Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4183/16.0T8VNG-P.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: LUIS CORREIA DE MENDONÇA
Descritores: DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
EFEITOS
APREENSÃO
MASSA INSOLVENTE
LIQUIDAÇÃO DE PATRIMÓNIO
PENSÃO
DEVEDOR
CREDOR
PROCESSO EQUITATIVO
PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE
CONSTITUCIONALIDADE
NULIDADE DE SENTENÇA
ERRO DE JULGAMENTO
Data do Acordão: 01/16/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :

I- Os vícios da sentença elencados no artigo 615.º, 1, als. b) e c) CPC são vícios formais, não podendo servir de fundamento para ver reapreciado o julgamento de mérito.


II- Proferida a sentença declaratória da insolvência, procede-se à imediata apreensão dos bens integrantes da massa insolvente, mas não ficam vedadas ulteriores apreensões de bens do devedor, entretanto identificados no decorrer da liquidação.


III- Após a declaração de insolvência, são apreensíveis para a massa insolvente 1/3 dos rendimentos que o devedor, pessoa singular, venha a receber no decurso do processo, não vigorando, entre nós, a regra inversa da exclusão dos bens supervenientes.


IV- Não constitui abuso do processo, na modalidade de venire contra factum proprium, procurar, em vão, suspender a liquidação, e, ulteriormente, requerer a apreensão de novos bens do insolvente.


V- Não viola o artigo 20.º, 4, CRP e os princípios do processo equitativo e do prazo razoável nele consagrados a interpretação do artigo 46.º CIRE no sentido de ser possível apreender a pensão do insolvente, 7 anos após a declaração de insolvência e a assembleia de credores.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 4183/16.0T8VNG.P.P1.S1


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Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


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Os credores AA e BB requereram a apreensão do rendimento do insolvente, CC, até à data em que se mostre finda a liquidação, o que foi indeferido, porquanto «a não ser assim, os processos de insolvência, perdurariam ad aeternum, tendo em conta que o valor dos créditos é elevado, ou o devedor falecesse ou ficasse desempregado, o que contraria, por um lado, os princípios da celeridade subjacente ao processo de insolvência e por outro, dificultaria a reabilitação do falido (artºs. 239º n.ºs 2 e 3, al. b) do CIRE)».


Inconformados, os credores interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do Porto, que revogou a decisão recorrida e a substituiu por outra que decretou que se ordenasse a apreensão para a massa insolvente da parte correspondente até um terço do vencimento ou salário, assim como das prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, até que o processo de insolvência seja encerrado.


Recorre agora o insolvente de revista, cuja minuta conclui da seguinte forma:


1º. Assim, o Tribunal recorrido – art.º 639º n.º 2 al., b) do CPC interpretou disformemente o art.º 46º do CIRE no sentido de após 7 anos do inicio do processo de Insolvência, (declaração e assembleia de credores) os valores da reforma poderem ser apreendidos para M.I.


2º Deveria ter interpretado no sentido de não ser possível após aquelas datas – no sentido do Ac., TRP de 25-01-2011, consultável in dgsi.pt, da Relatora, Maria do Carmo Rodrigues, proc., n.º 191/08.2TBSJM-H.P1: “No processo de insolvência não devem ser penhorados ou apreendidos a favor da massa insolvente, os rendimentos auferidos pelo insolvente (enquanto pessoa singular) no exercício da sua actividade laboral e após a declaração de insolvência, designadamente os salários ou vencimentos mensais do insolvente”.


3º O Tribunal recorrido – art.º 639º n.º 2 al., a) do CPC violou o art.º 615º n.º1 als., b e c) do CPC pois decidiu no Acórdão como o I., beneficiasse de exoneração do passivo restante, quando esse facto é erróneo, o I., não requereu tal benefício.


4º. Este ponto de partida – que o I., beneficia de exoneração do passivo restante – levou à seguinte conclusão:


Nem colhe a eternização do processo para o seu indeferimento, nem inútil a concessão do benefício da exoneração do passivo. A diferença entre activo e passivo é tão díspar que nunca o pagamento do fiduciário com parte do seu rendimento penhorável será alcançável.


E,


5 Essa apreensão também não é incompatível com o instituto da exoneração do passivo restante, porquanto, a apreensão de tais rendimentos a favor da massa insolvente é um efeito automático da sentença declaratória da insolvência e essa apreensão a favor da massa cessa no preciso momento em que se inicia o período de cessão, quando seja requerido o benefício de exoneração do passivo restante por devedor pessoa singular e esse pedido seja liminarmente deferido.(sublinhados nossos).


5º. Mas a verdade é que não foi pedida a exoneração do passivo restante, nem pode ser mais pedida, o que faz a apreensão eterna e vitalícia para o I. Por isso esta interpretação é inaplicável in casu.


6º. Pois, sendo a dívida na casa das centenas de milhar, e o limite decidido no aresto de 2/3 do valor da pensão, o I., vai ser insolvente ad mortem.


7º. A OPINIÃO do art.º 46º n.º1 defendida pelo I., no diapasão do Ac. TRP de 25-01-2011, consultável in dgsi.pt, da Relatora Maria do Carmo Rodrigues, proc., n.º 191/08.2TBSJM-H.P1., preconiza é a tese que melhor protege o escopo do legislador e a CRP, e se compagina com a urgência do processo de insolvência previsto no art.º 9º do CIRE.


8º. De facto, o CIRE, em toda a sua constelação de normas, empurra o intérprete para a celeridade processual num prazo razoável, o que não sucederá caso o processo siga par apreensão de 2/3 da reforma.


9º. Aponta o Ac. do TRC de 06/03/2007 que e foi «intenção do legislador «poupar» o falido do dever de entregar à massa falida os proventos ou rendimentos, entretanto por si auferidos com o seu trabalho, separando-os dos outros meios de garantia patrimonial geral dos credores».


10º. De modo que, o Tribunal recorrido – art.º 639º n.º 2 al., b) do CPC - interpretou disformemente o art.º 149º e 150º do CIRE no sentido de após 7 anos do inicio do processo de Insolvência, (declaração e assembleia de credores) os valores da reforma poderem ser apreendidos para M.I., de modo tempestivo sem que o Tribunal, M.P., A.I. e credores o tenham decidido, promovido ou requerido.


11º. Interpretação que se coaduna mais ao objectivo do processo de insolvência e ao facto de ser processo urgente, vd., arts. 1º e 9º do CIRE.


12º. O comportamento processual dos Credores apelantes constitui abuso de Direito como venire contra factum proprium positivado no art.º 334º do CC.


13º. De facto, foram os próprios recorridos que causaram a demora no processo – iniciado em 2016 e ainda bem pendente e sem fim à vista – e agora querem ser ressarcidos de má-fé pelo atraso que causaram.


14º. Claramente está demonstrada a má-fé pois foram sancionados processualmente pela sua actuação – Apenso N. É um Direito exercido clamorosamente ofensivo da justiça – Manuel de Andrade in Teoria Geral das Obrigações , pág., 63.


15º. Em vez de actuarem com devida calma – prejudicaram-se, pois, agora a MI não tem o património suficiente para pagar o seu crédito e até o I., levar algum remanescente para casa.


16º. Visto que, em vigor a nova lei das remunerações variáveis dos AI’S – lei 9/2022 -onde os Administradores de Insolvência passaram a ser bem mais remunerados – com aplicação no presente processo e tendo preferência no seu pagamento, obstruindo o próprio ressarcimento de créditos, enquanto credores.


17º. O requisito de actuação manifesta está demonstrado por decisão de Tribunal – apenso N.


18º. O I considera que é um Direito exercido clamorosamente ofensivo da justiça – Manuel de Andrade in Teoria Geral das Obrigações, pág., 63. Que até poderá conceder direito o que se invoca, à legitimidade de oposição, Vaz Serra, R.L.J, ano 107, pág., 25.


19º. Foi invocado este abuso de Direito nas nossas contra-alegações, pelo que este requisito também está cumprido.


Questões de constitucionalidades


De modo, distinto, adequado, claro para o Tribunal gerando um dever específico de fundamentação nos termos do art.º 205º da CRP.


O Recorrido renova a indicação das seguintes inconstitucionalidades.


20ª. O presente pedido de apreensão das pensões do I., por parte dos apelantes a ser atribuído neste momento, e na justa medida que a CRP consagra um Direito a uma decisão em tempo útil, razoável, dentro de um processo equitativo, 20º n.º 1 e 4 da CRP, vai transformar o presente processo urgente (mas na realidade muito lento e muito pouco urgente, pendente desde 2016) num processo vitalício, violando os direitos do I. Para além dos arts da CRP n.º 25º n.º1, art.º 26º n.º1 e 4.


21ª. Cautelarmente, argui-se a interpretação do artigo 46º, do CIRE quando interpretado no sentido de ser possível apreender as pensões do I., bem após a declaração de insolvência e assembleia de credores, inconstitucional por violar o direito a um processo equitativo, e num prazo razoável. Vd., Art.º 20º n.º4 da CRP.


22ª. Considerando que o I não tem beneficio de exoneração de passivo restante, e nem poder ser tempestivamente requerido, o recorrente será insolvente ad aeternum, até à morte o que cria uma pena cível indeterminada e vitalícia, violando os direitos liberdades e garantias do I., sendo igualmente violador da CRP.


23ª. Em sede segunda Dimensão Constitucional – o aqui recorrente requer Acórdão expresso sobre se a combinação e interpretação normativa dos arts.º 149º e 150º do CIRE – em sentido de autorizar judicialmente – a apreensão após a 7 anos a declaração de insolvência da pensão de reforma, do I, será inconstitucional por violação do direito a um processo justo e equitativo, art.º 20º n.º4 da CRP, 25º n.º1 e 26º n.º4 da CRP, pois a restrição de capacidade civil do I., iria ser restringida sem prazo e fim à vista.


Termos em que se requer a Exas que revoguem o douto Acórdão e interpretando as normas em crise como interpretado pelo I., e não autorizem a apreensão da pensão neste momento, considerando que os apelantes actuaram com abuso de Direito.


Não foram oferecidas contra-alegações.


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São as seguintes as questões decidendas:


1. Da nulidade do acórdão ex artigo 615.º, 1, alíneas b) e c), CPC.


2. Da extemporaneidade do pedido de apreensão da pensão do insolvente.


3. Da não apreensibilidade da pensão auferida pelo recorrente.


4. Do abuso de Direito de os credores requererem a apreensão da pensão do insolvente, na modalidade de venire contra factum proprium


5. Das inconstitucionalidades.


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São os seguintes os enunciados de dados de facto considerados assentes no acórdão recorrido:


1. Em 8.9.2016, o anterior administrador da insolvência requereu a abertura do apenso de apreensão de bens (Ap. B).


2. O referido administrador juntou ao processo auto de apreensão de bens em duas verbas constituídas por dois imóveis pertencentes ao insolvente efectuadas em 23.08.2016.


3. Durante a pendência do processo do apenso B nenhum credor nem o administrador da insolvência requereu a apreensão do rendimento mensal do insolvente, nem tal foi ordenado.


4. Por despacho proferido em 25.8.2022 foi tal apenso arquivado por se desconhecer a existência de quaisquer outros bens e/ou direitos a apreender para a massa insolvente, além dos já apreendidos.


5. Foi criado apenso J de liquidação de bens.


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1. Da nulidade do acórdão ex artigo 615.º,1, als. b) e c), CPC


Entende o recorrente que o acórdão recorrido violou o artigo 615º, 1, alíneas b) e c) do CPC, pois decidiu como se o recorrente beneficiasse de exoneração do passivo restante, quando esse facto é erróneo, já que o insolvente não requereu tal benefício.


Não assiste razão ao recorrente. Todas as nulidades da sentença elencadas no citado preceito são nulidades formais, isto é, errores in procedendo.


Ora, os vícios que o recorrente aponta ao acórdão recorrido são erros formais (errores in judicando), ou seja, falta de fundamentação da decisão, que não existe (basta ler a decisão impugnada) e a ininteligibilidade da mesma, que também se não se verifica, dada a congruência e inteligibilidade do acórdão: este limita-se a afastar os argumentos avançados pelo primeiro grau para indeferir a apreensão, designadamente a eternização do processo de insolvência e incompatibilidade dessa apreensão com o instituto da exoneração do passivo restante.


Se este juízo é ou não correto é já questão substancial (error in judicando) não sindicável no âmbito do citado preceito processual.


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2. Da extemporaneidade do pedido de apreensão da pensão do insolvente-


Alega o recorrente: «Como afirma o acórdão Ac. TRP de 25-01-2011, o momento da apreensão é a declaração de insolvência ou na Assembleia de credores, vd., arts.º 149º e 150º do CIRE.


O AI., no caso em apreço, não pediu o arrolamento das pensões, seja que motivo foi, ou porque o activo era suficiente para pagar as dívidas ou porque não considera as pensões bens, a verdade é que não é mais de 7 anos após este momento, consideramos extemporâneo face ao escopo do processo de insolvência e ao facto de ser processo urgente, vd., arts. 1º e º do CIRE».


O recorrente não tem razão. Não obstante o artigo 149.º, 1 do CIRE (serão do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas os artigos ulteriormente citados sem diferente menção) estabelecer que, proferida a sentença declaratória da insolvência, procede-se à imediata apreensão dos bens integrantes da massa insolvente, não estão vedadas ulteriores apreensões de bens do devedor, entretanto localizados no decorrer da liquidação, como aliás se infere do preceituado no artigo 152.º, 3, e que tal apreensão seja feita a requerimento dos credores.


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3. Da não apreensibilidade da pensão auferida pelo recorrente.


Uma série de efeitos da declaração da insolvência investe a legitimação do insolvente para dispor dos seus bens.


Na sentença que declarar a insolvência, o juiz decreta a apreensão, para imediata entrega ao administrador da insolvência, de todos os seus bens (artigo 36.º, 1, al. g)), devendo esse administrador diligenciar no sentido de os bens lhe serem imediatamente entregues (artigo 150.º, 1).


A declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente (artigo 81.º 1, CIRE).


Trata-se do chamado desapossamento dos bens do insolvente, devendo entender-se por bens, em sentido lato, toda a situação jurídica activa de que o devedor seja titular.


A partir daquela declaração, e durante todo o processo, os referidos poderes pertencerão a um administrador da insolvência, em ordem a «destinar» o património do devedor à satisfação dos credores, dando assim actuação ao princípio geral constante do artigo 601.º CC, segundo o qual pelo cumprimento das obrigações respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora.


O artigo 46.º, 1, do CIRE é terminante: a massa insolvente abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo.


O nosso ordenamento adopta assim a solução que mais tutela o interesse dos credores, diferindo da de outros importantes ordenamentos (pense-se no ordenamento alemão ou dos Estados Unidos da América), onde vigora a regra inversa da exclusão dos bens supervenientes, que continuam na disponibilidade do devedor, com o fim de facilitar uma mais rápida reinserção do insolvente no contexto produtivo. É importante destacar este traço do nosso sistema, descurado nas instâncias, e pelo recorrente, para melhor enquadrar a solução do caso em exame.


Excluem-se da apreensão os bens absoluta ou relativamente impenhoráveis, salvo quanto a estes, se o devedor voluntariamente os apresentar (n.2 do citado artigo 46.º).


Ora, no caso sujeito, como se refere no Ac. STJ de 30.06.2011, Proc. 191/08.2TBJJM.H.P1.S1, www.dgsi.pt, « a parte penhorável de um vencimento não é um bem relativamente impenhorável. É um bem penhorável. A qualificação de um bem como relativamente impenhorável não resulta apenas da natureza do mesmo bem, como pretende a Relação, mas desta conjugada com uma sua quota. Daqui decorre que, atendendo a que a impenhorabilidade relativa de um vencimento é de 2 terços – [art.º 738, 1 CPC, a actualização é nossa]– é a esta parte que se refere o nº 2 do citado art.º 46º. E só integrará a massa insolvente se o insolvente quiser.
O restante é um bem penhorável que deve obrigatoriamente fazer parte da referida massa, conforme o nº 1 do art.º 46º.
Aliás, é esclarecedora a expressão utilizada pelo legislador a fazer a dita ressalva no citado nº 2: “os bens isentos de penhora».



Como decorre do artigo 738.º, 1 CPC o regime de impenhorabilidade aplicável aos vencimentos é extensivo às pensões ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado.


À objecção de que, não tendo sido pedida a exoneração do passivo restante e já não podendo sê-lo, o devedor ficaria insolvente ad aeternum, atendendo ao elevado montante da dívida, pode contrapor-se o argumento de que o credor tem o direito de exigir o cumprimento da obrigação e de executar o património do devedor (artigo 817.º CC) e que «o processo de insolvência não vive para sempre» (Soveral Martins; cfr. artigo 230.º).


Também não se vislumbra em que medida a apreensão de 1/3 da pensão do insolvente compromete a urgência do processo, mais do que qualquer outro acto de apreensão.


Por outro lado, a factispécie do artigo 84.º, a qual prevê a atribuição pela massa insolvente de um subsídio alimentar ao devedor, nos casos em que este não pode angariar pelo seu trabalho meios de subsistência e deles carece em absoluto (v.g. porque vivia de rendimentos não laborais que deixou de ter), não estabelece com a factispécie do artigo 64.º qualquer relação regra-excepcão, prevendo situação diversa, animada pela intenção de assegurar que o devedor insolvente tenha condições mínimas de existência, assim contribuindo para a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana do artigo 1.º da CRP.


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4. Do abuso de Direito de os credores requererem a apreensão da pensão do insolvente, na modalidade de venire contra factum proprium


Considera o recorrente que estamos perante uma hipótese de indevido exercício do direito por banda dos credores: «ao atrasarem os autos, entrou em vigor a nova lei das remunerações variáveis – lei 9/2022 - onde os Administradores de Insolvência passaram a ser bem mais remunerados – com aplicação no presente processo e tendo preferência no seu pagamento, fomentando e impedindo o próprio ressarcimento de créditos, enquanto credores e impedindo alguma devolução do I., do remanescente.


Ou seja, se isto não é má-fé e abuso de Direito, com prejuízo para o I., passando de uma situação em que levava algum dinheiro para casa para uma situação de I., vitalício, sem fim à vista…


É um caso de Escola de venire contra factum proprium, com má-fé».


O tribunal não acompanha esta tese. O factum proprium a que se refere o recorrente não é propriamente a inacção dos credores, o que conduziria a situação para o campo da supressio, mas o terem provocado atraso no processo, designadamente instaurando acção de separação de bens da massa insolvente com o intuito de suspender a suspensão da liquidação; o venire é requererem agora, num contexto legal mais gravoso, em reacção contra a conduta anterior e ao cabo de 7 anos, a apreensão da pensão do devedor.


Não cremos que se possa ver nesta actuação algo de ilegítimo, não podendo, bem entendido, responsabilizar-se os credores pela alteração do quadro legislativo aplicável aos administradores da insolvência.


O venire implica uma situação de confiança e um investimento nessa situação por parte do confiante, hipoteticamente defraudado depois por um pedido supostamente contraditório e ilegítimo de apreensão por parte dos credores.


Ora nada disto se verifica no caso, tão-pouco se vislumbrando na conduta dos recorridos um acto emulativo, com o propósito de prejudicar o insolvente.


E não se diga que com esta actuação os credores estão a contrariar o sentido da decisão proferida no apenso N, pois aí sancionou-se o que então se considerou ser um uso indevido do processo, por tentativa ilegítima de se obter a suspensão da liquidação, e aqui diferentemente pretende-se a continuação da apreensão de novos bens.


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5. Das inconstitucionalidades


Os tribunais portugueses, seja qual for a sua categoria, não podem aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou princípios nela consagrados (artigo 204.º CRP), o que significa que todos os tribunais exercem a fiscalização da constitucionalidade das normas nos «feitos submetidos a julgamento» (fiscalização concreta).


Resulta que ninguém pode dirigir-se a tribunal para pedir a declaração de inconstitucionalidade de uma norma em abstracto, requerer, como faz o recorrente, «acórdão expresso sobre se a combinação e interpretação normativa dos arts.º 149º e 150º do CIRE – em sentido de autorizar judicialmente – a apreensão após 7 anos a declaração de insolvência da pensão de reforma, do I, será inconstitucional por violação do direito a um processo justo e equitativo, art.º 20º n.º4 da CRP, 25º n.º1 e 26º n.º4 da CRP».


O tribunal recorrido limitou-se a aplicar ao caso o artigo 46º e só sobre esta norma se deve debruçar este terceiro grau respondendo à questão consistente em saber se a interpretação da norma no sentido de ser possível apreender as pensões do insolvente, 7 anos após a declaração de insolvência e assembleia de credores, é inconstitucional, por violar o direito a um processo equitativo, e num prazo razoável.


Não o cremos. O artigo 20.º, 4 CRP consagra os princípios do processo equitativo e de prazo razoável.


Processo equitativo e decisão em prazo razoável não são princípios contrapostos. O princípio do processo equitativo inclui o do prazo razoável a par de outros princípios, como o contraditório, a igualdade das partes e a motivação das decisões.


A opinio iuris reconhece que «a Constituição não indica os parâmetros de concretização do conceito de prazo razoável» (Rui Medeiros). O Tribunal Constitucional, por sua vez, tem sublinhado que o prazo razoável tem de ser compatibilizado com as exigências de um processo equitativo e proporcionado à complexidade desse processo (Acórdãos n.º 212/00 e 248/02).


O magistrado, neste quadro, deve escolher, entre as diversas interpretações possíveis e correctas da norma processual, aquela que mais se concilia com o prazo razoável e evitar praticar actos inúteis ou supérfluos. Mas não pode, bem entendido, restringir direitos ou amputar a estrutura e desenvolvimento normal do processo.


A regulamentação em abstracto do iter procedimental pertence ao legislador ordinário, o qual é também destinatário do princípio constitucional em exame.


Ora a interpretação feita do artigo 46.º, com o sentido supra referido, não viola o princípio do prazo razoável, porquanto estando legalmente prevista a apreensão da pensão do insolvente, logo após a declaração de insolvência ou em momento ulterior, desde que no decurso do processo, a prática do acto não se mostra supérfluo nem inútil, até porque não se pode aceitar que a aceleração do processo se faça à custa da compressão dos meios de tutela postos á disposição das partes (cfr. Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, 23/04/1987, caso Erkner e Hofhauer c. Áustria).


Improcede, por isso, o recurso.
Vencido, é o recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 527º, 1 e 2, do Código de Processo Civil).



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Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, e condena-se o recorrente no pagamento das custas respectivas.


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Lisboa, 16 de Janeiro de 2024


Luís Correia de Mendonça (Relator)


A. Barateiro Martins


Maria Olinda Garcia