Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
144/13.9YRLSB
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: NUNO GONÇALVES
Descritores: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE
AMPLIAÇÃO DO PEDIDO
DIREITO DE DEFESA
CONSENTIMENTO
Data do Acordão: 01/09/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
Decisão:
NEGADO PROVIMENTO
Área Temática:
MANDATO DE DETENÇÃO EUROPEU.
Doutrina:
- A. Pires H. da Graça, A Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça na execução do regime relativo ao Mandato de Detenção Europeu, p. 48;
- J. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I.º Vol., p. 111/112;
- M. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, I, p. 62/63.
Legislação Nacional:
MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU, APROVADO PELA LEI N.º 35/2015, DE 04-05, COM A RESPECTIVA ALTERAÇÃO DADA PELA LEI N.º 65/2003, DE 23-08.
Legislação Comunitária:
DECISÃO-QUADRO 2002/584/JAI.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 22-01-2014, PROCESSO N.º 144/13.9YRLSB.


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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

- ACÓRDÃO N.º 671/06, DE 12-12-2006, PROCESSO N.º 989/06;
- ACÓRDÃO N.º 66/2008, DE 31-01-2008, PROCESSO N.º 7/08.
Sumário :
I -O princípio da especialidade traduz-se em limitar os factos pelos quais a pessoa procurada poderá ser julgada no EM de emissão do MDE ou a pena que aí poderá cumprir quando a entrega seja para o cumprimento de pena de prisão ou medida de segurança privativa da liberdade. A pessoa entregue não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada da liberdade por infracção praticada antes da sua entrega e diferente daquela porque foi entregue.
II - Contrapondo o exposto face à situação concreta em que o Estado Italiano formula agora ao Estado Português um pedido de ampliação do MDE emitido contra o arguido, questiona-se se tal pedido não consubstancia uma violação de uma situação de expectativas no requerente no sentido de que o cumprimento da pena se limitasse ao pedido inicialmente formulado, se o confronto do recorrente com uma situação nova, e não esperada, de extensão do MDE a situações novas poderá convocar uma situação de deslealdade processual.
III - A resposta é negativa, pois que a ampliação agora consumada consubstancia a decisão final num processo penal em que ao recorrente foi dada a possibilidade de exercer os seus direitos, ou seja a decisão para a qual se solicita extensão do MDE foi proferida no culminar dum processo justo. Não é uma situação inesperada mas algo que desde há longo tempo faz parte do relacionamento do recorrente com o Estado Italiano.
IV - Com a alteração operada pela Lei 35/2015, de 04-05 à Lei 65/2003, de 23-08, é agora claro que o consentimento para a execução de um novo MDE quando solicitado por uma autoridade judiciária de um EM a uma autoridade judiciária de Portugal (na qualidade de Estado de execução de um anterior MDE), deve por esta ser prestado, sempre que a infracção para a qual é solicitado, desse ela própria lugar à entrega do detido, isto é, sempre que estejam reunidas as condições que permitiriam a execução da entrega do cidadão procurado, caso se tratasse da execução de um primeiro MDE.
Decisão Texto Integral:

O Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção, acorda em conferência:

O Tribunal da Relação de Lisboa, na qualidade de autoridade de execução do anterior MDE que legitimou a entrega às autoridades judiciárias italianas em 25.1.2013 do cidadão italiano AA, por acórdão datado de 19 de Setembro de 2018, decidiu prestar o seu consentimento para que o referido cidadão possa cumprir, em Itália, a pena crime a que se refere o novo MDE junto a fls 585 e segs (8 meses de reclusão, que lhe foi aplicada pelas autoridades judiciárias de emissão em momento anterior), e que foi recebido nestes autos em data posterior àquela entrega - art° 7° n° 2 g) e n° 4 a) e d) e art° 8° n.º 4 e 5 da Lei n° 65/2003 na redacção dada pela Lei n° 35/2015 de 4.05.

AA, inconformado com esta decisão de consentir na extensão da sua entrega à justiça italiana, de modo a que cumpra, em Itália, a pena de reclusão a que se refere este novo MDE, interpôs recurso ao abrigo do disposto no art.º 24º n.º 1 b) da Lei n.º 65/2003.

Apresentou motivação, concluindo:

1ª- O Acórdão recorrido viola/violou o princípio da especialidade que foi expressamente invocado pelo detido AA logo na audição de 24.01.2013;

2ª- O princípio da especialidade mostra-se transposto para o direito interno no artigo 7º da Lei 65/2003 de 23 de Agosto, único diploma legal que rege esta matéria, norma que foi erradamente interpretada - logo violada - pela decisão recorrida;

3ª- Não pode em circunstância alguma, mais a mais tratando-se de matéria de interpretação de lei criminal, lançar-se mão para efeitos hermenêuticos da extinta Decisão-Quadro porque é a Lei 65/2003 de 23 de Agosto que agora nos diz tudo e comanda o que diz respeito ao princípio da especialidade;

4ª- A decisão recorrida fez uma leitura literal da al. g) do nº 2 do art. 7º da referida Lei 65/2003 de 23.08 o que conduziu, erradamente, à conclusão absurda de que sendo o Estado Português o Estado de Execução, este poderia consentir que a pessoa entregue pudesse ser privada de liberdade por infracção praticada em momento anterior à sua entrega e diferente daquela que motivou a emissão do mandado de detenção europeu;

5ª- A redacção do nº 4 do art. 7º da Lei nº 65/2003 de 23.08 que remete para al g) do nº 2 do mesmo é reconhecido pelo Mº Pº nestes autos como parcialmente ininteligível acabando por repristinar o artigo 27 da Decisão-Quadro, repristinação esta que é ilegalmente corroborada pelo Acórdão recorrido;

6ª- As eventuais dificuldades de interpretação do citado normativo não podem ser resolvidas através da repristinação de normas revogadas pelo Tratado de Lisboa e pela transposição feita pela Lei nº 65/2003 de 23.08, porque só os órgãos do poder legislativo têm competência para alterar esse ou qualquer outro normativo que esteja em vigor;

7ª- O douto Acórdão recorrido violou o art. 7º da Lei 65/2003 de 23.08 ao ter reconhecido que o novo MDE cabiam nas excepções do nº 2 do mesmo, esvaziando assim o princípio da especialidade a que o ora recorrente não renunciou;

8ª- O princípio da especialidade invocado pelo ora recorrente determina forçosamente a recusa/negação da extensão do consentimento requerida pelas autoridades italianas para o novo MDE;

9ª- Tal recusa/negação da extensão do consentimento para o novo MDE não inviabiliza a possibilidade das autoridades italianas fazerem uso do procedimento extradicional “normal” em vez do procedimento simplificado do MDE.

10ª- O Acórdão recorrido, ao ter violado a Lei pela forma supra descrita, incluindo a própria Constituição, acabou por se quedar pelo simples controlo formal da decisão/sentença apresentada no novo MDE, quando se tivesse havido algum controlo substancial da mesma ter-se-ia detectado {que] este novo MDE respeita a uma pena erradamente indicada/ invocada como o ora recorrente bem demonstrou na sua oposição de fls._ .

O Ministério Publico em resposta, alegando que o acórdão recorrido não padece de qualquer vício que importe a alteração da decisão, entende que deve ser integralmente mantido, com a consequente improcedência do recurso.

Não havendo motivos que obstem ao conhecimento do recurso, cumpre apreciar e decidir.
A- Relatório:

Dos elementos constantes dos autos extrai-se:


1. O  cidadão de nacionalidade italiana AA, com os demais sinais identificadores constantes do processo, foi, por decisão do Tribunal da Relação de Lisboa datada de 24 de Janeiro de 2013, proferida em execução de MDE, entregue a Itália em 25.1.2013, para cumprimento de uma pena de 5 anos de prisão, aplicada pelo tribunal de Turim, pelos factos constantes de fls. 6, praticados em 9 de Maio de 2006, os quais, de acordo com aquela decisão condenatória, constituem um crime de extorsão qualificada p. e p. pelos artigos 110° e 629° do Código Penal italiano.
2. O detido, ouvido pela autoridade judiciária de execução, consentiu na entrega, mas não renunciou ao benefício do princípio da especialidade. Não renúncia que reafirmou quando, já em Itália, foi novamente ouvido a tal respeito (fls. 596-597).
3. Posteriormente, a autoridade judiciária de emissão, nos termos do artigo 27°, n° 4, da Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de Junho de 2002, formulou dois [três –vd Acórdão de 22/01/2014 a fls. 420-440] novos e distintos pedidos de consentimento na extensão da entrega do detido AA, para cumprimento de penas de prisão que lhe tinham sido anteriormente aplicadas por tribunais italianos.
4. Consentimento que foi prestado por decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, autoridade judiciária de execução, proferidas respectivamente em 31.7.2013 e 5.3.2014, confirmada por este Tribunal por Acórdão de 22/01/2014.
5. Depois, em 20.03.2018, a autoridade judiciária de emissão apresentou à autoridade judiciária de execução novo pedido de consentimento na extensão da entrega do detido AA, nos termos do artigo 27°, n° 4, da Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de Junho de 2002:
a. Agora para cumprimento da pena de 1 ano de prisão, aplicada por sentença n° 2322/2012 - RG.Ger. n° 8942/2011 - RGNR n° 52035/2010 emitida em 2.3.2012 pelo Tribunal Ordinário de Milão – 2.ª secção e confirmada por sentença n° 8454/2012 de 17.12 de 2012 do Tribunal da Relação de Milão que se tornou irrevogável em 8.1.2014, pela autoria de factos praticados em 28 de Outubro de 2005, os quais, de acordo com a decisão condenatória, integram um crime de fraude fiscal p. e p. pelo artigo 4 do Decreto Legislativo n° 74/2000 (fuga aos impostos indicados na Declaração Mod.Unico 2005 - por referência ao ano do imposto 2004 - sendo o montante total do imposto IRPEF frustrado de 488.295,00 euros, sendo esse também o valor do prejuízo económico causado ao Estado Italiano);

b. Crime que não exige a verificação da dupla incriminação na medida em que vem previsto na alínea h) do n° 2 do art° 2° da Lei n° 65/2003 de 23.08, sendo ainda de realçar que a execução do MDE não poderá ser recusada em matéria de contribuições e impostos ainda que a legislação portuguesa não preveja o mesmo tipo de contribuições ou de impostos ou não preveja o mesmo tipo de regulamentação em matéria de contribuições e impostos que a legislação do Estado membro de Emissão do MDE (art° 12° n.º 2 da Lei n° 65/2003 de 23.8).
c. No campo d) do MDE, consta que esta decisão foi proferida na ausência do arguido (fls. 589).

6. Admitido o pedido de extensão do consentimento em apreço e notificado AA, para, querendo, deduzir oposição veio, pelo respetivo defensor, opor-se, pugnando pela recusa do consentimento solicitado pelas autoridades italianas, argumentando em síntese:

a)- O novo MDE destina-se ao cumprimento da pena de 1 ano de reclusão, reduzida a partir de 9.6.2014, para 8 meses de prisão;

b) pena que está ferida de prescrição nos termos do art° 122°/ 1/d) do C.P;

c) Respeita a factos anteriores à entrega, que integram um crime de evasão fiscal p.p. no art° 4° do Decreto Legislativo 74/2000, que na lei portuguesa está previsto no art° 103°/1/b) do RGIT, punido com pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias, sendo uma incriminação bem diversa daquela da legislação italiana;

d) A Lei 65/2003 de 23.08 apenas permite a utilização deste procedimento simplificado para um catálogo de infracções, da qual não faz parte o crime de evasão fiscal atribuído a AA e pelo qual se vem agora pedir o consentimento;

e) O MDE não pode ser utilizado no caso de ter havido recusa do requerido na sua entrega, devendo nesses casos ser utilizado o processo de extradição ordinário.

f) O procurado AA, não renunciou à regra da especialidade;

g) Dispõe o art° 27°/2 da Decisão Quadro 2002/584/JAI do Conselho de 13.06.2002 que uma pessoa não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada da liberdade. por uma infracção praticada antes da sua entrega diferente daquela por que foi entregue;

h) A regra da especialidade está transposta para o direito interno português no art° 7° da Lei n° 65/2003 de 23.8, único diploma que rege esta matéria já que a Decisão-Quadro acima referida foi extinta pelo Tratado de Lisboa, o qual no âmbito do direito comunitário se sobrepõe às directivas comunitárias pela sua própria natureza, finalidades e efeitos.

i) O afastamento do benefício da especialidade só poderia ocorrer se o cidadão italiano AA, já entregue ao Estado Italiano em execução de um MDE anterior, desse o seu consentimento perante as autoridades italianas (Estado de emissão), relativamente à execução do novo MDE por factos praticados em data anterior à sua entrega

j) O disposto no art° 7°/4 da Lei n° 65/2003 de 23.o8, é inaplicável ao caso presente, na medida em que apenas se aplica quando o Estado de Emissão do MDE for o Estado Português e no caso sub judice o Estado de Emissão é o Estado Italiano.

l) Interpretação diferente desta norma é ilegal e inconstitucional, esvaziando por completo o princípio da especialidade.

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7 - O Ministério Público emitiu o parecer, concluindo que a oposição deve improceder porque:
a) O detido não invoca qualquer causa de recusa prevista no art° 11° da Lei n° 65/2003 ou de recusa facultativa de execução do mandado de detenção europeu prevista no art° 12° da mesma lei quando tais normas por si e conjugadamente com as restantes são interpretadas à luz do seu texto gramatical ou da sua ratio.
b) Tratando-se de crime de natureza fiscal, o preceituado no n° 2 do art° 12° da Lei n° 65/2003 de 23.08, impede a recusa da execução do MDE, mesmo que a legislação portuguesa não imponha o mesmo tipo de contribuições ou impostos ou não preveja o mesmo tipo de regulamentação em matéria de contribuições e impostos que a legislação do Estado emissor do MDE."
c) O decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal ou da pena não constituiria nunca uma causa de recusa facultativa de execução do MDE no caso em análise, porque os Tribunais portugueses não são competentes para o conhecimento dos factos que motivaram a emissão dos MDE, por não se tratar de nenhuma das situações previstas no art° 5° do C.P.

Concluiu pelo deferimento da execução do MDE.

O acórdão recorrido aprecia especificadamente as questões juridicas suscitadas na oposição:

a)- O ilícito a que se refere o novo MDE ora em análise praticado pelo AA em 28.10.2005, é juridicamente qualificado pelo Direito Italiano como "crime de fraude fiscal de I.R.P.E.F no valor de 488.295,00 euros", qualificação jurídica que o detido não colocou em causa e com a qual se conformou.

No formulário do MDE junto a fls. 578 e segs tal ilícito integra-se no campo e), parte I (fls 592) e como tal integra-se na lista dos ilícitos em relação aos quais não é necessária sequer a dupla incriminação, isto é tal ilícito faz parte duma lista que inclui as infracções mencionadas no artigo 2°, n.° 2, da Lei n° 65/2003, de 23 de Agosto (artigo 2°, n.° 2, da Decisão-Quadro 2002/584/JAI), pelo que não se exige sequer, ao Estado Português, enquanto Estado ou autoridade de execução do MDE, a verificação da dupla incriminação.

b) O novo MDE ora em análise equivale a um pedido de consentimento na extensão da entrega do detido AA, nos termos do art° 27°/4 da Decisão Quadro 2002/584/JAI do Conselho de 13.06.2002 relativa ao MDE e aos procedimentos de entrega entre os Estados Membros da União Europeia.

O Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia/TFUE (Tratado de Lisboa) veio expressamente referir que as decisões quadro se mantêm em vigor até que sejam substituídas por força de diplomas (directivas) que expressamente imponham essa extinção – vd. art° 9° do título VII, do protocolo relativo às disposições transitórias do TFUE).

Nesta medida, não tendo sido a Decisão-Quadro extinta pelo Tratado de Lisboa, a Lei n° 65/2003 de 23.08 deve ser interpretada à luz daquela Decisão Quadro (art.º 1°/2).

c) A pena de prisão invocada neste novo MDE, reduzida a partir de 9.06.2014 para oito meses de prisão, aplicada por um Tribunal Italiano ao AA, por decisão judicial transitada em julgado, não se mostra ainda prescrita, segundo informação remetida para o nosso processo pelas autoridades judiciárias italianas (fls 662 e vi.

d) O MDE é um procedimento que pretendeu agilizar a entrega de pessoas entre as autoridades judiciárias dos Estados da União Europeia, instituído com a finalidade de substituir o regime da extradição anteriormente em vigor.

Substituição que aparece expressa no art° 31° da Decisão Quadro 2002/584/JAI do Conselho de 13.06.2002 relativa aos MDE e aos procedimentos de entrega entre os Estados Membros da União Europeia (preceito esse inserido no Capítulo 4 deste diploma, com a epígrafe  "disposições gerais e finais").

e) Está consagrada no direito interno (no art° 7° da Lei n° 65/2003 que transpôs para o nosso ordenamento o art° 27°/3 da Lei Quadro 2002/584/JAI do Conselho de 13.6.2002) uma clara excepção ao princípio da especialidade, no sentido de ser legalmente possível a prestação do consentimento pela autoridade judiciária de execução - isto é, pela autoridade que proferiu a decisão de entrega do detido, em execução de um anterior MDE.

Com a entrada em vigor da Lei n.º 35/2015 de 4.05 que alterou, entre outros, também o art.º 7º n.º 4 da Lei n.º 63/2005, deixou de ser necessário fazer qualquer interpretação correctiva desta norma.

Assim é agora claro (com a nova redacção dada à epigrafe do n° 4 do art° 7° "Se o Estado membro de execução for o Estado Português ..."), que o consentimento para a execução de um novo MDE quando solicitado por um Estado Membro a Portugal (na qualidade de Estado de Execução de um anterior MDE), deve por este último ser prestado, sempre que a infracção para a qual é solicitado, desse ela própria lugar à entrega do detido, em conformidade com o disposto na Decisão Quadro, isto é, sempre que estejam reunidas as condições que permitiriam a execução da entrega do cidadão procurado, caso se tratasse da execução de um primeiro MDE emitido por um Estado membro numa situação sem que a pessoa procurada em questão não tivesse ainda sido ouvida pelo Tribunal de execução e sujeita a qualquer detenção/entrega.

Por outro lado, o sistema legal existente, com a previsão desta excepção ao princípio da especialidade, assegura todas as garantias de defesa do arguido.

A execução de um MDE e portanto também do consentimento para extensão da entrega, previsto no n° 2 alínea g) do art° 7° n° 4 a) e d) e art° 8°/4 e 5 só poderá ser recusado pelos motivos de recusa obrigatória previstos no art° 11° ("será recusada") ou de recusa facultativa previstos no art° 12° ("pode ser recusada") da Lei n° 65/2003 na redacção dada pela Lei n° 35/2015 de 4.5 e nenhum destes motivos se verificam no caso sub Júdice.

B)- O Direito:

Balizadas pelas conclusões da motivação, as questões suscitadas e a argumentação aduzida no recurso aqui em apreço, repetem, no essencial, o alegado naquele que AA interpôs no processo contra anteriores decisões do Tribunal da Relação de Lisboa, enquanto autoridade judiciária de execução do MDE, proferidas nos autos, de consentir na extensão da entrega, de modo a incluir o cumprimento, em Itália, das penas de prisão que anteriormente à entrega lhe tinham sido aplicadas pelas autoridades judiciárias italianas.

Este Tribunal Supremo (STJ) em Acórdão datado de 22.01.218, julgando o aludido recurso, analisou e resolveu detalhada e exaustivamente as questões de interpretação da lei suscitadas pelo recorrente.

Apreciação e decisão que o mesmo Tribunal aqui segue pela bondade da respetiva fundamentação. Também não seria razoavelmente aceitável que no mesmo processo, com os mesmos intervenientes e perante situações de facto idênticas (a diferença factual naquele e neste caso, embora inelutável por dizer respeito a acontecimentos históricos diversos, é inócua para poder interferir com o aspeto jurídico do caso) interpretasse e aplicasse com sentido diverso o mesmo quadro normativo (excecionando a alteração na redação do artº 7º n.º 4 da Lei n.º 65/2003, operada pela Lei n.º 35/2015, não se verificou entretanto qualquer outra modificação legislativa com relevância para a resolução das restantes questões essenciais de direito suscitadas e aqui apreciadas). Ademais de uma interpretação e aplicação uniformes do direito, interpretação diversa poderia ferir os valores constitucionais da igualdade, da certeza e da segurança jurídica no momento de aplicar o mesmo direito a situações da vida que são idênticas.

Esclarecida e resolvida pelo legislador a questão da autoridade judiciária competente para consentir na ampliação da entrega, no demais segue-se aqui a interpretação adotada no Acórdão de 22/01/2014 deste Tribunal, proferido a fls. 420/440 dos autos.

1. Alteração da redacção do n.º 4 do art.º 7º n.º 4, pela Lei n.º 35/2015:

Previamente a reafirmar, citando, os parâmetros essenciais que sustentam a decisão, adianta-se que o n.º 4 do art.º 7 da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, foi aletrado pela Lei n.º 35/2015, de 4 de maio (entrou em vigor 30 dias após a respetiva publicação). Assim, desde 4 de Junho de 2015, deixou de ter suporte legal continuar a argumentar que o citado n.º 4 daquele artº 7º, está em desconformidade com a norma do artº 27º n.º 4 da Decisão Quadro do Conselho 2000/584/JAI, de 13 de junho de 2002, relativa ao MDE e aos processos de entrega entre os Estados-Membros.

O corpo do n.º 4 do art.º 7.º da Lei n.º 65/2003, cuja redacção originária era: “Se o Estado-Membro de emissão for o Estado Português, o consentimento a que se refere a alínea g) do n.º 2:”, passou a ser: “Se o Estado-Membro de execução for o Estado Português, o consentimento a que se refere a alínea g) do n.º 2:”.

A execução deste MDE na modalidade de consentimento de extensão da entrega para cumprimento desta concreta pena judicial de 8 meses de reclusão (prisão) aplicada pela autoridade judiciária de emissão em momento anterior à entrega, iniciou-se no Tribunal da Relação de Lisboa em 20 de marco de 2018, ainda que com tramitação no processo em epígrafe, instaurado em 2013, mas que já estava arquivado (em arquivo geral desde 4 de novembro de 2015).

Iniciou-se, pois, e desenvolve-se na vigência da nova redacção do citado n.º 4 do art.º 7.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto.

São diversos os princípios sobre a aplicação da lei no tempo em direito penal e em processo penal.

O princípio geral em processo penal é o de aplicação da lei vigente no momento em que o ato processual foi praticado[1].

O Código de Processo Penal (CPP) aplicável, subsidiariamente, ao processo de execução do MDE – ex vi do artº 34º da Lei n.º 65/2003 de 23.08- dispõe[2], no art.º 5º, que a lei processual penal é de aplicação imediata. Só não se aplica aos processos pendentes iniciados anteriormente quando: (a) puder agravar sensivelmente a posição processual do arguido, designadamente limitando o respectivo direito de defesa; ou (b) puder quebrar a harmonia e unidade dos atos processuais.

A sistemática da Lei n.º 65/2003 não obsta à aplicação imediata da nova redacção do corpo do n.º 4 do seu art.º 7.º, dada pela Lei n.º 35/2015 de 4.05.

O Tribunal Constitucional entendeu que o processo de extradição é “um processo de escopo inquestionavelmente penal”. Nele não “se julga nem se condena o extraditando”[3].

Acresce que o legislador, neste ponto, mais não fez do que corrigir o manifesto lapso de transposição do artº 27º n.º 4 da Decisão Quadro 2002/584/JAI, reforçando, deste modo, a interpretação adotada pela jurisprudência, designadamente no Acórdão do STJ de 22/01/2014, proferido neste processo. 

É, pois, agora claro e inequívoco, como se refere no acórdão recorrido, que o consentimento para a execução de um novo MDE quando solicitado por uma autoridade judiciária de um Estado Membro a uma autoridade judiciária de Portugal (na qualidade de Estado de Execução de um anterior MDE), deve por esta ser prestado, sempre que a infracção para a qual é solicitado, desse ela própria lugar à entrega do detido, isto é, sempre que estejam reunidas as condições que permitiriam a execução da entrega do cidadão procurado, caso se tratasse da execução de um primeiro MDE.

2. vigência da Decisão-Quadro 2002/584/JAI:

 

A argumentação do recorrente contra a vigência da Decisão-Quadro 2002/584/JAI, após a entrada em vigor do TFUE, não tem sustentação e tem sido e continua a ser infirmada pela jurisprudência.

Às razões expostas no acórdão recorrido e que se vem de corroborar e acrescentar, somam-se outras de grande relevo.

O Tratado de Lisboa (TFUE) foi assinado em 13.12.2007 e entrou em vigor em 1 de dezembro de 2009 (em mediatizada cerimónia pública ocorrida também em Lisboa). Entre aquelas datas, em 26 de fevereiro de 2009, o Conselho da UE, ao abrigo do Tratado da União Europeia (TUE) aprovou a Decisão-Quadro 2009/299/JAI[4] que altera outras Decisões-Quadro, reforça os direitos processuais dos arguidos em processo penal, facilita a cooperação judiciária em matéria penal, e melhora o reconhecimento mútuo de decisões judiciais entre Estados-Membros (artº 1º).

Entre as alteradas está também a Decisão-Quadro 2002/584/JAI (vd. ar.º 2º da Decisão Quadro 2009/299/JAI).

Alteração que só se sustenta porque o Conselho da UE, isto é, o legislador, estava consciente de que estas, bem como as demais Decisões-Quadro ali alteradas, estavam em plena vigência e que assim se mantinham até que futuramente venham a ser sejam substituídas (máxime: por directivas).

Por outro lado, decisivamente, a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJ) tem vindo a interpretar a Decisão-Quadro 2002/584/JAI, sem objecção alguma quanto à respetiva vigência. Que assim confirma, dela fazendo interpretação na actualidade, como sucedeu, por exemplo, no recente Acórdão do TJ (Primeira Secção) proferido no processo C-551/18-PPU, ECLI:EU:C:2018:991 (com a particularidade de versar sobre um caso concreto de consentimento adicional).

Tribunal de Justiça a quem compete interpretar o direito da União, velando, em colaboração com os órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros, pela sua interpretação e aplicação uniformes.

3. Principio da especialidade:

O MDE, instituído pela Decisão-Quadro 2002/584/JAI, substitui o tradicional sistema de extradição multilateral baseado na Convenção Europeia de Extradição, [assinada em Paris, em 13 de dezembro de 1957] por um novo sistema simplificado e mais eficaz de entrega das pessoas condenadas ou suspeitas de terem infringido a lei penal, facilitando e acelerando a cooperação judiciária com vista a contribuir para realizar o objetivo, da União, de se tornar um espaço de liberdade, segurança e justiça.

Assente no princípio da confiança mútua entre os Estados Membros e no princípio do reconhecimento mútuo têm, no direito da União, uma importância fundamental, permitindo a criação e a manutenção de um espaço sem fronteiras internas[5].

Introduziu uma importante e expressiva mudança de paradigma. Do anterior relacionamento entre Estados soberanos (Estado requerente e Estado requerido) passou-se à comunicação direta entre as autoridades judiciárias dos Estados-Membros, sem recurso e sem qualquer interferência do poder político estadual. O MDE de pessoas procuradas pelas autoridades judiciárias de emissão é transmitido, directamente, às autoridades judiciárias de outro Estado Membro que decidem da entrega, num procedimento legal sem qualquer intervenção do poder político dos Estados-Membro.

O MDE é uma decisão judiciária emitida por um Estado Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado Membro duma pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade –artº 1º n.º 1 daquela Decisão-Quadro e artº 1º da Lei n.º 65/2003.

O regime interno do MDE, consagrado na Lei n.º 65/2003, substituiu, desde 1 de janeiro de 20004, as convenções sobre a extradição entre os Estados-membros da União Europeia.

Com o proémio de “Princípio da especialidade”, estabelece o art.º 7º da Lei n.º 65/2003 de 23 de junho, na redacção dada pela Lei n.º 35/2015 de 4.05 (na parte que releva apara a questão a decidir):

“1 - A pessoa entregue em cumprimento de um mandado de detenção europeu não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infracção praticada em momento anterior à sua entrega e diferente daquela que motivou a emissão do mandado de detenção europeu.

2 - O disposto no número anterior não se aplica quando:

 …

g) Exista consentimento da autoridade judiciária de execução que proferiu a decisão de entrega.

4 - Se o Estado membro de execução for o Estado português, o consentimento a que se refere a alínea g) do n.º 2:

a) É prestado pelo tribunal da relação que proferiu a decisão de entrega;

c) Deve ser prestado sempre que esteja em causa infracção que permita a entrega, por aplicação do regime jurídico do mandado de detenção europeu;

d) Deve ser recusado pelos motivos previstos no artigo 11.º, podendo ainda ser recusado apenas com os fundamentos previstos nos artigos 12.º e 12.º-A;

6 - O pedido de consentimento a que se refere a alínea g) do n.º 2 é apresentado pelo Estado membro de emissão ao Estado membro de execução acompanhado das informações referidas no n.º 1 do artigo 3.º e de uma tradução, nos termos do n.º 2 do artigo 3.º”.

Como se refere no Ac. deste STJ datado de 22.01.2014, proferido neste processo, o princípio da especialidade traduz-se em limitar os factos pelos quais a pessoa procurada poderá ser julgada no Estado-membro de emissão do MDE ou a pena que aí poderá cumprir quando a entrega seja para o cumprimento de pena de prisão ou medida de segurança privativa da liberdade[6]. A pessoa entregue não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada da liberdade por infracção praticada antes da sua entrega e diferente daquela porque foi entregue[7].

Do mesmo aresto consta: “assim como um Estado pode requerer a extradição dum cidadão com fundamento em vários procedimentos criminais de que este é suspeito, arguido ou condenado, assim também, se, depois de operada a entrega, se vier a verificar que existem outros processos pode ser solicitada ao Estado requerido a ampliação da extradição, a qual só é possível se esse Estado nela consentir”.

“Dispõe a al.. d) do n.º 4 do artigo 7.º que o consentimento da autoridade de execução (nº 2, ai. g), do mesmo artigo 7.º) - só pode ser recusado com fundamento num dos motivos de recusa obrigatória ou facultativa previstos nos artigos 11.º ("será recusada") e 12.ºº ("pode ser recusada") da Lei n.2 65/2003. Inexistindo qualquer destes fundamentos, o Estado português, em concretização da obrigação geral de execução do MDE ("será concedida", artigo 2.º, n.º 2,proémio), tem o dever de prestar o seu consentimento através da autoridade judiciária de execução, por força da citada al. d) do n.º 4 do artigo 7. º do diploma em referência.

Estamos assim relegados para o domínio da aferição da existência de causas de recusa do cumprimento do mandado emitido. Efetivamente, directamente conexionada com os motivos de não execução obrigatória, a decisão quadro genética do mandado de detenção europeu prescreveu motivos de não execução facultativa. Motivos que dotam a autoridade judiciária de execução de uma potestas decidendi livre e de refúgio, face à quase automática vinculação de execução do mandado de detenção europeu, tendo em conta ou controlo jurídico a que aquela estava, submetida.

Os motivos de tal recusa não só equilibram os princípios da liberdade e da segurança, como servem de fiel da balança na procura da segurança da União e escudo protector de ofensa aos direitos e liberdades fundamentais”.

Salienta-se também que “a recusa facultativa não pode ser concebida como um acto gratuito ou arbitrário do tribunal. Há-de assentar em argumentos e elementos de facto adicionais aportados ao processo e susceptíveis de adequada ponderação, nomeadamente factos invocados pelos interessados, que, devidamente equacionados, levem a dar justificada prevalência ao processo nacional sobre o do Estado requerente”.

“Não pode nem deve é tratar-se de um acto arbitrário, caprichoso ou meramente voluntarista, capaz de pôr em causa os sãos princípios de cooperação internacional a que tal Lei quis dar corpo”

E ainda: “Estando nós de acordo com a perspectiva  que  inscreve  as  causas  de  recusa facultativa numa equação entre uma afirmação residual de soberania nacional e as exigências conjugadas da protecção dos direitos do requerido e funcionalidade da perseguição penal não é menos exacto que as mesmas têm, também, uma  leitura orientada teleologicamente em dois patamares distintos:

Por um lado a construção de um direito penal europeu em que se procure obviar às fraturas resultantes das visões parcelares orientadas para uma  unilateralidade redutora”.

“No interesse da segurança e da liberdade, o direito penal europeu exige tanto regras de competência suficientes para os direitos penais nacionais como também os respectivos meios jurídicos adequados.

O funcionamento dos mecanismos de articulação das jurisdições pleiteantes, tal como está perfilado no mandado de detenção europeu e, nomeadamente, nas causas de recusa surge, assim, também como uma antecipação e exigência da construção de um espaço judiciário único”.

No caso concreto aqui em apreciação, com evidente similitude àqueles que relativamente ao mesmo recorrente foram decididos pela autoridade judiciária de execução, com confirmação no Acórdão deste STJ de 22-01-2014 (proferido no processo 144/13.YRLSB), não só não foram aduzidos razões nem se antolham motivos “para poder afirmar que, quer em sede de finalidade das penas; das necessidades de investigação ou da funcionalidade do próprio processo penal deveria ter sido invocada recusa de cumprimento”.

A identidade fáctica e jurídica das situações (ali –no Acórdão de 22/01/2014- e aqui julgadas por este Supremo), a identidade de sujeitos processuais e de autoridades de emissão e de execução do MDE, a circunstância de a argumentação do recorrente ser a mesma, e ainda os valores da igualdade, segurança e certeza acima convocados, justificam que o Tribunal se mantenha na linha da interpretação ali adotada.

Assim, também no caso vertente se inscreve a questão de saber se uma vez “determinado o cumprimento do mandado de detenção original a sua ampliação para além do desejo manifestado não representará uma violação do princípio da lealdade. Na verdade, princípio envolvente, e estruturante do processo penal na sua globalidade (mandato superior do direito processual penal como refere Roxin[8], é o princípio do processo justo. Esta máxima, formulada em termos de cláusula geral, é uma consequência das decisões valorativas fundamentais do Estado de Direito e do Estado Social.

Tal como referimos em decisão de fixação de jurisprudência 2/2011a ideia do procedimento justo expresso, processualmente, no princípio da lealdade, deve compreender-se como uma exigência concreta da optimização de valores constitucionais. Nesse plano assumem uma  inegável  relevância  valores  como  a dignidade humana, que tem inscrita a protecção do princípio de confiança recíproca na actuação processual, que deve pautar a conduta de todos os intervenientes processuais (qualquer que seja o plano em que se movimentem), e o princípio de igualdade de armas (este em determinadas fases processuais}.

Na verdade, nenhum argumento, ou princípio, poderá ser mobilizado para provocar a erosão do pressuposto fundamental que se consubstancia na exigência de que todos os actores do processo penal tenham a sua actuação procedimental pautada pela finalidade última que é a de realização da justiça, e de procura da verdade material. Este objectivo teleológico não se compadece com a realização processual que visa  a   utilização   estratégica   do processo   como   instrumento   acrítico   e  neutro, procurando outras finalidades laterais e, até, em clara oposição com aquela realização e procura.

Do juiz até ao mais anódino interveniente todos são construtores de um processo justo, necessariamente orientado, de forma linear e objectiva, para a procura da verdade. Tal princípio, e pressuposto, não admite inscrever no seu perfil a admissibilidade de condutas processuais orientadas para a instrumentalização do processo penal, colocando-o ao serviço de finalidades que visam o seu entorpecimento, quando não a negação dos seus princípios orientadores

Refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3/03/2004 que a lealdade não é uma noção jurídica autónoma, mas  é  sobretudo de  natureza essencialmente moral e ética, e traduz uma forma de estar em conformidade com o respeito dos direitos do cidadão e a dignidade da Pessoa e da Justiça. A lealdade, a boa-fé, a confiança, o equilíbrio entre o rigor das decisões do processo e as expectativas que delas decorram, são elementos fundamentais a ter em conta quando seja necessário interpretar alguma sequência que, nas aparências, possa exteriormente apresentar-se com algum carácter de disfunção intraprocessual.

A procura do processo justo e leal, e a confiança como elemento do princípio do processo equitativo, derrubam qualquer obstáculo formal e não nos permitem tomar outra decisão que não seja garantir aquela finalidade.

Na verdade, ousamos afirmar que o cumprimento do princípio da lealdade processual revela até que ponto se reflecte no processo a credibilidade de um regime democrático. O mesmo princípio, particularmente em processo penal, é revelador da forma, e condições, sobre as quais se concebem as relações do Estado e o Cidadão. A natureza democrática, ou não, de um Estado depende, também do estatuto do cidadão face ao poder público, especificamente face á instância de controle reforçado, que é característica do processo penal, e da forma leal, ou desleal, como é tratado no seu catálogo de direitos e deveres.

O princípio da lealdade no comportamento processual representa uma imposição de princípios gerais inscritos na própria dignidade humana e da ética, que deve presidir a todos os atos do cidadão. O mesmo liga-se, de forma inexorável, ao direito a um processo justo e ao princípio da igualdade de armas.

Em termos gerais e, em qualquer litígio, a existência de um princípio geral de lealdade é essencial para a afirmação da existência do Estado de Direito”.

Neste contexto há que equacionar no caso vertente, desde logo, se com a entrega, consentida, às autoridades judiciárias italianas ocorrida em execução do primitivo MDE, efectivada em 25.01.2013, para o cumprimento da pena de 5 anos de prisão, aplicada pelo Tribunal de Turim, por ter cometido em 9 de maio de 2006 um crime de extorsão qualificada, podia o arguido AA razoavelmente confiar ou alimentar justa e fundada expectativa de que a autoridade judiciária de execução, isto é, o tribunal português competente, não iria consentir na extensão da entrega para o cumprimento de outras penas ou medidas de segurança privativas da liberdade aplicadas pelos tribunais italianos, em data anteriormente aquela entrega.

A resolução desta equação decorre necessária e logicamente do respectivo enunciado. Como documenta o novo MDE (fls. 585-595 ), AA sabia do processo no qual foi emitido, de que nele foi julgado e condenado na pena de 1 ano de reclusão. Certifica-se no campo 3.1b do MDE em referência que foi “notificado pessoalmente no escritório do advogado ... onde havia eleito domicilio tanto para a audiência no Tribunal como para a audiência no Tribunal da Relação”. No campo 3.1a do mesmo MDE certifica-se que em 8.11.2012 foi notificado do aviso de depósito da sentença do Tribunal junto daquele seu advogado na causa, “junto do qual havia eleito domicilio e que esteve presente na audiência do Tribunal”.

A ampliação da entrega pedida pelo tribunal italiano que proferiu a condenação, agora consentida pelo Tribunal da Relação de Lisboa enquanto autoridade judiaria de execução, não é inesperada para a pessoa entregue. Ao invés, faz parte, há anos, do relacionamento do recorrente com a justiça do Estado italiano. Este novo MDE mais não é do que o procedimento normal, legal e legítimo, de executar a decisão final condenatória proferida num processo penal onde lhe foi dada a possibilidade de exercer a defesa. Consequentemente, a pena para a qual se solicita a extensão da entrega e para que foi dado o consentimento, foi proferida no culminar dum processo justo.

O mandado de detenção europeu deverá substituir, nas relações entre os Estados-Membros, todos os anteriores instrumentos em matéria de extradição, incluindo as disposições nesta matéria do título III da Convenção de aplicação do Acordo de Schengen (ponto 11).

4.      a invocada inconstitucionalidade da decisão:

Aparentemente convicto de que subsiste a redacção do n.º 4 do art.º 7º da Lei n.º 65/2003, anterior à que lhe foi dada pela Lei n.º 35/2015, alega o recorrente AA que a decisão recorrida sufragou uma interpretação da norma da al. g) do n.º 2 do art. 7º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, “errada, porque normologicamente incorrecta, ilegal, [que] viola a Lei, é Inconstitucional, para além de contrária às mais elementares garantias fundamentais dos cidadãos”.

É uma interpretação que ao “cabo e ao resto” transforma o juiz/julgador em legislador, o que vai para além de tudo aquilo que a lei comporta ou admite”.

A pretender alterar-se a lei vigente no sentido de corrigir as suas “deficiências” tal só poderá realizar-se pela via legislativa e nunca, em caso algum, pela via judicial ou outra similar!

Em seu entender, a “excepção da al. g) do nº 2 do artº 7º da Lei 65/2003 é claríssima porque o seu sentido prende-se naturalmente com o nº 4 do mesmo artº 7º, ou seja pressupõe a condição sine qua non que o Estado emissor é o Estado Português”.

“A referência ao “Estado de execução” que pretende dar o seu consentimento não tem qualquer lógica porque permitiria situações abusivas em prejuízo do requerido; esta interpretação viola quer o direito constitucional português, quer o italiano e igualmente a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, porque de facto cancela /esvazia totalmente o princípio da especialidade, permitindo que dois Estados subscritores da primitiva Decisão - Quadro sobre o MDE agirem independentemente da vontade da pessoa requerida”.

Argumentação que, ademais de assentar numa premissa equivocada (que o n.º 4 do art. 7º não foi alterado ou que a alteração da respetiva redacção não se aplica neste novo MDE, na vertente de consentimento da extensão da sua entrega), não vem apresentada em moldes de poder prosperar a pretensa violação da Constituição, ou então assenta noutro evidente equívoco.

Quanto à premissa, evidenciou-se já que a argumentação do recorrente ignora a alteração da redacção do corpo do n.º 4 do art.º 7º da Lei n.º 65/2003, operada pela Lei n.º 35/2015, de 4 de maio. Importante parâmetro normativo que deixa sem sustentação a pretensão da ilegalidade e de invocada inconstitucionalidade da decisão recorrida –vd.  conclusão 10ª ( “o Acórdão recorrido, ao ter violado a Lei pela forma supra descrita, incluindo a própria Constituição como se vem de expor …”).

Ainda neste campo, também se evidenciou que a decisão recorrida observou o princípio da especialidade, tal como está consagrado na Decisão-Quadro 2002/584/JAI e na Lei n.º 65/2003, de 23.08, na redacção dada pela Lei n.º 35/2015 de 4.05, e com a extensão que tem vindo a ser aplicado pela jurisprudência, designadamente a deste Tribunal[9] .

A invocada violação da Constituição da República, assenta igualmente num pressuposto inexistente. A decisão recorrida não fez qualquer leitura correctiva do corpo do n.º 4 do art. 7º da Lei n.º 65/2003 de 23.08. Aplicou a vigente redacção da mesma norma.

Por um lado, a alegação de que a decisão recorrida viola a Constituição da República, aponta no sentido de que o recorrente perspectiva o recurso (anunciado) de constitucionalidade com uma dimensão que não está acolhida no direito português. 

Na verdade, entre nós, “é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos interpostos para o Tribunal Constitucional, se questione a (in)constitucionalidade de normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub species constitutionis, a concreta aplicação do direito efectuada pelos demais tribunais, em termos de se assacar ao acto judicial de “aplicação” a violação (directa) dos parâmetros jurídico-constitucionais. Ou seja, não cabe ao Tribunal Constitucional português apurar e sindicar a bondade e o mérito do julgamento efectuado in concreto pelo tribunal que julgou” o caso.

A intervenção do Tribunal Constitucional não incide sobre a correcção jurídica do concreto julgamento, mas apenas sobre a conformidade constitucional das normas aplicadas pela decisão recorrida[10].

Por outro lado, “sendo o objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade constituído por normas jurídicas que violem preceitos ou princípios constitucionais, não pode[ndo] sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em si própria, mesmo quando esta faça aplicação directa de preceitos ou princípios constitucionais, quer no que importa à correcção, no plano do direito infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no que tange à forma como o critério normativo previamente determinado foi aplicado às circunstâncias específicas do caso concreto (correcção do juízo subsuntivo)”, exige-se desde logo que a questão de inconstitucionalidade tenha de ser suscitada em termos adequados, claros e perceptíveis, durante o processo, e exige-se também que a norma sindicanda seja confrontada com os parâmetros constitucionais que se têm por violados. “Não basta que se indique a norma que se tem por inconstitucional, sendo, antes, necessário que se problematize a questão de validade constitucional da norma (dimensão normativa) através da alegação de um juízo de antítese entre a norma/dimensão normativa e o(s) parâmetro(s) constitucional(ais), indicando-se, pelo menos, as normas ou princípios constitucionais que a norma sindicanda viola ou afronta[11] .

Exigências que o recorrente não observou, não indicando qual a norma constitucional que considera violada e à luz da qual deva realizar-se o controlo de constitucionalidade, sendo que a mera referência “ao direito constitucional português, quer o italiano e igualmente a Convenção Europeia dos Direitos do Homem”  não é susceptível de cumprir tal desiderato.

Finalmente e como se referiu, o regime jurídico do MDE instituído pela Decisão-Quadro 2002/584/JAI eliminou e substituiu a extradição entre os Estados-membro da União Europeia.

A Decisão-Quadro respeita os direitos fundamentais e observa os princípios reconhecidos pelo artigo 6.º do Tratado da União Europeia e consignados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia,, nomeadamente o seu capítulo VI. Nenhuma disposição da Decisão-Quadro poderá ser interpretada como proibição de recusar a entrega de uma pessoa relativamente à qual foi emitido um mandado de detenção europeu quando existam elementos objectivos que comportem a convicção de que o mandado de detenção europeu é emitido para mover procedimento contra ou punir uma pessoa em virtude do sexo, da sua raça, da sua religião, da sua ascendência étnica, da sua nacionalidade, da sua língua, da sua opinião política ou da sua orientação sexual, ou de que a posição dessa pessoa possa ser lesada por alguns desses motivos.

A Decisão-Quadro não impede que cada Estado-membro aplique as suas normas constitucionais respeitantes ao direito a um processo equitativo.

 As decisões sobre a execução do mandado de detenção europeu devem ser objecto de um controlo adequado, o que implica que deva ser a autoridade judiciária do Estado-Membro onde a pessoa procurada foi detida a tomar a decisão sobre a sua entrega.

Cumpridos que sejam os requisitos impostos pela Lei 65/2003, de harmonia com os termos em é aplicável, não pode concluir-se por qualquer ofensa de natureza constitucional, que afronte qualquer princípio estruturante da cooperação internacional em matéria penal.

C- Decisão:

Em conformidade com o exposto na fundamentação, o Supremo Tribunal de justiça, julga improcedente o recurso aqui interposto por AA, confirmando-se a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa de prestar o consentimento para que o mesmo possa cumprir em Itália a pena de 8 meses de prisão (sentença n° 2322/2012 - RG.Ger. n° 8942/2011 - RGNR n° 52035/2010 emitida em 2.3.2012 pelo Tribunal Ordinário de Milão – 2.ª secção e confirmada por sentença n° 8454/2012 de 17.12 de 2012 do Tribunal da Relação de Milão)

Custas pelo recorrente.

Taxa de Justiça: 3 UCs.

Lisboa, 9 de janeiro de 2019.

Nuno Gonçalves (relator)

Pires da Graça

Santos Cabral

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[1] M. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, I, pag. 62/63.
[2] Informado pela doutrina sustenta por J. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal 1.º vol., pag. 111/112.
[3] Ac. n.º 54/87.
[4] Publicada no JOL 81/24 de 27.03.2009, pags. 24-36.

[5] TJUE, Ac.. 6 de dezembro de 2018, ECLI:EU:C:2018:991.

[6] A. Pires H. da Graça, A Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça na execução do regime relativo ao Mandato de Detenção Europeu, pag. 48.
[7] Acórdão do TJ (Terceira Secção de 1 de dezembro de 2008 (62008CJ0388) citada da obra identificada na nota anterior, a pag. 50.
[8] Derecho Procesal Penal, pag. 79.
[9] Ac. STJ de 22/01/2014, proc. 144/13.9YRLSB.
[10] Ac. TC n.º 671/06 do TC de e 12/12/2006, proc. n.º 989/06 -2ª sec; e Ac. n.º 66/2008 de 31/01/2008, proc. n.º 7/08 -2ª sec.
[11] Ac. Ac. n.º 66/2008 de 31/01/2008, proc. n.º 7/08 -2ª sec.