Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1149/22.4T8PDL.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL AGUIAR PEREIRA
Descritores: CASAMENTO NO ESTRANGEIRO
REGIME IMPERATIVO DE BENS
COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS
ASSENTO
REGISTO CIVIL
FORÇA PROBATÓRIA
DISSOLUÇÃO
SUCESSÃO DO CÔNJUGE SOBREVIVO
INVENTÁRIO
CONVENÇÃO ANTENUPCIAL
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
Data do Acordão: 10/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - Não constando do assento de casamento celebrado qualquer referência a circunstância determinante da imperatividade do regime patrimonial da separação de bens – no caso a inexistência de processo preliminar de publicações – e não tendo sido celebrada qualquer convenção antenupcial, o regime patrimonial do casamento celebrado em 31-10-1991 é o da comunhão de bens adquiridos (art. 1717.º do CC).

II - A posterior certificação pela entidade celebrante de que o casamento não foi precedido de processo de publicações não tem como consequência a alteração do regime de bens do casamento por efeito da imperatividade decorrente do art. 1720.º do CC, enquanto se mantiver inalterado o registo e permanecer a omissão sobre a circunstância determinante do regime imperativo de separação de bens.

III - Tendo o casamento sido dissolvido por óbito de um dos cônjuges, o processo de inventário subsequente deve prosseguir os seus termos para partilha do património comum do ex-casal.

Decisão Texto Integral:

EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes Conselheiros da 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


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RELATÓRIO

Parte I – Introdução

1) AA, instaurou em maio de 2022 inventário para partilha de bens em casos especiais, no caso subsequente a divórcio, contra BB, na qualidade de herdeiro testamentário de CC, falecido em ... de março de 2017 no estado de casado com a requerente, sendo que o divórcio viria a ser decretado por sentença transitada em julgado em 29 de novembro de 2018.

2) Foi proferido despacho liminar a nomear a requerente cabeça de casal e a convidá-la a apresentar a relação de bens sujeitos a inventário e diversos documentos.

O requerido veio oportunamente contestar a relação dos bens comuns apresentada em virtude do regime de bens do casamento celebrado entre a autora e o falecido CC ser o regime de separação imperativa de bens por não ter sido precedido do processo de publicações.

3) No desenvolvimento da tramitação processual, foi proferido o seguinte despacho em 16 de novembro de 2022:

“Considerando que a imperatividade do regime de separação de bens previsto no artigo 1720º, nº 1, al. a), do Código Civil, não se limita aos casos de urgência, abarcando ainda, designadamente, os casamentos de cidadãos nacionais celebrados no estrangeiro, perante autoridade estrangeira, que não tenham sido antecedidos da tramitação do processo preliminar de publicações perante os serviços do registo civil nacionais, como alega o requerido ter sucedido no caso dos autos e demostrou através do documento junto a 27-10-2022 com a referência 4866374, notifique-se a cabeça de casal para se pronunciar, querendo, sobre esta matéria e suas consequências no desfecho da presente ação. Prazo: 10 dias.”.

A requerente pronunciou-se no sentido de o regime de bens do casamento celebrado entre ela e CC ser o da comunhão de adquiridos, sendo essa a vontade de ambos os ex-cônjuges, apesar de não ter sido precedido do processo preliminar de publicações.

4) Em 30 de novembro de 2022, foi proferido o seguinte despacho:

“Nos termos do disposto no artigo 1720º/1/a) do Código Civil “consideram-se sempre contraídos sob o regime da separação de bens o casamento celebrado sem precedência do processo de publicações”, como sucedeu no caso presente (cf. documento junto a 27-10-2022 com a referência 4866374). Ora, vigorando o regime imperativo da separação de bens durante a pendência do casamento celebrado entre a Requerente do inventário e o falecido, seu ex-marido, não existe património comum do casal que importe partilhar no presente processo, o que importa a manifesta improcedência do pedido de partilha, que se declara, e a consequente absolvição do requerido do pedido. Custas pela Requerente. Notifique e registe.”.

5) A requerente, não se conformando com tal decisão, interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo concluído as suas alegações pede recurso pela forma seguinte:

“1 - O regime de bens querido e escolhido pelo então casal formado pela cabeça de casal e o falecido CC foi o da comunhão de adquiridos sempre agindo de boa fé patrimonialmente de acordo com esse ao longo dos 27 anos de casamento.

2 – Nunca suspeitaram em momento algum de que o casamento não fora precedido do processo de publicações e que o casamento afinal estava sujeito ao regime imperativo da separação de bens.

3 – A ter acontecido tratou-se de mera irregularidade formal que em nada afetou as relações patrimoniais do casal, tendo adquirido e vendido ao longo do casamento diversos bens móveis e imóveis sempre em conjunto, totalmente convencidos de que o faziam para o património comum do casal.

4 – Nunca em momento algum o falecido ex-marido da cabeça de casal colocou em causa que o regime de bens adotado e querido pelas partes fosse outro que não o da comunhão de adquiridos (como, aliás, consta da certidão – sem convenção antenupcial).

5 - Não o tendo em vida feito carece o irmão, agora instituído seu único e universal herdeiro, de legitimidade para o fazer visto ser um direito pessoal e intransmissível daquele, até por em vida não se falarem.

6 - Se o processo de casamento não foi precedido da tramitação do processo preliminar de publicações não foi por culpa dos nubentes devendo-se certamente a lapso ou esquecimento do falecido CC, ou de algum funcionário consular a menos que estivesse consciente da sua falta e das consequências que daí resultavam para o regime de bens com a imperatividade da separação de bens com o intuito de enganar a cônjuge, (o que esta não acredita) convencendo-a que o regime escolhido, querido e adotado era o da comunhão de adquiridos, facto que esta desconhecia de todo, face à vivência do casal,

7 – O que, a suceder, sempre integraria a figura da reserva mental, com o BB a declarar e a fazer crer à cabeça de casal, então nubente, que o regime era o da comunhão de adquiridos, quando na realidade o que sabia e queria era o da separação de bens, (n.º 1 do art. 244.º do Código Civil),

8 – Tendo nesse caso a reserva mental os mesmos efeitos que a simulação (n.º 2 do art. 244.º do Código Civil), ou seja, a declaração da sua nulidade, invocável a todo o tempo, com efeito retroativo, determinando que o casamento fosse celebrado sob o regime da comunhão de adquiridos tal como querido e feito crer à cabeça de casal, então nubente (vide arts. 244.º 2.º, 240.º, 2.º, 286.º e 289.º n.º 1 todos do Código Civil), sempre sem prescindir de que tal questão transitou em julgado no supra referido Processo Comum n.º 1387/20.4....

9 – Assim não o tendo entendido, a sentença proferida violou entre outros o disposto nos arts. 1720.º n.º 1. a) do Código Civil, 1082.º e 1133.º n.º 1 do CPC e 244.º, 286 e 289º/1 todos do Código Civil.”

6) Por sua vez o requerido respondeu a tais alegações pela forma seguinte (conclusões):

“a) O falecido marido da recorrente nunca agiu de má fé ou com reserva mental nem teve lapsos ou esquecimentos.

b) A recorrente litiga com má fé, pois quer ser casada sob regime de comunhão de bens em Portugal, para comungar do apartamento, pago com a herança do ex-marido mas quer ser casada sob o regime de separação de bens na América, onde ambos têm uma casa inteiramente paga pelo irmão do recorrido mas que ela colocou apenas no seu nome e reivindica só para si, alegando a legislação americana que supostamente a protege.

c) Mas o seu casamento, por força da lei, foi efetuado sob o regime imperativo de separação absoluta de bens, como bem decidiu a douta decisão recorrida em obediência ao artigo 1720.1, alínea a) do Código Civil.

d) A invocação de caso julgado é aqui, salvo o devido respeito, impertinente, pois refere-se a outro processo, em que se ignorava o regime imperativo da separação de bens e tinha diferente causa de pedir.

e) A ausência de publicações nunca é uma irregularidade formal e o irmão do recorrido, como cônsul de Portugal sabia perfeitamente disso e certamente o disse à recorrente pois era uma pessoa estruturalmente séria e nunca suspeitou que ela se quisesse apropriar dos dois imóveis que de má fé e às escondidas do ex-marido colocou, o da América em seu nome, mas não se esqueceu de pôr a dívida hipotecária em nome dele!

f) Insiste-se, não há aqui caso julgado, pois as questões em causa nos dois processos são diversas: num, a propriedade do imóvel por ter ou não sido adquirido com bens da exclusiva propriedade do irmão da recorrida (originários da herança dos pais, no pressuposto então pacífico de que o casamento fora celebrado em regime supletivo de comunhão de adquiridos) e outra, é a partilha de bens comuns, sendo que aquele, por imperativo legal, é celebrado em regime de separação de bens (artigo 1720.1, alínea a) do Código Civil), sem direito a exceções para precaver interesses materiais importantes, só assim salvaguardáveis. Outra solução ludibriaria a intenção do legislador e a da lei (mens legislatoris e mens legis!).

7) Por acórdão de 2 de maio de 2023 o Tribunal da Relação de Lisboa julgou a apelação procedente e revogou a sentença impugnada ordenando o prosseguimento dos autos.

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Parte II – A Revista

8) Inconformado com o teor de tal decisão o requerido BB interpôs recurso de revista, formulando nas suas alegações de recurso as seguintes conclusões:

“a) O casamento celebrado no estrangeiro sem precedência do processo de publicações está sujeito “imperativamente” ao regime de separação de bens, artigo 1720.º n.º 1 a) do Código Civil.

b) Tal situação encontra-se legalmente certificada pelo documento consular junto aos autos em 27 de outubro de 2022 com a referência ...74.

c) A decisão de primeira instância mandada revogar pelo douto Acórdão recorrido enquadra-se na possibilidade de retificação oficiosa referida no ponto 4 do Sumário da douta deliberação ora recorrida.

d) Com efeito, uma retificação tanto pode ser tácita como expressa, entendendo-se, neste caso, aquela como fruto duma decisão com tanta ou mais força jurídica que a expressamente efetuada por funcionário consular, pois foi decidida por um magistrado judicial no exercício do seu soberano múnus e numa acção que, precisamente, se destina a julgar os bens a partilhar.

e) Sendo assim, ou se considera retificado o assento nulo ou, em alternativa, deveria ordenar-se ao consulado a retificação, suspendendo-se a instância até que aquela se encontre efetuada, também em obediência ao princípio da economia processual há muito consagrado.

f) É que se o inventário tivesse que continuar, quando chegasse a prova da retificação imperativa (e porque imperativa tem de chegar), todo o processo teria sido inútil.

g) Assim, e porque o douto Acórdão recorrido não cumpriu a citada norma do Código Civil deve, ressalvado o respeito devido, ser alterado no sentido de repor a douta decisão do Tribunal de Família de ... …”

9) A requerente AA, por sua vez, pugnando pela improcedência do recurso de revista, respondeu às alegações apresentadas pelo recorrente, formulando as seguintes conclusões:

“1 – Do assento de casamento da Recorrente e do seu falecido marido consta a referência no assento de casamento quanto ao regime de bens adotado no artigo 1699.ºn.º 2 do Código Civil (por lapso referido como CRC) que exclui o regime da comunhão geral de bens para quem tenha filhos, o que era o caso da Recorrente, pelo que por exclusão de partes, e não tendo sido celebrada escritura de convenção antenupcial, ou feita menção ao regime da separação de bens, o regime adotado e querido pelos nubentes só pode ser o da comunhão de adquiridos (artigo 1717.º do Código Civil).

2 – A eventual retificação do assento de casamento é um ato pessoal e intransmissível inter vivos não podendo o herdeiro do ex-cônjuge falecido pedir a sua eventual retificação contra a vontade e vivência patrimonial deste manifestada ao longo dos 27 anos de duração do casamento.

3 – Nem podia porque o processo de publicações pode ser dispensado nos termos do disposto nos artigos 195.ºe 196.º do CRC e n.º 2 do artigo 51.º do Código Civil quando celebrado no estrangeiro perante o agente ou cônsul do Estado Português, no caso o Consulado de Portugal em ... na ..., cujo cônsul era tão somente o próprio nubente CC!, pelo que

4 O douto Acórdão recorrido não merece qualquer reparo ou censura devendo ser mantido por ser uma autêntica lição do Direito e Sapiência.”

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10) Colhidos os vistos legais dos Senhores Juízes Conselheiros que subscrevem o presente acórdão, importa decidir, ao que nada obsta.

Está em causa decidir qual o regime patrimonial do casamento celebrado entre a requerente AA e CC.

Trata-se de questão que se reveste de crucial importância pela sua interferência com a identificação dos bens a partilhar no inventário instaurado, supondo a existência de um património comum aos ex-cônjuges e que, no caso presente, é despoletada pela coexistência de circunstâncias suscetíveis de gerar dúvida a esse respeito: por um lado a inexistência de processo preliminar (de publicações) ao casamento, com a sua consequência típica e, por outro, o teor do assento de casamento sobre o regime patrimonial do casamento.

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FUNDAMENTAÇÃO

Parte I – Os Factos

No Acórdão recorrido foram considerados os seguintes factos provados, para além dos consignados no respectivo relatório:

“1 – Do assento de casamento n.º 1 de 1991, lavrado no Consulado de Portugal ..., República da ... (junto a fls. 31vº/32) consta que CC, de 48 anos, solteiro, natural da freguesia de ..., concelho de ..., e residente em ..., e AA, de 40 anos, divorciada, natural da freguesia de ..., concelho de ..., residente em ..., declararam celebrar de livre vontade o seu casamento às 14h30 do dia 31 de outubro de 1991, no Consulado de Portugal em ..., tendo realizado “Casamento civil ------ (d) convenção antenupcial com observância do nº 2 do art. 1699 do Código de Registo Civil”.

2 - No referido assento de casamento constam, a final, as seguintes “Observações: … (d) Com ou sem convenção, identificando o respetivo documento, havendo-o; se o regime de bens for imperativo, far-se-á menção com a indicação da disposição legal que o impõe. …”.

3 – Por sentença proferida em 25.8.2018, no P. nº 3188/16.5..., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Família e Menores de ..., Juiz ..., transitada em julgado, foi declarado dissolvido o casamento entre CC e AA, com efeitos à data da propositura da ação (28.11.2016).

5 1 – Em ...de março de 2017 faleceu CC, na freguesia e concelho de ....

6 – A fls. 31 dos autos mostra-se junto “Certificado” emitido pelo Consulado Honorário de Portugal em ..., do qual consta:

7 – Na Conservatória de Registo Predial de ... mostra-se descrita sob o nº ...25 a fração autónoma correspondente ao 1º andar direito do prédio sito na Rua ..., a qual se mostra inscrita, pela Ap. 18 de 2003/04/16, a favor de CC, “casado com AA no regime de comunhão de adquiridos”, por compra.

8 – A fls. 55 dos autos mostra-se junta cópia da escritura de compra e venda celebrada no dia 21.10.2002, no Segundo Cartório da Secretaria Notarial de ..., na qual consta que a S..., Lda. vendeu a CC, “casado com AA no regime de comunhão de adquiridos”, a fração a que se alude em 7.

9 – A fls. 59 dos autos mostra-se junto “Título de compra e venda e mútuo com hipoteca”, outorgado em 26.8.2013, no qual CC, “casado no regime de comunhão de adquiridos com AA”, “por si e ainda na qualidade de procurador em nome e representação da sua referida mulher AA”, venderam a DD, a fração autónoma correspondente ao 1.º andar direito sita na Rua ..., freguesia de ....

10 – BB intentou contra AA ação declarativa sob a forma comum, que correu termos sob o nº 1387/20.4..., no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Central Cível e Criminal de ..., Juiz ..., pedindo a condenação da R., nos termos do disposto no artigo 1722º, nº 1, alineas b) e c), do Código Civil, a reconhecer que o imóvel referido em 7 pertence exclusivamente ao seu ex-marido e por sucessão e morte deste ao A., ordenando-se o cancelamento do que no registo possa constar em contrário.

11 – Na ação referida em 10, veio a ser proferida sentença datada de 16.6.2021, que julgou a ação improcedente, e absolveu a R. do pedido, porquanto “nos termos do disposto no artigo 1726º, nº 1, do Código Civil, impõe-se concluir que o imóvel reveste natureza de bem comum – naturalmente, sem prejuízo da compensação devida pelo património comum ao património próprio de CC”.

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Por revestir interesse para melhor compreensão dos elementos a ponderar na questão a decidir insere-se nas duas páginas seguintes imagem do assento de casamento celebrado entre a requerente AA e CC constante nos autos.




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Parte II – O Direito

1) Conforme já se deixou dito a questão central a decidir no presente recurso de revista interposto no âmbito de processo de inventário subsequente a divórcio é a de saber qual o regime patrimonial relativo ao casamento celebrado entre a requerente AA e o falecido CC.

Concluiu a primeira instância que, estando documentado nos autos que o casamento não tinha sido precedido de processo de publicações previsto no Código de Registo Civil, as relações patrimoniais entre os ex-cônjuges se regiam imperativamente, nos termos do artigo 1720.º n.º 1 alínea a) do Código Civil, pelo regime de separação de bens, pelo que não havia património comum a partilhar. Nessa medida carecia o processo de inventário de objecto.

Em segunda instância, porém, decidiu-se que o casamento celebrado entre AA e CC se regia pelo regime legal da comunhão de adquiridos, devendo o processo de inventário prosseguir para a partilha dos bens comuns.

Como se procurará explicar o acórdão recorrido acolheu a solução jurídica adequada da questão supra enunciada. Vejamos porquê.

2) É fora de dúvida que o artigo 1610.º do Código Civil vigente na data da celebração do casamento entre a requerente e o falecido CC, determinava dever a celebração do casamento ser precedida de um processo de publicações, regulado nas leis do registo civil e destinado à verificação da inexistência de impedimentos e que o incumprimento de tal formalidade tinha como consequência, ao nível do regime patrimonial, a sujeição do casamento às regras do regime imperativo da separação de bens nos termos do artigo 1720.º n.º 1 a) do Código Civil, também no caso de casamento de dois portugueses realizado no estrangeiro tal como previsto no artigo 51.º n.º 2 do Código Civil.

As leis do registo civil a considerar no caso presente são as constantes do Código de Registo Civil aprovado pelo Decreto-Lei 51/78, de 30 de março, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 379/82 de 14 de setembro, porque se enquadram no artigo 12.º n.º 2 do Código Civil.

3) Como se salienta no acórdão recorrido a celebração do casamento civil é um acto público sujeita a registo que é formalizado através de assento que deve conter os elementos que se encontravam referidos no artigo 217.º do Código de Registo Civil na redacção aplicável, neles se incluindo a indicação de o casamento ter sido celebrado com ou sem convenção antenupcial, fazendo-se referência, sendo esse o caso, à respectiva escritura ou ao regime de bens aplicável ao casamento, se ele for imperativo, com menção dessa mesma circunstância.

4) Os agentes diplomáticos e consulares portugueses em países estrangeiros podiam desempenhar funções de registo civil, devendo os actos por eles praticados estar em conformidade com as regras estabelecidas no Código de Registo Civil.

Daí que o casamento civil contraído no estrangeiro entre dois portugueses pudesse ser celebrado pela forma estabelecida no Código de Registo Civil mas precedido do processo de publicações organizado nos termos previstos no artigo 164.º e seguintes do Código de Registo Civil pelo agentes diplomáticos ou consulares portugueses competentes ou pela Conservatória de Registos Centrais, a menos que fosse dispensado pela lei civil (artigos 195.º e 196. Do Código de Registo Civil na redacção aplicável).

5) O casamento civil celebrado nas condições referidas no número anterior é registado por inscrição em assento que deve conter, nomeadamente, os elementos atrás referidos relativos ou com repercussão no regime patrimonial a vigorar no casamento.

Não menos importante é a regra de que o assento de casamento deve ser lavrado e assinado logo após a sua celebração, publicamente lido em voz alta e assinado pelos intervenientes no acto, nomeadamente pelos cônjuges que desse modo confirmam a sua vontade em contrair casamento nos termos exarados.

Assim o evidencia, de resto, a imagem do assento do casamento entre a requerente AA e o falecido CC inserida na parte final do elenco dos factos provado, constando do formulário respectivo as observações sobre o seu preenchimento.

6) A existência de convenção antenupcial eventualmente celebrada pelos nubentes sobre o regime de bens que deve vigorar no casamento ou a circunstância determinante da imperatividade do regime de separação de bens, constituem factos obrigatoriamente sujeitos a registo

Salvo disposição expressa em contrário os factos cujo registo é obrigatório não podem ser invocados sem que se mostra efectuado o correspondente registo, sendo certo, como também se salienta no Acórdão recorrido 2, “o registo goza da presunção legal da veracidade e de autenticidade e, consequentemente, da presunção legal da verdade da situação jurídica resultante dos factos inscritos.”

7) Estabelecia o artigo 4.º n.º 1 do Código de Registo Civil na redação aqui aplicável sob a epígrafe “Valor probatório do registo” que “a prova resultante do registo civil quanto aos factos que a ele estão obrigatoriamente sujeitos e ao estado civil correspondente não pode ser ilidida por qualquer outra, a não ser nas acções de estado e nas acções de registo”.

Por sua vez o artigo 5.º do mesmo diploma estipulava que “a prova dos factos sujeitos a registo obrigatório, qualquer que seja a data em que tenham ocorrido, só pode ser feita pelos meios previstos neste Código.

8) Ora do assento de casamento celebrado no Consulado de Portugal em ... – ... em 31 de outubro de 1991 entre a requerente AA e o falecido CC não consta, devendo obrigatoriamente constar (artigo 217.º n.º 3 e 209.º n.º 7 do Código de Registo Civil na redação aplicável), que o casamento era celebrado sob o regime imperativo da separação de bens nem qual a disposição legal que o impunha.

No assento de casamento em causa apenas se refere que o casamento era celebrado “com observância do artigo 1699.º n.º 2 do Código de Registo Civil” 3, sendo que a norma do Código Civil em questão não impõe que o casamento se celebre sob o regime patrimonial da separação de bens mas apenas proíbe, no âmbito da restrição à liberdade de estipulação de convenção antenupcial. a estipulação do regime da comunhão geral de bens.

9) É certo o Consulado Geral de Portugal em Durban onde foi celebrado o casamento atesta, em certidão emitida quase trinta anos depois e após o falecimento de um dos cônjuges, que o casamento em causa não foi precedido do processo de publicações, desconhecendo-se a razão de tal omissão.

Dos autos não se extrai que tenha sido efetuada ou sequer requerida qualquer retificação ao assento de casamento com base na constatação da inexistência de processo de publicações preliminar à celebração do divórcio.

Dúvidas não subsistem, portanto, em considerar relevante, como o fez o Acórdão recorrido, apenas o teor do assento de casamento certificado nos autos.

10) Ora do referido assento de casamento entre a requerente AA e CC não pode senão extrair-se que o casamento não podia ser celebrado segundo o regime da comunhão geral de bens.

Não tendo sido celebrada qualquer convenção antenupcial sobre a matéria e inexistindo referência a qualquer circunstância que tornasse imperativo que o casamento fosse celebrado segundo o regime de separação de bens, o regime de bens vigente para o casamento é o regime da comunhão de adquiridos (artigo 1717.º do Código Civil).

É, de resto nesse sentido, a vontade dos ex-cônjuges expressa perante o oficial de registo celebrante aquando da celebração do casamento e a convicção mantida pelo falecido CC pelo menos nos actos mencionados nos pontos 8 e 9 do elenco dos factos provados.

11) Bem andou, por isso, o Acórdão recorrido ao considerar que, de acordo com a prova fornecida o regime patrimonial do casamento celebrado entre a requerente AA e o falecido CC em 31 de outubro de 1991 era o de comunhão de adquiridos e que o processo de inventário subsequente ao divórcio teria que prosseguir os seus termos para partilha do património comum do ex-casal.

A revista interposta pelo requerido BB improcede, sendo este, em consequência, responsável pelo pagamento das respectivas custas.


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DECISÃO

Termos em que julgam improcedente a revista e confirmam integralmente o Acórdão recorrido.

As custas do recurso de revista são integralmente suportadas pelo requerido e ora recorrente.

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 10 de outubro de 2023

Manuel José Aguiar Pereira (Relator)

Jorge Manuel Arcanjo Rodrigues

António José Moura de Magalhães




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1. No original, que se transcreve, é omisso, por mero lapso, o número 4 do elenco dos factos considerados provados.↩︎

2. Citando Seabra Lopes, em “Direito dos registos e do notariado” 5ª edição a páginas 39.↩︎

3. É indiscutível que o diploma que se pretendia invocar era o Código Civil como referido no Acórdão recorrido.↩︎