Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
726/06.5TYLSB-AL.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ROSÁRIO GONÇALVES
Descritores: BANCO DE PORTUGAL
DELIBERAÇÃO
EFICÁCIA RETROATIVA
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
CASO JULGADO
EXTENSÃO DO CASO JULGADO
CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
ATIVIDADE BANCÁRIA
RESOLUÇÃO BANCÁRIA
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 04/09/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE
Sumário :
I - A omissão de pronúncia existe quando o tribunal deixa, em absoluto, de apreciar e decidir as questões que lhe são colocadas e não quando deixa de apreciar argumentos, considerações, raciocínios, ou razões invocados pela parte em sustentação do seu ponto de vista, quanto à apreciação e decisão dessas questões.

II - O Decreto-Lei n.º 1/2008, de 3 de janeiro procedeu à 12.ª alteração ao Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), no sentido de atribuir ao Banco de Portugal competências no domínio da supervisão comportamental daquelas entidades.

III - As finalidades que o artigo 145.º do RGICSF, vigente à data, visavam realizar e que resultavam, desde logo, do disposto no artigo 139.º, n.º 1, do mesmo diploma era a proteção dos interesses dos depositantes, investidores e outros credores e a salvaguarda das condições normais de funcionamento do mercado monetário, financeiro ou cambial.

IV - Os factos relevantes quanto à exigibilidade do crédito, bem como os atinentes ao incumprimento da obrigação, são anteriores à Deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal e a comunicação da situação financeira em que se encontrava o Banco Privado Português, S.A, é anterior ao incumprimento.

V - Os efeitos do caso julgado formado pelo acórdão da Relação de 14/06/2012, proferido no proc. nº 726/06.5TYLSB-AJ.L1, que declarou a ilegalidade do despacho de 06/05/2009 que havia ordenado a notificação do Conselho de Administração do BPP, S.A. para proceder coercivamente à transferência de fundos que a Massa Insolvente do FORUM FILATÉLICO havia depositado naquela instituição financeira – e o revogou, cingem-se apenas à questão da legitimidade de a Administração Provisória do BPP nomeada pelo Banco de Portugal não acatar a ordem de transferência de fundos dada pelo tribunal e repercutem-se tão só no despacho recorrido que determinou a notificação da referida Administração para a realização dessa transferência.

VI - A ausência de causa, no enriquecimento sem causa, emerge da inexistência de normas jurídicas que, a título permissivo ou de obrigação, levem a considerar o enriquecimento como coisa estatuída, isto é, tolerada ou querida pelo Direito.

VII - À data da operação de transferência, esta era, com efeito, querida pelo Direito – determinada, desde logo, pelas regras emergentes dos negócios jurídicos celebrados entre Autores e Ré.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 6ª. Secção do Supremo Tribunal de Justiça

1-Relatório:

Os autores, BANCO PRIVADO PORTUGUÊS, S.A. – EM LIQUIDAÇÃO e MASSA INSOLVENTE DO BANCO PRIVADO PORTUGUÊS, S.A., intentaram ação declarativa comum contra, a MASSA INSOLVENTE DO FÓRUM FILATÉLICO – INICIATIVAS DE GESTÃO, S.A., deduzindo os seguintes pedidos:

1. Ser a Ré condenada, a título de restituição por enriquecimento sem causa, no pagamento no valor de, no mínimo, € 529.234,21, ou de valor superior que venha a apurar-se, ao qual acrescem juros de mora vincendos calculados à taxa legal anual de 4% desde a data da citação até efetivo e integral pagamento;

2. Ser a Ré condenada, a título de indemnização por responsabilidade civil por factos ilícitos, ou subsidiariamente, a título de restituição por enriquecimento sem causa, no pagamento do valor de, no mínimo, € 9.725,93, ou de valor superior que venha a apurar-se, ao qual acrescem juros de mora vincendos calculados à taxa legal anual de 4% desde a data da citação até efetivo e integral pagamento;

E, subsidiariamente, "[...] não sendo possível concretizar o montante exato do enriquecimento da Ré [...]",

3. Ser este valor determinado com recurso à equidade, nos termos do disposto no artigo 566.º, n.º 3, do CC.

Contestando, a Ré pugnou pela improcedência dos pedidos deduzidos.

Veio a ser proferida sentença, com o seguinte teor a final:

«Pelo exposto, o Tribunal julga a presente ação parcialmente procedente e em consequência:

a) Condeno a ré Massa Insolvente do Fórum Filatélico – Iniciativas de Gestão, S.A., a pagar aos autores Banco Privado Português, S.A. – Em Liquidação, e à Massa Insolvente do Banco Privado Português, S.A., as quantias de:

1) € 430.198,58, acrescida de juros vencidos e vincendos à taxa supramencionada e demais taxas legais subsequentes em vigor, desde a data da citação até integral e efetivo pagamento;

2) € 4.660,89, acrescida de juros de mora à taxa supramencionada e demais taxas legais subsequentes em vigor, desde a data da citação até integral e efetivo pagamento.

b) Custas pelos autores e pela ré na proporção do respetivo decaimento (30% e em 70%, respetivamente), sem prejuízo sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que ambos beneficiam».

Desta decisão interpuseram recurso de apelação Autores e Ré.

No Tribunal da Relação de Lisboa foi proferido acórdão, com o seguinte dispositivo:

«Pelo exposto, acordam os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar totalmente improcedente a apelação das AA. e procedente a apelação da Ré, pelo que:

a) revogam a sentença recorrida; e

b) absolvem a Ré MASSA INSOLVENTE DO FÓRUM FILATÉLICO – INICIATIVAS DE GESTÃO, S.A. do pedido formulado».

Inconformados, os Autores interpuseram o presente recurso de Revista, concluindo as suas alegações:

A. Os presentes autos prendem-se, muito sumariamente, com uma contenda sobre valores que os Recorrentes (BPP e a sua Massa Insolvente) se viram desapossados pela Recorrida (Massa Insolvente do Fórum Filatélico – Iniciativas de Gestão, S.A.) entre 14.07.2009 e 30.10.2012.

B. Para o efeito peticionaram os Recorrentes:

i) A condenação da Recorrida, a título de restituição por enriquecimento sem

causa, no pagamento do valor de, no mínimo, € 529.234,21, ou de valor superior que viesse a apurar-se, ao qual acrescessem juros de mora vincendos calculados à taxa legal anual de 4% desde a data da citação até efetivo e integral pagamento,

ii) A condenação da Recorrida a título de indemnização por responsabilidade civil por factos ilícitos, ou subsidiariamente, a título de restituição por enriquecimento sem causa, no pagamento do valor de, no mínimo, € 9.725,93, ou de valor superior que viesse a apurar-se, ao qual acrescesse juros de mora vincendos calculados à taxa legal anual de 4% desde a data da

citação até efetivo e integral pagamento,

iii) Subsidiariamente, caso não fosse possível concretizar o montante exato do enriquecimento da Recorrida, deveria tal valor ser determinado com recurso à equidade, sempre considerando o prejuízo gerado ao BPP, nos termos do disposto no artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil, aplicável com as necessárias adaptações.

C. A sentença de 1.ª instância determinou que a Recorrida pagasse aos Recorrentes as quantias de € 430.198,58 e € 4.660,89, acrescido de juros.

D. Sendo que ambas as partes, Recorrentes e Recorrida, apelaram da decisão ao Tribunal da Relação de Lisboa.

E. Tendo o douto Tribunal de 2.ª Instância decido julgar parcialmente procedente as alegações formuladas pela ora Recorrida, MASSA INSOLVENTE DO FORUM FILATÉLICO, abstendo-se de tomar conhecimento das demais questões apresentadas nas alegações da Recorrida, bem como, in totum, as questões apresentadas pelas Recorrentes, incluindo a impugnação da matéria de facto e, em consequência, revogar a sentença, absolvendo a Recorrida do pedido.

F. Os aqui Recorrentes não se conformam com a decisão do Tribunal da Relação, o qual fez uma incorreta interpretação das normas aplicáveis ao presente caso, pelo que vieram, pelo presente, da mesma interpor o competente Recurso de Revista.

G. Ora, no entender dos Recorrentes, o Douto Tribunal a quo não procedeu a uma correta apreciação das questões sobre as quais se pronunciou, nomeadamente quanto à questão atinente à abrangência de caso julgado do Acórdão de 14/06/2012 do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no processo n.º 726/06.5TYLSB-AJ.L1-8, e quanto à existência de enriquecimento sem causa por parte da Ré, ora Recorrida.

H. A esse propósito veja-se que no dia 21 de novembro de 2008 (sexta-feira), a Recorrida solicitou ao BPP o resgate antecipado das suas aplicações financeiras, cuja respetiva liquidação poderia, nos termos contratualmente acordados entre as partes ser efetuada até 26 de novembro de 2008 (quarta-feira).

I. Não obstante, o BPP comunicou ao Banco de Portugal, em 24 de novembro de 2008, a sua incapacidade para cumprir com suas obrigações devido à crise

financeira, o que levou à cessação de todos os pagamentos, incluindo os valores a serem transferidos para a Recorrida na sequência do resgate antecipado das mencionadas aplicações financeiras.

J. A referida comunicação foi enviada pelo Conselho de Administração do BPP ao Banco de Portugal em estrita observância da redação, então vigente, do artigo 140.º, n.º 1, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (“RGICSF”), nos termos do qual: “quando uma instituição de crédito se encontre impossibilitada de cumprir as suas obrigações, ou em risco de o ficar, o órgão de administração ou de fiscalização deve comunicar imediatamente o facto ao Banco de Portugal.”

K. Atentas tais circunstâncias, por meio da deliberação de 1 de dezembro de 2008, o Conselho de Administração do Banco de Portugal designou, nos termos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 143.º do RGICSF, administradores provisórios para o BPP, e dispensou o BPP, durante um período de três meses – que veio a ser sucessivamente prorrogado –, do cumprimento pontual de obrigações anteriormente contraídas, prioritariamente no âmbito da atividade de gestão de patrimónios, na medida em que tal se mostrasse necessário à reestruturação e saneamento da instituição.

L. Com efeito, na referida deliberação de 1 de dezembro de 2008, o Conselho de Administração do Banco de Portugal, contrariamente ao que se afirma no acórdão em crise, referiu expressamente que: “o Banco Privado Português se encontra numa situação de grave desequilíbrio financeiro, confirmada por escrito no passado dia 24 pela própria Instituição ao Banco de Portugal”.

M. Pelo que, a deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal, de 1 de dezembro de 2008, veio ratificar a decisão tomada pelo Conselho de Administração do BPP em 24 de novembro de 2008, no sentido de cessar todos e quaisquer pagamentos a clientes ou a terceiros, em virtude da grave situação financeira da instituição bancária.

N. Para além do referido, a decisão a que se faz alusão foi sustentada por uma garantia do Estado português, a qual tinha por objeto: “o financiamento destinado a fazer face a responsabilidades do passivo registadas no balanço do Banco Privado Português, S. A., à data de 24 de Novembro de 2008, data em que esta instituição notificou o Banco de Portugal nos termos do n.º 1 do artigo 140.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, cabendo à respetiva administração, que integra administradores provisórios nomeados pelo Banco de Portugal, velar pelo cumprimento desta finalidade.”, conforme expressamente referido no despacho n.º 31268-A/2008, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 235, de 4 de dezembro de 2008.

O. Pelo que, ao contrário do que sustenta a Recorrida e o Tribunal a quo, a dispensa do cumprimento pontual das obrigações concedida pelo Banco de Portugal ao BPP abarcou, efetivamente, o final do mês de novembro de 2008, pois de outra forma, não seria plausível que a garantia prestada pessoalmente pelo Estado português, através de despacho do Secretário do Estado do Tesouro e Finanças, tivesse por objeto o financiamento destinado a fazer face a responsabilidades do passivo registadas no balanço de 24 de novembro de 2008.

P. E tal foi, ainda, asseverado no despacho saneador do processo de liquidação judicial do BPP e pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão proferido em 16 de fevereiro de 2016, no âmbito do processo n.º 519/10.5TYLSB-CE.L1-7

Q. Diga-se ainda que, entender que a deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal de 1 de dezembro de 2008 (e posteriormente o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14 de junho de 2012) fundamentou e justificou retroativamente, a recusa do BPP em transferir os saldos das contas que a Recorrida era titular junto daquele, é fazê-lo de acordo com a correta interpretação do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 145.º do RGICSF (em vigor à data).

R. No entanto, o Tribunal a quo entende, erradamente, que o acórdão de 14 de junho de 2012 se limitou a validar a legitimidade da Administração Provisória do BPP para recusar a transferência de fundos, sem analisar a deliberação do Conselho de Administração do BPP de 24 de novembro de 2008.

S. Isto é, que o referido acórdão tratou apenas da legalidade do despacho de

06/05/2009 que ordenava a transferência de fundos, declarando-o ilegal e revogando-o com efeitos não retroativos.

T. Porém, a deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal

de 1 de dezembro de 2008 ratificou e considerou válida a recusa da transferência dos fundos pela Administração Provisória do BPP à Recorrida.

U. E assim se entendeu no acórdão de 14 de junho de 2012, o qual revogou o despacho de 6 de maio de 2009 que determinava a transferência dos fundos, e concluiu que a Administração Provisória do BPP tinha o direito de recusar a transferência dos € 3.866.417,75, conforme a dispensa do cumprimento pontual das obrigações do BPP.

V. Mesmo que se veja prejudicado o efeito de caso julgado dos argumentos

expendidos no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14.06.2012, ou que se discorde declaradamente do entendimento da sentença de 1.ª Instância nos presentes autos, o que apenas se concebe por mera cautela de patrocínio, a deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal de 1 de dezembro de 2008 foi proferida, como já mencionado, ao abrigo do disposto, e à data em vigor, no artigo 145.º, n.º 1, al. b) do RGICFS,

W. Que expressamente previa a possibilidade de o regulador dispensar as instituições bancárias “do cumprimento pontual de obrigações anteriormente contraídas”, não subtraindo da referida expressão as obrigações contraídas antes da data da deliberação do Banco de Portugal ou as obrigações contraídas pelo Conselho de Administração do BPP.

X. Tanto que, a partir do dia 1 de dezembro de 2008, ficou a Recorrente desobrigada do cumprimento da globalidade das suas obrigações, nesta naturalmente se incluindo todas as vencidas até então e também as vincendas.

Y. Outro entendimento, que não o exposto, conferiria ao BPP a possibilidade de opção entre o cumprimento de determinadas obrigações em detrimento de outras, conferindo-lhe um poder discricionário que poderia ser contrário aos interesses visados pelas medidas adotadas pelo Banco de Portugal para fazer face ao passivo do BPP.

Z. Ao decidir nos termos em que decidiu o Tribunal a quo fez uma errada interpretação do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 145.º do RGICFS, pelo que, deve a decisão sindicada ser revogada, e substituída por outra que determine que todas as obrigações, vencidas e vincendas, anteriormente contraídas pelo BPP, estariam abrangidas pela referida deliberação.

AA. Nos termos do artigo 473.º, n.º 2 do Código Civil, a obrigação de restituir fundada em enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objeto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir, ou em vista de um efeito que não se verificou

BB. Ora, quando o BPP procedeu à transferência da quantia de € 3.866.417,75, por ordem, indevida, do Tribunal em 14/07/2009, o mesmo deixou de poder rentabilizar a quantia mencionada.

CC. Rentabilidade que foi aproveitada pela Recorrida até ao trânsito em julgado do Acórdão da Relação de Lisboa, que ordenou a devolução ao BPP, em 18/10/2012.

DD. Ora, o rendimento obtido pela Recorrida, à custa do BPP e dos seus credores, bem como da sua Massa Insolvente, não teve – ou, no limite, deixou de ter – causa justificativa.

EE. O que constitui um prejuízo que, para além de manifestamente grave, atento o contexto de saneamento e posterior liquidação judicial de um banco, não tem justificação legal, contratual ou outra.

FF. Por seu turno, no mencionado período, a Recorrida, aumentou o seu ativo

patrimonial, ilegitimamente, com base numa causa que foi declarada ilegal e que deixou de existir tendo, por isso, a Recorrida enriquecido injustamente à custa da Massa Insolvente do BPP e dos seus credores.

GG. A Recorrida não tinha uma causa justificativa para manter o montante, pois a transferência não foi voluntária, mas imposta por um despacho judicial que lhe havia imposto a cominação de que o não cumprimento de tal ordem judicial a faria incorrer na prática de um crime de desobediência.

HH. Por outro lado, também contrariamente ao que é referido no acórdão em crise, não é verdade que a Recorrida se tenha limitado “(…) a solicitar a devolução (transferência) dos valores depositados, acrescidos dos juros vencidos (…)” antes sim, ao pedido de resgate antecipado das aplicações financeiras in casu.

II. Na verdade, e como resulta da matéria de facto provada, entre a Recorrida e o BPP não foram celebrados meros contratos de depósito bancário, mas sim contratos de gestão de carteira, os quais se encontram regulados pelos artigos 335.º e 336.º do Código dos Valores Mobiliários (CVM).

JJ. Assim se concluindo que, falece a razão ao Tribunal a quo não só quando este afirma que in casu se verificou o consentimento do “empobrecido”, porquanto este entendimento, como demonstrado, assenta em duas premissas erradas:

- A primeira de que a transferência realizada pelo BPP a favor da Recorrida foi feita de forma voluntaria e - A segunda de que os contratos celebrados entre as partes eram simples contratos de depósito e não contratos de gestão de carteira.

KK. Mas também, ao afirmar que o eventual enriquecimento da Recorrida decorre de uma decisão judicial – o despacho de 17.12.2008 – o que constituiria uma causa justificativa.

LL. Pois que essa causa justificativa, a ter existido, foi revogada expressamente pelo acórdão do tribunal da Relação de 14 de junho de 2012.

MM. Mais, contrariamente ao afirmado no acórdão agora em crise, haverá de se entender, na senda da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que com a revogação da decisão de 17/12/2008, e independentemente de efeitos retroativos, a alegada causa justificativa do enriquecimento da Recorrida deixou de existir, o que obriga a Recorrida a devolver o montante, incluindo a rentabilidade obtida.

NN. Assim, o acórdão do Tribunal da Relação de 14 de junho de 2012, ao revogar o despacho de 17 de dezembro de 2008, determinou a cessação da alegada causa justificativa do enriquecimento da Recorrida e, consequentemente, como bem se refere no acórdão do STJ, de 20.01.2022, supramencionado, constituiu a Recorrida na obrigação de restituir às Recorrentes os fundos em questão.

OO. Por fim, o Tribunal a quo ao decidir não se encontrarem reunidos os pressupostos do enriquecimento sem causa, decidiu não analisar as demais questões suscitadas pelas partes, o que fez com que aquele aresto ficasse ferido da nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, aplicável ex vi do 666.º do mesmo diploma.

PP. Nessa medida não poderá deixar de ser declarada a nulidade do acórdão em crise, por omissão de pronúncia e, consequentemente, determinar-se a baixa do processo a fim de ser feita a reforma daquele nos termos do disposto no n.º 2, do artigo 684.º do CPC.

Por seu turno, contra-alegou a ré:

1. A deliberação de cessar todos e quaisquer pagamentos a clientes ou a terceiros tomada em 24.11.2008 pelo Conselho de Administração do BPP foi tomada em nome próprio, do BPP, e não em nome do Banco de Portugal, pelo que é insuscetível de ratificação por parte deste.

2. A deliberação de 01.12.2008 do Conselho de Administração do Banco de Portugal, que nomeou a Administração Provisória do BPP, não contém qualquer referência à deliberação de cessar todos e quaisquer pagamentos a clientes ou a terceiros que havia sido tomada em 24.11.2008 pelo Conselho de Administração do BPP, pelo que não a validou.

3. A 'recusa da transferência dos fundos' é da autoria do Conselho de Administração do BPP que, em 24.11.2008, encontrando-se em pleno exercício de funções, deliberou cessar todos e quaisquer pagamentos a clientes ou a terceiros, sendo alheia à atuação da Administração Provisória do BPP, a qual foi nomeada e iniciou funções, apenas, em 01.12.2008.

4. O Banco de Portugal jamais sanou a situação de incumprimento contratual em que a Recorrente BPP incorreu perante a Recorrida, em 24.11.2008, quando recusou transferir para outra instituição bancária os fundos de que esta era titular.

5. A redação do artigo 140º, nº 1, do RGICSF então em vigor obrigava o Conselho de Administração do BPP a comunicar 'imediatamente' ao Banco de Portugal que o BPP se encontrava 'em risco iminente de incumprir com as suas obrigações e responsabilidades', mas nem esse preceito legal, nem qualquer outro, obrigava a Administração do BPP a dar, como deu, em 24.11.2008, 'instruções para a cessação de todos e quaisquer pagamentos a clientes ou terceiros'.

6. A garantia do Estado Português referida pelas recorrentes na conclusão N. das suas alegações não integra a factualidade assente nestes autos, pelo que é absolutamente irrelevante para a decisão dos mesmos, além do que nenhuma referência faz e nenhuma relação possui com a deliberação de cessar todos e quaisquer pagamentos a clientes ou a terceiros tomada em 24.11.2008 pelo Conselho de Administração do BPP, sendo que a referência à data de 24.11.2008 que dela consta é expressamente circunscrita 'à data em que o BPP notificou o Banco de Portugal nos termos do nº 1 do artigo 140º do RGICSF'.

7. A dispensa do cumprimento pontual das obrigações concedida pelo Banco de Portugal ao BPP não abarcou o final do mês de novembro de 2008, porquanto a letra dessa dispensa não contém qualquer referência ao período anterior à data em que a mesma foi concedida, de 01.12.2008, e porque, tendo a dispensa sido concedida por um período inicial de três meses e ocorrendo a sua primeira 'renovação' em 25.02.2009, ou seja, no termo desse prazo inicial de três meses, tal exclui a possibilidade de ter vigorado retroativamente.

8. A dispensa do cumprimento pontual das obrigações foi concedida para ser aplicada 'na medida em que tal se mostrasse necessário à reestruturação e saneamento da instituição', sendo certo que inexiste qualquer declaração – seja ela da Administração Provisória do BPP ou do próprio Banco de Portugal – que tenha estabelecido a recusa de transferir os €3.866.417,75 da Massa Insolvente da Fórum Filatélico, SA para outra instituição bancária como 'necessária à reestruturação e saneamento do BPP'.

8. O acórdão de 14.06.2012 do Tribunal da Relação de Lisboa apreciou, apenas, a legalidade do despacho de 06.05.2009, que ordenara ao BPP a transferência dos fundos da ora Recorrida para o BBVA e a questão conexa da legitimidade da Administração Provisória do BPP, nomeada pelo Banco de Portugal, não acatar essa ordem de transferência de fundos; não apreciou a deliberação de cessar todos e quaisquer pagamentos a clientes ou a terceiros tomada em 24.11.2008 pelo Conselho de Administração do BPP; e não tem efeitos retroativos, determinando apenas a revogação daquele despacho a partir da data do respetivo trânsito.

9. As Recorrentes expressamente reconhecem estar prejudicado o efeito de caso julgado dos argumentos expendidos no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14.06.2012.

10. A eficácia do caso julgado do acórdão de 14.06.2012 do Tribunal da Relação de Lisboa não abrange, de modo algum, a deliberação de cessar todos e quaisquer pagamentos a clientes ou a terceiros tomada em 24.11.2008 pelo Conselho de Administração do BPP.

11. No caso dos autos, verifica-se o consentimento do empobrecido, decorrente de a Recorrente BPP ter celebrado com a Recorrida vários contratos de depósito com subscrição de aplicações financeiras de retorno absoluto, concordando que esta os resgatasse nas condições acordadas e pudesse aplicar o capital e os juros vencidos que lhe foram restituídos conforme bem entendesse [9) e 10) dos Factos Provados].

12. A relação contratual assim estabelecida entre as partes, atentas as condições ajustadas, será sempre de considerar como causa justificativa do enriquecimento, independentemente de se tratar de contratos de depósito ou de contratos de gestão de carteira.

13. Porque uma decisão judicial não integra o conceito de coação, a transferência realizada pelo BPP a favor da Recorrida, em 14.07.2009 [19) dos Factos Provados], sempre terá de ser entendida como um ato voluntário da Recorrente BPP e correspondendo ao cumprimento de uma obrigação, constituindo, igualmente, causa justificativa do enriquecimento.

14. O acórdão de 14.06.2012 do Tribunal da Relação de Lisboa não contém qualquer reconhecimento da existência de uma obrigação de restituição às Recorrentes da quantia de €3.866.417,75 ou de outra, nem contém qualquer ordem de restituição às ora Recorrentes desse montante ou de outro, tendo-se limitado a revogar o despacho recorrido, de 17.12.2008, pelo que este despacho, apesar de revogado, serve, igualmente, de causa justificativa do enriquecimento da Recorrida.

15. O entendimento das Recorrentes de que o acórdão de 14.06.2012 do Tribunal da Relação de Lisboa 'obriga a Recorrida a devolver o montante, incluindo a rentabilidade obtida', além de não encontrar qualquer sustentação no teor literal desse mesmo aresto, viola a proibição da condenação estra vel ultra petitum consagrada no artigo 609º, nº 1, do Cód. Proc. Civil, o que acarreta a sua improcedência, pois que, no recurso que interpuseram do despacho de 17.12.2008, as também aqui Recorrentes peticionaram, apenas, a atribuição de efeito suspensivo àquele seu recurso e o provimento deste, com a reforma ou a revogação desse despacho.

16. A recorrente BPP nunca possuiu, após a deliberação de 24.11.2008 do seu Conselho de Administração e por causa desta, qualquer legitimidade para considerar sua propriedade os €3.866.417,75 da ora Recorrida que recusou transferir e/ou para promover a rentabilização destes fundos.

17. Inversamente, a Recorrida é legítima titular dos €3.866.417,75 que as Recorrentes transferiram em 14.07.2009 e, bem assim, dos rendimentos que desta quantia obteve até à data em que, também espontaneamente, a entregou às ora Recorrentes.

18. Consequentemente, no caso dos autos não existe e nunca existiu, por parte da Recorrida, a obrigação de restituir os fundos que as Recorrentes transferiram em 14.07.2009.

19. Na medida em que considerou que a eventual procedência total da impugnação da matéria de facto não seria bastante para estabelecer ou fundar a obrigação de restituição decorrente do enriquecimento sem causa, o acórdão recorrido não é nulo por omissão de pronúncia.

Foram colhidos os vistos.

2- Cumpre apreciar e decidir:

Da admissibilidade do recurso

No caso vertente, em face do valor da causa e do valor da sucumbência, havendo legitimidade dos recorrentes e perante o teor do acórdão recorrido, o presente recurso de revista é admissível, nos termos dos artigos 671º, nº. 1 e 674º, nº. 1, als.) a) e c), ambos do CPC.

As conclusões do recurso delimitam o seu objeto, nos termos do disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil.

As questões a dirimir consistem em aquilatar:

- Se o Tribunal errou na interpretação do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 145.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras – (doravante, RGICFS).

- Se o Tribunal errou na interpretação do disposto nos arts. 473.º, n.º 2, do CC.

- Se o Tribunal omitiu pronunciar-se sobre questões que lhe cabia decidir, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC.

A matéria de facto delineada e consolidada nas instâncias foi a seguinte:

1. Em 24 de Novembro de 2008, o Conselho de Administração do Banco Privado Português, S.A., em funções comunicou ao Banco de Portugal encontrar-se em risco iminente de incumprir com as suas obrigações e responsabilidades, bem como a decisão adotada nessa mesma data de cessar todos e quaisquer pagamentos a clientes ou a terceiros, em virtude da grave situação financeira da instituição.

2. Em 1 de Dezembro de 2008, em reunião extraordinária do Conselho de Administração do Banco de Portugal, foi deliberado, nos termos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 143.º, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, designar administradores provisórios para o Banco Privado Português, S.A., e, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 145.º, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, dispensar o Banco Privado Português, S.A., durante um período de três meses, do cumprimento pontual de obrigações anteriormente contraídas, prioritariamente no âmbito da atividade de gestão de patrimónios, na medida em que tal se mostrasse necessário à reestruturação e saneamento da instituição.

3. A dispensa do cumprimento pontual de obrigações concedida ao Banco Privado Português, S.A., foi sucessivamente renovada por deliberações adotadas pelo Banco de Portugal em 25 de fevereiro de 2009, 7 de Abril de 2009, 26 de maio de 2009, 11 de Agosto de 2009 e 30 de Novembro de 2009.

4. E manteve-se, ininterruptamente, até à data em que a referida autoridade de supervisão decidiu revogar a autorização para o exercício da atividade bancária do Banco Privado Português, S.A.

5. O que sucedeu por deliberação do Conselho do Administração do Banco de Portugal, datada de 15 de abril de 2010.

6. O Banco de Portugal requereu a liquidação judicial do Banco Privado Português, S.A.

7. Foi proferido despacho de prosseguimento da liquidação do Banco Privado Português, S.A., em 23 de abril de 2010 que, entre outros aspetos, designou os membros da Comissão Liquidatária do Banco Privado Português, S.A., no âmbito do processo que sob o n.º 519/10.5TYLSB corre termos na 1ª Secção de Comércio (J2) da Instância Central da Comarca de Lisboa e que continua pendente.

8. Em 2 de Janeiro de 2007, a ré, representada pelo Administrador de Insolvência, abriu conta junto do Banco Privado Português, S.A., tendo-lhe sido atribuído o número de cliente 213895 – designado internamente no Banco Privado Português, S.A., por “client group” – e subscreveu um acordo de gestão de carteira.

9. No âmbito da relação bancária estabelecida, a ré, representada pelo Senhor Administrador de Insolvência, subscreveu aplicações financeiras de retorno absoluto com garantia, encontrando-se em carteira, à data dos factos em apreciação, as seguintes aplicações:

a. Aplicação designada de “PIHY - Privado Investimento High Yield”, no valor de € 2.206.795,40, com data de início em 24 de janeiro de 2008, pelo prazo de um ano (24 de Janeiro de 2009);

b. Aplicação designada de “PIHY - Privado Investimento High Yield”, no valor de € 1.533.624,63, com data de início em 19 de Março de 2008, pelo prazo de um ano (19 de Março de 2009);

c. Aplicação designada de "Investimento Directo – Retorno Absoluto Oportunidade Fevereiro 2009", no valor de € 41.073,17, com início em 23 de Maio de 2008 e vencimento em 5 de Fevereiro de 2009.

10. Consta das “Condições Especiais de Gestão de Carteira” das três aplicações financeiras que “O Cliente poderá solicitar o vencimento antecipado desta estratégia mediante um pré-aviso de 2 dias úteis, sendo a respetiva liquidação efetuada no prazo de 3 dias úteis, ao valor do capital investido ou, quando inferior, ao valor líquido dos ativos em carteira, apurado no dia útil imediatamente anterior ao do vencimento.”

11. Em 21 de Novembro de 2008, o Senhor Administrador de Insolvência da ré solicitou ao Banco Privado Português, S.A., o resgate antecipado das aplicações financeiras acima identificadas e a transferência para outra instituição financeira dos saldos das contas que a ré era titular junto do Banco Privado Português, S.A., bem como dos juros vencidos das aplicações contabilizados até à data da transferência.

12. O Banco Privado Português, S.A., não satisfez o pedido do Senhor Administrador de Insolvência da ré.

13. O Senhor Administrador de Insolvência da ré requereu no processo principal da ora ré que o Banco Privado Português, S.A., fosse notificado para proceder à transferência dos fundos depositados nessa instituição para outra instituição bancária por si indicada, alegando ter solicitado tal transferência ao Banco Privado Português, S.A., e que tal solicitação não foi satisfeita.

14. Na sequência do pedido do Senhor Administrador da Insolvência da ré, em 17 de dezembro de 2008, foi proferido despacho que ordenou a notificação do Banco Privado Português, S.A., para proceder em conformidade com o requerido pelo Administrador de Insolvência, sob cominação de que não o fazendo no prazo máximo de 10 dias incorrer na prática de um crime de desobediência, nos termos constantes do documento n.º 12, junto com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

15. Em 13 de Janeiro de 2009, o Banco Privado Português, S.A., requereu a aclaração do referido despacho, invocando que a sua grave situação económico-financeira e as medidas de reestruturação e saneamento adotadas pelo Banco de Portugal constituíam impedimento legítimo ao cumprimento da ordem de transferência dos fundos da titularidade da ré para a conta bancária indicada pelo Senhor Administrador de Insolvência da ré.

16. Em 6 de Maio de 2009, foi proferido despacho que renovou a ordem contida no despacho de 17 de dezembro de 2008, tendo sido novamente ordenada a notificação do Conselho de Administração do Banco Privado Português, S.A., para, em 5 dias, proceder à transferência dos fundos que a ré entregou ao Banco Privado Português, S.A.

17. Em 15 de Maio de 2009, o Banco Privado Português, S.A., interpôs recurso de agravo, tendo requerido a atribuição de efeito suspensivo no que respeita ao cumprimento do despacho que ordenara a transferência dos fundos.

18. Por despacho datado de 2 de julho de 2009, o recurso interposto pelo Banco Privado Português, S.A., foi admitido, tendo sido indeferido o pedido de efeito suspensivo do recurso, nos termos constantes do documento n.º 16, junto com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

19. Em 14 de Julho de 2009, o Banco Privado Português, S.A., em cumprimento dos despachos acima mencionados, transferiu o valor de € 3.866.417,75 para a conta titulada pela ré, aberta junto do Banco Bilbao Viscaya Argentaria (“BBVA”), com o NIB ...33.

20. Em 21 de Julho de 2009, o Banco Privado Português, S.A., lavrou termo de protesto, por existência de recurso pendente, e requereu a criação de uma cautela de prevenção no valor de € 3.866.417,75, acrescida de juros legais, com vista à conservação de tal montante nas contas da ré até ao trânsito em julgado da decisão recorrida acima referenciada.

21. Por despacho datado de 22 de setembro de 2009, foi indeferida a constituição da cautela de prevenção requerida pelo Banco Privado Português, S.A.

22. O Banco Privado Português, S.A., impugnou o referido despacho por via de recurso.

23. Foi proferido acórdão pela 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos constantes do documento n.º 22, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, em 14 de junho de 2012.

24. Neste acórdão foi decidido que “I - Não se aplicam às instituições de crédito os regimes gerais relativos aos meios preventivos da declaração de falência e aos meios de recuperação de empresas e proteção de credores. II - Essas instituições estão submetidas a um regime específico, com o objetivo de proteção dos interesses dos depositantes, investidores e outros credores, para efeitos de salvaguarda das condições normais de funcionamento do mercado monetário, financeiro ou cambial, por força do preceituado no n.º 2 do art. 139.º do RGICSF. III - Tal regime regula o saneamento e liquidação das instituições de crédito e sociedades financeiras, sendo que, nos termos da norma jurídica citada, o Banco de Portugal poderá decretar, excecionalmente e por tempo limitado, providências extraordinárias, tais como o deliberar a dispensa de cumprimento pontual de obrigações já contraídas, entre outras. IV - Neste contexto, há que concluir, ao contrário do despacho agravado, que a Administração Provisória que havia sido designada pelo Banco de Portugal para gerir os destinos do “BANCO…SA”, estava legitimada a recusar a transferência dos fundos aplicados pela Massa Insolvente identificada nos autos, na medida em que tal se mostrasse necessário para assegurar a reestruturação financeira que estava em curso e que fora determinada pela entidade com exclusiva competência para o efeito - o Banco de Portugal. V - Destarte, as providências extraordinárias de saneamento do “BANCO…SA”, que o Banco de Portugal decretou, subsistiriam se e enquanto se verificasse a situação que as determinou, nos termos do art. 146º do RGICSF. VI - Assim sendo, verificando-se a necessidade de adoção de medidas extraordinárias com o propósito de assegurar a estabilidade do sistema financeiro e a proteção dos depositantes e de outros credores, não encontra fundamento a determinação judicial da transferência coerciva dos fundos que pertenciam a um único interessado - a referida Massa Insolvente - só porque o respetivo Administrador apresentara ao MMº Juiz do processo de insolvência um requerimento nesse sentido. VII - Estando o “BANCO…SA” dispensado do cumprimento pontual de obrigações anteriormente contraídas, sem exclusão das que estavam conexionadas com os fundos que concretamente haviam sido aplicados pelo Administrador da Massa Insolvente, ao abrigo e na sequência da deliberação do Banco de Portugal, era à Administração Provisória do “BANCO...SA” que cabia fazer a avaliação da concreta situação e decidir em conformidade. VIII - E não o Tribunal a quo, que não tem de sindicar os resultados dessa avaliação ou de se intrometer numa área da exclusiva competência da aludida Administração. Está, pois, vedada ao Tribunal a quo a imposição da transferência de fundos pertencentes à referida Massa Insolvente ou a qualquer outro interessado.”

25. Este acórdão transitou em julgado em 18 de outubro de 2012.

26. Após esta data, os autores solicitaram, através dos seus mandatários, à ré, na pessoa do seu Administrador de Insolvência, por diversas vezes, para proceder à devolução da quantia de € 3.866.417,75, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento.

27. No dia 30 de outubro de 2012, a ré transferiu o montante de € 3.866.417,75, em singelo, para o Banco Privado Português, S.A., e para a sua Massa Insolvente.

28. Não tendo após essa data, e não obstante as diversas interpelações realizadas, pago ao Banco Privado Português, S.A., nem à sua Massa Insolvente, aqui autores, qualquer quantia a título de juros vencidos, nem qualquer outro montante devido.

29. A ré foi reconhecida como credora do Banco Privado Português, S.A., no âmbito do processo de liquidação do mesmo.

30. Em 29 de Julho de 2009, a ré solicitou ao Banco Bilbao Viscaya Argentaria (“BBVA”) a transferência da quantia de € 3.897.011,29 para a conta de depósito à ordem com o NIB ...05, da titularidade da ré junto do MILLENNIUM BCP.

31. Em 30 de Julho de 2009, o Banco Bilbao Viscaya Argentaria (“BBVA”) procedeu à transferência da referida quantia para a conta de depósito à ordem com o NIB ...05.

32. Em 30 de Julho de 2009 foi constituído um depósito a prazo com o n.º ...89, no montante de € 3.890.000.

33. Este depósito tinha as seguintes características:

a. Taxa de juro bruta (TANB): 3,65%;

b. Prazo: 401 dias;

c. Data de vencimento: 4 de setembro de 2010;

d. Juro ilíquido: € 158.155,51;

e. Retenção de imposto sobre o rendimento: € 31.631,10;

f. Juro líquido: € 126.524,41.

34. Em 4 de Setembro de 2010, este depósito a prazo venceu-se e em 21 de setembro de 2010 foi constituído um novo depósito a prazo com o n.º ...79, no montante de € 3.890.000.

35. Este depósito tinha as seguintes características:

a. Taxa de juro bruta (TANB): 3,375%;

b. Prazo: 240 dias;

c. Data de vencimento: 4 de maio de 2011;

d. Juro ilíquido: € 87.525;

e. Retenção de imposto sobre o rendimento: € 18.817,88;

f. Juro líquido: € 68.707,12.

36. Em 4 de Maio de 2011, o depósito a prazo venceu-se e no mesmo dia foi constituído um depósito “prazo especial” com o n.º ...81, no montante de € 3.966.000.

37. Este depósito tinha as seguintes características:

a. Taxa de juro bruta (TANB): 5,5%;

b. Prazo: 182 dias;

c. Data de vencimento: 2 de novembro de 2011;

d. Juro ilíquido: € 110.276,83;

e. Retenção de imposto sobre o rendimento: € 23.709,52;

f. Juro líquido: € 86.567,31.

38. Em 3 de Novembro de 2011 foi constituído um depósito a prazo, denominado “depósito mais”, com o n.º ...79, no montante de € 4.052.567,31.

39. Este depósito tinha as seguintes características:

a. Taxa de juro bruta (TANB): 5%;

b. Prazo: 360 dias;

c. Data de vencimento: 28 de outubro de 2012;

d. Juro ilíquido: € 202.628,37;

e. Retenção de imposto sobre o rendimento: € 43.565,10;

f. Juro líquido: € 159.063,27.

40. Os juros ilíquidos destes depósitos a prazo totalizaram o valor global de € 558.585,71.

41. Os juros líquidos destes depósitos a prazo somaram a importância total de € 440.862,11.

42. A ré pagou a quantia total de € 117.723,60 a título de taxa liberatória sobre os juros obtidos com os quatro depósitos a prazo que efetuou e acima enunciados.

43. A “retenção de imposto sobre o rendimento” referente a cada um destes depósitos era feita automaticamente pelo banco MILLENNIUM BCP, o qual procedia à entrega do imposto ao Estado.

44. Apenas os juros líquidos de cada um destes quatro depósitos a prazo eram creditados na conta cliente.

45. Em 28 de Outubro de 2012, o depósito a prazo venceu-se, não tendo sido realizada qualquer outra aplicação financeira com esta ordem.

46. No dia 30 de outubro de 2012 foi transferida desta conta a quantia de € 3.866.417,75, com o descritivo “transf. Favor de ...63”.

47. Em 26 de Junho de 2023, o MILLENNIUM BCP informou os autos que a quantia de € 3.866.417,75 havia sido transferida, no dia 30 de outubro de 2012, para a conta n.º ...63, titulada pelo Banco Privado Português, S.A., em liquidação.

48. Se tivessem na sua posse a quantia de € 3.866.417,75, no período de 14 de julho de 2009 a 18 de Outubro de 2012 (entre a data da transferência desta verba para a conta ré junto do BBVA e o trânsito em julgado do acórdão da Relação de Lisboa que ordenou a sua devolução ao Banco Privado Português, S.A.), o Banco Privado Português, S.A., e posteriormente a sua Massa Insolvente teriam rentabilizado essa importância através de operações overnight.

49. Os investimentos efetuados pela ré Massa Insolvente do Fórum Filatélico em depósitos a prazo foram efetuados às taxas normais praticadas para a época.

50. O investimento pela ré apenas da quantia de € 3.866.417,75 em cada um dos referidos depósitos bancários teria gerado os seguintes juros:

51. A ré creditava o valor dos juros líquidos obtidos com os depósitos a prazo supra mencionados na sua conta à ordem no MILLENNIUM BCP.


52. O depósito a prazo constituído em 30 de julho de 2009, com o n.º ...89, no montante de € 3.890.000, foi estabelecido com fundos próprios da ré Massa Insolvente do Fórum Filatélico e com a quantia em discussão nos autos, no valor de € 3.866.417,75.

Foram dados como não provados os seguintes factos:

1. O empobrecimento dos Autores, no período de 14 de julho de 2009 a 18 de Outubro de 2012, ascendeu ao valor de € 529.234, 21 (quinhentos e vinte e nove mil, duzentos e trinta e quatro euros e vinte e um cêntimos).

2. Teria sido possível à ré obter a devolução do imposto cobrado com os depósitos a prazo que efetuou e constantes dos artigos 32), 24), 36) e 38) dos Factos Provados.

Analisemos:

Insurgem-se os autores/recorrentes relativamente ao acórdão da Relação, arguindo, a final, a sua nulidade, na medida em que, ao ter decidido não se encontrarem reunidos os pressupostos do enriquecimento sem causa, decidiu não analisar as demais questões suscitadas pelas partes, o que fez com que aquele acórdão ficasse ferido da nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, aplicável ex vi do 666.º do mesmo diploma.

Ora, não obstante, os recorrentes terem arguido tal nulidade no final do seu recurso, alude o nº. 1 do art. 608º do CPC., que a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica.

Assim, conheceremos, desde já, da arguida nulidade.

Dispõe o artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC que é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar: isto é, quer as que as partes tenham submetido à sua apreciação (artigo 608.º, n.º 2, 1.ª parte), quer aquelas cujo conhecimento a lei lhe permita ou imponha, por serem de conhecimento oficioso (artigo 608.º, n.º 2, 2.ª parte), a menos que o seu conhecimento se encontre prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão.

O preceito dispõe sobre o conteúdo da decisão, quer quanto a questões de facto, quer quanto a questões de direito e é legalmente vinculado.

É, com efeito, o artigo 608.º, n.º 2, do CPC que, ao delimitar a atividade de cognição jurisdicional, permite recortar o campo de aplicação do artigo 615.º, n.º 1, alínea d).

A regra permite, a leitura integrada do artigo 20.º, n.º 4, da CRP e do artigo 3.º, n.º 1, do CPC, sede do princípio dispositivo.

O legislador ordinário deixa ao autor (ou ao réu reconvinte), por um lado, a disponibilidade da tutela jurisdicional – refletida na disponibilidade de propositura e de conformação da ação (ou da reconvenção) e de ambas as partes, por outro lado, a disponibilidade do material fáctico da causa; faz impender sobre o juiz o dever de se pronunciar sobre o objeto (pedido e causa de pedir) da causa, satisfazendo o direito à tutela jurisdicional efetiva assim exercido.

A tendência é, pois, a de fazer coincidir o objeto da ação com o objeto da decisão: não se omita que o princípio dispositivo é manifestação processual do princípio da autonomia privada, cuja força centrípeta se faz sentir, desde logo, no direito à autodeterminação na dedução de pretensões em juízo. É este exercício que, em regra e salvas as exceções previstas na lei, determina os poderes de cognição do juiz.

Não significa isto, porém, que o juiz deva considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito, as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido, nem as alegações das partes têm de ser separadamente analisadas

O conceito de “questão”, deve ser aferido em função direta do pedido e da causa de pedir aduzidos pelas partes ou da matéria de exceção capaz de conduzir à inconcludência/improcedência da pretensão para a qual se visa obter tutela judicial, dele sendo excluídos os argumentos ou motivos de fundamentação jurídica esgrimidos/aduzidos pelas partes (cfr. Ac. do STJ. de 11-10-2022, in http://www.dgsi).

Omitida a pronúncia sobre questão que lhe coubesse apreciar, incorre o tribunal num erro de atividade ou error in procedendo – erro de carácter formal, por inobservância da disciplina legal do exercício do poder jurisdicional.

Mas, a omissão de pronúncia existe quando o tribunal deixa, em absoluto, de apreciar e decidir as questões que lhe são colocadas e não quando deixa de apreciar argumentos, considerações, raciocínios, ou razões invocados pela parte em sustentação do seu ponto de vista, quanto à apreciação e decisão dessas questões.

Na situação em apreço, não foi cometida qualquer omissão de pronúncia, mas antes, do ponto de vista do tribunal, a desnecessidade de conhecer outras questões apresentadas pelos recorrentes, atento o desfecho da lide, ou seja, tal como foram conhecidas algumas questões, tornou-se inócuo conhecer das demais, atenta a sua prejudicialidade.

Destarte, improcede a arguida nulidade.

Discordam os recorrentes do acórdão da Relação, o qual veio a revogar a sentença da 1ª. instância por ocorrência de erros de direito, quer quanto à determinação da eficácia retroativa da deliberação de 1-12-2008, do Conselho de Administração do Banco de Portugal, quer quanto ao acórdão da Relação de Lisboa, de 14-6-2012, quer ainda no que diz respeito à condenação de restituição, a título de enriquecimento sem causa.

Quanto à eficácia retroativa da Deliberação tomada ao abrigo alínea b) do n.º 1, do artigo 145.º do RGICSF, entendem os recorrentes que a Deliberação do Banco de Portugal sanou a situação de incumprimento em que o Banco Privado Português, S.A., tinha incorrido com a recusa da transferência.

Ora, em 1/12/2008, data da Deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal cujos efeitos se discute, vigorava a seguinte redação do artigo 145.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro:

Artigo 145.º

Outras providências

1 – Juntamente com a designação de administradores provisórios, o Banco de Portugal poderá determinar as seguintes providências extraordinárias:

a) Dispensa temporária da observância de normas sobre controlo prudencial ou de política monetária;

b) Dispensa temporária do cumprimento pontual de obrigações anteriormente contraídas;

c) Encerramento temporário de balcões e outras instalações em que tenham lugar transações com o público.

2 – O disposto na alínea b) do número anterior não obsta à conservação de todos os direitos dos credores contra os co-obrigados ou garantes.

3 – As providências referidas neste artigo terão a duração máxima de um ano, prorrogável uma só vez por igual período de tempo.

A interpretação a conferir àquela regra jurídica vem sendo controvertida.

Com efeito, resulta da alegação dos Autores que, a providência determinada pelo Conselho de Administração do Banco de Portugal que dispensou temporariamente o Banco Privado Português do cumprimento pontual de obrigações anteriormente contraídas, assumindo natureza retroativa, pouco importa que os pedidos de resgate antecipado das aplicações financeiras e de transferência de importâncias para outras instituições financeiras tenham ocorrido antes da adoção da referida Deliberação, pois, o Banco Privado Português, S.A. sempre delas se encontraria dispensado em virtude da Deliberação do Banco de Portugal de 1 de Dezembro de 2008 .

Transcreve-se a supracitada Deliberação (cujo conteúdo se encontra em https://www.bportugal.pt/en/node/6782):

«Em reunião extraordinária do dia 1 de Dezembro de 2008, o Conselho de Administração do Banco de Portugal tomou as duas seguintes deliberações:

“1. Considerando que o Banco Privado Português, após a divulgação de uma revisão da sua notação pela Moody’s no passado dia 13 de Novembro, tem vindo a enfrentar dificuldades de liquidez que se transformaram numa situação de grave desequilíbrio financeiro, confirmada por escrito no passado dia 24 pela própria Instituição ao Banco de Portugal;

Considerando que o Banco de Portugal, por carta de 25 de Novembro de 2008, determinou à referida instituição de crédito, nos termos do artigo 142º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), que apresentasse com urgência um plano de recuperação e saneamento;

Considerando que, em virtude dos riscos de contágio que aquela situação potencialmente comporta, foi possível obter a concordância de outras instituições de crédito para prestar apoio financeiro ao Banco Privado Português e que, para viabilizar esse apoio, foi concedida uma garantia do Estado, com contragarantia de activos da instituição;

Considerando que se torna necessário proporcionar à instituição de crédito em causa uma gestão ajustada às circunstâncias actuais e, designadamente, assegurar que o apoio financeiro acima referido vai ser aplicado da forma mais adequada;

Considerando, finalmente, que a administração do Banco Privado Português deve ser reorganizada segundo critérios de operacionalidade de gestão e de optimização de novas condições de confiança do público, o Conselho de Administração delibera:

Designar, nos termos das alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 143º do RGICSF, para o Banco Privado Português, os seguintes administradores provisórios:- Professor Doutor AA, que exercerá as funções de Presidente- Dr. BB Dr. CC Dra. DD. Tendo em conta a urgência da deliberação presentemente adoptada para evitar a degradação da situação financeira da instituição a que respeita, não há lugar a audiência dos interessados, nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 103º do Código do Procedimento Administrativo.

2. Considerando que o Banco Privado Português se encontra numa situação de grave desequilíbrio financeiro, confirmada por escrito no passado dia 24 pela própria Instituição ao Banco de Portugal;

Considerando que o Banco de Portugal determinou à referida instituição de crédito, nos termos do artigo 142º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), que apresentasse com urgência um plano de recuperação e saneamento; Considerando que foi possível obter a concordância de outras instituições de crédito para prestar apoio financeiro ao Banco Privado Português e que, para viabilizar esse apoio, foi concedida uma garantia do Estado, com contragarantia de activos da instituição;

Considerando o facto de o Banco de Portugal ter nomeado Administradores Provisórios para integrar o Conselho de Administração do Banco Privado Português, SA;

Considerando que o novo Conselho de Administração do Banco Privado Português tem necessidade de proceder a uma análise cuidadosa do exacto alcance das obrigações assumidas pelo Banco Privado Português no contexto da sua actividade de gestão de patrimónios, o Conselho de Administração delibera:

Nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 145º do RGICSF, dispensar o Banco Privado Português, durante um período de três meses, do cumprimento pontual de obrigações anteriormente contraídas, prioritariamente no âmbito da actividade de gestão de patrimónios, na medida em que tal se mostre necessário à reestruturação e saneamento da instituição».

Vêm os Autores alegar que, nem o pedido do Sr. Administrador de Insolvência ao Banco Privado Português, S.A., consubstanciara o mero exercício do direito de crédito do depositante à restituição do numerário que antes havia entregue ao banco depositário, por não terem sido celebrados meros contratos de depósito, mas sim contratos de gestão de carteira, bem como, a obrigação de transferência dos fundos – requerida pelo Sr. Administrador de Insolvência em 21 de Novembro de 2008 – só se venceria em 26 de Novembro de 2008, já dois dias depois de o Banco ter desencadeado, junto do Banco de Portugal, o procedimento que veio a determinar a adoção por este da Deliberação de 1 de Dezembro de 2008).

Assim, a eficácia temporal desta Deliberação é, para os Autores, determinante.

Entendendo-se que esta goza de eficácia retroactiva, a conservação dos fundos que vieram a ser transferidos para a esfera da Ré em 14 de julho de 2009 (ponto 19 dos Factos Provados) até ao trânsito em julgado do Acórdão que revogou o Despacho que, por sua vez, determinara aquela transferência (em 17 de Dezembro de 2008 - ponto 14 dos Factos Provados), se não ilícita, determinou i) um enriquecimento da Ré, que, ii) por ser injustificado, iii) importa restituir.

Neste sentido decidiu a 1ª. Instância, afirmando que esta deliberação do Banco de Portugal veio sanar a situação de incumprimento que o Banco Privado Português, S.A., tinha incorrido com a recusa de transferência da quantia em discussão nos presentes autos [...].

E a mesma eficácia atribuiu ao Acórdão proferido em 14 de Junho de 2012, no Processo n.º 726/06.5TYLSB-AJ.L18, no trecho em que se lê: "a Administração Provisória que havia sido designada pelo Banco de Portugal para gerir os destinos do “BANCO, S.A.”, estava legitimada a recusar a transferência dos fundos aplicados pela Massa Insolvente do A…SA, na medida em que tal se mostrasse necessário para assegurar a reestruturação financeira que estava em curso e que fora determinada pela entidade com exclusiva competência para o efeito - o Banco de Portugal.”.

Ora, a título de mero enquadramento, deve ter-se em conta que, à data dos factos relevantes, se encontrava vigente o Decreto-Lei n.º 1/2008, de 3 de janeiro, que procedeu à 12.ª alteração ao Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), no sentido de atribuir ao Banco de Portugal competências no domínio da supervisão comportamental daquelas entidades.

No RGICSF então vigente, regulava-se o processo de saneamento das instituições de crédito, desencadeado por uma comunicação do seu órgão de administração ou fiscalização ao Banco de Portugal. Assim, quando uma instituição de crédito se encontrasse impossibilitada de cumprir as suas obrigações, ou em risco de o ficar – situação de desequilíbrio financeiro, traduzido, designadamente, na redução dos fundos próprios a um nível inferior ao mínimo legal ou na inobservância dos rácios de solvabilidade ou de liquidez (artigo 141.º) – podia o Banco de Portugal adotar providências extraordinárias de saneamento.

As finalidades que o artigo 145.º visavam realizar e que resultavam, desde logo, do disposto no artigo 139.º, n.º 1, do mesmo diploma era a proteção dos interesses dos depositantes, investidores e outros credores e a salvaguarda das condições normais de funcionamento do mercado monetário, financeiro ou cambial e o Banco de Portugal poderia adotar, relativamente às instituições de crédito com sede em Portugal, as providências referidas no presente título [...]– entre estas, as previstas no artigo 145.º.

Falava-se, a este propósito, em medidas, ou procedimentos, de saneamento: a autoridade de supervisão interviria, no exercício de poderes funcionais, concorrendo para a viabilização da instituição bancária ao procurar obviar à liquidação universal, desencadeada com a revogação da autorização para o exercício da atividade bancária.

Como se aludiu no Ac. da RL. de 20-1-2011, in http://www.dgsi «A ideia é a de conservar todos os recursos financeiros da entidade em crise, para melhor os poder gerir, na perspetiva de, tanto quanto possível, se vir a obter a sua recuperação, sendo que desta se irão aproveitar subsequentemente todos os credores.

Pretende-se, justamente, evitar que saiam recursos da entidade em crise, que beneficiando apenas alguns credores, poderão vir a implicar o prejuízo de muitos mais, bem como e em última análise, o tecido económico empresarial do País, caso a recuperação não venha a ter lugar».

Ora, no caso em apreço, o Sr. Administrador de Insolvência requerera ao Banco Privado Português, S.A., a transferência do montante de € 3.866.417,75 para a esfera da Ré, aquando da intervenção do Banco de Portugal.

O artigo 145.º do RGICSF dispunha sobre a exigibilidade de créditos – tornando-os inexigíveis desde o momento em que são aplicadas as medidas aí previstas.

A medida prevista no art. 145.º do RGICSF de dispensa temporária do cumprimento pontual de obrigações anteriormente contraídas é de índole compulsiva, apta a produzir efeitos logo que adotada, sem necessidade de aquiescência ou de qualquer ato de adesão por parte da visada.

No caso dos autos, a obrigação vencia-se em 26 de novembro de 2008, datando a Deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal de 1 de dezembro de 2008.

Na situação em apreciação, a obrigação não só era exigível, como se encontrava vencida à data da Deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal de 01/12/2008 – e não pode considerar-se abrangida pelo regime previsto no artigo 145.º, n.º 1, al. b). Isto mesmo se retira, em primeiro lugar, da letra do artigo 145.º, n.º 1, al. b), já transcrito.

A dispensa do cumprimento só pode entender-se aplicável, justamente, aos casos em que o cumprimento ainda pode produzir a sua eficácia liberatória típica, extinguindo o crédito como contrapartida da prestação (cfr. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. II, 11ª, ed., Almedina, pág. 141).

Ora, ocorrido o vencimento da obrigação, a transferência daquele montante não tem já, sequer, a natureza jurídica de cumprimento – a menos que, e uma vez que não pode entender-se ter o credor, a Ré, perdido o interesse na prestação, tenha sido fixado um prazo suplementar de cumprimento (o que não se provou).

Veja-se, aliás, não existir qualquer previsão, no âmbito do RGICSF vigente à data, que obstasse, por exemplo, ao cumprimento de decisão judicial condenatória com fundamento no incumprimento contratual, designadamente, que permitisse paralisar o exercício de qualquer pretensão, nomeadamente, ressarcitória fundada em facto anterior à aplicação das medidas que a Lei autorizava o Banco de Portugal a lançar mão.

É certo que, a par da necessidade de salvaguardar, as condições normais de funcionamento do mercado monetário, aquelas medidas visam, também, proteger os interesses dos depositantes. Mas o alcance desta proteção tem, como horizonte, a situação em que, com a quebra da confiança geral que uma falência bancária sempre acarreta, ocorra uma corrida aos depósitos, que o banqueiro não está em condições de, em simultâneo, satisfazer (cfr. António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 3ª. ed., Almedina, 2006, pág. 810).

Os factos relevantes quanto à exigibilidade do crédito, bem como os atinentes ao incumprimento da obrigação, são anteriores à Deliberação.

É certo que, entre solicitação de transferência e a data em que a obrigação de transferência se venceu, ocorreu a comunicação, ao Banco de Portugal, do risco de impossibilidade de cumprir obrigações (nos termos do vigente artigo 140.º do RGICSF). Mas esta comunicação não produz, por si só, os efeitos que só as providências extraordinárias de saneamento podem produzir. E não pode pretender-se que o desiderato das regras previstas nos artigos 139.º e seguintes do RGICSF fosse a resolução potestativa, por parte do Banco de Portugal, de quaisquer atos praticados pelo Banco em apuros financeiros que implicassem a diminuição dos valores aí depositados ou investidos.

Pode discutir-se, se, tornando-se exigível ou vencendo-se a obrigação após 01/12/2008, o Banco Privado Português, S.A., se encontraria dispensado do cumprimento. Essa não é, contudo, a questão suscitada, pois, aqui, pretende-se saber se a Deliberação do Banco de Portugal sana um pretérito incumprimento, o que não sucede, dado que, a situação de incumprimento já se havia consumado antes da Deliberação do Banco de Portugal.

Irrelevam, assim, as alegações dos Autores no que diz respeito à natureza do direito exercido pelas Rés ao solicitar a transferência do montante de € 3.866.417,75 e irreleva, igualmente, que a comunicação, ao Banco de Portugal, da situação financeira em que se encontrava o Banco Privado Português, S.A., seja anterior ao incumprimento.

Esta eficácia temporal, preconizando a aplicação para futuro destas medidas é, aliás, condizente com a natureza jurídica das deliberações em causa.

Trata-se, com efeito, de atos administrativos, que não têm eficácia retroativa fora dos casos previstos no atual artigo 156.º do Código do Procedimento Administrativo (128.º do Código do Procedimento Administrativo então vigente).

Assim, não previa, o direito aplicável, a retroatividade daquelas deliberações, não assistindo razão aos recorrentes, quando pretendem da ré, a transferência do aludido montante.

Discordam também os recorrentes relativamente ao decidido no concernente aos efeitos do acórdão proferido em 14-6-2012, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do Processo n.º 726/06.5TYLSB-AJ.L1, entendendo que o Tribunal, não procedeu a uma correta apreciação das questões sobre as quais se pronunciou, nomeadamente quanto à questão atinente à abrangência de caso julgado.

Ora, os factos provados com pertinência são essencialmente os seguintes:

13. O Senhor Administrador de Insolvência da ré requereu no processo principal da ora ré que o Banco Privado Português, S.A., fosse notificado para proceder à transferência dos fundos depositados nessa instituição para outra instituição bancária por si indicada, alegando ter solicitado tal transferência ao Banco Privado Português, S.A., e que tal solicitação não foi satisfeita.

14. Na sequência do pedido do Senhor Administrador da Insolvência da ré, em 17 de dezembro de 2008, foi proferido despacho que ordenou a notificação do Banco Privado Português, S.A., para proceder em conformidade com o requerido pelo Administrador de Insolvência, sob cominação de que não o fazendo no prazo máximo de 10 dias incorrer na prática de um crime de desobediência, nos termos constantes do documento n.º 12, junto com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

15. Em 13 de Janeiro de 2009, o Banco Privado Português, S.A., requereu a aclaração do referido despacho, invocando que a sua grave situação económico-financeira e as medidas de reestruturação e saneamento adotadas pelo Banco de Portugal constituíam impedimento legítimo ao cumprimento da ordem de transferência dos fundos da titularidade da ré para a conta bancária indicada pelo Senhor Administrador de Insolvência da ré.

16. Em 6 de Maio de 2009, foi proferido despacho que renovou a ordem contida no despacho de 17 de dezembro de 2008, tendo sido novamente ordenada a notificação do Conselho de Administração do Banco Privado Português, S.A., para, em 5 dias, proceder à transferência dos fundos que a ré entregou ao Banco Privado Português, S.A.

17. Em 15 de Maio de 2009, o Banco Privado Português, S.A., interpôs recurso de agravo, tendo requerido a atribuição de efeito suspensivo no que respeita ao cumprimento do despacho que ordenara a transferência dos fundos.

18. Por despacho datado de 2 de julho de 2009, o recurso interposto pelo Banco Privado Português, S.A., foi admitido, tendo sido indeferido o pedido de efeito suspensivo do recurso, nos termos constantes do documento n.º 16, junto com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

21. Por despacho datado de 22 de setembro de 2009, foi indeferida a constituição da cautela de prevenção requerida pelo Banco Privado Português, S.A.

22. O Banco Privado Português, S.A., impugnou o referido despacho por via de recurso.

23. Foi proferido acórdão pela 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos constantes do documento n.º 22, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, em 14 de junho de 2012.

24. Neste acórdão foi decidido que “I - Não se aplicam às instituições de crédito os regimes gerais relativos aos meios preventivos da declaração de falência e aos meios de recuperação de empresas e proteção de credores. II - Essas instituições estão submetidas a um regime específico, com o objetivo de proteção dos interesses dos depositantes, investidores e outros credores, para efeitos de salvaguarda das condições normais de funcionamento do mercado monetário, financeiro ou cambial, por força do preceituado no n.º 2 do art. 139.º do RGICSF. III - Tal regime regula o saneamento e liquidação das instituições de crédito e sociedades financeiras, sendo que, nos termos da norma jurídica citada, o Banco de Portugal poderá decretar, excecionalmente e por tempo limitado, providências extraordinárias, tais como o deliberar a dispensa de cumprimento pontual de obrigações já contraídas, entre outras. IV - Neste contexto, há que concluir, ao contrário do despacho agravado, que a Administração Provisória que havia sido designada pelo Banco de Portugal para gerir os destinos do “BANCO…SA”, estava legitimada a recusar a transferência dos fundos aplicados pela Massa Insolvente identificada nos autos, na medida em que tal se mostrasse necessário para assegurar a reestruturação financeira que estava em curso e que fora determinada pela entidade com exclusiva competência para o efeito - o Banco de Portugal. V - Destarte, as providências extraordinárias de saneamento do “BANCO…SA”, que o Banco de Portugal decretou, subsistiriam se e enquanto se verificasse a situação que as determinou, nos termos do art. 146º do RGICSF. VI - Assim sendo, verificando-se a necessidade de adoção de medidas extraordinárias com o propósito de assegurar a estabilidade do sistema financeiro e a proteção dos depositantes e de outros credores, não encontra fundamento a determinação judicial da transferência coerciva dos fundos que pertenciam a um único interessado - a referida Massa Insolvente - só porque o respetivo Administrador apresentara ao MMº Juiz do processo de insolvência um requerimento nesse sentido. VII - Estando o “BANCO…SA” dispensado do cumprimento pontual de obrigações anteriormente contraídas, sem exclusão das que estavam conexionadas com os fundos que concretamente haviam sido aplicados pelo Administrador da Massa Insolvente, ao abrigo e na sequência da deliberação do Banco de Portugal, era à Administração Provisória do “BANCO...SA” que cabia fazer a avaliação da concreta situação e decidir em conformidade. VIII - E não o Tribunal a quo, que não tem de sindicar os resultados dessa avaliação ou de se intrometer numa área da exclusiva competência da aludida Administração. Está, pois, vedada ao Tribunal a quo a imposição da transferência de fundos pertencentes à referida Massa Insolvente ou a qualquer outro interessado.”

25. Este acórdão transitou em julgado em 18 de outubro de 2012.

Sobre esta questão, consta do acórdão recorrido, o seguinte:

« Com efeito, conforme resulta do teor do comunicado do Banco de Portugal sobre o Banco Privado Português de 01/12/2008, o Conselho de Administração do Banco de Portugal deliberou o seguinte: “Nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 145º do RGICSF, dispensar o Banco Privado Português, durante um período de três meses, do cumprimento pontual de obrigações anteriormente contraídas, prioritariamente no âmbito da actividade de gestão de patrimónios, na medida em que tal se mostre necessário à reestruturação e saneamento da instituição”.

Essa deliberação, como se refere no Acórdão de 14/06/2012, sem dúvida que legitimou a Administração Provisória que havia sido designada pelo Banco de Portugal para gerir os destinos do BPP, “a recusar a transferência dos fundos aplicados pela Massa Insolvente do FORUM FILATÉLICO, na medida em que tal se mostrasse necessário para assegurar a reestruturação financeira que estava em curso e que fora determinada pela entidade com exclusiva competência para o efeito – o Banco de Portugal” . Mas o facto de a Relação ter concluído pela ilegalidade do despacho que havia ordenado a notificação do Conselho de Administração do BPP, S.A. a proceder coercivamente à transferência de fundos que a aqui Ré havia depositado nessa instituição financeira, não permite concluir, sem mais, que a deliberação do Banco de Portugal de 01/12/2008 havia sanado “a situação de incumprimento” por parte do BPP, S.A., desde logo, porque a situação de incumprimento já se havia consumado antes de ser conhecida a deliberação do Banco de Portugal. O incumprimento contratual do BPP, SA. ocorreu, tal como ficou a constar da sentença recorrida, o que as partes não impugnaram. Além do mais, no mencionado comunicado do Banco de Portugal nem sequer se refere a deliberação do Conselho de Administração do BPP de 24/11/2008.

Cremos que também não podemos atribuir ao Acórdão da Relação de Lisboa de 14/06/2012, já várias vezes mencionado, “os efeitos retroactivos” que tanto o tribunal, como as AA. lhe assacam, com vista a legitimar a recusa do BPP a transferir os saldos das contas de que a Ré era titular junto desse Banco, bem como os juros vencidos das aplicações contabilizadas até à data da transferência.

Com efeito, quanto à eficácia temporal do caso julgado, deduz-se do artigo 611º, nº 1 do CPC que tem por referência a situação existente no momento do encerramento da discussão em 1ª instância. Em regra, o caso julgado não abrange o tempo anterior ao encerramento da discussão. Daí que somente em situações excepcionais tenha eficácia retroactiva. , o que acontece nas acções constitutivas com valor “ex nunc”, pois todas as outras se reportam ao momento do encerramento da discussão em 1ª instância.

Acresce que a eficácia do caso julgado não abrange toda a sentença. Limita-se aos efeitos concretos que as partes tiveram em vista ao litigarem a acção. Por isso se diz que “a força de caso julgado cobre apenas a resposta dada a essa pretensão, e não os fundamentos, os motivos ou o raciocínio lógico operado para lograr tal resposta.” Dito de outro modo, o caso julgado abrange a parte decisória da sentença final, excluindo, em princípio dessa abrangência, os fundamentos de facto da sentença final. Ou, como diz TEIXEIRA DE SOUSA, “não adquirem valor de caso julgado quando são autonomizados da respectiva decisão judicial. Esses fundamentos não valem por si mesmos, isto é, não são vinculativos quando desligados da respectiva decisão, pelo que eles valem apenas enquanto fundamentos da decisão em conjunto com esta.”

Tudo isto para dizer que os efeitos do caso julgado formado pelo acórdão desta Relação de 14/06/2012, proferido no proc. nº 726/06.5TYLSB-AJ.L1, que declarou a ilegalidade do despacho de 06/05/2009 que havia ordenado a notificação do Conselho de Administração do BPP, S.A. para proceder coercivamente à transferência de fundos que a Massa Insolvente do FORUM FILATÉLICO havia depositado naquela instituição financeira – e o revogou, cingem-se apenas à questão da legitimidade de a Administração Provisória do BPP nomeada pelo Banco de Portugal não acatar a ordem de transferência de fundos dada pelo tribunal e repercutem-se tão só no despacho recorrido que determinou a notificação da referida Administração para a realização dessa transferência, como, aliás, consta do dito acórdão. E, no que respeita a sua eficácia temporal, temos de concluir que, como é regra, não tem efeitos retroactivos, determinando apenas a revogação do despacho a partir da data do respectivo trânsito.

Concordamos, pois, com a Ré/Recorrente quando, na motivação das suas alegações refere que “não é a actuação da Administração Provisória do BPP que está em causa, antes a actuação do Conselho de Administração do BPP, então em pleno exercício de funções, no período que antecedeu o início do processo de saneamento e reestruturação do BPP – maxime, em 24.11.2008, data em que deliberou cessar todos e quaisquer pagamentos a clientes [1) dos Factos Provados], isto é, 'a recusa do Banco Privado Português, S.A., em transferir os saldos das contas que a ré era titular junto do Banco Privado Português, S.A.' reporta-se a 24.11.2008 e é da autoria do Conselho de Administração do BPP, não da Administração Provisória que, em 01.12.2008, veio a ser designada pelo Banco de Portugal e incumbida de liderar o processo de saneamento e reestruturação do BPP.” Daí ser legítimo concluir, como conclui a Ré/Recorrente, que “o acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 14.06.2012 proferido no Processo n.º 726/06.5TYLSB-AJ.L1-8 não fundamentou, nem justificou – muito menos, com 'efeitos retroactivos' - o incumprimento do BPP perante a Ré e ora recorrente, ao recusar a transferência dos €3.866.417,75 para outra instituição bancária” [11) e 12) dos Factos Provados].

O explanado merece a nossa concordância.

Efetivamente, dispõe o art. 621º do CPC, que a sentença constitui caso julgado nos precisos termos em que julga (…).

A revogação do despacho de 06/05/2009, que ordenou a transferência do montante de € 3.866.417,75 para conta titulada pela Ré, atinge o despacho recorrido, não projetando, porém, os seus efeitos, sobre os efeitos da Deliberação tomada pelo Conselho de Administração do Banco de Portugal.

Não foi, aliás, deduzida, no âmbito daquele processo de insolvência, qualquer pretensão atinente àquela Deliberação.

Por outro lado, não se descortina a razão por que teria este Acórdão eficácia retroativa; se a tivesse, esta só relevaria, no quadro do raciocínio expendido acima, se remontasse a momento prévio ao incumprimento, pelo Banco Privado Português, S.A., da obrigação de transferir os fundos solicitados pelo Sr. Administrador de Insolvência.

Posto isto, o que se pode perguntar é se o Acórdão proferido em 06/05/2009 irradia quaisquer efeitos vinculatórios da apreciação.

Ora, pese embora a Deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal tenha enquadrado, juridicamente e como pressuposto de direito, as questões discutidas naquele Acórdão, do mesmo, aquela não foi objeto, pelo que a apreciação do Tribunal não formou, sobre a interpretação a conferir-lhe, caso julgado.

De acordo com a jurisprudência, a força do caso julgado material abrange, para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado, mas também, as decisões de questões fáctico-jurídicas prévias ou preliminares ao thema decidendum tão lógica e necessariamente conexas com o segmento decisório que este não pode delas ser dissociado na definição do quadro substantivo envolvente.

O caso julgado incide sobre a decisão e a motivação, desde que seja um antecedente lógico dela, indispensável a reconstituir e fixar o respetivo conteúdo, que os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado, de molde a poderem impor-se extraprocessualmente ou que não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos (de facto e de direito) e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão (cfr. Acs. do STJ. de 19-9-2024, 28-3-2019, 29-9-2004, in http://www.dgsi.).

Assim, os efeitos do caso julgado formado pelo acórdão proferido em 14-6-2012, pelo TRL., apenas se reportam à questão da legitimidade da Administração Provisória do BPP, não se reportando a quaisquer efeitos retroativos atinentes ao incumprimento do BPP.

De igual modo, não assistindo razão aos recorrentes, quanto a este segmento do recurso.

Preconizam ainda os recorrentes, a existência de um enriquecimento sem causa por banda da ré.

A previsão normativa do artigo 473.º, n.º 1, do Código Civil, integra três elementos, pressupostos genéricos do instituto: a obtenção de um enriquecimento; à custa de outrem; sem causa justificativa.

A função do instituto é a de reprimir aquisições injustificadas, independentemente da qualificação da ação do interventor que as originou. E é justamente no plano da justificação – da causa, entendida como norma permissiva ou de obrigação, que, incidindo sobre a deslocação patrimonial, a torne elemento estatuído e não previsivo da obrigação de restituir (cfr. António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º vol., Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1980, pág. 46).

Como escreveu Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9ª. ed., Almedina, pág. 447-449 «Na base do instituto do enriquecimento sem causa, como o seu próprio nome já denuncia, encontra-se a ideia de que pessoa alguma deve locupletar-se à custa alheia».

São seus requisitos:

- A existência de um enriquecimento;

- Que esse enriquecimento se obtenha à custa de outrem;

- A falta de causa justificativa.

Tendo em consta, o que resulta dos factos provados, aludiu o acórdão recorrido, «Perante esta factualidade, não subsistem quaisquer dúvidas que quem incumpriu a relação contratual estabelecida entre as partes foi o BPP, S.A. – e não a Ré – , que “violou, em particular, os seus deveres de diligência e de confiança ao recusar dar cumprimento ao pedido efectuado pela Ré, em 21 de Novembro de 2008, de resgate das aplicações financeiras supramencionadas e a transferência para outra instituição financeira dos saldos das constas de que a Ré era titular junto do Banco Privado Português, S.A., bem como dos juros vencidos das aplicações contabilizadas até à data da transferência.” (cfr. pág. 36 da sentença recorrida).

À ora Ré, como cliente do Banco, não se pode assacar qualquer incumprimento contratual. Tal como previsto no clausulado contratual, limitou-se a solicitar a devolução (transferência) dos valores depositados, acrescidos dos juros vencidos por cada uma das aplicações, contados até à data da transferência. Esse pedido corresponde ao exercício do direito de crédito do depositante à restituição do numerário que antes havia entregue ao banco depositário. Consequentemente, a partir do momento em que a Ré solicitou a transferência dos fundos aplicados e respectivos juros, o banco não poderia sustentar que continuava a ser proprietário desses valores. De todo o modo, essa transferência ocorreu por acto voluntário do próprio banco que acabou por acatar o despacho do tribunal que lhe havia ordenado o cumprimento do pedido de 21/11/2008. Podemos, assim, afirmar que cumpriu, voluntariamente, a obrigação que sobre ele impendia, o que, aliás, decorria do contrato que havia celebrado com a cliente, ora Ré.

Cremos, assim, que a existir um enriquecimento da Ré à custa das AA., teria sempre ocorrido com uma causa justificativa. Por um lado, teríamos o consentimento do “empobrecido”, o qual, ao celebrar com a Ré os vários contratos de depósito com subscrição de aplicações financeiras de retorno absoluto, concordou que esta os resgatasse nas condições acordadas e pudesse aplicar o capital e os juros vencidos que lhe foram restituídos conforme bem entendesse, designadamente depositando-os noutro banco, a prazo, auferindo, assim os juros convencionados. Por outro, o eventual enriquecimento seria ainda uma decorrência de uma decisão judicial – o despacho de 17/12/2008 – o qual, apesar de não ter transitado em julgado e ter sido posteriormente revogado, serve de causa justificativa, não podendo ser eliminado por via do enriquecimento sem causa, a não ser através da revogação ou eliminação dos efeitos daquela decisão, nos casos e pelos meios previstos na lei. Ora, já vimos que o caso julgado formado pelo acórdão desta Relação de 14/06/2012, proferido no proc. nº 726/06.5TYLSB-AJ.L1, não tem efeitos retroactivos, nem abrangia a obrigação de devolução dos montantes antes transferidos pelo BPP para conta que a Ré lhe havia indicado.

Em suma, como se disse no Acórdão da Relação de Coimbra de 24/09/2013, antes citado em nota, “a inexistência de causa justificativa para determinado enriquecimento – enquanto pressuposto da obrigação de restituir com fundamento em enriquecimento sem causa – ocorre quando esse enriquecimento não está de harmonia com o ordenamento jurídico geral, porque não está previsto na lei e porque não é aprovado ou consentido pelos princípios gerais do sistema jurídico”.

Ora, na situação dos autos, o “enriquecido” mais não fez do que rentabilizar, da melhor forma que achou, os fundos que lhe pertenciam em exclusivo. Por isso, se a causa do enriquecimento não é injusta – como é o caso – não existe obrigação de restituir».

O transcrito no acórdão recorrido merece a nossa concordância.

Sucede que os recorrentes vêm alegar o desaparecimento superveniente da causa justificativa da deslocação patrimonial em favor da Ré.

Parece que pretendem aludir à hipótese de condictio ob causam finitam – como modalidade de enriquecimento por prestação, ainda compreendida pelo artigo 473.º, n.º 2, do Código Civil.

Esta condictio tem como elemento característico a circunstância de, no momento em que é realizada a prestação, para esta existir causa jurídica. Posteriormente, porém, a causa justificativa desaparece, ou é suprimida, surgindo assim a pretensão dirigida à restituição do enriquecimento – agora, carecido de causa.

As constelações de casos aqui enquadráveis são múltiplas, mas, com especial interesse para o caso em questão, perfila-se a hipótese de obrigações de restituir pela posterior extinção do direito à prestação já recebida. Nestes casos, extingue-se, posteriormente à realização da prestação, o direito que titulava o seu recebimento; assim, o enriquecido deixa de ter causa para a retenção (causa retentionis) e deve proceder à restituição.

Ora, os autores afirmam, a este propósito, o seguinte: «Conforme veio a ser confirmado pelo Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 14.06.2012, que considerou ilegal o despacho recorrido que havia ordenado a notificação do BPP para proceder à transferência dos fundos que a Recorrida havia aplicado naquela instituição».

Não resulta claro, do trecho transcrito, se pretendem os Autores afirmar que a causa justificativa se encontrava no Despacho – tendo desparecido com o proferimento da decisão que o revogou – ou na relação contratual que os ligava à Ré, atingida pela Deliberação do Banco de Portugal. Isto é, ou esta deslocação deixara de ter fundamento em face da Deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal ou, mesmo que assim não fosse, a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa que revogou o Despacho de 06/05/2009 eliminaria a causa justificativa da transferência.

Ora, a ausência de causa, emerge da inexistência de normas jurídicas que, a título permissivo ou de obrigação, levem a considerar o enriquecimento como coisa estatuída, isto é, tolerada ou querida pelo Direito.

À data da operação de transferência, esta era, com efeito, querida pelo Direito – determinada, desde logo, pelas regras emergentes dos negócios jurídicos celebrados entre Autores e Ré, inatingidos, nos termos já descritos, pela Deliberação do Banco de Portugal. Esta alcança as obrigações anteriormente contraídas e, eventualmente, exigíveis, mas seguramente não as já vencidas.

Também quanto à eficácia do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa já nos pronunciámos, afastando-se, a construção dos recorrentes.

Contudo, o enriquecimento nunca teria como causa a decisão judicial, no caso, um despacho, sem prejuízo do argumento atento o seu conteúdo. Aquele despacho não constituiu o direito à transferência, antes, interpretando o disposto no artigo 145.º, n.º 1, al, b) do RGICSF, reconheceu o direito à prestação da Ré.

A causa justificativa permanece incólume, em conformidade com tudo quanto atrás se disse.

Não se verifica qualquer enriquecimento injusto, não havendo lugar a qualquer obrigação de restituir.

Desta feita, decai a pretensão, na sua totalidade.

Sumário:

-A omissão de pronúncia existe quando o tribunal deixa, em absoluto, de apreciar e decidir as questões que lhe são colocadas e não quando deixa de apreciar argumentos, considerações, raciocínios, ou razões invocados pela parte em sustentação do seu ponto de vista, quanto à apreciação e decisão dessas questões.

- O Decreto-Lei n.º 1/2008, de 3 de janeiro procedeu à 12.ª alteração ao Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), no sentido de atribuir ao Banco de Portugal competências no domínio da supervisão comportamental daquelas entidades.

- As finalidades que o artigo 145.º do RGICSF, vigente à data, visavam realizar e que resultavam, desde logo, do disposto no artigo 139.º, n.º 1, do mesmo diploma era a proteção dos interesses dos depositantes, investidores e outros credores e a salvaguarda das condições normais de funcionamento do mercado monetário, financeiro ou cambial.

- Os factos relevantes quanto à exigibilidade do crédito, bem como os atinentes ao incumprimento da obrigação, são anteriores à Deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal e a comunicação da situação financeira em que se encontrava o Banco Privado Português, S.A, é anterior ao incumprimento.

- Os efeitos do caso julgado formado pelo acórdão da Relação de 14/06/2012, proferido no proc. nº 726/06.5TYLSB-AJ.L1, que declarou a ilegalidade do despacho de 06/05/2009 que havia ordenado a notificação do Conselho de Administração do BPP, S.A. para proceder coercivamente à transferência de fundos que a Massa Insolvente do FORUM FILATÉLICO havia depositado naquela instituição financeira – e o revogou, cingem-se apenas à questão da legitimidade de a Administração Provisória do BPP nomeada pelo Banco de Portugal não acatar a ordem de transferência de fundos dada pelo tribunal e repercutem-se tão só no despacho recorrido que determinou a notificação da referida Administração para a realização dessa transferência.

- A ausência de causa, no enriquecimento sem causa, emerge da inexistência de normas jurídicas que, a título permissivo ou de obrigação, levem a considerar o enriquecimento como coisa estatuída, isto é, tolerada ou querida pelo Direito.

- À data da operação de transferência, esta era, com efeito, querida pelo Direito – determinada, desde logo, pelas regras emergentes dos negócios jurídicos celebrados entre Autores e Ré.

3- Decisão:

Nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedente a revista.

Custas a cargo dos recorrentes.

Lisboa, 9 de abril de 2025

Maria do Rosário Gonçalves (Relatora)

Anabela Luna de Carvalho

Teresa Albuquerque