Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1375/04.8TYLSBAM.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: DUPLA CONFORME
ADMISSIBILIDADE DA REVISTA
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 07/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: NÃO CONHECIMENTO DO OBJECTO DO RECURSO; DEVOLUÇÃO DOS AUTOS AO TRIBUNAL "A QUO" PARA CONHECIMENTO DA NULIDADE.
Sumário :

I. A arguição de nulidades do acórdão final recorrido, proferido pela Relação, tendo por fundamento os arts. 615º, 1, 666º, 1, e 674º, 1, c), do CPC, só pode ser invocada e apreciada por via recursória quando aquela decisão admita recurso ordinário, neste caso o de revista, nos termos conjugados com a prescrição do art. 615.º, n.º 4, do mesmo CPC: essa arguição não é admitida autonomamente e a título exclusivo em revista se não for admissível recurso ordinário, em termos gerais, ou, ainda que admissível em abstracto, não foi interposto com base em fundamento recursivo concreto (para além das nulidades) no âmbito permitido de recorribilidade (logo, inadmissível também); logo, as nulidades apenas podem ser apreciadas como fundamento dependente e acessório de um fundamento principal (questão ou matéria) que poderia ser ou se solicita que seja por força de impugnação reapreciado em revista.

II. Não pode ser conhecida a arguição de nulidades do acórdão da Relação em revista se a revista não é admissível por força do impedimento da “dupla conforme” previsto no art. 671º, 3, do CPC, sem prejuízo da devolução do processo à Relação para conhecimento e apreciação dessas nulidades, invocadas na impugnação e no prazo associado ao recurso de revista, necessariamente «em conferência» (arts. 617º, 1, 5, 2ª parte, 6, 1.ª parte, ex vi arts. 666º, 1, e 666º, 2, do CPC).

III. Não preenche o art. 542º, 2, a) e d), do CPC para qualificação como conduta processual de litigância de má fé, que exige culpa qualificada (dolo ou negligência grave), a interposição de revista sem pagamento tempestivo da taxa de justiça devida, em razão da pendência de pedido de apoio judiciário junto da Segurança Social, mas, uma vez deferido e sem cobrir essa conduta, cumprida ulteriormente pelo recorrente a liquidação sancionatória ordenada ao abrigo do regime do art. 642º, 1, do CPC, sem prejuízo de ter sido actuação “imprudente”, numa impugnação em que a revista se funda exclusivamente no ataque à fundamentação do acórdão recorrido, por via da arguição de nulidades, sujeita às regras processuais de admissão do recurso de revista tendo por base o art. 674º, 1, c), do CPC, mas sem que, por outro lado, esse meio de inversão da decisão recorrida se manifeste numa violação de deveres processuais incompatíveis com uma actuação eivada da promoção de expedientes dilatórios e destinados ao adiamento do trânsito em julgado da decisão recorrida – em nenhum dos ângulos se configura lide dolosa ou temerária.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 1375/04.8TYLSB-AM.L1.S1


Revista – Tribunal recorrido: Relação de Lisboa, ... Secção


Acordam em conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I) RELATÓRIO


1. «PHARMA IBÉRICA INC», sociedade de direito norte-americano, contribuinte de entidade equiparada estrangeira, com sede ..., Portugal, intentou acção de separação e restituição de bens contra «Massa Insolvente de AA», AA (declarada insolvente por sentença proferida nos autos principais em 30/10/2008) e Credores da Insolvência, pedindo que seja declarada ou reconhecido à Autora o direito de propriedade sobre o estabelecimento comercial “Farmácia 1.”, sita ..., entretanto denominada “Farmácia 2”, e sejam condenados os Réus à separação daquele estabelecimento comercial do acervo da Massa Insolvente e a sua restituição à Autora.


Alegou para o efeito, em síntese, que a insolvente AA trespassou o referido estabelecimento comercial de farmácia e respectivo alvará à sociedade “A..., Lda”, que esta por sua vez trespassou a farmácia e respectivo alvará à sociedade «F..., Lda.». Mais alega que BB entrou na posse do mesmo estabelecimento de farmácia e alvará, tendo posteriormente transferido o mesmo para a sociedade “P... – Sucursal em Portugal”, tendo esta, finalmente, em 5 de fevereiro de 2013, trespassado verbalmente o referido estabelecimento comercial de farmácia e respectivo alvará à autora. Concluiu alegando que é proprietária e legítima possuidora, com exclusão de outrem, do referido estabelecimento de farmácia, tendo adquirido a mesma por usucapião nos termos dos arts. 1263.º e 1374.º do C.C., conforme consta da escritura de justificação notarial, que junta.


2. Citados os Réus, as Rés AA e Massa Insolvente apresentaram Contestação, com a primeira a deduzir incidente de verificação do valor da causa.


3. Foi proferido despacho pré-saneador no qual foi fixado o valor da causa em € 1.200.000,00 e comunicada às partes a intenção de o Tribunal conhecer de imediato o mérito da causa com dispensa de realização de audiência prévia.


4. A Autora veio responder às excepções invocadas pelas Rés (litispendência, caso julgado, falta de personalidade judiciária, nulidade da escritura de justificação) e juntar um documento para prova da sua existência e capacidade judiciária.


5. O Juiz ... do Juízo de Comércio ... proferiu sentença (25/2/2023), na qual declarou improcedentes as excepções de falta de personalidade e capacidade judiciária da Autora, assim como de litispendência e caso julgado no que toca ao processo n.º 68/18.3... e aos apensos “F” e “X”, e, no que respeita ao reconhecimento da propriedade da Autora sobre o estabelecimento comercial em apreço e da consequente separação da massa insolvente, declarou improcedente a pretensão da Autora; decidindo com o seguinte dispositivo:


“a) julgar a ação improcedente, por não provada e, consequentemente, absolver os réus do pedido;


b) declarar impugnado o facto justificado na escritura de 06-02-2018, exarada a fls. 76 a 78 do Livro de Notas para Escritura Diversas n.º 59-A, do Cartório Notarial de ..., por não se ter provado que a autora Pharma Ibérica INC, “é dona, com exclusão de outrem, do estabelecimento de farmácia e respetivo alvará, denominada Farmácia 1, sita na Rua ...;


c) declarar ineficaz, a escritura de justificação notarial referida b), no que se refere à aquisição, pela aqui autora, do estabelecimento e alvará;


d) julgar verificada a litigância de má fé pela autora e condenar a mesma em 85 uc´s de multa e em indemnização à ré Massa Insolvente a liquidar ulteriormente.”


6. Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), que, identificadas as questões decidendas –


“- Da outorga de escritura de justificação notarial incidindo sobre um estabelecimento comercial de farmácia: natureza e alcance desse instrumento e impugnação deduzida pela ré Massa Insolvente;


- Da aquisição do direito de propriedade por usucapião: o prazo de usucapião;


- Da aquisição do direito de propriedade por usucapião: a acessão da posse;


- Da aplicação das regras da prescrição: a interrupção prevista no art. 323.º do Código Civil” –,


conduziu a ser proferido acórdão que julgou improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.


5. Novamente sem se resignar, a Autora interpôs recurso de revista normal para o STJ (tendo por base os arts. 671º, 1, e 674º, 1, do CPC), visando a revogação do acórdão recorrido por força da arguição da respectiva nulidade com base no art. 615º, 1, b) e c), do CPC, tendo por base a violação do dever de fundamentação e visto o substrato do alegado.


Finalizou com as seguintes Conclusões:


“(…)


IV. Nos termos do art. 666.º do CPC é aplicável à 2.ª instância o que se acha disposto nos artigos 613.º a 617.º.


V. Nos termos do art. 615.º n.º 1 alínea c) quando os fundamentos estejam em oposição ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ilegível a sentença é nula.


VI. Ora, o acórdão do Tribunal recorrido está ferido de nulidade, nos termos das alíneas c) do art. 615.º, ex vi do art. 666.º do CPC.


VII. Essa douta sentença considera que a escritura notarial que se encontrava na base do pedido de separação de património, foi impugnada.


VIII. Retirando daí a conclusão que, a autora tinha conhecimento que os factos que declarou na escritura de justificação notarial, não correspondem à verdade.


IX. Sucede que, ainda que se considere que a Ré tenha impugnado a escritura, a verdade é aquela invocou que a escritura era simulada.


X. Nos termos do 240.º do Código Civil o negócio diz-se simulado quando: “por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante”.


XI. Ora a Massa Insolvente tinha que alegar e provar: A existência de acordo entre declarantes; Que o negócio foi realizado no intuito de enganar terceiros; E que existiu divergência entre declaração real e declaração negocial.


XII. Desde logo resulta da contestação que tais elementos não foram articulados pela Ré, e muito menos feita qualquer prova até ao Saneador Sentença de tais factos.


XIII. Ainda que se admita, que de um modo sucinto a Ré tivesse alegado tais elementos, ainda assim deveria o Tribunal de 1.ª Instância e posteriormente o Tribunal da Relação de Lisboa, prosseguidos os autos para julgamento.


XIV. As instâncias anteriores julgaram tal ponto sem fundamentar em que elementos factuais fundam tal decisão.


XV. Ora nos termos do artigo 154.º do Código de Processo Civil e do artigo 205.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa as decisões judiciais são sempre fundamentadas.


XVI. Pelo que assim sendo é nula por violação de dever de fundamentação.


XVII. Aliás o próprio Acórdão que se recorre refere que competia à Massa Insolventeo “ónusda alegação eprova dos factos constitutivos do seu direito.”


XVIII. Contudo não retira daí a devida consequência, que seria ajuizar se existem nos elementos factuais suficientes para apreciar do pedido de nulidade por simulação.


XIX. Por outro lado o douto Tribunal a quo entendeu que a autora omitiu a alegação de qualquer facto que permitissem-lhe invocar a acessão da posse de eventuais antepossuidores.


XX. Contudo salvo melhor entendimento, a Autora deu como reproduzida na sua petição a escritura notarial.


XXI. Sendo que na referida escritura se descreve o modo como os antepossuidores adquiriram e possuíram o bem a usucapir


XXII. Ou seja, pelo menos o núcleo essencial da causa pedida estava vertida da petição inicial.


XXIII. Podendo enventualmente considerar-se que a mesma seria insuficiente para fundar o pedido.


XXIV. O que nesse caso sempre teria que o Tribunal que convidar a autora a aperfeiçoar a Petição:


XXV. Nesse sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (Processo 869/22.8T8CBR.C1 – in www.dgsi.pt).





A Ré «Massa Insolvente» apresentou contra-alegações: (i) pugnou pela inadmissilidade da revista, atenta a “dupla conformidade” decisória das instâncias; (ii) bateu-se, se assim não se entenda, pela improcedência da nulidade arguida; (iii) requereu a condenação em litigância de má fé da Autora em função do não pagamento da taxa de justiça devida pela interposição da revista (art. 542º, 1, d), CPC); (iv) requereu o pagamento da taxa sancionatória excepcional prevista nos arts. 531º do CPC e 10º do RCP.


A Autora e Recorrente, após despacho proferido em 24/3/2024, pagou taxa de justiça, acrescida de multa (8/4/2024; ref.ª CITIUS 21449495), no âmbito do regime do art. 642º, 1, do CPC.


7. A Senhora Juíza Desembargadora no TRL proferiu despacho de admissão da revista e de indeferimento das nulidades invocadas pela Recorrente (18/4/2024, ref.ª CITIUS 21449499).


8. Foi proferido despacho no âmbito e para os efeitos previstos no art. 655º, 1, ex vi art. 679º, do CPC, e 3º, 3, atenta a possibilidade de não conhecimento do recurso e o exercício do contraditório sobre o pedido de condenação em litigância de má fé formulado nesta instância recursiva pela Recorrida «Massa Insolvente».


A Recorrente respondeu, dizendo que a questão das nulidades é uma “questão nova”, uma vez que não é abrangida pela dupla conformidade (“quando a questão/matéria já tiver sido sujeita a decisão por duas jurisdições”), e, portanto, susceptível de apreciação; mais pugnou pela inexistência de litigância de má fé, sem que se encontrem “quaisquer elementos de facto ou de direito que permitam inferir que o comportamento da ora recorrente não passe somente pela defesa dos seus direitos”.





Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, enfrentando como questão prévia a admissibilidade da revista.


II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS

A. Questão prévia da admissibilidade do recurso


1. A acção é tramitada por apenso (“AM”) aos autos principais de insolvência da pessoa singular AA: arts. 146º, 1, 2, 1.ª parte; 148º; do CIRE.


Deste modo, o seu regime recursivo junto do STJ não segue o regime da revista, atípico e restritivo, contemplado pelo art. 14º, 1, do CIRE; antes segue o regime geral da revista enquanto espécie (v. AUJ do STJ n.º 13/2023, de 17/10/2023, publicado in DR 1.ª Série, de 21/11/2023, págs. 11 e ss).


Neste regime, inclui-se o impedimento que constitui irrecorribilidade para o STJ constituído pela “dupla conformidade”, tal como previsto no art. 671º, 3, do CPC.


2. O art. 671º, 3, do CPC, determina a existência de “dupla conformidade decisória” entre a Relação e a 1.ª instância como obstáculo ao conhecimento do objecto do recurso de revista normal ou regra junto do STJ, em relação aos segmentos decisórios e seus fundamentos com eficácia jurídica autónoma (objecto de impugnação) nos quais se verifica identidade de julgados, sem fundamentação essencialmente diferente e sem voto de vencido, ou, para além disso, em que a decisão recorrida, no ou nos segmentos decisórios recorridos (mesmo que sem confirmação integral no dispositivo) e seus fundamentos atendíveis, se revela mais favorável, qualitativa ou quantitativamente, à parte recorrente (mesmo que só com procedência parcial do recurso).


3. Verifica-se que a fundamentação das instâncias no que toca às questões de mérito da (i) impugnação judicial da escritura de justificação notarial e da (ii) aquisição originária por usucapião do direito de propriedade do estabelecimento-farmácia pela Autora, tal como reapreciadas pela Relação, não adoptam uma fundamentação que consubstancie um desvio nos correspondentes regimes jurídicos aplicáveis, sem prejuízo da segmentação de pressupostos (prazo e acessão) e desenvolvimento argumentativo, para a segunda questão (usucapião e posse): v., em confronto, as págs. 10-15 da sentença de 1.ª instância vs. as págs. 20-42 do acórdão da Relação; sendo, por isso, estas duas decisões, para efeitos da aplicação do art. 671º, 3, duas decisões “conformes” que obstam ao recurso ordinário de revista, demonstrando-se assim a fungibilidade entre si das decisões no resultado jurídico pretendido na acção.


4. O art. 671º, 3, implica a irrecorribilidade em revista do acórdão proferido pela Relação, a não ser que fossem invocadas situações de revista extraordinária (art. 629º, 2, 1.ª parte do normativo), ou fosse interposta revista excepcional, a título principal ou título subsidiário, nos termos do art. 672º; não sendo interpostas nestas modalidades a revista, aplica-se sem mais o obstáculo recursivo do art. 671º, 3, do CPC.


Ora.


5. As nulidades invocadas pela Autora e Recorrente respeitam à fundamentação conferida pelo acórdão recorrido nas questões da impugnação da escritura de justificação e da aquisição por usucapião (por força da posse) da propriedade do estabelecimento-farmácia.

A revista encontra-se fundada exclusivamente nas nulidades apontadas ao acórdão recorrido, nos termos do art. 615º, 1, do CPC.

Assim sendo, a natureza em concreto desta impugnação fulmina irremediavelmente a pretensão recursiva junto do STJ.

Na verdade.


6. Uma vez que o recurso ordinário de tal acórdão em que se reapreciou pela Relação tais questões não é admissível, tais nulidades não podem constituir fundamento da revista, mesmo que fosse objecto recursivo exclusivo (o que seria proporcionado pela al. c) do art. 674º, 1, do CPC), cabendo apenas a sua arguição e conhecimento ao tribunal que proferiu o acórdão recorrido: arts. 615º, 4, 1.ª parte, 617º, 1 e 6, 1.ª parte, 666º, 1, do CPC.


Com efeito.


7. O art. 615º, 4, do CPC, aplicável em sede de revista por força dos arts. 666º, 1, e 679º do mesmo CPC, estatui que «[a]s nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do nº 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades».


O que implica que, uma vez convocado o art. 674º, 1, c), do CPC, essa arguição não é admitida autonomamente e a título exclusivo em revista se não for admissível recurso ordinário, em termos gerais, ou, ainda que admissível em abstracto, não foi interposto com base em fundamento recursivo concreto (para além das nulidades) no âmbito permitido de recorribilidade (logo, inadmissível também).


Daqui resulta que as nulidades apenas podem ser apreciadas como fundamento dependente e acessório de um fundamento principal (questão ou matéria) que poderia ser ou se solicita que seja por força de impugnação reapreciado em revista.


Sem esta relação por falta de admissibilidade do recurso de revista, não pode ser conhecido e apreciado um recurso pelo tribunal “ad quem” apenas fundado nessas nulidades imputadas à decisão proferida pelo tribunal “a quo”, falecendo a legitimidade do tribunal superior para conhecer do objecto do recurso1.


É o caso.


O (preliminarmente) certo é que esse conhecimento das nulidades pressupõe necessariamente que o recurso ordinário (de revista, neste caso) seja admissível. E não é, enquanto revista normal. Nem enquanto revista extraordinária (art. 629º, 2, CPC, para o qual remete o art. 671º, 3), que não foi configurada. E nem pode vir a ser, pois não foi interposta revista excepcional (art. 672º), a outra via para superar o impedimento da “dupla conforme”. E não sendo, ficamos sem decisão recorrida para apreciar das nulidades, que se relacionam com o impugnado que não é susceptível de recurso por estar a coberto da “dupla conformidade decisória”. Assim, a nulidade apenas pode ser invocada perante o tribunal a quo e por este decidida, improcedendo por preclusão o conhecimento de tal nulidade enquanto fundamento recursivo em revista.


8. Não obstante, não sendo possível conhecer do objecto do recurso e, vista a tramitação em 2.ª instância – em que foi a Desembargadora Relatora que, no momento de ajuizar da admissibilidade do recurso de revista, simultaneamente fez decisão singular de apreciação das nulidades (despacho de 18/4/2024) –, cabe ainda a este tribunal superior, como se determinará, ordenar a baixa dos autos para serem apreciadas, pelo tribunal que proferiu a decisão recorrida e em conferência2, as nulidades decisórias invocadas na impugnação e no prazo associado ao recurso de revista (arts. 617º, 1, 5, 2ª parte, 6, 1.ª parte, ex vi arts. 666º, 1, e 666º, 2, do CPC).

B. Litigância de má fé da Recorrente


1. A Recorrida «Massa Insolvente», aquando das suas contra-alegações, peticiona incidentalmente a condenação da Recorrente em litigância de má fé, em função do não pagamento da taxa de justiça devida pela interposição da revista (invoca expressamente o art. 542º, 1, 2, d), CPC), com pagamento de multa e arbitramento de indemnização. Tal foi reiterado em requerimento de 8/2/2024.


Entende, para esse efeito, que a utilização pela Recorrente de um DUC de data anterior e relativo a autoliquidação de taxa de justiça que não é a devida no momento da interposição da revista corresponde a “uma atuação intencional com o evidente propósito de entorpecer a ação da justiça e protelar o trânsito em julgado” do acórdão recorrido”, sendo este um “uso manifestamente reprovável do processo”.


2. Vistos os autos, salienta-se a seguinte factualidade:

i. a interposição da revista (14/11/2023) não foi acompanhada pelo pagamento da taxa de justiça, antes pelo protesto de ser junto comprovativo do pedido de apoio judiciário e pela apresentação de um DUC e seu comprovativo de pagamento (relativos às datas de 21 e 22/12/2019);

ii. a Recorrente apresentou nos autos o comprovativo do pedido de apoio judiciário, indicando-se como requerido em 15/11/2023;

iii. foi proferido despacho em 8/1/2024, ordenando que se oficiasse à Segurança Social para efeitos de informação do pedido relativo ao apoio judiciário da Recorrente;

iv. o «Instituto da Segurança Social, I.P.», Centro Distrital ..., respondeu com a documentação pertinente quanto ao pedido da Recorrente (em 9/1/2024 e 15/3/2024), resultando que o requerimento deu entrada em 28/11/2023 e deferido por decisão final e definitiva proferida em 5/2/2024, relativa a “dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo”;

na sequência,

v. foi proferido despacho em 24/3/2024, no qual se verificou ter havido pedido de apoio judicário da Recorrente para dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos, formulado em 28/11/2023 e deferido em 5/2/2024, assim como a interposição da revista feita em 14/11/2023, sem benefício desse deferimento de apoio judiciário no momento da interposição da revista, dando azo a que se ordenasse o cumprimento do art. 642º, 1, do CPC;

vi. cumprido o despacho e notificada a Recorrente, com a emissão da guia de pagamento correspondente, foram liquidadas pela Recorrente, nos termos desse art. 641º, 1, do CPC, a taxa de justiça omitida e a multa associada em 8/4/2024.


Apreciemos.


3. O art. 542º do CPC determina:


«1 – Tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.


2 – Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:


a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;


b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;


c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;


d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.»


Uma das condutas em que se poderá exprimir a litigância de má fé consiste na intervenção em juízo com propósitos dilatórios, obstando, pela sua conduta temerária ou mesmo dolosa, que o Tribunal almeje uma rápida decisão, pondo assim em causa o objectivo de realização de uma justiça pronta, que, decidindo o litígio com rapidez, reponha a certeza, a paz social e a segurança jurídica, afrontadas pelo litígio3. Neste caso, estaremos perante uma má fé instrumental, desde que acrescida da assunção subjectiva da falta de razão nessa intervenção4.


A razão de se considerar censurável – com dolo ou negligência grave – a litigância da Recorrente em sede de revista não se enquadra com qualquer dessas situações, que acabou por se circunscrever ao não pagamento tempestivo da taxa de justiça. É verdade que essa conduta acabou por originar um incidente – espoletado e tramitado ainda na 2.ª instância, relativo ao pedido de apoio judiciário, que desembocou no despacho de 24/3/2024 e consequente aplicação do art. 642º, 1, do CPC (em rigor, estranho ao que se decide agora nesta instância, em sede da revista que subiu ao STJ) –, mas não podemos deixar de referir que a Recorrente – ainda que em momento que pode ser visto como imprudente no contexto do processo em causa – estava apenas a socorrer-se de um regime legal de dispensa que o poderia beneficiar – o que fez e demonstrou estar a fazer na sequência da interposição da revista.


Assim.


A Recorrente apresentou alegações e não pagou a taxa de justiça devida no tempo devido nem no prazo de carência do art. 139º, 5, do CPC; protestou juntar comprovativo do pedido de apoio judiciário; comprovou e, a instâncias do tribunal recorrido, foi demonstrado o deferimento do apoio judiciário que cobriria essa actuação; o tribunal decidiu, no entanto, que tal deferimento não abrangia a interposição da revista, em face do momento da respectiva decisão final, pelo que mandou cumprir o regime sancionatório do art. 642º, 1, do CPC; a Recorrente pagou a liquidação ordenada à luz deste regime.


Não se nos afigura que a Recorrente tivesse litigado no âmbito da revista, a decidir agora pelo STJ, com a culpa qualificada que a lei exige, com violação grave dos deveres de cooperação, boa fé processual e correcção recíproca (arts. 7º, 1, 8º e 9º, 1, CPC) na sua relação com as partes e com o Tribunal, uma vez que a conduta revelada no pagamento da taxa de justiça devida não foi a mais curial e prudente – pois o apoio foi pedido após a interposição da revista – mas não pode ser vista sem mais como compreendida ao serviço da obtenção dos fins considerados ilegítimos na al. d) do art. 542º, 1, do CPC – nomeadamente porque acabou por haver deferimento do pedido de apoio judiciário, ainda que não aproveitável para o acto de interposição da revista.


Reitera-se: estaremos perante uma actuação processual imprudente, em especial se vista para abranger em tempo o não pagamento devido pela revista, mas não perante uma actuação dolosa ou temerária, condições para definir a actuação como ilícita e culposa à luz do art. 542º, 1, do CPC5. Nomeadamente não podemos afirmar que a actuação em causa esteve pré-ordenada ao adiamento sem causa e sem lógica processual do trânsito em julgado da decisão proferida em 2.ª instância.


Por outro lado, verifica-se que a Recorrente não se conforma com as consequências jurídicas do acórdão recorrido, que manteve a sentença de 1.ª instância. Usou, por isso, na sua óptica de melhor reacção, da faculdade de impugnar a decisão de 2.ª instância por via do art. 674º, 1, c), do CPC, tendo em conta alegados vícios na fundamentação, visando inverter a solução da instância recorrida.


Visto à luz agora da al. a) do art. 542º, 2, do CPC – que também subjaz às alegações da Recorrida peticionante e merece consideração –, aproveitar deste meio recursivo – ainda que depois dependente de um juízo de admissibilidade em face da admissibilidade do próprio recurso de revista enquanto tal: como vimos, negativo –, de acordo com a sua visão em estarem verificadas essas mesmas nulidades, não permite concluir por si só que foram violados os deveres processuais incompatíveis com uma actuação eivada da promoção de expedientes dilatórios, susceptível de desencadear a forte sanção punitiva que o CPC reserva para comportamentos abusivos em sede adjectivo-processual6.


Note-se que a Recorrente comprovou o requerimento do apoio judiciário, que protestou juntar aquando da interposição da revista, e, após proferido despacho de cumprimento do art. 642º, 1, do CPC, não deixou de cumprir e liquidar o devido (taxa de justiça e multa).


Razões pelas quais não logra proceder o pedido da Recorrida «Massa Insolvente» e se absolve a Recorrente de tal pedido.


III) DECISÃO


Em conformidade, acorda-se em:

i. Não tomar conhecimento do objecto do recurso;

ii. Ordenar a devolução dos autos à Relação para conhecimento e apreciação das nulidades alegadas pela Recorrente, imputadas ao acórdão recorrido, a conhecer e apreciar em conferência, nos termos do art. 666º, 2, do CPC;

iii. Julgar improcedente e absolver a Recorrente do pedido de condenação em litigância de má fé na interposição da revista.





Custas nesta instância pela Recorrente, com indeferimento do pedido de pagamento de taxa de justiça excepcional, uma vez sem aplicação os arts. 531º do CPC e 10º do RCP, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido.



Custas do incidente relativo à litigância de má fé a cargo da Recorrida «Massa Insolvente», que se fixa em taxa de justiça correspondente a 0,5 UC (art. 527º, 1 e 2, CPC).

STJ/Lisboa, 9 de Julho de 2024


Ricardo Costa (Relator)


Luís Correia de Mendonça


Leonel Serôdio


SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).

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1. V. os Acs. do STJ de 10/12/2019, processo n.º 2386/17, 7/9/2020, processo n.º 12651/15 (também para a interpretação restritiva do art. 615º, 4, 2.ª parte), 10/5/2021, processo n.º 1641/19, e de 20/12/2022, processo 4509/19, sempre in www.dgsi.pt.↩︎

2. V. ABRANTES GERALDES, “Artigo 666º”, pág. 339, “Artigo 674º”, pág. 405, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ARMINDO RIBEIRO MENDES/ISABEL ALEXANDRE, “Artigo 666º”, Código de Processo Civil anotado, Volume 3.º, Artigos 627.º a 877.º, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, pág. 188.↩︎

3. ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil anotado, Vol. I, Parte geral e processo de declaração, Artigos 1.º a 702.º, Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 542º, pág. 593.↩︎

4. V., neste sentido, o Ac. do STJ de 13/1/2015, processo n.º 36/12, Rel. FONSECA RAMOS, in www.dgsi.pt.↩︎

5. V. JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil anotado, Volume 2.º, Artigos 362.º a 626.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2021, sub art. 542º, pág. 456.↩︎

6. Para este critério, v. o Ac. do STJ de 30/3/2023, processo n.º 6739/21, Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.↩︎