Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ00041125 | ||
Relator: | TOMÉ DE CARVALHO | ||
Descritores: | CULPA MATÉRIA DE DIREITO MATÉRIA DE FACTO | ||
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Nº do Documento: | SJ200104030005271 | ||
Data do Acordão: | 04/03/2001 | ||
Votação: | UNANIMIDADE COM 3 DEC VOT | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA. | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA. | ||
Área Temática: | DIR CIV - DIR RESP CIV. | ||
Legislação Nacional: | CCIV66 ARTIGO 483 N2 ARTIGO 487. | ||
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Sumário : | I - A culpa deve ser apreciada in abstracto pela diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias de cada caso. II - Determinar o que um bom pai de família teria feito e ter-se o lesante comportado de igual modo é matéria de direito visto estar em causa a interpretação e aplicação da norma do artigo 487 do Código Civil. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: A instaurou no Tribunal da Comarca de Penafiel, em 28 de Junho de 1995, acção com processo sumário contra a B pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 20070000 escudos, acrescida de juros de mora à taxa legal a contar da citação, como indemnização por todos os danos por ela sofridos no acidente ferroviário de que foi vítima e que sucedeu por culpa de um funcionário da demandada. Contestou a ré para impugnar os factos alegados na petição inicial e concluir pela culpa exclusiva da autora na produção do acidente. O Centro Nacional de Pensões veio aos autos pedir a condenação da ré a pagar-lhe a importância de 989522 escudos e bem assim as prestações que se vencerem na pendência da acção até ao limite da indemnização. Este pedido mereceu oposição por parte da autora e ré. À autora foi concedido o benefício de apoio judiciário, na modalidade de isenção total de preparos e custas. Saneado e condensado o processo, teve lugar a audiência de julgamento, após o que, em 22 de Março de 2000, foi proferida sentença que, distribuindo a responsabilidade pela ocorrência do acidente pela autora e pelo funcionário da ré (3/5 para aquela e 2/5 para este), julgou os pedidos parcialmente procedentes e, consequentemente, condenou a ré a pagar à autora a quantia de 5424471 escudos, sem prejuízo da dedução a esse montante do que se vier a liquidar em termos de reembolsos ao CNP, com juros legais de mora desde a citação e ainda no que se liquidar em execução de sentença no que concerne às despesas em tratamentos médicos, medicamentos e transportes realizados pela autora, até ao limite de 13216564 escudos, com juros de mora; condenou ainda a ré a pagar ao CNP a quantia de 1428965 escudos e no equivalente a 2/5 das pensões entretanto pagas e nas que se vierem a vencer na pendência da acção; a liquidar em execução de sentença, até ao limite global de 4853436 escudos. Inconformada, apelou a ré. O Tribunal da Relação do Porto, pelo acórdão de folhas 223 e seguintes, datado de 25 de Outubro de 2000, julgando improcedente o recurso, confirmou aquela sentença. Ainda não conformada, a ré recorreu de revista, em cuja alegação formulou as conclusões seguintes: 1. A recorrida chegou atrasada em relação ao horário de partida do comboio, não tendo entrado na estação e no cais de embarque, mas preferido atravessar a linha férrea em diagonal; 2. Como a primeira porta que encontrou já estava fechada, a recorrida, gorada esta tentativa de entrar, e já com o comboio em andamento, tentou entrar por outra porta; 3. Não tendo conseguido, a recorrida tentou entrar uma terceira vez, tendo alguém estendido um braço, tocando na recorrida e esta caindo entre a linha férrea e o comboio; 4. Ao funcionário da recorrente não foi possível, nos escassos segundos que decorreram entre o momento em que a recorrida surgiu a correr junto ao comboio, a partida que deu e a queda desta à linha, proceder de modo a impedir o acidente; 5. O funcionário da recorrente fez o que estava ao seu alcance imediato: alertar a recorrida do perigo que esta corria e dando-lhe uma ordem para que a mesma não tentasse entrar no comboio em andamento - "Minha Senhora! Não entre por favor que a senhora mata-se!"; 6. Na douta decisão não foi dada qualquer relevância aos factos importantes dados como provados sob os pontos 14 e 15; 7. Resulta dos factos provados que a causa adequada do acidente radica única e exclusivamente no comportamento temerário da recorrida, e em factos a que a recorrente e o seu funcionário são totalmente alheios; 8. Como tal, a recorrente deveria ter sido absolvida na totalidade do pedido e não apenas na proporção de 3/5; 9. Sem prescindir e meramente à cautela, sempre se conclui pelo manifesto excesso dos montantes indemnizatórios, pelo que deverão ser devidamente reduzidos a quantias equitativas; 10. Por tudo o exposto, foram violadas, por incorrecta aplicação, as normas dos artigos 483º, 499º, 500º, 505º, 566º e 570º do Código Civil. Contra-alegando, a recorrida pugna pela manutenção do julgado. Cumpre decidir: Os factos considerados provados pela Relação são os seguintes: 1. No dia 10 de Junho de 1992, na estação de caminho de ferro de Penafiel ocorreu um acidente; 2. Nele interveio a autora, como acidentada, e uma composição, propriedade da ré, que fazia o trajecto para a Régua/Pocinho; 3. O acidente ocorreu pelas 8.50 horas; 4. A via estava em boas condições; 5. O acidente deu-se na plataforma de entrada dos passageiros; 6. A referida composição seguia do Porto para o Pocinho e efectuou a sua normal paragem para receber e despedir passageiros e quando ainda estava parada, com a máquina fora da gare, surgiu atravessando as linhas em diagonal a autora, com intenção clara de entrar para a referida composição; 7. Ao chegar ao referido local onde se deu o acidente, a autora tentou entrar na primeira porta à sua mão, mas como estivesse fechada e o comboio ainda parado, tentou encontrar outra porta que estivesse aberta, a fim de poder entrar com segurança; 8. No entanto, quando começou a dirigir-se para a porta que se encontrava aberta o funcionário encarregado de dar a partida ao comboio fê-lo de imediato, sem curar de saber se o podia fazer com segurança para os passageiros que pretendiam entrar no comboio; 9. A autora, que pretendia entrar no comboio, desequilibrou-se e caiu junto aos trilhos de ferro; 10. Quando a autora pretendeu entrar para o comboio pela última vez já este se encontrava em andamento, após ter sido dado o respectivo sinal de partida; 11. Sendo certo que a autora atravessou a linha férrea e pela parte da frente do comboio (da locomotiva) e em sentido contrário ao da marcha do mesmo veículo ferroviário; 12. E, saindo da linha, a autora subiu para a plataforma de embarque de passageiros, tendo feito menção de entrar na 1ª porta da 1ª carruagem daquela composição ferroviária; 13. A autora desistiu do seu intento de entrar no comboio na 1ª porta, mas à passagem da 2ª porta tentou agarrar-se ao varão de apoio à entrada da carruagem e pelo funcionário que, entretanto, já havia dado a partida do comboio, foi-lhe dito: minha Senhora! Não entre, por favor, que a senhora mata-se; 14. Passou a 1ª carruagem e, quando já ia a passar a 2ª carruagem e ao meio desta, viu um braço estender-se de dentro para fora, tendo havido um contacto entre esse braço da pessoa que seguia na carruagem com o da autora; 15. No seguimento desse contacto, a autora caiu, ficando entalada entre a parede da plataforma e os carris; 16. De acordo com o regulamento deveria ter sido usado o apito que é de porte obrigatório e assinalar através da bandeira ao comboio que parasse, o que não fez; 17. Foram os passageiros que, vendo a total inactividade do funcionário da ré, accionaram o sinal de alarme e fizeram com que o comboio se sustivesse; 18. Pois o funcionário da ré esteve sempre com a bandeira ao alto, confirmando a partida, quando devia tê-la aberto para anular a partida; 19. O funcionário viu a autora cair à linha; 20. O comboio, na sua marcha até parar, provocou ferimentos graves no corpo da autora, tendo-lhe trucidado um braço, facto pelo qual foi transportada do local do acidente para o C.H.V.S.; 21. Após o que se imobilizou; 22. Face a tal acidente, foi de imediato pedida a intervenção dos bombeiros, que transportaram a autora ao hospital de Penafiel, e da G.N.R., que tomou conta da ocorrência; 23. Do acidente resultou que a roupa que a autora trazia se rasgou; 24. Em consequência do referido em 20. Ficou a autora com uma IPP de 80%; 25. À autora não é possível fazer quaisquer trabalhos domésticos; 26. Nem mesmo vestir-se, pois a coluna vertebral ficou gravemente afectada e impossibilita-a de se curvar; 27. Não consegue levantar-se da cadeira ou banco sózinha, pois falta-lhe o braço de que necessita para se equilibrar e agarrar-se a algo que a isso a ajude; 28. É com muita dificuldade que consegue levantar-se e estar de pé; 29. Era jovem, trabalhadora e com projectos para o futuro; 30. Trabalhava numa fábrica de confecções, onde auferia o salário de 32000 escudos, estando hoje (data da propositura da acção) com um ordenado aproximado de 50000 escudos; 31. Teve despesas médicas e medicamentosas e despesas em transportes para ser assistida medicamente; 32. Teve de suportar imensas dores, quer nos tratamentos quer resultantes do acidente quer ainda depois de curada; 33. É próspera a situação económica da ré, sendo a autora de fracos recursos económicos; 34. O CNP pagou à autora a quantia de 3572412 escudos, relativamente a pensões de invalidez compreendidas entre o período de 11 de Agosto de 1993 e 29 de Fevereiro de 2000, por causa do acidente referido nos autos. Postos os factos, entremos na apreciação do recurso. A primeira - e fulcral - questão colocada prende-se com a culpa na graduação do acidente. Entende a recorrente que ocorreu culpa exclusiva da autora ou, o que é o mesmo, que os factos apurados excluem totalmente a culpa do seu funcionário e, consequentemente, dela própria, culpa aquela resultante da violação do dever geral de diligência. Poder-se-á dizer que sendo a culpa baseada na infracção de deveres gerais de diligência e prudência constitui matéria de facto, da competência exclusiva das instâncias. Não sufragamos, porém, esta opinião. Na verdade, mandando a lei apurar a culpa em abstracto, "pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso" (artigo 487º, n.º 2, do Código Civil). Para apurar a culpa, o tribunal tem, pois, de interpretar e aplicar a referida norma legal. Trata-se de matéria de direito, cabendo, por isso, nos poderes do tribunal de revista. Como é referido por Vaz Serra, Rev. Leg. Jur., ano 114º, página 320, "determinar o que um bom pai de família teria feito, e ter-se o lesante comportado de igual modo, é matéria de direito, visto estar em causa a interpretação e aplicação da norma do artigo 487º do Código Civil e, por isto, matéria de direito. A lei, ao conferir ao tribunal a função de se valer do critério da diligência do bom pai de família, quer que ele se inspire nesse critério, que é, assim, um dos elementos da norma legal. É, consequentemente, nítido que se trata de uma questão de direito. Sendo questão do direito, logo do conhecimento do Supremo Tribunal de Justiça (artigo 729º, n.º 1, do Código de Processo Civil), há que apreciar se a recorrente, ou melhor, o agente dela teve culpa, ou parcela da mesma, na produção do acidente de tão graves consequências para a autora da acção. As instâncias distribuíram a culpa na produção do acidente entre autora e ré, na proporção de 3/5 para aquela e 2/5 para esta. Não se nos afigura legal esta solução. Consoante já se referiu, a lei, artigo 483º, n.º 2, do Código Civil, a culpa deve ser apreciada em abstracto, "pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso". Deve, pois, atender-se à diligência exigida a um bom cidadão face às circunstâncias do caso. Como dizem Pires de Lima e Antunes Varela, anotado, vol. I, 4ª edição, página 489, "mandando atender às circunstâncias de cada caso, a lei quer apenas dizer que a diligência relevante para a determinação da culpa é a que um homem normal (um bom pai de família) teria em face do condicionalismo próprio do caso concreto". Postas estas considerações, vejamos se ao funcionário da ré era exigível outra conduta de modo a evitar o acidente. No acórdão recorrido concluiu-se que concorreu culpa do funcionário da apelante por este ter dado ordem de marcha ao comboio quando a autora, depois de ter deparado com uma 1ª porta fechada, se dirigia para uma outra que estivesse aberta e, depois, não ter usado sinal sonoro nem brandindo a bandeira quando a autora caiu à linha férrea. Não se concorda com esta passagem do acórdão recorrido, pois da globalidade dos factos apurados não se vê que a conduta do funcionário da ré possa ser passível de um juízo de censura, por lhe ser exigível uma outra diligência em face das circunstâncias do caso. Efectivamente, a autora, chegando atrasada à estação de embarque, fez menção de entrar na 1ª porta da 1ª carruagem, mas, como se encontrasse já fechada, desistiu de entrar. No entanto, à passagem da 2ª porta, quando já havia sido dada ordem de partida do comboio, tentou agarrar-se ao varão de apoio da carruagem, o que levou o funcionário da ré a dizer-lhe que não entrasse, porque podia morrer. Quando ia a passar a 2ª carruagem, alguém estendeu um braço à autora, que o contactou e que originou a queda da demandante. Perante este circunstancialismo, não era exigível outra diligência ao funcionário da ré. Este, ao ver que a autora pretendia entrar no comboio em andamento disse-lhe de viva voz que o não fizesse. Não pode ele ser responsabilizado por, posteriormente, alguém, levianamente, ter dado a mão à autora, provocando a sua queda. A ordem de partida do comboio foi dada depois de a autora desistir do intento de entrar na 1ª porta, que já se encontrava fechada e, depois, quando o comboio já ia em andamento, foi aconselhada pelo funcionário da ré a não entrar na composição. O facto de o agente da ré não ter usado sinal sonoro ou agitado a bandeira é de todo irrelevante para a graduação do acidente, pois já havia ocorrido a queda da autora. A culpa cabe, assim, por inteiro à autora ou, quando muito, à concorrência de culpas da autora e da pessoa que, no interior do comboio, lhe estendeu o braço. Afastada, deste modo, a culpa do funcionário da ré e demonstrada a da autora, a ré não pode ser responsabilizada, quer a título de culpa, que inexiste (artigo 483º, n.º 1, do Código Civil), quer a título de risco, dado que o acidente é imputável à própria lesada (artigo 505º do mesmo Código). A acção não pode, pois, proceder. Nestes termos, concedendo-se a revista, revoga-se o acórdão recorrido e, com ele, a decisão da 1ª instância e julgando a acção improcedente, fica a ré absolvida dos pedidos. Custas pela recorrida, sem prejuízo do apoio judiciário concedido. Lisboa, 3 de Abril de 2001. Tomé de Carvalho, Correia de Sousa, Silva Paixão, (com a declaração de que não subscrevo a afirmação de que a culpa quando aferida pelo comportamento de um bom pai de família constitui sempre matéria de direito), Silva Graça, (com declaração idêntica à do Sr. Conselheiro Silva Paixão) Azevedo Ramos, (com declaração idêntica à do Exmo. Sr. Conselheiro Silva Paixão). |