversos títulos de comunicação social, gostando muito que fazia; 19- Apesar de divorciada e de viver sozinha, mantinha vida social, convivendo com amigos; 20- Tudo mudou após o acidente, passando a autora a sofrer de dores/incómodos permanentes; 21- Coisas simples como estar de pé, imprescindível, por exemplo, para quem cozinha ou trata das diversas lides domésticas, o que lhe tem exigido um significativo esforço acrescido e obrigado a andar constantemente de canadiana e/ou a solicitar ajuda de terceiros, de forma a atenuar as dificuldades que passou a sentir na respectiva execução; 22- …mesmo depois da alta médica e regresso ao trabalho, a autora tem atravessado períodos de sofrimento e instabilidade emocional; 25- Antes do acidente, a autora era vista como uma pessoa saudável, independente, bem-disposta, com alegria de viver, vendo-se obrigada a alterar por completo as rotinas diárias e sociais anteriores ao acidente, deixando de se deslocar com frequência a estabelecimentos comerciais, como ir a estabelecimentos de diversão ou sair para caminhadas …”.

O valor exato de tais danos não pode ser determinado matematicamente, como resulta da sua própria natureza, de lesão físico-psíquica, pelo que a sua indemnização deve ser apurada nos termos do disposto no n.º 3, do art.º 566.º, do C. Civil, com recuso ao conceito de equidade.

Em cumprimento dessa norma as instâncias arbitraram exatamente a mesma quantia indemnizatória, com a diferença na subdivisão do dano biológico em dano biológico e dano estético operada pelo acórdão recorrido.

A Recorrente discorda dessa fixação pretendendo que seja agora arbitrado valor inferior, não demonstrando, todavia, o melhor acerto da sua pretensão, sendo certo que o mesmo não pode ser inferido da fórmula abstrata por si utilizada e acima descrita, de todo desligada do dano que agora identificámos nas suas componentes física e psíquica.

Nestas circunstâncias, não se vislumbrando qualquer fundamento para divergir do critério indemnizatório das instâncias, contrapondo-lhe um terceiro, não pode a revista deixar de ser negada quanto a esta questão.

2. A segunda questão, a saber, se a indemnização a título de danos não patrimoniais no valor de € 50.000,00 é suficiente para indemnizar a Autora de todos os seus danos não patrimoniais, incluindo o dano estético e a terceira questão, a saber, se caso se entenda que o dano estético deve ser autonomizado, deve o dano não patrimonial ser reduzido no exato montante de tal autonomização, apresentam uma evidente conexão/dependência pelo que serão apreciadas em conjunto.

Como resulta à saciedade das alegações da revista, como já resultava das alegações da apelação, a pretensão da Recorrente em relação à indemnização arbitrada pelas instâncias consubstancia-se na sua redução no valor de € 20.000,00, aliás, indicado como valor da revista, com a diferença em que essa redução na apelação se reportava à indemnização do dano biológico e nesta revista, acompanhando a qualificação do acórdão recorrido, se reporta ao dano biológico e ao dano estético.

Vejamos, pois.

O acórdão recorrido, confirmou o valor indemnizatório global arbitrado pela primeira instância, confirmou também o valor indemnizatório relativo a danos não patrimoniais fixado pela sentença e subdividiu o dano biológico em dano biológico, propriamente dito, e dano estético, arbitrando valores que, somados, perfazem o mesmo valor arbitrado pela 1ª instância quanto a tais danos.

A qualificação de um dano corporal como “dano estético” para efeito de determinação do quantum indemnizatória é pacificamente aceite na doutrina e na jurisprudência.

Como decidiram os acórdãos deste Suputemos Tribunal se Justiça de 14-10-2008 e de 07-07-20093O dano estético é uma lesão permanente… tanto mais grave quanto são patentes e deformantes as lesões, sendo de valorar especialmente quando são visíveis e irreversíveis”.

Relativamente ao “dano estético” a fundamentação do acórdão de 07-07-2009 faz referência a doutrina brasileira4 e cita o autor francês René Savatier5 como preconizando a extensão desse dano em relação e todo e qualquer lesado para além do prejuízo monetário que dele possa decorrer, transcrevendo incisa expressão segundo a qual ““Le préjudice esthétique, résultant de l’atteinte à la beauté du corps humain, et spécialement du corps féminin, donne lieu, de plus en plus fréquemment, à réparation, non seleument chez lês artistes auxquels il peut causer un dommage pécuniaire, mais chez toute personne, a proportion de sa beauté, de sa jeunesse et de son élégance”.

Não obstante, a questão que ora nos ocupa, mais que uma questão de natureza jurídica, de qualificação e autonomização do “dano estético”, configura-se como uma questão de fixação de valor indemnizatório em que a Recorrente pretende ver reduzido em € 5.000,00 o valor indemnizatório fixado pelo acórdão, primeiramente pela negação da existência desse dano estético como tal e em segundo lugar pela aceitação da sua existência autónoma, com redução da indemnização relativa a danos não patrimoniais, em qualquer caso tendo como pressuposto a recondução do prejuízo estético a dano de natureza não patrimonial.

Pretende a Recorrente que o dano estético, como tal identificado e qualificado pelo acórdão recorrido, se encontra compreendido na indemnização por danos não patrimoniais, havendo, pois que reduzir o quantum indemnizatório em € 5.000,00.

Vejamos se assim acontece.

O acórdão recorrido identificou o dano estético da A/recorrida por referência “…uma cicatriz nacarada linear cirúrgica oblíqua inferiomedialemente que se estende desde a face externa do joelho até à face anterolateral do 1/3 superior da perna com 13cm de comprimento…”.

Esta lesão, pela sua natureza e extensão, tanto constitui mutilação do corpo da A/recorrida, por alteração/destruição da forma natural do membro inferior em causa, que a 1ª instância qualificou como dano biológico, como constitui dano estético, pela dicotomia comum, relativa a esse mesmo órgão na sua conformação natural e na sua deformação permanente pela lesão sofrida.

Mas, mais importante que a qualificação do dano em si mesmo, é que, existindo, deve ser indemnizado, como decorre dos princípios consagrados nos art.ºs 562.º, 564.º e 566.º, do C. Civil e a própria Recorrente reconhece.

O cerne da presente questão situa-se, pois, em saber, se tal dano foi considerado na fixação da indemnização relativa a danos não patrimoniais, como poderia ter acontecido6.

Ora, analisada a sentença, constatamos que esse concreto dano, tal como identificado pelo acórdão recorrido, se não encontra identificado como um dos concretos danos considerados na fixação pelo tribunal de 1ª instância da indemnização relativa a danos não patrimoniais, circunstância que o acórdão recorrido também considerou, uma vez que o autonomizou da indemnização relativa a danos de natureza não patrimonial, que também sindicou, mantendo o valor fixado pela sentença.

A sentença faz uso da expressão “dano estético”, a par de “…o acidente em si, dores resultantes do mesmo, angústias e incómodos com os tratamentos a que teve de se submeter, quantum doloris, …, repercussão permanente na actividade social…”, quando se refere aos danos não patrimoniais, mas não substancia essa expressão genérica nos termos em que o faz o acórdão recorrido, que considera e valora a cicatriz que identifica, autonomizando-a do dano biológico e reduzindo em conformidade a indemnização a este relativa.

Aliás, a matéria de facto fixada pelas instâncias permitira ainda ampliar a indemnização pela mutilação infligida à A/recorrente, por referência a “dano estético”, independentemente da sua autonomização ou da sua recondução a danos não patrimoniais ou a dano biológico, como se infere da alteração estética, no sentido estrito e comum da noção de beleza, aqui ligada ao movimento natural do corpo, subjacente aos factos provados sob os números 13 e 14 da respetiva espécie.

A A/recorrente perdeu o direito à sua marcha autónoma e natural e “ganhou” a obrigação de se socorrer de um “auxiliar”.

Atenta, pois, a dinâmica da indemnização fixada pelas instâncias, no que respeita ao dano da cicatriz no membro inferior da A, que a 1ª instância reconduziu a dano biológico e que a Relação autonomizou como dano estético, não se vislumbrando fundamento para eliminar a sua indemnização, a sua recondução à indemnização por danos não patrimoniais, determinaria que o valor correspondente à indemnização por danos não patrimoniais fosse aumentado, o que não está em causa nos autos.

A pressuposição de que o dano qualificado pela Relação como “dano estético” poderia ser indemnizado como dano não patrimonial, como mera possibilidade decisória, uma vez que o não foi, não poderá traduzir-se na ausência de reparação indemnizatória desse dano, com substituição da decisão concreta de indemnização desse mesmo dano, por decisão de não indemnização.

Improcedem, pois, a segunda e terceira questões da revista, que assim não poderá deixar de ser negada.


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3. DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando/mantendo o acórdão recorrido

Custas pela Recorrente, que lhes deu causa, nos termos do disposto nos n.º s 1 e 2, do art.º 527.º, do C. P. Civil.

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1. Que até 2011 se encontra criticamente apreciada no trabalho de Maria da Graça Trigo, agora também Juíza Conselheira, ADOPÇÃO DO CONCEITO DE DANO BIOLÓGICO PELO DIREITO PORTUGUÊS, publicado na Homepage da Ordem dos advogados, in https://www.oa.pt/.../%7B5b5e9c22-e6ac-4484-a018- 4b6d10200921%7)

2. Proferidos nos P.º 05A2167, 07B2957, 298/06.0TBSJM.S1, 560/09.0YFLSB, 520/04.8GAVNF.P2.S1, 1737/04.0TBSXL.L1.S1, 1407/13.9TACBR.C1.S1, 589/13.4TBFLG.P1.S1, 3643/13.9TBSTB.E1.S1, 4378/16.6T8VCT.G1.S1, 4378/16.6T8VCT.G1.S1, todos publicados in dgsi.pt.

3. Proferidos nos processos N.º 08A2677 e 704/09.9TBNF.S1, respetivamente, publicados in dgsi.pt.

4. Teresa Lopez, Dano Estético-Responsabilidade Civil – 3ª edição actualizada com o Código Civil de 2002 e Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro-Responsabilidade Civil”, 22ª edição, São Paulo: Saraiva, 2008, p.80, v.7.

5. Traité de La responsabilité Civile en Droit Français”, Paris, Librairie Générale de Droit et de La Jurisprudence.

6. Para além dos acórdãos de 14-10-2008 e de 07-07-2009 também o acórdão de 19-06-2019, proferido no processo 80/11.3TBMNC.G2.S1 e publicado in dgsi.pt, decidiu que a indemnização pelo dano estético é parte integrante da indemnização pelos danos não patrimoniais, mas aceitando a sua autonomização quando se repercute na atividade profissional do lesado, deduzindo-se que nesta situação do dano estético transmutará a sua classificação de danos não patrimonial para dano de natureza patrimonial.