Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 7.ª SECÇÃO | ||
Relator: | FERREIRA LOPES | ||
Descritores: | PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS LEGITIMIDADE ADJETIVA INTERESSE EM AGIR SOCIEDADE COMERCIAL AQUISIÇÃO TENDENTE AO DOMÍNIO TOTAL CAPITAL SOCIAL VALOR DA CAUSA DECAIMENTO LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ | ||
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Data do Acordão: | 10/27/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA | ||
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Sumário : | I - A legitimidade e o interesse em agir, sendo ambos pressupostos processuais, embora o último não previsto na lei, mas reconhecido na doutrina e jurisprudência, não se confundem: ser parte legítima significa que se é titular da relação jurídica, tal como o autor a delineou; já no interesse em agir está em causa a necessidade de recurso aos tribunais para tutela de um direito; II - Uma sociedade comercial não deixa de ser parte legítima por o seu capital social ser adquirido por outra; a mudança da estrutura accionista não afecta a sua identidade jurídica. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça 323 Crédito Instituição Financeira de Crédito, S.A., intentou acção declarativa comum contra AA, BB e CC, pedindo: a) Que seja reconhecido o seu direito de crédito sobre o 1º e 2ª RR, no valor global de €135.886,36, acrescido de juros e respectivo imposto de selo, às taxas legais em vigor, até efectivo e integral pagamento; b) Seja condenada a 3ª Ré a restituir, ao abrigo do art. 616º do Cód. Civil, ao património dos 1ºs RR o imóvel infra identificado, apenas em garantia do cumprimento do direito do crédito reconhecido ao Autor. Subsidiariamente, c) Seja declarada a nulidade, por simulação absoluta, da doação do imóvel reconhecendo-se que pertence aos 1ºs RR. Para tanto alegou, em síntese, que: Os dois primeiros réus deram aval a duas Livranças, emitidas em 16.08.2000, nos valores de: € 49.839,2 e € 35.769,24, com vencimento em 25/11/2004, subscritas pela sociedade “R..., Lda., a favor do A, as quais titulam o montante de duas operações de financiamento que o autor concedeu à sociedade subscritora, no âmbito da atividade bancária a que se dedica, mais propriamente os contratos nºs 68068 e 68067. A sociedade subscritora foi dissolvida e a quantia mutuada não foi paga. Em 29 de Abril de 2005, foi instaurado o processo executivo nº 8509/05...., contra AA e BB e os avalistas DD e EE, a que as ditas livranças serviram de título e que corre termos no Juízo de Execução .... No âmbito do referido processo executivo não se logrou a penhora de imóveis, móveis materiais, ou saldos bancários. Em 14.03.2008 foram penhoradas as quotas dos réus AA e BB na sociedade “P..., Lda.”, cada uma com o valor nominal de € 28.000,00, mas que até à data ainda não foram vendidas. Entretanto, em 11 de Agosto de 2014, os primeiros réus doaram à 3ª ré, sua filha, com reserva a seu favor, do direito de uso e habitação simultâneo e vitalício, o prédio urbano correspondente a edifício de rés-do-chão e 1º andar, para habitação, sito na Quinta ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...70, com o intuito de o subtraírem à possibilidade de execução para pagamento da dívida, já que não quiseram transmitir qualquer direito de propriedade para a filha, nem esta o quis adquirir, visando a doação, apenas enganar os seus credores, em especial o autor, por ser o seu credor mais expressivo. Os réus contestaram. Os 1ºs RR reconheceram estar em dívida perante a Autora, mas não pelo valor por esta indicado, alegando que, aquando da doação, por reporte à quantia garantida por hipoteca, estava em dívida € 90.671, 26. Impugnaram os demais factos, dizendo não se verificaram os pressupostos da acção pauliana. Concluem pela improcedência da acção. * Realizou-se audiência final e, subsequentemente, foi proferida sentença que, na parcial procedência da acção, decidiu: a) Reconhecer o direito de crédito do A. sobre os réus, no montante de € 64.997,71, acrescido de juros de mora vencidos nos termos e à taxa anteriormente assinalados e bem assim do imposto de selo devido, bem como nos vincendos até integral pagamento. b) Declarar a ineficácia da doação da nua propriedade do prédio urbano, correspondente a edifício de rés-do-chão e 1º andar, para habitação, sito na Quinta ..., lote 98descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...70, freguesia ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artº ...84, em relação ao A., pelo crédito acima referido”. Da sentença apelaram ambas as partes. A Relação de Évora, por acórdão de 10.03.2022, decidiu: - Julgar totalmente improcedente o recurso dos Réus; - Julgar procedente o recurso da Autora e, em consequência, alterou a sentença nos seguintes termos: “Reconhece-se ser a Autora titular de um crédito sobre os Réus AA e BB no valor de 124.681,40, dos quais € 85.608,45 de capital e € 36.777,42 de juros vencidos até à data da prolação da sentença recorrida (25 de Agosto de 2021) e vincendos desde então, à taxa legal de 4%, e até integral pagamento, assim como do valor de € 2.295,53 de imposto de selo; Declara-se ineficaz em relação à Autora o negócio jurídico titulado pela escritura pública outorgada em 11 de Agosto de 2014, intitulada de DOAÇÃO mediante a qual os réus AA e BB, no valor atribuído de €122.450,00 declararam doar à sua filha CC, por conta das suas quotas disponíveis, com reserva a seu favor do respetivo direito de uso e habitação simultâneo e vitalício, o prédio urbano, correspondente a edifício de rés-do-chão e 1º andar, para habitação, sito na Quinta ..., lote 98descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...70, freguesia ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artº ...84, reconhecendo-se à Autora o direito de o executar no património dos Réus, nos termos do art.º 616º, nº1 do Código Civil, para satisfação do seu crédito”. Esta decisão assentou no seguinte acervo factual: “1. DD, EE; AA e BB, deram o aval às Livranças cujas cópias estão juntas a fls. 21 vº a 24, emitidas em 16.08.2000, nos valores de: € 49.839,21 (quarenta e nove mil, oitocentos e trinta e nove euros e vinte e um cêntimos) e € 35.769,24 (trinta e cinco mil, setecentos e sessenta e nove euros e vinte e quatro cêntimos), com vencimento em 25/11/2004, subscritas pela sociedade “R..., Lda.” , a favor do Banco 1..., SA. 2. As referidas livranças titulam o montante de 2 (duas) operações de financiamento que o autor concedeu à sociedade subscritora, no âmbito da atividade bancária a que se dedica. 3. Apresentadas a pagamento nas datas do seu vencimento, as livranças em questão não foram pagas então. nem posteriormente, em termos voluntários, nomeadamente pelo 1º ou 2ª réus. 4. As ditas livranças serviram de título executivo na ação executiva instaurada contra os réus AA e BB e contra os avalistas DD e EE, que corre termos no Juízo de Execução ... - Juiz ... – do Tribunal Judicial da Comarca ..., sob o nº 8509/05..... 5. A 31 de Agosto de 2007, os réus AA e BB foram citados para a ação executiva acima referida. 6. A 25 de Junho de 2007 a sociedade “R..., Lda.” foi declarada dissolvida. 7. No procedimento administrativo que levou à dissolução da sociedade, os sócios da “R..., Lda.”, não comunicaram a existência de dívidas da sociedade, nomeadamente perante o agora autor “321 Crédito”. 8. Na Conservatória do Registo Predial ... encontra-se descrito sob o nº ...70, freguesia ... e inscrito na matriz predial urbana sob o art. ...84, o prédio urbano, correspondente a edifício de rés-do-chão e 1º andar, para habitação, sito na Quinta ..., no qual se inscrita pela ap. ...76, de 15.09.2014, a respetiva doação, sendo sujeito ativo CC (menor) e sujeitos passivos BB e AA. 9. Pela Ap. pela ap. ...77, de 15.09.2014 está registada a Reserva em Doação do Direito de Uso e Habitação”, sendo sujeitos ativos BB e AA e sujeito passivo CC. 10. Pela ap. ...9 de 2001/12/19, encontrava-se registada no antedito imóvel, hipoteca constituída a favor da Caixa Económica ..., em garantia do capital, originalmente, mutuado de € 149.630,37 (cento e quarenta e nove mil, seiscentos e trinta euros e trinta e sete cêntimos), 11. A A. teve anteriormente como firma “Banco 1..., SA.”. 12. No dia 11 de Agosto de 2014, foi celebrada escritura publica intitulada de DOAÇÃO mediante a qual os réus AA e BB, no valor atribuído de €122.450,00 declararam doar à sua filha CC, por conta das suas quotas disponíveis, com reserva a seu favor do respetivo direito de uso e habitação simultâneo e vitalício, o prédio urbano, correspondente a edifício de rés-do-chão e 1º andar, para habitação, sito na Quinta ..., lote 98descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...70, freguesia ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artº ...84.
13. CC, é filha dos 1º e 2º réus. 14. Em pesquisa realizada pelo SE no âmbito do processo executivo acima aludido, em 08.05.2014, apurou-se que a Ré BB era proprietária de um veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-..-ZL, da marca ..., modelo ... e que o réu AA é proprietário do veículo ligeiro de mercadorias XL-..-... 15. O imóvel acima referido tem, de acordo com a avaliação efetuada para efeitos do imposto municipal sobre imóveis, em 2017, o valor de € 252.288,33. 16. No âmbito do processo executivo não foi até à data possível penhorar imóveis, bens móveis materiais, nem saldos bancários. 17. Em 14.03,2008 foram penhoradas as quotas dos réus AA e BB relativas à sociedade “P..., Lda.”, cada uma com o valor nominal de € 28.000,00. 18. A quota da ré BB esteva em fase de venda por negociação particular, com encerramento previsto para 06.07.2021. 19. Naquele âmbito está também em curso a penhora regular do vencimento do executado DD. 20. No âmbito do processo executivo, em 26.11.2020, havia sido recuperada a importância de € 23. 878,70, fruto de penhoras que incidiram sobre o vencimento e o crédito de IRS referente ao ano de 2019 de DD e do crédito de IRS de 2013 do réu AA (penhorado em 12.06.2014), sendo que € 3.267,96 saíram precípuos para pagamento das despesas. 21. Os réus AA e BB tinham perfeito conhecimento que, ao retirarem da sua esfera patrimonial o imóvel referido, estavam a impedir que atuais e futuros credores pudessem ver satisfeitos os seus créditos. 22. Foi precisamente esse o intuito e objetivo dos réus, isto é, prejudicar os seus credores, designadamente o autor. 23. Após a doação, os réus AA e BB continuaram a pagar o imposto municipal de imóveis relativo ao imóvel doado. 24. Em data imediatamente anterior a 11.08.2014, os avalistas DD e EE não possuíam qualquer bem sujeito a registo, nomeadamente imóveis ou veículos automóveis, nem qualquer outro suscetível de penhora.
25. A ré CC nasceu no dia .../.../1997. 26. A doação em causa deixou os réus AA e BB sem quaisquer outros bens suscetíveis de satisfazer o direito de crédito do autor, para além dos indicados nos pontos 14, 17 e 20. 27. Por reporte à quantia garantida por hipoteca, à data de 26.08.2014, estava em dívida € 90.671, 26.”. * Inconformado, o Réu AA interpôs recurso de revista que apelidou de excepcional, de cujas conclusões se retira serem os seguintes os fundamentos da revista: - encontram-se reunidos os pressupostos da revista excepcional, atenta a relevância das seguintes questões jurídicas (art. 672º, nº1, alínea a) do CPCivil): - o segmento decisório do acórdão da Relação que julgou não sofrer a sentença de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do art.615º, nº1 d) do CPC; - A questão se saber de a aquisição do capital social da Autora pelo Banco 2... constitui ou não, um facto notório (art. 412º do CPC); - Legitimidade da Autora. B – Saber se a Autora é parte legítima, na vertente “interesse em agir” (sic); C – Alteração da matéria de facto pela Relação. Contra alegou a Autora pugnando pela improcedência da revista e a condenação dos Recorrentes como litigantes de má fé, nos termos do art. 572º, nºs 1 e 2, al. d) do CPC, por manifesto falta de fundamento do recurso, cujo objectivo, no seu entender, é apenas o de protelar o trânsito da decisão. Colhidos os vistos, cumpre decidir. * Liminarmente importa saber se do acórdão recorrido cabe revista excepcional. Estando em causa um acórdão da Relação proferido sobre decisão da 1ª instância que conheceu do mérito da causa, é incontroverso que nos encontramos perante decisão compreendida no âmbito do nº1 do art. 671º do Código de Processo Civil, passível de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, desde que verificados, bem entendidos, os pressupostos gerais de recorribilidade relacionados com o valor da causa e da sucumbência, legitimidade e tempestividade (arts. 629º, 631º e 638º). No entanto, a admissibilidade do recurso de revista defronta-se com o obstáculo da dupla conforme nos termos do nº3 do art. 671º: salvo os casos em que o recurso é sempre admissível, o que remete para o nº2 do art. 629º, “não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.” É o art. 672º que prevê a revista excepcional, cujo nº1 dispõe o seguinte: “Excepcionalmente, cabe recurso de revista do acórdão da Relação referido no nº3 do artigo anterior quando: a) Esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua referência jurídica, seja claramente necessária para uma melhora aplicação do direito; b) Estejam em causa interesses de particular relevância social; c) O acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.” Cabe à formação a que alude o nº3 do citado artigo 672º a decisão quanto à verificação dos pressupostos referidos no nº1. Resulta das normas citadas, e assim tem sido entendido, que a inovação em que se traduziu a revista excepcional se destinou a colmatar ou a contrabalançar a (também recém-introduzida) inadmissibilidade da revista resultante da chamada “dupla conforme” (Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, II, pag. 541). No caso vertente, não há patentemente uma situação de conformidade decisória que obrigue os Recorrentes a recorrerem à revista excepcional. O acórdão recorrido não confirmou a sentença de 1ª instância; pelo contrário, alterou-a. A sentença reconheceu que a Autora é titular de um crédito sobre os RR AA e BB no valor de €64.997,71 mais juros. Já a Relação entendeu que o crédito ascende a €124.681,40. Não existindo a conformidade decisória entre as decisões das instâncias, não se verifica obstáculo à revista regra – relativamente à qual se verificam os pressupostos gerais de recorribilidade – não tendo a parte vencida de recorrer ao mecanismo excepcional previsto no art. 672º do CPCivil, não havendo, pois, lugar à remessa dos autos à formação para os efeitos do nº3 do art. 672º. * Se a Autora é parte legítima, e dispõe de interesse em agir. Perpassa pela alegação do Recorrente alguma confusão sobre estes conceitos, importando, pois, clarificar o que significam exactamente, não sendo o chamado interesse em agir uma modalidade de ilegitimidade, como por vezes parece resultar de alegação recursiva. Em ambos os casos estamos perante pressupostos processuais, que, todavia, respeitam a realidades distintas. A noção de legitimidade consta do artigo 30º do NCPCivil segundo o qual: 1. O autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer. 2. O interesse em agir exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha. 3. Na falta de indicação em contrário, são considerados titulares de interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor. A disposição citada consagra uma posição que numa controvérsia antiga foi defendida pelo Professor Barbosa de Magalhães, e que era dominante na jurisprudência, segundo a qual a legitimidade processual deve ser aferida tendo em consideração apenas o pedido e a causa de pedir, tal como apresentados pelo autor, independentemente da prova dos factos articulados em fundamento do pedido, matéria que respeitará à legitimidade substantiva. (cf., por todos, o Acórdão do STJ de 18.10.2018, P. 5297/12). A lei qualifica a ilegitimidade como excepção dilatória, de conhecimento oficioso (arts. 577º/e) e 578º do CPC); quando o juiz considere ilegítima alguma das partes, deve abster-se de conhecer do pedido e absolver o réu da instância. (ar. 278º, nº1, d)). O chamado “interesse em agir” constitui também um pressuposto processual, não previsto expressamente na lei, mas pacificamente aceite na doutrina e na jurisprudência. Nas palavras de Antunes Varela, “o interesse em agir consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar a acção; não se exigindo uma necessidade absoluta, terá de haver uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção” (Manual de Processo Civil, pag. 170/171).
No mesmo sentido ensina Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pag. 79, “o direito de agir, também chamado interesse processual, “consiste em o direito de o demandante estar carecido de tutela judicial. É o interesse em utilizar a arma judiciária – em recorrer ao processo.” Na jurisprudência, reconheceram a utilidade do pressuposto interesse em agir, entre outros, os Acórdãos do STJ de 06.10.2016, P. 1946/09, de 19/12/2018, P. 742/16 e de 09.122021, P. 225/20. Como dissemos os dois conceitos não se confundem. Esclarece Miguel Teixeira de Sousa, Reflexões sobre a legitimidade das partes em processo civil, CDP, nº1, 2003, p. 6 e ss: “O interesse na tutela (a que alude o nº1 do art. 26º (do anterior CPC, que corresponde ao actual art. 30º, nº1), não se confunde com o interesse processual ou interesse em agir. A parte possui um interesse na tutela sempre que tenha um direito que deva ser defendido ou acautelado, mas o interesse processual ou interesse em agir só existe quando a parte puder retirar alguma utilidade da tutela jurisdicional requerida.” A mesma ideia é reiterada na anotação ao art. 30º do Código de Processo Civil anotado, I, de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa: “A legitimidade processual não se confunde com o interesse em agir, reportando-se este a situações que careçam objectivamente de uma resolução judicial que ponha cobro a um conflito de interesses ou que tutele interesses juridicamente relevantes, sempre que os efeitos não possam ser alcançados com a mesma segurança por meios extrajudiciais.” No caso em apreço, estamos perante uma acção de impugnação pauliana – um meio de protecção do património enquanto garante do cumprimento das obrigações do seu titular – prevista nos arts. 610º a 618º do Cód. Civil – sendo seus pressupostos: a) a existência de um crédito; b) a prática, pelo devedor, de um acto que não seja de natureza pessoal, que provoque para o credor um prejuízo (a impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade); c) a anterioridade do crédito relativamente ao acto ou, se o crédito for posterior, ter sido o acto dolosamente praticado com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor. Alegou a Autora, e provou, ter um crédito sobre os 1ªs RR por ser titular de uma livrança por eles avalizada, que estão, por isso, obrigados ao pagamento da mesma (art. 30º e 77º da Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças). Mais alegaram que os 1ºs RR fizeram escritura de doação de um imóvel de que eram donos à 3ª Ré, sua filha, e que este acto, diminuindo a garantia patrimonial do seu crédito, prejudica a Autora. Na contestação os RR não suscitaram nem a ilegitimidade, nem a falta de interesse em agir da Autora – que manifestamente não se verificam – pelo que a sentença de 1ª instância não conheceu daquelas excepções. Não tendo os RR excepcionado a ilegitimidade ou a falta de interesse em agir da Autora, não faz sentido acusar a sentença de nulidade por omissão de pronúncia (art. 615º, nº1, d) do CPC), pois que esta causa de nulidade só existe se na sentença o juiz deixar de resolver uma ou mais questões que as partes tenham submetido à sua apreciação (art. 608º/2 do CPC). Bem decidiu, pois, o acórdão recorrido quando entendeu que “a sentença não omitiu pronúncia sobre uma excepção, uma vez que a mesma não foi deduzida e, por consequência, não enferma da nulidade a que alude a alínea d) do nº1 do art.º 615º do CPC. A imputação ao acórdão recorrido de nulidade por omissão de pronúncia é, assim, manifestamente improcedente. * Se a Autora é parte legítima. Em sede de apelação, vieram os RR sustentar a ilegitimidade da Autora fundamentada no facto de o capital social desta ter sido adquirido pelo Banco 2..., que dizem ser um facto notório que não carece de prova nem de alegação nos termos do art. 412º do CPC. Sobre esta questão pronunciou-se o acórdão recorrido nos seguintes termos: “….o facto em questão não é, a nosso ver, um facto notório. A “notoriedade” a que alude o nº1 do art.º 412º do CPC conexiona-se com a circunstância de tais factos serem do “conhecimento geral”, ou seja, abrange «tanto aquilo que é geralmente sabido, como aquilo que é de per si evidente». Não basta, assim, qualquer conhecimento; é indispensável um conhecimento de tal modo extenso, isto é, elevado a tal grau da difusão que o facto apareça, por assim dizer, revestido do carácter de certeza. A referida aquisição do capital social da Autora por parte do Banco 2... não é um facto susceptível de ser conhecido, como tal, pelo juiz, colocado na posição do cidadão comum, regularmente informado. Mesmo que assim não fosse, nem por isso, a Autora deixaria de ser parte legítima: a aquisição do seu capital social por banda de outra sociedade mantém incólume a sua identidade jurídica. Com efeito, o meio primordial de aquisição das empresas efectiva-se através da compra e venda das participações sociais de controlo da sociedade que a detém. Por conseguinte, o que se altera apenas com a alienação das participações sociais é a identidade dos seus titulares; não a da sociedade. Improcede, portanto, sem necessidade de ulteriores considerações, a totalidade do recurso dos Réus.” No recurso, os Recorrentes insistem na tese da ilegitimidade da Autora, conforme se extrai do teor das conclusões 48 a 55, que se transcrevem: “48. o Banco 2..., adquiriu 100% do capital social da A., entendemos enquadrar tal aquisição no vertido no art.º 489.º, n.º 1 Cód Soc. Comerciais, que estabelece o regime das sociedades em relação de domínio total superveniente porquanto nesta situação a sociedade dominante – Banco 2...- adquiriu posteriormente a totalidade das participações sociais da A. 49. Da redação do aludido preceito, na parte em que estabelece que a sociedade que, diretamente, domine totalmente uma outra sociedade, por não haver outros sócios, forma um grupo com esta última, por força da lei 50. Tais matérias substantivas traduzem-se, sumariamente, na atribuição de poderes e de responsabilidades à sociedade totalmente dominante face à sociedade totalmente dominada. O preceituado no artigo 501.°, aplica-se,por via do artigo 491.°,aos grupos constituídos por domínio total, ambos do Cód. Soc. Comerciais. 51. O domínio total pressupõe uma detenção, por parte da sociedade dominante, de 100% do capital social da dominada: – seja por domínio total inicial (488.°);– seja por domínio total superveniente (489.°). in Cordeiro Menezes (dedireitodassocieades.pt, 2011, 1º). 52. Face artigo 501.° do Cód das Soc. Comerciais a relação de subordinação existente permite à sociedade dominante dar instruções à dominada, instruções essas que esta fica obrigada a acatar, mesmo quando desvantajosas (503.° CSC). 53. A relação de grupo entre sociedades legitima a subordinação das matérias de gestão da sociedade-filha bem como do seu interesse social àdireção da sociedade-mãe. 54. Sendo o Banco 2..., diretora da A., cabe-lhe a esta o acato das instruções daquela, mesmo como vimos, no que confere a matérias de gestão da sociedade da A., concluímos portanto que o poder de representação da A., na prossecução do interesse social do grupo é em exclusivo do Banco 2.... 55. Concluímos assim que, a A., carece de legitimidade para a prática da totalidade atos, exercidos por si, de forma isolada, mesmo os que digam respeito ao ativo do seu património, face à concentração direito de representação da A., no Banco 2.... 56. Entendemos não caber à A. legitimidade de representação em juízo, no que confere ao património da sociedade da A., por se encontrar, tal faculdade confiada nos poderes de representação da sociedade mãe.” Pese o esforço argumentativo, o Recorrente não tem razão. Diz ele que a situação dos autos - em que o Banco 2... adquiriu 100% do capital social da Autora – quadra no regime do art. 489º do Código das Sociedades Comerciais. Esta disposição insere-se no Título VI do Código, respeitante às sociedades coligadas, concretamente título III, relativo às sociedades em relação de grupo. A norma do art. 489º, sob a epígrafe Domínio total superveniente, estabelece: 1. A sociedade que, directamente ou por outras sociedades ou pessoas que preencham os requisitos indicados no art. 483º, nº2, domine totalmente uma outra sociedade, por não haver outros sócios, forma um grupo com esta última, por força da lei, salvo se a assembleia geral da primeira tomar alguma das deliberações previstas nas alíneas a) e b) do número seguinte. 2. No seis meses seguintes à ocorrência dos pressupostos acima referidos, a administração da sociedade dominante deve convocar a assembleia geral desta para deliberar em alternativa sobre: a) Dissolução da sociedade dependente; b) Alienação de quotas ou acções da sociedade dependente; c) Manutenção da situação existente. 3. Tomada a deliberação prevista na alínea c) do número anterior ou enquanto não for tomada alguma deliberação, a sociedade dependente considera-se em relação de grupo com a sociedade dominante e não se dissolve, ainda que tenha apenas um sócio. (…) Resulta expressamente do nº3 do artigo citado que, numa situação de domínio total superveniente de uma sociedade sobre outra, enquanto não for deliberado o contrário, a sociedade dependente não se dissolve. Por conseguinte, ainda que o capital social da Autora tenha sido adquirido na totalidade pelo Banco 2... – facto que Recorrida aceita – isso em nada interferiu com a existência daquela que continua a existir como sociedade comercial, com personalidade jurídica própria (art. 5º do Código das Sociedades Comerciais). Apenas ocorreu uma mudança na sua estrutura accionista. O art. 501º do CSC invocado pelos Recorrentes em nada favorece a tese da alegada ilegitimidade da Autora, pois o que ali se prevê é a responsabilidade da sociedade directora pelas obrigações da sociedade subordinada, sendo que nos presentes autos, como observa a Recorrida, “não está em causa qualquer obrigação da autora/recorrida perante os réus/recorrentes, mas antes o inverso.” Com o que também nesta parte improcede a revista e se confirma o acórdão recorrido que considerou dispor a Autora de legitimidade para a acção. Por último, o Recorrente insurge-se contra o que entende ser a alteração da matéria de facto pela Relação – a propósito do ponto 20 da sentença – sem estarem verificados os requisitos do art. 662º, nºs 1 e 2 do CPC. Entendimento sintetizado na conclusão 64 da alegação recursiva: “Derroga o Acórdão recorrido, sem mais, os fatos tido por provados no ponto 20., da sentença, ou seja “ (…) que no âmbito do processo executivo o A. já reaveu aquantia de € 20.610,74 (abateu-se a que foi destinada às custas), motivo por que o direito de crédito do A.,neste momento, quepodeserdeclarado, é de €64.997,71.” Sucede que no caso não houve qualquer alteração da matéria de facto, o que torna incompreensível a alegação do Recorrente. No ponto 20 da sentença foi dado como provado: “No âmbito do processo executivo, em 26.11.2020, havia sido recuperada a importância de €23.878,70, fruto de penhoras que incidiram sobre o vencimento e o crédito de IRS referente ao ano de 2019 de DD e do crédito de IRS de 2013 do réu AA (penhorado em 12.06.2014), sendo que €3.267,96 saíram precípuas para pagamento de despesas.” O acórdão recorrido expressamente consignou que a matéria de facto não foi objecto de impugnação, e manteve a redação do ponto 20, como dos demais pontos de facto. Sucedeu apenas que o acórdão apreciou juridicamente a factualidade apurada e concluiu que o crédito da Autora sobre os RR AA e BB é no montante de €124.681,40 “dos quais € 85.608,45 de capital e € 36.777,42 de juros vencidos até à data da prolação da sentença recorrida (25 de Agosto de 2021) e vincendos desde então, à taxa legal de 4%, e até integral pagamento, assim como do valor de € 2.295,53 de imposto de selo”, e não do valor fixado na sentença. O Recorrente confunde valor da causa com o decaimento na acção, que são realidades diferentes. Os critérios de atribuição do valor da causa constam dos artigos 296º e ss do CPC – estabelecendo o nº1 do art. 296º que “a toda a causa deve ser atribuído um certo valor, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade imediata do pedido” – e o montante da condenação, que não pode exceder o valor do pedido (art. 609º/1), podendo ficar aquém, como sucede frequentemente, quando o autor não vê a sua pretensão integralmente reconhecida. E que foi o que sucedeu na presente acção. Também nesta parte a revista não merece provimento. Peticiona a Recorrida a condenação do Recorrente como litigante de má fé. Não nos parece que haja razão para tal, concordando-se com a Relação. A argumentação do Recorrente apresenta-se em muitos pontos manifestamente improcedente, confundindo conceitos, longe, todavia, de evidenciar uma incontroversa litigância de má fé. É que tem sido entendimento deste Tribunal, e não vemos razão para dissentir, “que a litigância de má fé não se basta com a dedução de pretensão sem fundamento, ou afirmação de factos não verificados ou verificados de forma distinta. Exige-se, ainda, que a parte tenha actuado com dolo ou com negligência grave, ou seja sabendo da falta de fundamento da sua pretensão ou oposição” (Ac. STJ de 18.02.2015, P.1120/11). O que a litigância dos RR e agora do Recorrente não evidencia de forma inquestionável. Motivo por que não se condena o Recorrente como litigante de má fé. Decisão. Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido. Custas pelo Recorrente. Lisboa, 27.10.2022 Ferreira Lopes (Relator) Manuel Capelo Tibério Nunes da Silva. |