Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
771/16.2TELAB.E1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO CLEMENTE LIMA
Descritores: RECURSO PENAL
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
PORNOGRAFIA DE MENORES
DETENÇÃO DE ESTUPEFACIENTES
PENA ÚNICA
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 04/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
No quadro de facto descritos nos autos, de que ressalta o sucessivo e reiterado abuso sexual de crianças de 11/12 e 6/7 anos de idade, durante cerca de dois anos, por sua mãe e pelo companheiro desta, no espaço familiar, as penas conjuntas fixadas no Tribunal da Relação recorrido, em 10 e 9 anos de prisão aplicadas a cada um dos arguidos não merecem reparo.
Decisão Texto Integral:




Processo n.º 771/16.2TELSB.E1.S1

Recurso Penal

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. Nos autos de processo comum em referência, os arguidos, AA e BB, precedendo acusação pelo Ministério Público, audiência de julgamento e condenação no Juízo Central Criminal ……, e recurso para o Tribunal da Relação …., vieram os Senhores Juízes deste Tribunal, por acórdão de 6 de Outubro de 2020, a decidir nos seguintes (transcritos) termos:

«Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação…, em:

1º- Conceder parcial provimento ao recurso interposto pela arguida BB e, em consequência:

a) Absolvê-la da prática, em coautoria, de:

- um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos artigos 171º, n.º 3, al. b) e 177º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, por que vinha condenada, na pena de 8 (oito) meses de prisão; e de

- um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos artigos 171º, n.º 2 e 177º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, por que vinha condenada, na pena de 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses de prisão;

b) Manter a sua condenação pela prática, em coautoria material e em concurso real, de:

-  um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos artigos 171º, n.º 1 e 177º, n.º 1, al. a), na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão (com referência aos factos provados em 28.);

- um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos artigos 170º, 171º, n.º 3, al. b) e 177º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão (com referência aos factos provados em 16., 17. e 18.);

- cinco crimes de abuso sexual de crianças agravados, p. e p. pelos artigos 171º, n.º 2 e 177º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses de prisão, por cada um deles (com referência, respetivamente, aos factos provados em 22.-26., 23., 24. e 25.).

c) Em cúmulo jurídico das penas parcelares enunciadas em b), condenar a arguida Nádia dos Reis na pena única de 9 (nove) anos de prisão;

d) No mais, confirmar o decidido no acórdão recorrido no que à arguida BB respeita.

2º- Conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência:

e) Absolvê-lo da prática, em coautoria, de:

- um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos artigos 171º, n.º 3, al. b) e 177º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, por que vinha condenado, na pena de 8 (oito) meses de prisão; e de

- um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos artigos 171º, n.º 2 e 177º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, por que vinha condenado, na pena de 4 (quatro) anos e 2 (dois) meses de prisão;

f) Manter a condenação do arguido pela prática, em concurso real,

como coautor, de:

-  um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos artigos171º, n.º 1 e 177º, n.º 1, al. a), na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão (com referência aos factos provados em 28.);

- um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos artigos 170º, 171º, n.º 3, al. b) e 177º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão (com referência aos factos provados em 16., 17. e 18.);

- cinco crimes de abuso sexual de crianças agravados, p. e p. pelos artigos 171º, n.º 2 e 177º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 2 (dois) meses de prisão, por cada um deles (com referência, respetivamente, aos factos provados em 22.-26., 23., 24. e 25.); e, ainda,

como autor material, de:

-  um crime de pornografia de menores agravado, p. e p. pelos artigos 176º, n.º 1, al. c) e 177º, n.º 6, ambos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão; e de

- um crime de detenção de estupefacientes para consumo pessoal, p. e p. pelo artigo 40º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei, n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência às Tabelas I-C e II-A anexas ao mesmo diploma legal, na pena de 2 (dois) meses de prisão.

g) Em cúmulo jurídico das penas parcelares enunciadas em f), condenar o arguido AA na pena única de 10 (dez) anos de prisão;

h) No mais, confirmar o decidido no acórdão recorrido no que ao arguido AA respeita.»

2. O arguido AA interpôs recurso daquele acórdão do Tribunal da Relação de Évora.

Extrai da respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

«1º É pacífico que quanto mais longa for a reclusão, mais difícil será a ressocialização de qualquer Arguido, ainda mais pacífico quando o Arguido é o ora Recorrente, com os sinais dos autos.

2º Igualmente pacífico é o reconhecimento da incapacidade de ressocialização em meio prisional, tanto mais incapaz, quanto mais longa for a reclusão, comprometedora de tanto quanto se deseja.

3º O Arguido, ora Recorrente, é um doente, que havia recorrido a tratamento antes de recluso, o que deverá relevar para efeitos da escolha da medida da pena única, que nunca se deverá aproximar da considerada pela Veneranda Relação de …...

4º Considerando as regras da realização do Cúmulo Jurídico, mais relevante do que as penas parcelares, é a escolha da pena única, mostrando-se excessiva, perante os factos, qualquer pena de prisão, efectiva, superior a 5 ou 6 anos de prisão, medida que o Cúmulo permite.

5º A confissão do Arguido, ora Recorrente, que se não ficou pela verbalização, manifestando que interiorizou o desvalor da sua conduta, é merecedora de especial atenuação da censura e da pena a aplicar, e que nunca se deverá aproximar da pena aplicada pela Veneranda Relação ……, a reduzir substancialmente.

6º Sendo a postura de cada co-Arguido diversa, tendo o Recorrente prestado depoimento relevante para o apuramento dos factos, e não sendo mãe dos menores, substancialmente inferior deveria ser a sua punição, como se espera em sede do presente Recurso, que temos por merecedor de provimento.

7º - Devia, pois, a Veneranda Relação ….., concedendo parcial provimento ao Recurso da 1ª Instância, onde absolveu 8 meses + 4 anos e 2 meses, ter considerado que se mostra excessiva, por desproporcional e comprometedora da desejável ressocialização, a aplicação de uma tão prolongada pena de 10 anos de prisão, que não deveria ser superior a 5 ou 6 anos de prisão, e não o tendo considerado, violou o disposto nos artigos 40º, 70º e 71º do Código Penal, pelo que merece integral provimento o presente Recurso, com a consequente revogação do douto Acórdão de que se recorre, e substituição por outro que condene o ora Recorrente em não mais de 5 ou 6 anos de prisão, como pena única.

Nestes termos,

e nos demais que Vªs Exªs doutamente suprirão, deverá o douto Acórdão ora recorrido ser revogado e substituído por outro que, considerando a excessiva pena única aplicada pela veneranda Relação ……, a reduza para não mais de 5 ou 6 anos de prisão, assim merecendo integral provimento o presente Recurso.»

3. A arguida BB interpôs recurso daquele acórdão do Tribunal da Relação ...….

Extrai da respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

«1. A pena única de 9 anos de prisão aplicada à arguida é exagerada, desproporcionada e desadequada.

2. Ao aplicar 9 anos de prisão, o tribunal doseou a pena situando-a demasiado acimado seu limite mínimo.

3. O tribunal a quo, na graduação da pena, não valorou suficientemente a ausência de antecedentes criminais, o relatório social da arguida, nomeadamente, que a mesma viveu num contexto sociofamiliar multi-problemático e a adicção a drogas, bem como a personalidade manipuladora do co-arguido AA que potenciou o comportamento da arguida BB.

4. A sentença recorrida aplicou pena concreta que ultrapassa a medida da culpa bem como a moldura de prevenção geral de integração e socialização.

5. Foram violados os princípios da necessidade, proporcionalidade e adequação ou proibição do excesso, como princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena.

6. Ao aplicar pena excessiva, o douto tribunal recorrido violou os artigos 40.º e 71.º, n.º 1 e 2, als. d) e e), e 77.º, todos do Código Penal.

7. Termos em que deverá a douta decisão recorrida ser substituída por outra que aplique pena única, em cúmulo jurídico, mais próxima dos seus limites mínimos».

4. Os recursos foram admitidos por despacho de 19 de Novembro de 2020.

5. O Ministério Público no Tribunal da Relação …….. respondeu a cada um dos recursos em ambos concluindo que devem ser julgados improcedentes.

6. O Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça é de parecer que os recursos devem improceder.

7. O objecto dos recursos reporta a saber se os Senhores Juízes do Tribunal da Relação recorrido incorreram em erro de direito em matéria de escolha e medida das penas aplicadas aos arguidos.

II

8. Os factos a considerar, sedimentados como provados nas instâncias, são os seguintes (transcrição):

«I – Dos Crimes de Abuso Sexual Agravado

1. A Arguida BB é progenitora dos menores CC, nascido em ...08.2005, e DD nascido em ….08.2011.

2. Os menores desde o nascimento residiram sempre com a progenitora.

3. Desde o ano de 2014, a Arguida BB iniciou um relacionamento amoroso com o Arguido AA.

4. Passando a viverem juntos fazendo comunhão de casa, mesa e cama alguns meses após iniciarem o relacionamento.

5. O agregado familiar constituído pelo Arguido, a Arguida e os filhos desta habitou em diversas residências na área do concelho …. acabando por ter como última residência o ...… do n.º ... da Rua ……, na cidade …...

6. O Arguido AA deixou de residir com os restantes membros do agregado familiar supra descrito desde a sua detenção em 29.08.2018 e subsequente aplicação de medidas de coacção à ordem dos presentes autos.

7. No entanto, pelo menos até 12.06.2019, os Arguidos mantiveram a supra referida relação amorosa.

8. Uma vez que, em particular, o Arguido AA se excitava sexualmente com crianças, em data não concretamente apurada mas seguramente posterior ao ano de 2014, os Arguidos conceberam, em conjunto, um plano com vista a ambos levarem a cabo actos de natureza sexual que envolvessem os menores CC e DD para assim tornarem a sua vida sexual como casal mais activa e gratificante.

9. Na concretização desse desígnio, os Arguidos colocaram em prática uma elaborada estratégia que consistia na implantação de uma rotina quotidiana que visava, de forma gradual e progressiva, a insidiosa normalização da promiscuidade sexual perante e com os menores.

10. O objectivo final concebido pelos Arguidos era a realização de orgias que incluíssem a cópula vaginal, oral e anal em que tanto os menores como os Arguidos fossem intervenientes activos.

11. Os Arguidos, utilizando os respectivos telemóveis e através da aplicação WhatsApp, trocaram, ao longo de tempo, designadamente de Julho de 2017 a Julho de 2018, centenas de mensagens escritas, nas quais combinavam entre si os comportamentos que deveriam assumir para melhor conseguir os seus intentos juntos dos menores, assim como fantasiavam eroticamente ora pela recordação dos factos já ocorridos, ora pela antecipação dos factos que tencionavam executar no futuro.

12. A título meramente exemplificativo, em 26.02.2018, os Arguidos mantiveram a seguinte conversa referindo-se a um dos menores, filho da Arguida:

Arguido: Sabes, imagino bue vezes ele me fuder o cu xD

Arguida: Xad, eu também já imaginei…

Arguido: Sério???

Arguido: Curtia tanto…

Arguida: Aquela pilinha pequenina…

Arguida: Aiiii

Arguido: Assim prepara se para depois fuder a mãe 

Arguida: “mais uns tempos” e introduzimos isso… Fode te esse cuzinho todo…

Arguida: Ai Jesus não digas essas coisas assim xD

Arguido: XD, não sei se precisa muito tempo… Como se vê na internet, ele já consegue xD

Arguido: Até pequenino da para brincar xD

13. Num número significativo dessas mensagens, os Arguidos concertavam como provocar e excitar sexualmente o menor CC: ora promovendo que a Arguida deambulasse pela residência praticamente despida na frente daquele, ora assumindo poses em que colocasse em evidência os seus atributos físicos e inclusive os seus órgão genitais, ora fomentando a prática de banhos em conjunto, ora provocando contactos e roces aparentemente casuais/inocentes em que a Arguida acabasse por tocar no pénis do menor, ora inclusive com a promessa de recompensar o menor por fazer os trabalhos de casa consistindo a promessa na possibilidade de “brincar” com a mãe e esta deixa fazer o que ele quisesse fazer.

14. Igualmente, os Arguidos discutiam nessas mensagens a possibilidade do próprio menor CC deambular pela residência apenas de cuecas de forma a se aperceberem facilmente em que ocasiões o mesmo se encontrava sexualmente excitado e assim aproveitarem essas oportunidades para consumarem com ele actos sexuais.

15. Intercalavam essas conversas com dezenas de fotografias e vídeos de pornografia infantil retiradas da internet que o Arguido remetia para a Arguida para a excitação sexual de ambos.

16. Assim, começaram os Arguidos a estimular o desenvolvimento precoce da sexualidade do menor CC através de conversas de cariz sexual e exibição de material pornográfico.

17. Na concretização do plano acima delineado por diversas ocasiões, em datas não concretamente apuradas, mas que se estimam situar-se entre finais de 2016 até Agosto de 2018, o Arguido enviou via SMS para o telemóvel do menor CC em mais do que uma ocasião fotografias de pénis erectos para este visualizar.

18. Igualmente o Arguido manteve conversas com o referido menor acerca de práticas sexuais tanto homossexuais como heterossexuais envolvendo, entre outros comportamentos, actos de penetração.

19. Quando o Arguido pretendia praticar actos sexuais com o menor CC enviava-lhe uma mensagem SMS para o telemóvel, ainda que se encontrassem na mesma residência em divisões diferentes, para este ir ao seu encontro.

20. Designadamente no dia 18.07.2017, o Arguido enviou uma mensagem SMS ao menor CC com o seguinte teor: “Sabes q sempre que quiseres, nem tens q dizer nada, basta vires e pores a pila de fora ;)”.

21. Mais tarde, nesse mesmo dia, o Arguido enviou nova mensagem SMS ao menor desta vez com o seguinte teor: “Depois vais ter com a tua mãe a casa de banho? Ela também tem saudades”.

22. No dia 18.07.2017, à tarde, o Arguido que se encontrava deitado junto do menor CC, acariciou com a mão o pénis deste menor, beijou-o e a seguir introduzi-o na sua boca e efectuou a sucção do mesmo, após o que perguntou-lhe se este queria tocar no pénis do Arguido, ao que o menor anuiu e acariciou-lhe o pénis.

23. Mais tarde, nesse mesmo dia, os Arguidos convidaram o menor CC ao quarto para este assistir enquanto eles mantinham relações sexuais com cópula vaginal completa, tendo o menor assistido a tudo e tendo ainda ambos os Arguidos acariciado com as mãos o pénis daquele, beijaram-no e a seguir introduziram-no nas respectivas bocas e efectuaram a sucção do mesmo.

24. Em data não concretamente apurada mas que se estima entre finais de 2016 até Agosto de 2018, em pelo menos mais uma ocasião distinta, o Arguido sozinho acariciou com a mão o pénis do menor CC, beijou-o e a seguir introduziu-o na sua boca e efectuou a sucção do mesmo.

25. Durante o período temporal acima descrito em pelo menos mais duas ocasiões distintas, ambos Arguidos acariciaram com as mãos o pénis do menor CC, beijaram-no e a seguir introduziram-no nas respectivas bocas e efectuaram a sucção do mesmo.

26. No dia 18.07.2017, na sequência da mensagem descrita em 21., a Arguida no interior da casa de banho acariciou e beijou o pénis do menor CC; acto contínuo, introduzi-o na sua boca efectuando sucção enquanto o Arguido, do outro lado da porta, ouvia o que acontecia.

27. Os episódios supra descritos aconteceram na morada dos Arguidos sita na Rua ………………, n.º .., ..º …, ……, em dias diferentes com intervalos temporais irregulares sem obedecer a um agendamento fixo dependendo antes da disponibilidade e apetite sexual dos Arguidos a cada momento.

28. Relativamente ao menor DD, em data não concretamente apurada, mas que se situa entre os anos de 2016 e 2017, a Arguida depois do banho e enquanto o estava a vestir beijou-lhe repetidamente o pénis.

29. O referido episódio foi recordado para a excitação sexual dos Arguidos em 15.02.2018 através das mensagens que estes trocavam através da aplicação Whatsapp em que estes mantiveram o seguinte diálogo:

Arguido: Tava me agora a lembrar de quando tavamos na outra casa, daquela vez q deste beijinhos para pilinha do DD depois do banho quando o tavas a vestir xD

Arguida: Aiiiiiiii

Arguido: Loool

Arguida: Jesus até me tremo toda…

Arguido: Eu tmb quando me lembrei xD

30. Os Arguidos, cientes da censurabilidade e gravidade das suas condutas assim como das consequências que lhes adviriam caso fossem descobertas por terceiros, pediram ao menor CC para este nunca revelar os comportamentos sexuais de que era alvo.

31. Pelo mesmo motivo, os Arguidos tinham o cuidado de apagar as mensagens relacionadas com essa interacção.

32. Sempre que os Arguidos agiram e se relacionaram sexualmente com os menores, mesmo nas ocasiões em que o fizeram individualmente, foi sempre de comum acordo e no estrito cumprimento do plano previamente delineado por ambos de familiarizarem gradualmente os menores com práticas sexuais com vista à intensificação das mesmas.

33. Agiram sempre os Arguidos de forma livre voluntária e consciente com o firme propósito, concretizado, de se relacionarem sexualmente com os filhos menores da Arguida, designadamente através da estimulação manual e/ou oral dos pénis dos menores e do Arguido de forma a assim satisfazerem os seus próprios instintos libidinosos.

34. Ao levarem a cabo cópula vaginal completa na presença do menor CC os Arguidos sabiam que o importunavam com essa exposição a um acto de cariz sexual.

35. Ao exibirem as fotografias e a manterem as conversas referidas em 16. a 18. com o menor CC, bem sabiam os Arguidos que importunavam e expunham o menor a conteúdo de natureza pornográfica.

36. Ambos os Arguidos tinham plena consciência da concreta idade dos menores, designadamente que estes não tinham completado os 14 anos de idade à data da prática dos factos e, ainda, que por serem filhos da Arguida BB esta tinha um dever acrescido de respeitar a liberdade de autodeterminação sexual dos mesmos.

II – Dos Crimes de Pornografia de Menores Agravada

37. No dia 27.09.2016, tendo utilizado o endereço electrónico ................@hotmail.com, o Arguido efectuou o upload de um ficheiro para o Facebook, cujo URL do perfil é http://facebook.com/.............. que corresponde a fotografia de duas crianças do sexo feminino, menores de 14 anos, despidas, mostrando os órgãos genitais e após procedeu ao envio da referida imagem para EE.

38. No dia 29.08.2018, pelas 08:30h, na sua residência, sita na Rua …………, nº .., ..…, ….., o Arguido tinha na sua posse um computador portátil do tipo laptop de cor preta, marca……, s/n com o número de série NXGKYEB…………400.

39. Esse computador tinha gravados no respectivo disco 3.887 ficheiros de imagem e 43 ficheiros de vídeo em que são visualizadas crianças do sexo feminino e masculino, não identificadas, com idades inferiores a 14 anos de idade, mostrando os órgãos genitais, em práticas sexuais de cópula vaginal, anal, oral e masturbação, sozinhas ou acompanhadas de adultos não identificados.

40. Nesse computador, o Arguido tinha instalado o programa UTorrent e o TOR Browser que permite a partilha de ficheiros.

41. Através desses programas, o Arguido efectuava, de forma anónima, o download de ficheiros na internet ao mesmo tempo que fazia o upload dos ficheiros que já tinha gravados cedendo assim os mesmos a terceiros através da uma rede de partilha recíproca.

42. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 38., o Arguido tinha também na sua posse um computador portátil do tipo laptop de cor cinzenta, marca ASUS, modelo U35J, s/n com o número de série A7N0AS…………31B o qual apresentava um sistema de ficheiros cifrado/encriptado que impossibilitou o acesso pericial ao seu conteúdo.

43. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 38., o Arguido tinha ainda na sua posse o telemóvel da marca Vodafone, modelo …. com o IMEI ………32, o qual tinha gravados 122 ficheiros de imagem e 5 ficheiros de vídeo em que são visualizadas crianças do sexo feminino e masculino, não identificadas, com idades inferiores a 14 anos de idade, mostrando os órgãos genitais, em práticas sexuais de cópula vaginal, anal, oral e masturbação, sozinhas ou acompanhadas de adultos não identificados.

44. Nesse telemóvel se encontravam ainda gravadas as conversas via WhatsApp mencionadas em 11. e que se encontram reproduzidas no apenso I.

45. Ao agir da forma supra descrita, o Arguido quis e representou obter, partilhar, deter e manter na sua posse ficheiros informáticos, de imagem e vídeo, com crianças que sabia terem idades inferiores a 14 anos de idade, em actos sexuais de relevo tais como cópula vaginal e anal, a praticar sexo oral e a masturbarem-se, sozinhas ou acompanhadas com adultos.

46. Fê-lo, bem sabendo que as imagens e filmes explicitamente sexuais expunham menores com idade inferior a 14 anos e que, por tal circunstância, estava proibida a sua exibição, cedência, venda e detenção.

47. O Arguido tinha perfeito conhecimento de que aquelas imagens e vídeos de teor pornográfico com utilização de menores, implicaram a exploração sexual efectiva desses menores, utilizados para a realização dos filmes e fotografias em causa, não obstante, não se inibiu de as exibir, partilhar e de as deter para satisfazer os seus desejos libidinosos.

III – Do Crime de Detenção de Estupefaciente Para Consumo Pessoal

48. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 38. o Arguido tinha na sua posse:

- quatro vasos contendo cada um deles uma planta de CANABIS (FLS/SUMID), com peso líquido de 28,9 gramas e um grau de pureza de 2,4% (THC) (quantidade esta suficiente para originar 13 doses individuais);

- um pacote de plástico contendo no seu interior MDMA com peso líquido de 0,497 gramas e um grau de pureza de 48,6% (quantidade esta suficiente para originar 2 doses individuais).

49. O Arguido destinava a canabis e o MDMA que tinha na sua posse exclusivamente ao seu consumo pessoal, uma vez que o mesmo é consumidor daquelas substâncias.

50. Agiu de forma deliberada, livre e consciente, conhecendo as características estupefacientes dos produtos que tinha na sua posse, assim como que, a quantidade detida era superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias, o que representou.

51. O Arguido tinha a perfeita consciência de que não tinha autorização para deter, comprar, transportar, receber, cultivar e ou consumir canabis e MDMA.

52. Os Arguidos agiram sempre livre, voluntária e conscientemente bem sabendo que todas as condutas supra descritas em I, II e III eram proibidas e punidas por lei penal o que, não obstante, não os demoveu.

Mais se apurou que

No que se refere ao Pedido de Indemnização Civil

53. Em consequência das condutas dos Arguidos, o menor CC sofreu tristeza, vergonha, humilhação e medo, com perturbação do normal desenvolvimento da sua sexualidade, efeitos que poderão perdurar.

Relativamente ao Arguido AA

54. O Relatório Psicológico elaborado quanto a este Arguido (cujo teor aqui se dá por reproduzido), conclui que

“(…) de acordo com os dados clínicos obtidos, o examinado apresenta uma estruturação da personalidade manipuladora, com indicadores de perturbação da personalidade, com um locus de controlo maioritariamente externalizado (i.e., as situações ocorrem devida a elementos externos, não sendo vistas como responsabilidade do próprio), algumas dificuldades de resistência à frustração e desvalorização dos seus comportamentos e/ou responsabilidade, com múltiplas distorções cognitivas.

Apresenta características compatíveis com o diagnóstico de Perturbação de Personalidade Antissocial, com características psicopatas (301.7 do DSM-5), concomitantemente com Perturbação de Pedofilia, tipo não exclusiva, atracção por ambos os géneros (302.2 do DSM-5) e outras Perturbações Parafílicas Especificadas – Zoofolia e Urofilia (302.89 doDSM-5).

Mantém uma perspectiva auto-centrada, com dificuldades de controlo de impulsos, especialmente no que à esfera sexual concerne.

Apresenta um resultado elevado relativamente ao Risco de Violência Sexual, havendo um elevado risco de repetição de comportamentos semelhantes aos em apreço nos autos.

Como factores protectores, importa referir a percepção que o examinado tem da sua situação actual e o apoio que refere ter por parte da sua progenitora.

Como factores de risco, de salientar a dificuldade de controlo de impulso, o carácter crónico da tipologia de personalidade e das parafilias (sendo relativamente estável ao longo do curso de vida), bem como a necessidade frequente de estimulação (tipicamente, com comportamentos adversos às normas sociais) que advém do seu tipo de personalidade.”

55. Na fase anterior à sua detenção no EP……, onde se encontra sob prisão preventiva desde 14.06.2019 à ordem deste processo, AA residia sozinho num quarto alugado em …, tendo estado a trabalhar como empregado de mesa num restaurante da cidade. O Arguido foi acompanhado no âmbito da medida de coação entre o início de Setembro/2018 e Junho/2019 pela Equipa ……DGRSP, que supervisionou o cumprimento das consultas de psicologia e psiquiatria durante aquele período, comparecendo em cinco entrevistas presenciais neste serviço.

56. O Arguido é o segundo filho de um casal residente em ……, concelho …., que se separou quando AA tinha apenas 1 ano de idade, tendo sido a mãe a assumir todas as responsabilidades parentais e o processo educativo dos filhos. Esta ligação frágil e instável com o pai permaneceu até aos dias de hoje, dado que foi apenas no campo económico e de forma limitada que a figura paterna participou no processo de crescimento dos filhos.

57. O Arguido fez o seu percurso estudantil em …, irregular e marcado por retenções, absentismo e início dos consumos de haxixe por volta dos 12 anos, na companhia de colegas de escola e amigos. Frequentou o ensino secundário, desistindo por desinteresse, sem concluir.

58. AA foi um adolescente muito rebelde, situação agravada pela escalada de consumos ao longo da juventude que incluiu, para além de canábis, cocaína e MDMA. Este quadro de dependência de substâncias psicoativas acompanhou-o ao longo do seu trajeto pessoal, pese embora tenha tido momentos de paragem e até desintoxicação sem recurso a apoio clínico, com ajuda da família.

59. Numa tentativa de se afastar…… e dos meios ligados aos consumos de estupefacientes, tendo abandonado os estudos secundários, o Arguido deslocou-se para o distrito  …… para tirar um curso de teatro, numa escola profissional, com apoio económico da mãe; a experiência não foi bem sucedida, atribuída a nova recaída no consumo de estupefacientes.

60. AA teve a sua primeira experiência profissional aos 16 anos em trabalhos temporários na época…, em empregos……, nomeadamente no Parque de Campismo ……. e na ……... Só quando obteve trabalho no ……… em …, em 2014, onde permaneceu cerca de um ano, começou a ganhar alguma independência económica. Esteve ainda 3 meses nos Comandos do Exército, mas desistiu, de novo por causas atribuídas a consumos. Nos últimos anos e no campo laboral ainda trabalhou na empresa da mãe de arrendamento de propriedades, em jardinagem e como empregado de mesa, trabalhos de natureza temporária.

61. No plano afectivo AA referiu ter-se apercebido por volta dos 17/18 anos, no decurso de uma relação de namoro, de desvios no plano da sua sexualidade, tendo sido na altura aconselhado a procurar ajuda psiquiátrica, o que refere ter feito em Lisboa, sem continuidade.

62. O relacionamento marital com BB, iniciado em 2014, contribuiu para uma autonomização de vida de AA. Este descreve esta ligação amorosa como cúmplice e marcada por co-dependência, associada a consumo de substâncias psicoativas por ambos, que se veio a traduzir num relacionamento disfuncional. Do agregado familiar faziam parte os dois filhos de BB, mantendo o Arguido uma relação de confiança e proximidade na partilha de cuidados dos menores.

63. No decurso dos presentes autos, o Arguido foi obrigado a fazer tratamento a partir de 2018, tendo feito medicação e consultas semanais de psicoterapia com o psicólogo FF, do Centro Médico ………….. e consultas regulares com o Dr. GG, médico psiquiatra em …...

64. Nos últimos meses, em prisão preventiva AA manteve acompanhamento psicológico quinzenal no EP com a Dra. HH e medicação anti-depressiva e ansiolítica vigiada pelos Serviços Clínicos de EP, tendo revelado adequado comportamento prisional e uma ocupação laboral regular na lavandaria da cadeia. O Arguido encontra-se a terminar a certificação do ensino secundário no âmbito de frequência de curso de RVCC.

65. Antes do surgimento da pandemia COVID-19, recebeu visitas semanais no EP por parte da mãe e da irmã II, havendo nesta fase, por parte dos elementos do agregado de origem uma atitude de apoio, apesar do profundo impacto que este processo provocou neste seu núcleo familiar.

66. AA mostra-se consciente da gravidade da acusação e do dano causado aos menores, bem como da oportunidade da intervenção da justiça, assumindo a importância da prossecução do seu acompanhamento terapêutico.

67. O Arguido não é portador de doença física ou psíquica, e não padece de nenhuma patologia de saúde que o torne especialmente vulnerável à Covid-19.

68. Do Certificado de Registo Criminal do Arguido nada consta.

Quanto à Arguida BB

69. BB, desde que foi constituída Arguida, vive sozinha, num registo de casa partilhada. Com um historial de emprego frequente, dentro das características sazonais da região, encontra-se agora temporariamente desempregada, porém, com direito a um subsídio de desemprego, no valor de € 445. Logo que reabra o snack-bar onde antes trabalhava, tem perspetivas imediatas de emprego.

70. Nos cinco anos anteriores à data da acusação, manteve vida marital com o co-Arguido AA. Mesmo depois deste ter sido detido e sujeito à medida de coação de afastamento, em Agosto/2018, mantiveram o relacionamento, ainda que a viver separados. BB manteve consigo os seus dois filhos, fruto de relacionamentos anteriores, CC e DD, actualmente com 14 e 8 anos, o que só se alterou quando ela própria vem a ser constituída Arguida em Junho/2019. Nessa altura, a guarda dos menores terá sido oficialmente atribuída aos respetivos progenitores e impedidos os contactos com a Arguida. Esta refere que inicialmente cumpriu o dever de alimentos, mas desde Novembro/2019, na situação de desemprego, deixou de cumprir.

71. BB situa a sua história de vida entre os concelhos …. e ................, marcado o seu processo educativo por falhas importantes nas figuras cuidadoras e o sentimento de uma infância e adolescência revoltada. Refere ter sido abandonada pela mãe pouco depois de nascer e criada pelo pai e por uma madrasta que a maltratava com castigos e corretivos físicos. Cerca dos 10/12 anos passou a ser cuidada pela avó materna, a qual lhe deu apoio, mas teria sobre si um baixo ascendente normativo, prevalecendo comportamentos disruptivos como insolência e fugas. O percurso escolar foi marcado por falta de interesse e duas reprovações, no 7º e no 9º ano, mas concluiu o 3º ciclo.

72. Aos 17 anos inicia uma vida independente, pela via do trabalho e assume a sua primeira relação marital, precipitada pela gravidez do filho CC. Viviam no contexto da família alargada do companheiro, não sendo uma experiência sentida como apoiante. Ao fim de quatro anos refere ter sido agredida, colocada fora de casa e impedida de levar o filho consigo.

73. Com cerca dos 23 anos enceta um segundo relacionamento marital, com um indivíduo 20 anos mais velho, contexto em que nasce o filho DD e depois lhe é atribuída a guarda do CC, então com 6/7 anos. Considera que complicações pós-parto do segundo filho, os conflitos com a família paterna do filho mais velho e outros fatores de stress inerentes à criação de uma empresa de restauração com o segundo companheiro, que correu mal, levaram-na a um estado de descompensação psico-emocional, com sintomas de ansiedade e depressão de significância clínica, que terá sido colmatado com recurso a medicação prescrita pela médica de família, mas que não seguiu qualquer acompanhamento especializado de saúde mental.

74.Volvidos 4 anos desta relação marital, embora não identificasse conflitos de maior, por alegado desgaste da mesma, terá sido a própria a tomar a iniciativa da separação, organizando-se sozinha, com os dois filhos a cargo. Foi nesta fase que conheceu AA, na altura colega de trabalho num hipermercado local, passando o mesmo pouco tempo depois a integrar o seu agregado.

75.A relação do casal, apesar de descrita em moldes conturbados e insatisfatórios, é reconhecida pela própria como de uma elevada co-dependência, da qual não se capacitou para pôr termo. Por um lado, houve um efeito de afastamento de relações com familiares e amigos, por outro a cumplicidade de hábitos da vida privada, com especial destaque para o seu envolvimento em consumos de substâncias psicotrópicas, como haxixe, cocaína e drogas sintéticas, juntamente com o companheiro. Descreve este elemento como alguém que a coagia/conduzia a comportamentos e atitudes que conotava como errados, mas os quais nunca procurou pedir ajuda exterior para pôr termo.

76. Concretamente, na altura em que AA foi obrigado ao afastamento dos filhos menores da Arguida, por força da inicial medida de coacção do presente processo e a mesma foi presente à CPCJ com o menor DD, acabou por não dar consentimento à intervenção deste organismo de promoção e proteção, ocultando problemas ou dificuldades, alegando o receio de expor fragilidades pessoais/confirmar incapacidades antes preconizadas pelos pais dos menores. Embora se auto-recrimine pela desproteção dos descendentes “devia protegê-los e não protegi” (sic), tende a neutralizar a sua responsabilidade pelo estado de alteração em que se encontrava sob efeito de substâncias ou pela influência exercida pelo co-Arguido.

77. A notícia dos alegados factos veiculada na altura pelos meios de comunicação social terá tido um forte impacto, causando alguma hostilização no meio. Ainda assim, reconhecidas as qualidades de trabalho da Arguida, não parece ter havido obstaculização no respeitante a oportunidades de emprego.

78. O suporte socio-afectivo afigurou-se frágil, como antes. Fora alguns amigos, não parecem existir figuras de vinculação estável. A própria revela também características que nos apontam uma baixa capacidade ou disponibilidade para aprofundar e analisar a sua própria vida afectiva e dos outros, fora um registo mais imediato e funcional. Designadamente, é-lhe difícil a análise do impacto deste envolvimento criminal nas vítimas identificadas, seus filhos, evitando pensar sobre isso e escudando-se em crenças de minimização de consequências.

79. Revela, perante o sistema de administração da justiça penal, uma atitude de cumprimento das obrigações, traduzida designadamente na pontualidade das apresentações no posto da PSP local.

80. Do Certificado de Registo Criminal da Arguida nada consta.»

9. Em matéria de escolha e medida das penas, os Senhores Juízes do Tribunal recorrido ponderaram nos seguintes (transcritos) termos:

«A moldura penal abstrata correspondente ao concurso de crimes e aplicável tem o limite mínimo de 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses e o limite máximo de 23 (vinte e três) anos e 10 (dez) meses de prisão (cf. n.º 1 do artigo 78º do Código Penal).

Na ponderação, em conjunto, dos factos e personalidade da arguida/recorrente neles revelada, sendo elevada a ilicitude global dos factos (manifestada no número e no tipo de dos atos praticados, dentro dos previstos no respetivo tipo legal, em particular sobre o menor CC, que tinha então 12-13 anos de idade, mantendo os arguidos com ele os contatos e as práticas sexuais que resultaram provadas, acariciando-lhe o pénis e praticando sexo oral no menor, expondo-o a conversas de cariz sexual e a imagens de conteúdo pornográfico e fazendo-o a assistir à prática de cópula entre os arguidos, impendendo sobre a arguida um especial dever, enquanto mãe dos menores, de zelar pela proteção dos mesmos, pela sua segurança, tranquilidade e bem-estar e para que tivessem um crescimento harmonioso e um desenvolvimento da sua sexualidade natural e consentâneo com a sua idade) e refletindo os factos praticados ter a arguida uma personalidade egocêntrica, mostrando preocupação em agradar ao companheiro, ora arguido, procurando satisfazê-lo e ir ao encontro dos seus desejos, no plano sexual, sabendo a arguida que este se excitava sexualmente com crianças, servindo-se e utilizando os seus filhos, menores, para esse efeito, tendendo a arguida a minorar as consequências de tais atos e a desculpabilizar-se, a pretexto de ter sido manipulada pelo coarguido, circunstâncias estas que,  independentemente das fragilidades da arguida, no plano emocional e da capacidade de manipulação do arguido em relação à mesma, são reveladoras de insensibilidade da arguida pelos bens jurídicos violados e pelas consequências dos atos praticados no desenvolvimento da personalidade dos menores, seus filhos, ainda que seja de crer que não está em causa uma tendência criminosa da arguida, sendo a primária, tem-se como justa, adequada e proporciona a pena única de 9 (nove) anos de prisão, a aplicar-lhe.

A pena única aplicada à arguida/recorrente, por que superior a cinco anos de prisão, não admite suspensão da sua execução (cf. artigo 50º, n.º 1, do CP), pelo que fica prejudicada a apreciação dessa questão suscitada no recurso.

[…]

A moldura penal abstrata correspondente ao concurso de crimes e aqui aplicável tem o limite mínimo de 4 (quatro) anos e 2 (dois) meses e o limite máximo de 25 (vinte cinco) – sendo este último por imperativo legal, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 78º do Código Penal –.

A medida da pena única é determinada, em conjunto, pelos factos e a personalidade do arguido, conforme estabelecido no artigo 77º n.º 1 do Código Penal, dando-se aqui por reproduzidas as considerações jurídicas tecidas em 2.3.1.6., a propósito dos critérios a atender na determinação da pena única.

Assim:

 A ilicitude global dos factos é elevada, especialmente com referência aos crimes de abuso sexual de crianças e o crime de pornografia infantil cometidos, manifestada no número e no tipo de dos atos praticados, dentro dos previstos no respetivo tipo legal, em particular sobre o menor CC, que tinha então 12-13 anos de idade, mantendo os arguidos com ele os contatos e as práticas sexuais que resultaram provadas, acariciando-lhe o pénis e praticando sexo oral no menor, expondo-o a conversas de cariz sexual e a imagens de conteúdo pornográfico e fazendo-o a assistir à prática de cópula entre os arguidos e mantendo o arguido, no seu computador, milhares (4.057) de ficheiros de imagem e vídeo de conteúdo sexual explícito envolvendo menores, efetuando partilhas com a coarguida e com EE;

No referente à personalidade do arguido, a mesma congrega fatores de risco de reiteração de condutas atentatórias da liberdade e autodeterminação sexual de menores, sendo que conforme se concluiu na perícia à personalidade a que foi submetido e consta da matéria factual dada como provada apresenta características de perturbação de pedofilia, mantendo o arguido «uma perspectiva auto-centrada, com dificuldades de controlo de impulsos, especialmente no que à esfera sexual concerne», existindo um elevado risco de repetição de comportamentos semelhantes aos que estão em causa nos autos, o que nos leva a concluir que, pese embora a ausência de antecedentes criminais do arguido, estamos perante uma tendência clara para a prática de crimes contra a autodeterminação sexual de menores.

Deste modo, na ponderação, em conjunto, dos factos e personalidade do arguido/recorrente, tem-se como justa, adequada e proporcional a pena única de 10 (dez) anos de prisão, a aplicar-lhe.

A pena única aplicada ao arguido/recorrente, por que superior a cinco anos de prisão, não admite suspensão da sua execução (cf. artigo 50º, n.º 1, do CP), pelo que fica prejudicada a apreciação dessa questão suscitada no recurso.»

Vejamos.

10. O arguido AA foi condenado pela prática (os primeiros em co-autoria com a co-arguida), de factos consubstanciadores dos seguintes crimes, nas penas abaixo arroladas:

(i) um crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punível (p. e p.) nos termos do disposto nos artigos 171º nº 1 e 177º nº 1 alínea a), do Código Penal (CP) – na pena de 1 ano e 4 meses de prisão;

(ii) um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. nos termos do disposto nos artigos 170º, 171º nº 3 alínea b) e 177º nº 1 alínea a), do CP – na pena de 8 meses de prisão;

(iii) cinco crimes de abuso sexual de crianças agravado, cada um p. e p. nos termos do disposto nos artigos 171º nº 2 e 177º nº 1 alínea a), do CP – na pena de 4 anos e 2 meses de prisão, por cada um;

(iv) um crime de pornografia de menores agravado, p. e p. nos termos do disposto nos artigos 176º nº 1 alínea c) e 177º nº 6, do CP – na pena de 3 anos e 6 meses de prisão;

(v) um crime de detenção de estupefacientes para consumo pessoal, p. e p. nos termos do disposto no artigo 40º nºs 1 e 2 e tabelas I-C e II-A, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro – na pena de 2 meses de prisão;

(vi) em cúmulo jurídico de tais penas parcelares, na moldura abstracta de 4 anos e 2 meses a 25 anos de prisão – na pena de 10 anos de prisão.

11. A arguida BB, foi condenada pela prática, em co-autoria com o co-arguido, de factos consubstanciadores dos seguintes crimes, nas penas abaixo arroladas:

(i) um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. nos termos do disposto nos artigos 171º nº 1 e 177º nº 1 alínea a), do Código Penal (CP) – na pena de 1 ano e 6 meses de prisão;

(ii) um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. nos termos do disposto nos artigos 170º, 171º nº 3 alínea b) e 177º nº 1 alínea a), do CP – 8 meses de prisão;

(iii) cinco crimes de abuso sexual de crianças agravado, cada um p. e p. nos termos do disposto nos artigos 171º nº 2 e 177º nº 1 alínea a), do CP – na pena de 4 anos e 4 meses de prisão, por cada um;

(iv) em cúmulo jurídico de tais penas parcelares, na moldura abstracta de 4 anos e 4 meses a 23 anos e 10 meses de prisão – na pena de 9 anos de prisão.

12. O arguido AA defende que a pena conjunta aplicada, de 10 anos de prisão, «não devia ser superior a 5 ou 6 anos de prisão», alegando em abono que «é um doente, que havia recorrido a tratamento antes de recluso», e invoca a confissão e o facto de ter «prestado depoimento relevante para o apuramento dos factos».

13. Já a arguida BB defende que a pena conjunta aplicada, de 9 anos de prisão, deve ser fixada em medida mais próxima do limite mínimo, alegando em abono que deve ser valorada a ausência de antecedentes criminais, que «viveu num contexto sócio familiar multiproblemático e a adição a drogas, bem como a personalidade manipuladora do co-arguido que potenciou o comportamento da arguida».

Vejamos.

14. O artigo 77.º n.º 1, do CP, ao estabelecer as regras da punição do concurso, dispõe: «Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.»

15. Não tendo o legislador nacional optado pelo sistema de acumulação material há-de conceder-se que, com a fixação da pena conjunta, se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, e não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente (para dizer com o Professor Jorge de Figueiredo Dias, em «Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime», pp. 290-292), como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado.

16. A este novo ilícito corresponderá uma nova culpa (que continuará a ser culpa pelo facto) mas, agora, culpa pelos factos em relação, tal seja, afinal, a valoração conjunta dos factos e da personalidade, a que se refere o CP.

17. Será, assim, o conjunto dos factos que fornece a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique.

18. Um dos critérios fundamentais em sede deste sentido de culpa, numa perspectiva global dos factos, é o da determinação da intensidade da ofensa e dimensão do bem jurídico ofendido, sendo certo que assume significado profundamente diferente a violação repetida de bens jurídicos ligados à dimensão pessoal, em relação a bens patrimoniais.

19. Por outro lado, importa determinar os motivos e objectivos do agente no denominador comum dos actos ilícitos praticados e, eventualmente, dos estados de dependência, bem como a tendência para a actividade criminosa expressa pelo número de infracções, pela sua permanência no tempo, pela dependência de vida em relação àquela actividade.

20. Na avaliação da personalidade expressa nos factos é todo um processo de socialização e de inserção, ou de repúdio pelas normas de identificação social e de vivência em comunidade, que deve ser ponderado.

21. No caso, a materialidade sedimentada como provada evidencia a intensidade da ilicitude dos factos.

22. Com efeito, o estabelecimento de um plano entre ambos os arguidos e, em execução do mesmo, as sucessivas e reiteradas condutas de natureza sexual, acima descritas, prolongadas no tempo e no espaço familiar, que levaram diante com os menores, filhos da arguida, «enteados» do arguido, então com 10/11 anos de idade (o Tomás) e 6/7 anos de idade (o André), com ambos conviventes e ao cuidado dos quais se encontravam, procedimento, ardiloso inicialmente, insistente e despudorado depois, certamente lesivo de um saudável desenvolvimento do amadurecimento sexual dos ofendidos, revela um grau de ilicitude particularmente acentuado.

23. A tanto acresce um elevado grau de violação dos deveres que lhe eram impostos perante os filhos da arguida e aos cuidados do arguido, confiados à sua guarda, protecção e responsabilidade.

24. À ilicitude elevada corresponde um dolo intensíssimo, demonstrado na forma como prepararam a execução dos factos e como, numa atitude altamente censurável, expuseram os menores a uma situação degradante, objecto do prazer sexual da sua própria mãe e de seu «padrasto», sem atender à menoridade dos ofendidos e aos seus interesses enquanto crianças, incapazes, pela sua idade, de se autodeterminar sexualmente, causando-lhe, designadamente, «tristeza, vergonha, humilhação e medo» (ponto 53 do rol de factos julgados provados).

25. Por outro lado, importa salientar o elevado valor do bem jurídico em causa, a autodeterminação sexual, grosseira e repetidamente violado pelos arguidos.

26. São fortíssimas as exigências da prevenção geral neste tipo de criminalidade, extremamente reprovada pela comunidade e pelo legislador.

27. Quanto às penas conjuntas, afigura-se que, na ponderação conjunta dos factos e da personalidade dos arguidos recorrentes, se mostram concretizada em medida adequada e proporcionada às circunstâncias de facto apuradas.

28. Com efeito, os factos revelam que, durante cerca de dois anos, os arguidos satisfizeram os seus mais básicos instintos sexuais usando os menores, filhos da arguida e cuidados pelo arguido, única motivação para o seu reiterado comportamento delitivo, desconsiderando as lesões incontornáveis e insuportáveis que sabiam causar aos menores.

29. A materialidade provada, encarada na sua globalidade, concede pois concluir (i) que a ilicitude dos factos é elevada, sendo-o também a culpa, lato sensu, (ii) que, prolongados e reiterados no tempo, os episódios denotam, por referência à personalidade unitária dos arguidos, um modo-de-ser e de vida refractário ao direito, tal seja, uma tendência criminosa, (iii) que, face à sua gravidade e reiteração, os factos suscitam forte repulsa social, reclamando pena de significado que reafirme inequivocamente os valores penais violados, (iv) que a personalidade dos arguidos revela grave desajustamento aos valores do direito penal, exigindo pena que, com firmeza, o reaproxime do respeito deles, sendo que os comportamento aditivos ainda mais alertam para essa necessidade.

30. Não vem arrolada, como provada, a materialidade invocada pelo arguido em abono da pretendida mitigação da pena única (tal seja, a doença, a consternação e o arrependimento), tendo sido devidamente sopesadas a primariedade delitiva e as condições de vida de cada um dos recorrentes.

31. Importa ademais ter presente (faz doutrina e jurisprudência de há muito sedimentadas) que, em sede de escolha e medida da pena, o recurso não deixa de reter o paradigma de remédio jurídico (na expressão de Cunha Rodrigues), no sentido de que a intervenção do tribunal de recurso, (também) neste particular, deve cingir-se à reparação de qualquer desrespeito, pelo tribunal recorrido, dos princípios e normação que definem e demarcam as operações de concretização da pena na moldura abstracta determinada na lei.

32. Vale por dizer que o exame da concreta medida da pena única estabelecida na instância, suscitado pela via recursiva, não deve aproximar-se desta senão quando haja de prevenir-se e emendar-se a fixação de um determinado quantum em derrogação dos princípios e regras pertinentes, cumprindo precaver (desde logo à míngua da imediação e da oralidade de que beneficiou o Tribunal recorrido) qualquer abusiva evicção relativamente a uma concreta pena que ainda se revele congruente e proporcionada.

33. Tal seja: no caso, não se vê que os Senhores Juízes do Tribunal da Relação recorrido hajam valorado as circunstâncias apuradas com inadequado peso prudencial, por isso que o acórdão revidendo não merece nem suscita, qualquer intervenção ou suprimento reparatório.

34. Assim, os recursos não podem lograr provimento.

35. Cabe tributação, nos termos prevenidos no artigo 513.º n.º 1, do Código de Processo Penal, e no artigo 8 e tabela III, estes do Regulamento das Custas Processuais – ressalvado apoio judiciário.

36. Em conclusão e síntese: no quadro de facto descritos nos autos, de que ressalta o sucessivo e reiterado abuso sexual de crianças de 11/12 e 6/7 anos de idade, durante cerca de dois anos, por sua mãe e pelo companheiro desta, no espaço familiar, as penas conjuntas fixadas no Tribunal da Relação recorrido, em 10 e 9 anos de prisão aplicadas a cada um dos arguidos não merecem reparo.

III

37. Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se:

a) julgar improcedentes os recursos interpostos pelos arguidos;

b) condenar os arguidos nas custas, com a taxa de justiça (individual) em 5 (cinco) unidades de conta.

Lisboa, 15 de Abril de 2021

António Clemente Lima(Relator)

Margarida Blasco