Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1233/13.5YRLSB.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: SOUTO DE MOURA
Descritores: RECURSO
INCIDENTES
COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO
AUTORIDADE JUDICIÁRIA
TRIBUNAL DE COMARCA
SEGREDO PROFISSIONAL
LEGITIMIDADE
ESCUSA
COMPETÊNCIA
TRIBUNAL SUPERIOR
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data da Decisão Sumária: 10/16/2014
Votação: --------------
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO O RECURSO
Área Temática:
DIREITO CONSTITUCIONAL - ORGANIZAÇÃO DO PODER POLÍTICO / ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA / ORGANIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO / COMISSÕES PARLAMENTARES DE INQUÉRITO.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - PROVA / MEIOS DE PROVA / SEGREDO PROFISSIONAL - RECURSOS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 12.º, N.º3, AL. A), 135.º, N.ºS 1, 2 E 3, 182.º, 399.º, 414.º, Nº 2, 417.º, N.ºS 4 E 6, AL. B), 420.º, Nº 1 AL. B), 432.º, 433.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 34.º, 178.º, N.º 5.
RJIP (REGIME JURÍDICO DOS INQUÉRITOS PARLAMENTARES, APROVADO PELA LEI 5/93, DE 01-03): - ARTIGO 13.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 6/12/2007, PROCESSO N.º 3215/07.
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ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA, DE 13/8/2008, DR Nº 63.º, SÉRIE I, DE 31/3/2008.
Sumário :

I - Face ao art. 178.º, n.º 5, da CRP, e ao art. 13.º, n.º 1, do RJIP (Regime Jurídico dos Inquéritos Parlamentares, aprovado pela Lei 5/93, de 01-03) existe uma equiparação, quanto a poderes de investigação, das Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) às autoridades judiciais, por não estar em causa uma reserva constitucional destas, como a que ocorre para proteger a inviolabilidade do domicílio ou o segredo de correspondência e demais meios de comunicação. Tal significa que se impõe lançar mão da regulamentação penal do incidente da quebra de segredo profissional.
II - A CPI solicitou a R “peças jornalísticas não editadas” e “imagens recolhidas no local do acidente”, o que nos coloca perante prova documental e nos remete para o art. 135.º, n.ºs 2 e 3, por remissão do art. 182.º, ambos do CPP. O incidente em questão regulado no referido art. 135.º, nºs. 1 e 2, do CPP distingue dois momentos de tramitação que respondem a duas questões distintas. Primeiro importa determinar a legitimidade da escusa. Depois, entendendo-se que a escusa é legítima, há que ver se se justifica a quebra do segredo.
III -A questão da legitimidade da invocação do segredo é da competência da autoridade judicial onde o incidente surgiu. A decisão sobre a quebra do segredo é da competência do tribunal que lhe for superior. O legislador quis que a competência para emitir esse juízo fosse de um tribunal hierarquicamente superior, porque face à natureza da questão, achou por bem estabelecer maior distanciamento e maior qualificação da entidade decisora.
IV - A decisão que o Tribunal da Relação proferiu em primeira mão (de apreciação da justificação da escusa), não deve ser considerada proferida em 1.ª instância, para efeito da al. a) do n.º 1 do art. 432.º do CPP. As decisões que a Relação profere em 1.ª instância não são as decisões apreciadas pela primeira vez, sem exceção, logo na Relação. São as decisões em que a Relação funciona como tribunal de 1.ª instância. Ou seja, quando exerce uma competência que por regra é cometida à 1.ª instância e excepcionalmente, designadamente em atenção à qualidade do arguido, se atribui à Relação (al. a) do n.º 3 do art. 12.º do CPP).
V - A regulamentação processual que o legislador entendeu fazer, do incidente de quebra de segredo, afasta-se da atribuição normal de competência para atos de investigação ou instrução, e portanto do regime geral de recursos. O legislador antecipou-se a um possível recurso, da decisão que fosse proferida na 1.ª instância, com benefício em termos de celeridade, atribuindo logo competência decisória em primeira mão, à instância para a qual seria interposto o recurso. O acórdão de que se recorreu, proferido pelo Tribunal da Relação ao abrigo do n.º 3 do art. 135.º do CPP, é assim irrecorrível.
Decisão Texto Integral:


1. A ... Comissão de Inquérito Parlamentar... (doravante ... Comissão) foi criada pela Resolução da Assembleia da República (AR) nº 91/2012, de 13/7/2012 (DR nº 142, Série I, de 24/7/2012), propondo-se continuar a averiguação das causas e circunstâncias em que, a 4/12/1980, ocorreu a morte do então Primeiro-Ministro ..., do Ministro ... e das pessoas que os acompanhavam.
A ... Comissão pediu então à ..., SA, (...) em 4/6/2013, "o envio das peças jornalísticas de 4 de Dezembro de 1980, não editadas, bem como todas as imagens recolhidas no local do acidente e não editadas, sobre a queda do avião que vitimou, entre outros, o Primeiro-Ministro Dr. ... e o Ministro ...".
Tal pedido resultou de requerimento apresentado pelos Grupos Parlamentares do ... e do ... e aprovado por unanimidade em reunião da Comissão de 30/5/2013, e fundava-se aos poderes de investigação das Comissões Parlamentares de Inquérito conferidas pelo art. 13.º, do Regime Jurídico dos Inquéritos Parlamentares (RJIP), aprovado pela Lei nº 5/93, de 1 de março (com as alterações das Leis nºs 126/97, de 10 de dezembro, e 15/2007, de 3 de abril), complementado com as sanções previstas no artigo 19º da referida lei para os casos de incumprimento.
Em ofício de 25/7/2013, o Conselho de Administração (CA) da ... transmitiu à Comissão a recusa em disponibilizar os conteúdos solicitados, invocando para o efeito "o sigilo previsto no artigo 38º, nº 2, alínea b) da Constituição da República Portuguesa (CRP), bem como... no artigo 11º do Estatuto do Jornalista (EJ)".
Foi então que, na sequência da reunião de 8/10/2013 da ... Comissão, foi deliberado por unanimidade "requerer, nos termos dos artigos 135º e 182º do CPP, ao Tribunal da Relação de Lisboa a quebra do segredo e a entrega das gravações;", o que de facto teve lugar, nos termos conjugados dos art. 178.º, nº 5, da CRP, 11º do EJ, 13º do RJIP e 135º e 182º do CPP. Isto, embora se considerasse legítima a escusa invocada.

2. A ..., notificada para o efeito, veio pronunciar-se sobre o pedido de levantamento do segredo profissional apresentado pela ... Comissão, alegando, no fundamental, que:
De acordo com o art. 135.°, nº 3, do CPP, aplicável ex vi do artigo 182.°, nº 2, do mesmo Código, "o tribunal [...] pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos".
Acrescentando porém que a liberdade de imprensa é um direito constitucionalmente garantido, designadamente na sua vertente de proteção do sigilo profissional, no art. 38.°, n.° 2, alínea b), da CR, encontrando-se, igualmente, prevista no art. 11.º EJ, o qual expressamente dispõe que os jornalistas não são obrigados a revelar as suas fontes de informação.
Ora, porque só em casos muito excecionais se poderia justificar a quebra das referidas regras, obrigando-se à revelação das fontes e do trabalho jornalístico não divulgado, não estariam reunidas no caso essas condições. Na verdade, o tempo decorrido desde a catástrofe afastaria a justificação da quebra da regra geral de proteção do segredo, por já não ser possível responsabilizar ninguém criminalmente. "Os casos em que tal responsabilização não é possível afastam, desde logo, a aplicação da excepção à regra, na medida em que cai um dos interesses em presença".
Decorridos 33 anos, o procedimento criminal relativo à ocorrência está prescrito e a descoberta da verdade, só por si, sem qualquer justificação derivada da realização da justiça criminal, não era suficiente para justificar a preponderância de tal interesse em face dos outros consigo conflituantes.
Por outro lado, não se encontraria demonstrado que os elementos pedidos sejam imprescindíveis para a pretendida descoberta da verdade, e sempre a disponibilização dos elementos solicitados obrigaria à autorização escrita dos jornalistas autores das referidas peças, nos termos do artigo 11º, nº 2 do EJ, não podendo a ..., autonomamente, proceder à divulgação dos elementos em causa.

3. Foram pedidos à ...ª Comissão vários documentos, sob promoção do Mº Pº sediado no Tribunal da Relação de Lisboa, o qual emitiu a seguir douto parecer, no sentido do indeferimento do pedido formulado pela ...ª Comissão. E aí diz, a certo passo:
"(…) não obstante as comissões parlamentares de inquérito gozarem de poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, desde que a estas não estejam constitucionalmente reservados (cfr. o n° 5 do art° 178° da CRP e o n° 1 do art° 13° do RJIP), a sujeição da requerida aos normativos processuais penais invocados (artigos 135° (() - O artigo 135° n° 3 do CPP estipula: O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.) e 182° do CPP) tem como pressuposto a investigação de factos que, apurados, consintam perseguição criminal. Na presente situação, contudo, caso viesse a apurar-se matéria criminalmente relevante, a extinção do respectivo procedimento, por efeito da prescrição, impediria que qualquer responsabilidade criminal pudesse vir a ser assacada.
Inviabilizada que está, assim, qualquer responsabilização penal decorrente da averiguação a cargo da requerente, falece a este TRL fundamento jurídico legitimador da pretendida limitação do sigilo profissional dos jornalistas e que permita a disponibilização pela requerida dos conteúdos jornalísticos solicitados, nos termos invocados."

4. Por acórdão de 29/1/2014, o Tribunal da Relação de Lisboa considerou procedente o requerimento da ... Comissão e determinou que a ... lhe entregasse as imagens em bruto solicitadas, com quebra do segredo profissional.
Na sua fundamentação, o acórdão diz essencialmente o seguinte:

"No caso que nos ocupa, importa adaptar o disposto no art. 135º, nºs 2 e 3, do CPP às comissões parlamentares de inquérito. Aqui não é determinante a existência de prosseguimento criminal activo. Aliás, recorde-se a aplicabilidade deste normativo noutro domínio que não em processo penal como é o caso do processo civil - ver art. 417.°, n.° 3, al. c), e n.° 4 do novo CPC.
Afastada a suposta improcedência da quebra de sigilo por prescrição do procedimento criminal cumpre ponderar de forma concreta se é justificada a quebra tendo em conta, no sentido adverso, a protecção da liberdade de imprensa, direito constitucionalmente garantido, designadamente na sua vertente da salvaguarda do sigilo profissional (cfr., designadamente, o artigo 32°, n° 2, alínea b), da CRP e o artigo 11° do EJ), e a cuja observância o Estado Português está internacionalmente vinculado, nomeadamente por força do disposto no art. 10°, n°2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

A ponderação é efectuada em concreto, de acordo com o disposto no art. 135.°, n.° 3, do CPP, isto é, de acordo com a imprescindibilidade do elemento solicitado para a descoberta da verdade, a gravidade dos factos e a necessidade de protecção de bens jurídicos. E, por fim, a ponderação do próprio interesse nacional no esclarecimento do caso que constitui a causa do presente pedido. Sendo assim, há que ponderar, por um lado:
- A importância da averiguação da verdade apesar do tempo decorrido, atenta a gravidade do assunto, com repercussão a nível nacional;
- O respeito pela decisão do parlamento de constituir a comissão de inquérito;
- A relevância das imagens inéditas para servir de critério de apuramento da verdade em face de versões contraditórias.
- A alegada imprescindibilidade de tais elementos para a descoberta da verdade, o que decorre do resultado obtido pelas comissões que esta precederam, constituídas para o mesmo efeito.
Por outro lado, há que atender à natureza das fontes. São fontes documentais e não fontes pessoais, ou seja, fontes em sentido amplo, que não em sentido restrito, a que se deve atribuir uma menor densidade para efeitos de salvaguarda do segredo.
Tal ponderação é no sentido de que o interesse do apuramento da verdade e a necessidade das imagens para esse objectivo sobrelevam face à protecção das fontes documentais, razão pela qual as imagens "em bruto" devem ser fornecidas com quebra do segredo, nos termos do art. 135.°, n.° 3, do Código de Processo Penal.
Refira-se apenas que o dever de entrega com quebra do segredo se reporta apenas a imagens em bruto que tenham sido recolhidas no local do acidente, não tendo por objecto qualquer peça de natureza diferente."


5. Notificada por ofício expedido a 30/1/2014, a ... veio interpor recurso da decisão a 5/3/2014.

5.1. As conclusões da motivação respetiva foram:

"A. O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que ordenou a quebra do segredo e a entrega das gravações em bruto relativas à "queda do avião que intimou, entre outros, o Primeiro-Ministro Dr. ... e o Ministro ...", constituindo uma decisão daquele Tribunal em 1ª instância, é recorrível, nos termos do artigo 432º, alínea a), do CPP.

B. As gravações sub iudice estão protegidas pelo sigilo profissional e pelo princípio da proteção das respetivas fontes de informação.

C. Nos termos do artigo 135.°, n.° 3, do CPP, aplicável ex vi do artigo 182.°, n.° 2, do mesmo diploma legal, "o tribunal [...] pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos".

D. A liberdade de imprensa é um direito constitucionalmente garantido, designadamente na sua vertente de proteção do sigilo profissional (artigo 38.°, n.° 2, alínea b), da Constituição), encontrando-se, igualmente, prevista no Estatuto dos Jornalistas que expressamente dispõe que os jornalistas não são obrigados a revelar as suas fontes de informação (artigo 11.° do Estatuto - Lei n.° 1/99, de 13 de Janeiro, alterada pela Lei n.° 64/2007, de 6 de Novembro).

E. Só em casos muito excecionais se poderá justificar a quebra das referidas regras, obrigando-se à revelação das fontes e do trabalho jornalístico não divulgado.

F. A liberdade de imprensa está inclusivamente protegida pelas normas internacionais a que o estado Português está vinculado, designadamente o artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, prevendo a Recomendação n.° R (2000) 7 do Comité de Ministros do Conselho da Europa, de 8 de março de 2000, os princípios dos direitos dos jornalistas de não revelarem as suas fontes de informação.

G. A proteção devida às fontes não difere em função da sua "natureza.

H. Nenhuma das disposições legais relativas a esta matéria distingue o tipo de fontes, atribuindo-lhe maior ou menor relevância.

I. O que releva é o conteúdo das fontes e não o suporte em que se encontram registadas.

J. Por outro lado, desconhecendo-se o conteúdo das gravações, nunca se poderia tomar posição acerca da maior ou menor "densidade" para efeitos de segredo.

K. Acresce que o suporte das fontes, neste caso gravações, não permite qualificá-las automaticamente como sendo documentais.

L. Como parece evidente, se tais gravações contiverem depoimentos, estes não perdem a sua natureza "pessoal" pelo facto de serem registados em áudio ou vídeo.

M. Seja como for, a proteção das fontes deve ser plena, não permitindo distinções de nenhum âmbito, já que tais distinções não decorrem da lei.

N. Assim, ao contrário do que defende o Tribunal a quo, a alegada natureza das fontes não influi na ponderação em causa, devendo ser apreciados os restantes elementos em presença.

O. Pelo contrário, e como bem se explica no Parecer do Procurador-Geral Adjunto, a fls. 25 e seguintes, é determinante o tempo decorrido desde a data dos factos até ao presente.

P. Alega o Tribunal que o levantamento do segredo não se coloca, apenas, para os casos de responsabilidade penal, não esclarecendo qual o tipo de responsabilização que poderá estar em causa no caso dos autos.

Q. A descoberta da verdade por si, independente do interesse da realização da justiça, não tem, nem pode ter, a mesma relevância que a descoberta da verdade no âmbito de um determinado procedimento judicial.

R. E podendo esse procedimento ser de índole criminal, mais relevará para eventual quebra do segredo.

S. Com efeito, a possibilidade de quebra do segredo, em geral, surge no âmbito de um determinado procedimento que visa a responsabilização, designadamente criminal, de determinados agentes.

T. Pretende-se, mediante uma ponderação recíproca do peso dos dois valores segundo os cânones gerais do princípio da proporcionalidade, assegurar a realização da justiça, ainda que sacrificando o direito à liberdade de imprensa.

U. Os casos em que tal responsabilização não é possível afastam, desde logo, a aplicação da exceção à regra, na medida em que cai um dos interesses em presença.

V. Ao contrário da possibilidade de responsabilização criminal (ou civil ou outra forma de responsabilização jurídica), que está limitada no tempo, a liberdade de imprensa mantém-se em toda a sua plenitude, designadamente a proteção das eventuais fontes que concretamente possam estar em causa.

W. Na situação em apreço, decorridos 33 anos, já prescreveu qualquer tipo de procedimento ou responsabilidade que ao caso coubesse, não podendo ser levada a cabo a prossecução do interesse da realização da justiça.

X. E independentemente de ter sido constituída outra Comissão Parlamentar para aferição dos factos, a descoberta da verdade, por si, sem qualquer consequência de índole judicial/jurídica, designadamente criminal, não é suficiente para justificar a preponderância de tal interesse em face dos restantes interesses em presença.

Y. Assim, mesmo que a Comissão viesse a apurar matéria de relevância penal (ou civil ou outra), já não seria possível retirar daí qualquer consequência.

Z. Logo, o exercício da liberdade de imprensa não pode ser limitado, não existindo base legal para a sua restrição (cfr. o referido n.° 2 do artigo 10.° da CEDH).

AA. A liberdade de imprensa é, neste caso, o interesse preponderante.

BB. Aliás, mesmo a eficácia da Justiça penal, isoladamente, não seria suficiente para ser considerada um interesse preponderante.

CC. E indubitável que desaparecendo a possibilidade de assacar responsabilidade por via da averiguação dos factos em apreço, revela-se preponderante o direito à liberdade de expressão, na sua vertente de proteção do segredo profissional, sem necessidade de outras ponderações.

DD. De todo o modo, sem prejuízo das legítimas conclusões a que chegou a Comissão Parlamentar, sempre se diga que não se encontra demonstrado nos autos que os elementos pedidos sejam imprescindíveis para a dita descoberta da verdade, na medida em que aquilo que o legislador terá pretendido ao prever o requisito da "imprescindibilidade" relaciona-se com a impossibilidade de descobrir a verdade de outra forma, por inexistência de outros meios para o efeito.

EE. Pelo exposto, verifica-se que a liberdade de imprensa se mantém, aqui, como interesse preponderante, tendo o Tribunal a quo, ao ordenar o levantamento do sigilo profissional, violado o disposto no artigo 135.° do CPP.

FF. A norma extraída do artigo 135.° no sentido de que "quando não há possibilidade de responsabilização criminal, civil ou outra forma de responsabilização jurídica, pelos eventuais ilícitos já terem prescrito, pode o segredo profissional, ainda assim, ser levantado" padeceria sempre de inconstitucionalidade por violação do artigo 38.°, nº 2, alínea b), e 18.°, n.° 2, ambos da Constituição.

Termos em que se requer a V. Exas. se dignem revogar o acórdão recorrido, determinando a manutenção do segredo profissional relativamente às gravações sub iudice."

5.2. O Mº Pº respondeu, e as conclusões da sua motivação foram, a seu turno:

"1. O sigilo profissional dos jornalistas, como vertente da liberdade de imprensa, é um direito com assento constitucional (art° 38°, n° 2, alínea b), da Constituição da República Portuguesa), salvaguardado no 11° do Estatuto do Jornalista.

2. A liberdade de expressão encontra-se igualmente consagrada no art° 10° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a que, como legislação nacional, o Estado Português está vinculado.

3. São excepcionais, e não a regra, quaisquer restrições à liberdade de imprensa, designadamente a quebra do sigilo profissional do jornalista, e, mesmo assim, desde que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial.

4. Na situação em apreço - em que o inquérito a cargo da requerente tem por objecto dar continuidade à averiguação cabal das causas e circunstâncias em que, no dia 4 de Dezembro de 1980, ocorreu a morte do Primeiro-Ministro, ..., do Ministro da Defesa Nacional, ..., e dos seus acompanhantes, investigando factos novos que, eventualmente, lhe sejam apresentados - falece ao Tribunal recorrido fundamento jurídico legitimador da pretendida limitação do sigilo profissional dos jornalistas e que permita a disponibilização pela requerida dos conteúdos jornalísticos solicitados, inviabilizada que está qualquer responsabilização penal decorrente da averiguação a cargo da requerente, face à prescrição do procedimento criminal relativa àqueles factos, ocorridos há mais de 33 anos - cfr. artigos 118° a 121° do Código Penal.
5. A liberdade de imprensa prevalece, assim, como interesse preponderante, face a quaisquer outras necessidades sociais, verbi gratia impostas pela "descoberta da verdade", que não consintam perseguição criminal - cfr. art° 135°, n° 3, do CPP."

Entendeu, coerentemente, que o recurso merecia provimento.

5.3. As conclusões da resposta da ... Comissão são do seguinte teor:

"A. A ... CPITC não pode concordar com a argumentação aduzida pela ... para fundamentar a inadmissibilidade do levantamento do segredo profissional relativamente às gravações sub judice, nem, consequentemente, com a pretendida revogação do acórdão recorrido.

B. A proteção constitucional da liberdade de informação e da liberdade de imprensa, que lhe está associada, visa assegurar, no respeito pelo Estado de Direito e no interesse geral da sociedade, o direito a informar sem constrangimentos, por parte dos jornalistas, e o direito a ser informado sem limitações, por parte dos cidadãos.

C. A proteção da fonte, consubstanciada pelo direito dos jornalistas ao sigilo, justifica-se, assim, pelo interesse público da liberdade de informar, elemento considerado essencial numa sociedade democrática.

D. O que se pretende assegurar é que a liberdade de imprensa - de informar e de ser informado - não pode ser afetada ou limitada pela possibilidade de ser revelada a identidade de uma fonte que não quer, ou não pode, ser identificada.

E. No entanto, a proteção das fontes, e mais concretamente a proteção dos elementos que possam levar indiretamente à identificação das fontes, não deve entender-se como valor intocável quando a liberdade de informação não está em causa e quando outros valores de igual ou superior importância se lhe sobreponham.

F. Neste sentido, o CPP prevê, no artigo 135.2, a possibilidade de o tribunal "decidir da prestação do testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se torne justificada segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante".

G. A mesma disposição legal enuncia, embora sem caráter taxativo, como factores que o tribunal deve ter em conta na ponderação da decisão "a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade; a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos".

H. Não tendo caráter taxativo e devendo ser aplicada a uma realidade concreta diversa do procedimento criminal, "...para decisão ponderativa de um incidente de quebra de segredo profissional suscitado por uma CPI não revelará o fator 'gravidade do crime'. Mas já importarão os fatores 'imprescindibilidade [...] para a descoberta da verdade' e o da 'necessidade de proteção de bens jurídicos'" (Prof. Sérvulo Correia, parecer citado).

I. Se a gravidade do crime não deve, nem, na verdade, pode ser considerado fator a ter em conta pelo tribunal na ponderação da justificação da decisão da prestação do testemunho com quebra do segredo profissional segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, também a possibilidade da responsabilização criminal o não deve ser.

J. A investigação levada a cabo pelas CPI situa-se no plano político e não judicial, sendo distintos os fins prosseguidos: enquanto os tribunais visam determinar a responsabilidade jurídica (civil, penal ou administrativa), as CPI "apenas procuram apurar a responsabilidade política ou simplesmente realizar uma tarefa de informação do Parlamento".

K. O apuramento de eventuais responsabilidades criminais que pudessem decorrer da averiguação que a ... CPITC se propôs efetuar não faz parte da vontade expressa que subjaz à constituição da comissão nem ao seu objeto, para além de já terem prescrito à luz da legislação penal.

L. Quanto ao fator da imprescindibilidade, este deve ser aferido atendendo ao princípio da proporcionalidade, significando o nº 3 do artigo 135.5 do CPP que "não se poderá levantar o segredo profissional se a matéria relevante puder ser apurada sem esse sacrifício de um importante valor jurídico".

M. Atendendo a que a presença ou ausência de determinadas pessoas no local pode reforçar ou alterar a orientação de linhas de investigação que levem à descoberta da verdade, é de fácil compreensão que o acesso às gravações é imprescindível para a ... CPITC cumprir a finalidade para que foi constituída.

N. Não se conhece qualquer outro meio documental ou testemunhal através do qual se possa obter a informação que terá sido registada nas imagens captadas pelas câmaras da ..., o que as torna imprescindíveis.

O. O objetivo da ... CPITC é o de dar continuidade à averiguação cabal das causas e circunstâncias em que no dia 4 de dezembro de 1980 ocorreu a queda da aeronave que vitimou o Primeiro-Ministro, o Ministro ... e seus acompanhantes, visando retirar consequências políticas e, atendendo ao seu relevante interesse nacional, contribuir para a descoberta da verdade, esclarecer os cidadãos acerca deste grave acontecimento e encerrar um capítulo da história recente de Portugal.

P. Por outro lado, a liberdade de imprensa é o bem jurídico a proteger quando se garante que as fontes não podem ser reveladas contra a sua vontade e que o jornalista não verá limitações à sua ação de procura de informação.

Q, Ponderados os bens jurídicos em causa, facilmente se concluirá que o interesse prosseguido pela ... CPITC, suportado nas atribuições de fiscalização e de representação coletiva que constitucionalmente lhe são fixadas, e que se confunde com o interesse nacional na descoberta da verdade acerca daquele acontecimento traumático para o país, sempre se sobreporá ao interesse em proteger a identidade de alguém que possa eventualmente aparecer nas imagens captadas há mais de 33 anos num local público.

R. Acresce que, mesmo sendo levantado o sigilo, a ... CPITC pode deliberar que o visionamento das imagens seja efetuado em reunião não pública, permanecendo secretos o documento audiovisual de suporte e a ata da reunião, a informação obtida pela quebra do sigilo não será do conhecimento público.

S. Levada ao limite a tese defendida pela ... - da inadmissibilidade do levantamento do segredo profissional por impossibilidade da eventual responsabilização criminal decorrente dos factos em apreço - nunca poderia ser levantado o sigilo no âmbito de uma CPI, pois a sua ação decorre no plano da responsabilização política, não sendo seu objetivo a eventual responsabilização criminal.

T. A impossibilidade de acesso a determinados documentos, com base no argumento da falta de interesses pertinentes à administração da justiça ou à condenação dos culpados, impediria uma CPI e, por consequência, a Assembleia da República, de cumprir cabalmente a sua função enquanto órgão constitucional de fiscalização política, bloqueando de forma incontornável, e em violação da CRP, os seus trabalhos.

U. A quebra do sigilo, neste caso concreto, com a configuração proposta e nas circunstâncias atuais, não limita a liberdade de imprensa, por não pôr em causa os fundamentos da sua consagração constitucional, respeitando ainda os princípios jurídicos da proporcionalidade, nas suas vertentes de adequação, necessidade e equilíbrio.

V. Nesta conformidade, o interesse da ... CPITC em aceder às gravações efetuadas pelas câmaras da ... na noite de 4 de dezembro de 1980, no local onde se despenhou a aeronave que transportava o então Primeiro-Ministro, o Ministro ... e acompanhantes, não poderá deixar de ser considerado preponderante - ponderados os fatores relativos à sua imprescindibilidade para a descoberta da verdade e à necessidade de proteção de bens jurídicos - para a quebra do segredo profissional.

Termos em que se requer a V. Exas que seja mantida a determinação constante do acórdão recorrido, no sentido de a ... SA entregar à ... Comissão Parlamentar de Inquérito... as imagens em bruto solicitadas, com quebra do segredo profissional."

5.4. O Mº Pº neste STJ emitiu douto parecer, em que considerou que o recurso deveria ser rejeitado, e disse a certa altura:

"(…) Estando em causa uma decisão do Tribunal da Relação que, na ponderação do interesse predominante, autorizou a dispensa de segredo profissional no âmbito do referido inquérito da ... Comissão Parlamentar, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa não constitui uma decisão da relação proferida em 1ª instância, para efeitos do disposto na norma do artigo 432.°, n.° 1, alínea a), do CPP, uma vez que a tramitação do presente incidente cabe, em primeira linha, à ... Comissão Parlamentar de Inquérito..., perante a qual aliás foi suscitado.
Também não se mostra preenchida a norma do artigo 432.°, n.° 1, alínea b), do CPP, desde logo por não estar em causa uma decisão proferida «em recurso» pelo Tribunal da Relação. Mas ainda que assim não se entenda e antes se defenda que por esta norma se encontram também abrangidos os casos de intervenção incidental directamente deferida pela lei, sempre o recurso seria inadmissível por não se estar perante decisão que conhecesse a final do objecto do processo, atenta a norma do artigo 400.°, n.° 1, alínea c), do CPP.
Por último, mostra-se naturalmente excluída a possibilidade de o presente caso integrar as situações previstas nas alíneas c) e d) do artigo 432.°, n.° 1, do CPP."

Face ao acima exposto, tendo ainda presente que a CRP não consagra um irrestrito direito ao recurso e que, no caso concreto, a irrecorribilidade não se mostra violadora das garantias de defesa, o presente recurso deve ser rejeitado — artigo 420.°, n.° 1, alínea b), do CPP."


6. Como acaba de se ver, o Mº Pº junto do STJ considerou o acórdão da Relação irrecorrível, por não caber em nenhuma das situações previstas no art. 432.º do CPP.
No que mais interessa, afirmou que " o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa não constitui uma decisão da relação proferida em 1ª instância, para efeitos do disposto na norma do artigo 432.°, n.° 1, alínea a), do CPP, uma vez que a tramitação do presente incidente cabe, em primeira linha, à ... Comissão Parlamentar de Inquérito..., perante a qual aliás foi suscitado. "

6.1. Vemos que o Exmº Juiz Relator do processo, junto do Tribunal da Relação de Lisboa, acabou por admitir o presente recurso ao abrigo, entre o mais, da al. a) do nº 1, do art. 432.º do CPP. Ora, o nº 3 do art. 414.º do CPP estabelece que "A decisão que admita o recurso ou que determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula o tribunal superior".
Assim sendo, importa, antes do mais, ver se a decisão proferida pela Relação, o aqui acórdão recorrido é efetivamente recorrível, porque proferida em primeira instância.
A partir do princípio geral da recorribilidade, do art. 399.º do CPP, o art. 432.º (e 433.º), do CPP, regulamenta o caso específico dos recursos para o STJ. E, não oferece dúvida alguma, no caso, que percorridas as várias alíneas do nº 1 deste art. 432.º, a única situação em que se poderá encaixar a presente situação é a prevista na al. a): "1- Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça (…) a) De decisões das Relações proferidas em primeira instância;"
Ora, para se apurar se o acórdão recorrido foi ou não proferido em primeira instância, importa antes do mais situar os poderes das comissões parlamentares de inquérito (CPI) em matéria investigatória, com referência às autoridades judiciárias. Depois, ver como está regulamentado o incidente de quebra de segredo profissional no CPP.
Quanto à primeira questão, recorde-se que a Constituição da República (CR), nos diz no nº 5 do seu art. 178.º, que "As comissões parlamentares de inquérito gozam de poderes de investigação próprios das autoridades judiciais."
E o art. 13.º, nº 1 do RJIP (recorde-se, a Lei 5/93 de 1 de março), estabelece que "As comissões parlamentares de inquérito gozam dos poderes de investigação das autoridades judiciais que a estas não estejam constitucionalmente reservados." (redação da Lei 15/2007 de 3 de abril).
Existe portanto uma equiparação, para o efeito em causa, das CPI às autoridades judiciais, por não estar em causa uma reserva constitucional destas, como a que ocorre para proteger a inviolabilidade do domicílio ou o segredo de correspondência e demais meios de comunicação (art. 34.º da CR).
Tal significa, que se impõe lançar mão da regulamentação processual penal do incidente da quebra de segredo profissional. Aliás é o próprio processo civil que, no nº 4, do art. 417.º, do CPC, remete para o processo penal. Com "as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa".
A ... Comissão solicitou à RTP "peças jornalísticas não editadas" e "imagens recolhidas no local do acidente" (fls. 19), o que nos coloca perante prova documental, e nos remete pois para o art. 135.º, nºs 2 e 3, por remissão do art. 182.º, ambos do CPP.
O incidente em questão está então regulado nos nºs 2 e 3 do referido art. 135.º, distinguindo dois momentos de tramitação que respondem a duas questões distintas.
Primeiro importa determinar a legitimidade da escusa, no caso, fundada em segredo profissional. Ou seja, saber se o ato processual que se pretende colide com o segredo profissional, no caso do jornalista. Depois, entendendo-se que a escusa é legítima, há que ver se se justifica a quebra do segredo, provocando oficiosamente, ou a requerimento, a intervenção do tribunal superior àquele onde o incidente se tiver suscitado (não sendo o STJ), para decidir sobre essa matéria.
Ou seja, a questão da legitimidade da invocação do segredo é da competência da autoridade judicial onde o incidente surgiu. A decisão sobre a quebra do segredo é da competência do tribunal que lhe for superior. A quebra do segredo surge na sequência de uma ponderação que termina com a decisão sobre qual o interesse que deve prevalecer. O legislador quis que a competência para emitir esse juízo fosse de um tribunal hierarquicamente superior, naturalmente porque, face à natureza da questão, achou por bem estabelecer maior distanciamento e maior qualificação da entidade decisora.
A ... Comissão, por lei equiparada à autoridade judicial, e sem restrições (para além do que pudesse estar constitucionalmente reservado, o que como se viu não vem ao caso), só poderia ser equiparada a uma autoridade judicial de primeira instância, porque foi na Comissão Parlamentar que se iniciaram as investigações em sede de Assembleia da República, as únicas que aqui estão em causa.
A ... Comissão considerou legítima a escusa, como evidentemente se impunha. E, porque a considerou legítima, avançou oficiosamente para o pedido de quebra do segredo.
Esse pedido também só poderia ter sido dirigido à Relação, porque tribunal superior àquele a que a ... Comissão deve ser equiparada.
Claro que a apreciação da justificação da escusa (contrariamente à da legitimidade), não foi objeto de decisão de ninguém, antes da Relação. E a determinação de quebra de segredo só foi decidida pela Relação porque ninguém antes dela o poderia ter feito (cf. a propósito, o acórdão de fixação de jurisprudência do STJ, de 13/8/2008, DR nº 63.º, Série I, de 31/3/2008).
A competência material para tomar posição sobre a quebra, em primeiro grau de conhecimento, cabia só à Relação, e daí que esta decisão, que apreciou as razões justificativas de tal quebra, tenha sido proferida pela Relação em primeira mão.
A questão que se coloca é então a de saber se as decisões que a Relação profere em primeira mão devem ser consideradas, todas, proferidas em primeira instância, para efeito da al. a) do nº 1 do art. 432.º do CPP.
Entendemos que não.
As decisões que a Relação profere em primeira instância não são as decisões apreciadas pela primeira vez, sem exceção, logo na Relação. São as decisões em que a Relação funciona como tribunal de primeira instância. Ou seja, quando exerce uma competência que por regra é cometida à primeira instância e excecionalmente, designadamente em atenção à qualidade do arguido, se atribui à Relação (al. a) do nº 3 do art.12.º do CPP).
A regulamentação processual que o legislador entendeu dever fazer, do incidente de quebra de segredo, afasta-se da atribuição normal de competência para atos de investigação ou instrução, e portanto do regime geral de recursos. Estabeleceu uma disciplina "sui generis" que pretende responder a uma problemática específica.
Em primeiro lugar, está em causa a decisão de uma questão incidental, e não a decisão sobre o objeto do processo. Depois, relevam aqui os interesses já apontados de distanciamento e maior qualificação, que presumivelmente a instância hierárquica, imediatamente superior, detém.
O legislador antecipou-se então a um possível recurso, da decisão que fosse proferida na primeira instância, com benefício em termos de celeridade, atribuindo logo a competência decisória em primeira mão, à instância para a qual seria interposto o recurso.
De notar que, quando é a Relação que decide pela primeira vez uma questão, no decurso de um processamento especial, é a lei que expressamente regula a possibilidade de recurso dessa decisão. Assim em matéria de extradição (al. c) do nº 3 do art. 12.º do CPP), por força do art. 49.º, nº 3, da Lei 144/99, de 31 de agosto, onde se estabelece que só cabe recurso da decisão final, para o STJ . Também assim quanto ao MDE, em que o recurso só é facultado quanto a medidas de coação ou decisão final, por força das al. a) e b) do nº 1 do art. 24.º da Lei 65/2003 de 23 de agosto.
Esta a posição praticamente uniforme do STJ, que também já assumimos em acórdão de 6/12/2007 (Pº 3215/07), assim sumariado:
"I - Por inadmissibilidade, deve ser rejeitado o recurso interposto para o STJ da decisão da Relação que em sede de sigilo bancário considerou ilegítima a escusa de entidade bancária em quebrar o sigilo bancário e determinou que o tribunal de 1.ª instância, que implicitamente havia julgado legítima tal escusa, ordenasse àquela entidade o fornecimento dos elementos bancários em falta, já que:
- a decisão recorrida não pode ser tida como uma decisão proferida em 1.ª instância pela Relação, pois a decisão recorrida não foi proferida em processo que devesse ser, por lei, instaurado desde o início na 2.ª instância, para aí obter decisão final, pelo que fica afastada a recorribilidade assente na al. a) do n.° 1 do art. 432.°, do CPP;
- não deverá ver-se na decisão que se pronuncia sobre quebra de sigilo, a proferir pela Relação, uma decisão proferida em recurso, ou equivalente à proferida em recurso, para este efeito de recorribilidade para o STJ, pois o desencadear da intervenção da Relação, nos termos do n.º 3 do art. 135.° do CPP pode ter lugar estando o juiz de 1.ª instância na dúvida sobre se é ou não de ordenar a quebra do sigilo ou, pura e simplesmente, sem que ele tenha tomado posição sobre a quebra de sigilo, sobre se ela é ou não justificada, sendo que nesse caso, seria impossível configurar uma situação equivalente à de recurso, já que não houve nenhuma tomada de posição em 1.ª instância sobre a questão que a Relação vai ter que abordar;
- a entender-se que a decisão da Relação tem semelhanças com uma decisão proferida em recurso, por surgir como uma tomada de posição confirmativa ou revogatória de um ponto de vista já defendido pela 1.ª instância, e, por isso, recorrível nos termos do art. 432.º, n.º 1, al. b), tal recorribilidade acaba por ser impedida à luz do art. 400.º, n.º 1, al. c), do CPP, pois a decisão da Relação não pôs termo à causa, ou, acolhendo a redacção actual do preceito, não se trata de decisão que conheça, a final, do objecto do processo;
- não se encontra na lei qualquer disposição que preveja o recurso da decisão tomada a coberto do n.º 3 do art. 135.° do CPP, sendo que o legislador poderia ter consagrado pontualmente a recorribilidade de tal decisão como fez noutros locais.
II - Tal irrecorribilidade não choca com o direito constitucional ao recurso, porque a garantia de um duplo grau de jurisdição tem sido reservada, de acordo com a jurisprudência do TC, para decisões penais condenatórias ou decisões que restrinjam a liberdade ou outros direitos fundamentais do arguido, o que não é o caso – cf. Acs. n.ºs 30/2001 e 390/2004, de 30-01 e 02-06, respectivamente
."
O acórdão de que se recorreu é pois irrecorrível, e daí que o presente recurso tenha que ser rejeitado, em decisão sumária do relator, de acordo com os art. 399.º, 432.º e 433.º, 414.º, nº 2, 420.º, nº 1 al. b), 417.º, nº 6 al. b), todos do CPP.
Sanção do art. 420.º, nº 3 do CPP, 3 UC.

Sem custas.
Lisboa, 14/10/2014.

Souto de Moura (Relator)