Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
084991
Nº Convencional: JSTJ00025375
Relator: TORRES PAULO
Descritores: CONTRATO DE TRANSPORTE
TRANSITÁRIO
DESPACHANTE OFICIAL
FORÇA MAIOR
CASO FORTUITO
SENTENÇA
Nº do Documento: SJ199409270849911
Data do Acordão: 09/27/1994
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 5163/92
Data: 05/13/1993
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: C GONÇALVES COMENTÁRIO AO CCOM VOLII PAG394. STRECHT RIBEIRO IN ANOTADO VOLII PAG267. TAMBORINO IN MANUAL ROMA 1962 PAG452.
Área Temática: DIR CIV - DIR OBG / TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: L 43/83 DE 1983/01/25 ARTIGO 1.
PORT 561/83 DE 1983/05/11.
DL 46235 DE 1965/03/18.
CCIV66 ARTIGO 247 ARTIGO 252 ARTIGO 401 N3 ARTIGO 705 ARTIGO 790 N1 ARTIGO 798 ARTIGO 799.
REFORMA ADUANEIRA DE 1965 ARTIGO 461 ARTIGO 462.
Legislação Estrangeira: CCIV ALEMÃO PAR242 PAR306.
CCIV ITALIANO.
CCIV ESPANHOL.
Referências Internacionais: CONV RELATIVA AO CONTRATO DE TRANSPORTE INTERNACIONAL DE MERCADORIAS POR ESTRADA CMR DE 1956/05/18 ART32 N1.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO RP DE 1984/10/23 IN CJ ANOIX T4 PAG232.
Sumário : I - A missão do julgador consiste na descoberta de uma decisão justa e justificada pela lei, segundo o direito em vigor.
II - A actividade transportadora está definida em regime de exclusividade em legislação nacional e tratados e Convenções Internacionais sobre transporte marítimo, aéreo, rodoviário e ferroviário.
III - O transporte rodoviário de mercadorias para o estrangeiro só é permitido a empresas com alvará e com exigência de capital e capacidade profissional.
IV - Não pode beneficiar de uma sentença jurídica protectora própria de quem é juridicamente transportador, quem não tem essa qualidade.
V - O caso de força maior tem subjacente a ideia de inevitabilidade: será todo o acontecimento natural ou acção humana que, embora previsível ou até prevenido, não se pôde evitar, nem em si mesmo nem nas suas consequências.
VI - O caso fortuito assenta na ideia de imprevisibilidade: o facto não se pôde prever, mas seria evitável se se tivesse previsto.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1 - No 8. Juízo Cível da Comarca de Lisboa, A accionou A. B,
Despachantes Oficiais Limitada e Miratir, Transportes Internacionais Limitada, atinente a obter a sua condenação no pagamento de 18452004 escudos, dado que sendo empresário e chefe da orquestra Eduard's Band viu rescindido o contrato que firmara com o Cosmopolitan
Restaurant de Nicósia para actuação aí daquela orquestra, durante um ano, por as Rés não terem efectuado o transporte dos instrumentos musicais para Nicósia conforme combinaram.
As Rés, devidamente citadas, contestaram separadamente.
A Ré A. A reaccionou a sua ilegitimidade e impugnou.
A Ré Miratir chamou à autoria a Sociedade Avandeu SPA; admitiu o chamamento, a chamada devidamente citada não deduziu qualquer oposição.
A Ré, contestando defendeu-se por excepção e por impugnação.
Excepcionando invocou a sua ilegitimidade e a prescrição do direito de accionar do Autor.
No despacho saneador foram as Rés declaradas partes legitimas e relegado para sentença final o conhecimento da prescrição.
As Rés foram condenadas em quantia que se vier a apurar em execução de sentença.
Ambas apelaram, mas o douto Acórdão da Relação de
Lisboa confirmou a decisão da 1 instância.
Foi interposto, por ambas, recurso de Revista.
A página 289 verso foi concedido à Ré Miratir apoio judiciário.
2 - A) Nas suas alegações concluía a Ré Miratir: a) Estamos perante um transporte combinado (rodo-marítimo) em que a terceira e última "etapa", a efectuar entre o porto Cipriota de Famejusta e Nicósia
(destino final) não chegou a ser realizada, tendo a caixa de instrumentos ficado retida naquele porto, o que levou o recorrido a determinar o reenvio da mesma para Portugal. b) Para a execução do transporte em causa, foi emitido um (único) documento CMR, no qual foi escrita a frase: mercadoria com destino a Nicósia/Chipre em trânsito por
Génova. c) Parece líquido que à situação em apreço aplica-se, de acordo com o preceituado nos artigos 1 e 2, da convenção CMR (Decreto-Lei 46235, de 18 de Março de
1965), pelo que é à luz deste diploma que devem ser analisadas as várias questões jurídicas que foram colocadas pela recorrente. d) Tendo em consideração o prazo de prescrição previsto no artigo 32 da convenção CMR, conclui-se no sentido de que, à data de propositura da acção (11 de Julho de
1985) já se encontrava prescrito o direito do recorrido de interpôr a acção, devendo, por isso ser julgada precedente a excepção da prescrição deduzida. e) O recorrido, que interpôs a presente acção com base na afirmação de que por erro o carregamento foi enviado para Famejusta, não conseguiu fazer a prova de ter havido erro (culpa) da parte dos recorrentes, o que afasta a responsabilidade pelo facto de ter sido escolhido o porto de Famejusta para desembarque das mercadorias provenientes por via marítima de Génova. f) A prova de existência de erro por parte dos recorrentes era condição necessária e fundamental para a responsabilização destes pelos prejuízos alegadamente sofridos pelo recorrido. g) Ora, não tendo sido provado ter havido erro no desembarque das mercadorias em Famejusta não é legítimo concluir no sentido de que a escolha deste porto foi inadequada ou que deveria ter sido escolhido um outro porto ou trajecto, como parece resultar, quer da sentença 1 instância, quer do Acórdão recorrido. h) O facto de não ter havido erro por parte dos recorrentes no envio das mercadorias para Famejusta conjugado com o facto de ter havido encerramento da fronteira leva necessariamente à conclusão de que foi impossível efectuar o transporte das mesmas entre aquele porto e Nicósia, sendo certo que a distância a percorrer é de apenas escassos quilómetros. i) Ou seja, a não realização da última "etapa" do transporte entre o porto de Famejusta e Nicósia não foi devida a qualquer causa imputável à recorrente, pelo que se conclui não ter havido erro no desembarque das mercadorias em Famejusta, mas tão somente o facto de ter havido um encerramento da fronteira que separa as duas partes da ilha. j) Só a prova de que foi errada a escolha do porto de
Famejusta para o trânsito de mercadorias provenientes de Génova e destinadas a Nicósia poderia levar à conclusão de que a obrigação não foi cumprida por causa imputável à recorrente. l) A ausência de erro conjugada com o encerramento da fronteira impõe uma conclusão necessariamente diferente, ou seja, de que o não cumprimento da obrigação de colocar a mercadoria em Nicósia foi devido a uma impossibilidade absoluta, ou seja não foi possível, face ao encerramento da fronteira, efectuar o percurso de pequena distância (escassos quilómetros) que existe entre o porto de Famejusta e o destino final. m) Não tendo havido erro nem incumprimento das intenções constantes do documento CMR, dado que
Nicósia não é porto e havia necessidade de utilizar um porto cipriota, forçoso é concluir que se verificou, no caso em apreço, um caso de força maior, ou seja o encerramento da fronteira que separa as duas partes da ilha de Chipre. n) E, tendo em consideração o disposto no artigo 14 da convenção CMR, foi determinado pela recorrida, que se encontrava em Nicósia, reenviar as mercadorias de novo para Portugal, dado que o contrato que havia celebrado foi rescindido. o) Deve ser reconhecida a existência de um caso de força maior e, em consequência, ser o recorrente absolvido do pedido, revogando-se o Acórdão recorrido que violou, entre outras, as disposições constantes dos artigos 1, 2, 14 e 32 da convenção CMR e 799 do Código
Civil.
B) Por sua vez a Ré A. B nas suas alegações conclui: a) Contrariamente ao preconizado no douto Acórdão não houve pronúncia suficiente sobre a excepção de litispendência sobre os quesitos 25 e 26 mandados editar pelo Tribunal da Relação de Lisboa e sobre a caracterização das funções de despachante de transitário e de transportador. b) Caracteriza como contrato de transporte a intervenção do recorrente, quando a lei dispõe que ela se rege pelas normas do contrato de mandato. c) A intervenção do recorrente esgotou-se com a entrega da documentação ao transitório Miratir, sendo erradamente assimilado à de transportador. d) A mercadoria não chegou ao destino por factos a que o recorrente não deu causa. e) Ora, o Acórdão recorrido assinala o erro da sentença da 1 instância quando reconhece que a causa da inexecução de transporte é a agitação política em
Chipre (força maior), nos contra lide a lógica imputa a responsabilidade ao despachante oficial.
Por ter violado os artigos 461 e 462 Reforma Aduaneira, artigo 790 Código Civil, artigo 1 Decreto-Lei 43/83 e artigo 638 Código Processo Civil, o Acórdão recorrido deve ser revogado.
O Autor contra-alegou.
3 - Corridos os vistos, cumpre decidir.
4 - Dando ordem lógica e cronológica aos factos assentes pela Relação que foram os aceites na sentença, estilados num confuso questionário feito por remissão, está provado: a) O Autor é empresário e chefe da orquestra Eduard's
Band, que actua normalmente fora de Portugal - alínea d) especificação. b) Nessa qualidade firmou com o Cosmopolitan Restaurant de Nicósia o acordo constante do documento folhas 4 - resp. que. 1 c) Tal acordo tinha a duração de 1 ano e traduzia-se num total de 91250 dólares americanos - resp. que. 2. d) A fim de poder cumprir esse contrato o Autor encarregou a primeira Ré de proceder ao despacho e transporte para Nicósia dos instrumentos musicais e demais material indispensável ao funcionamento da orquestra - resp. que. 3. e) A 1 Ré aceitou essa incumbência e passou os recibos, cujas fotocópias estão juntas aos autos - resp. que. 4. f) A Ré "A. B" aceitou a incumbência de proceder ao despacho aduaneiro de exportação para Chipre, via Génova, de uma caixa com o peso bruto de
1500 quilogramas (Documento folha 26), contendo instrumentos musicais - resp que. 12. g) O que a Ré fez em 18 de Agosto de 1983 conforme as instruções recebidas - resp. que. 13. h) Com efeito daquela CMR - declaração de expedição internacional - consta expressa indicação feita pelo transitário, do destino da mercadoria "Nicósia - Chipre
- em transit por Génova" - resp. que. 20. i) A primeira Ré encarregou a segunda Ré de efectuar (tal) transporte (documento folha 8) - resp. que. 5. j) O carregamento foi enviado para Famejusta - resp. que. 6. l) Os instrumentos foram descarregados em Famejusta e dada a situação política houve encerramento da fronteira entre as duas partes da ilha - resp. que. 24. m) Ficou (assim) o Autor impedido de cumprir o contrato com o Cosmopolitan Restaurant, que o rescindiu - resp. que. 7. n) O Autor ficou lesado em quantia indeterminado - resp. que. 8 o) O Autor dispendeu com bilhetes de avião dos componentes da orquestra, de regresso, a quantia de 70720 escudos - resp. que. 10.
Para compreendermos uma visão conjunta da realidade há que assinalar que, de importante, não se provaram os quesitos 14, 19 e 23, ou seja,
- O despacho aduaneiro constitui pois o objecto da única relação jurídica de que a Ré A. B é um dos sujeitos.
- Realizada a verificação cessou a intervenção da Ré no processo (Ré A. B)
- alteração do local de destino promovido pelo transitário italiano Avardero com manifesto desrespeito pelas instruções dadas pela segunda Ré ora contratante.
E que o tribunal colectivo, na suas respostas - folha
121, restringiu as respostas aos quesitos 6 e 8, eliminando daquele "por erro das RR " e deste "e unicamente".
5 - O Doutor Cunha Gonçalves - comentário Código
Comercial II, Página 394 - definia o contrato de transporte "como sendo o que se celebra entre aquele que pretende fazer conduzir a sua pessoa ou as sua cousas de um lugar para o outro e aquele que, por um determinado preço, se encarregue dessa condução".
No mesmo sentido Ameliano Strechet Riveira, Anotado volume II, Página 267.
Comentando ainda afirmava:
"O contrato de transporte de cousas pode ser havido como a fusão de três contratos distintos: a prestação de serviços, pois que há uma troca de trabalho e salário; a locação pois que o transportador se obriga a ceder o uso total ou parcial dos seus veículos; e o depósito, porque é um contrato pelo qual o transportador recebe coisas alheias, que se obriga a guardar durante o transporte e a restituir no mesmo estado".
A doutrina italiana é a que mais se tem debruçado sobre este contrato.
A mais actualizada definição de contrato de transporte é-nos dada por Tambenino, Manual, Roma, 1962, Página 452:
"Il contrato di transporte di cose à comumente definito como qual contrato con il quale uno di sozzetti o obbliga verso l'altro sozzeto di transportare dentro conispettivo una o piu cose mobiliti de um luogo all'altro pendurado in consegue, custodendola durante il percurso e conseguandola al luogo di arrios".
Paralelamente Acórdão da Relação do Porto 23 de Outubro de 1984, C.J.; 1984, Ano IX, tomo 4, Página 252.
6 - A Ré "A. B - Despachantes oficiais,
Limitada" é um despachante oficial.
A Ré "Miratir, Transportes Internacionais, Limitada" é uma empresa transitária.
Na operação de expedição de mercadorias do território aduaneiro nacional para o estrangeiro, normalmente quatro entidades dela se ocupam, o despachante oficial, o transitário, o transportador e a seguradora.
Há sistemas onde o despachante, o transitário e o transportador podem ser um só.
Não assim em Portugal.
Pelo artigo 462 de Reforma Aduaneira só podem exercer nas alfândegas as funções que lhes estão marcadas naquela reforma, que se traduziam, artigo 426 - em complexas formalidades aduaneiras junto das autoridades alfandegárias visando a passagem de mercadorias, quer importadas, quer exportadas.
Para além do que estava previsto na Reforma, o artigo
461 dispunha que a profissão do despachante de alfândega regular-se-ia, pelas disposições da lei geral sobre o mandato e prestação de serviços do exercício das profissões liberais.
Com a publicação do Decreto-Lei 43/83, de 25 de
Janeiro, foram definidas as leis gerais do estatuto jurídico das empresas transitárias, com gastos económicos que se dedicam à prestação de especializados serviços a terceiros, "no âmbito da planificação, controle, coordenação e direcção de operações necessárias à execução das formalidades e tramites exigidos na expedição, recepção e circulação de bens e mercadorias", artigo 1.
A Portaria n. 561/83, de 11 de Maio, veio traçar um quadro de normas complementares ao regime jurídico do transitário, visando a desejável exequibilidade dos condicionamentos exigíveis para o exercício daquela actividade.
Finalmente a actividade de transportador está definida, em regime de exclusividade em legislação nacional e
Tratados e Convenções Internacionais sobre transportes marítimo, aéreo, rodoviário e ferroviário.
No caso dos autos o transporte rodoviário só é permitido a empresas com alvará e com exigência de capital e capacidade profissional.
7 - Só que este quadro legal não foi respeitado pelas
Rés, na sua actuação, em face das respostas dadas pelo tribunal.
Pretende ainda a Ré Miratir ver correr em seu benefício o estabelecido no artigo 32 n. 1 da Convenção Relativa ao contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada - CMR, concluída em Genebra em 18 de Maio de 1956, aprovado pelo Decreto-Lei 46235, onde se estatui:
"As acções que podem ser originadas pelos transportes sujeitos à presente Convenção prescrevem no prazo de um ano. No entanto, a prescrição é de três anos no caso de dolo, ou de falha que a lei da jurisdição a que se recorreu considere equivalente ao dolo. O prazo de prescrição é contado...".
O seu raciocínio é o seguinte: o douto acórdão recorrido considerou-a "transportadora" para a condenar em face da matéria de facto provada, mas já a considerou "transitário" para não a submeter àquela convenção e daí não lhe reconhecer o invocado direito à prescrição.
O Direito não é só lógica.
E o douto Acórdão Recorrido julgou bem, mas há que justificar.
Este pedido formulado pela Ré traduz um exercício inadmissível de posição jurídica.
Tem a doutrina apontado e estudado como situações típicas desse exercício inadmissível: a "exceptio doli"; o "venire contra factum proprium"; a "inelegabilidade de nulidades formais"; a "suppressio"; a "surrectio"; o "desiquilíbrio no exercício jurídico"; e o "tu quoque".
Nesta figura se vai subsumir o comportamento da Ré.
"A fórmula tu quoque traduz, com generalidade, o aflorar de uma regra pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não poderia, sem abuso, exercer a situação jurídica que essa mesma norma lhe tivesse atribuído" - Professor M. Cordeiro, Boa Fé, Volume II, Página 837.
"No Código Civil, a regra-mãe de tu quoque tem consagrações dispersas múltiplas, artigo ..."
É certo que a doutrina tem estudado e trabalhado o tu quoque ao nível contratual, imputando-o a um dos seguintes princípios: à retaliação, à regra de integridade, à recusa de protecção jurídica, à compensação de culpas, ao recurso ao próprio não direito, aos comportamentos contraditórios, à renúncia a sanções e à proporcionalidade contratual.
Mas o tu quoque funciona para além do campo contratual.
"Impõe, aí, que quem tenha firmado um direito, formalmente correcto, numa situação jusmaterial que não corresponda à prevista pela ordem jurídica não possa, em consequência disso, exercer essa posição de modo incólume" - obra citada página 851.
A Ré não é, nem pode ser transportadora.
Mas, assumindo, como assumiu, na realidade, tal posição, não pode beneficiar de uma situação jurídica protectora, própria de quem é juridicamente transportador: há que impugnar esta posição jurídica indevidamente obtida.
Improcede, desta forma, a invocada prescrição: hoje já não é o homem o produtor ou criador de lei, mas antes é a norma que gere o homem jurídico.
8 - Em face das respostas dadas aos quesitos 3-4-12 e
13 é ponto assente que entre o A. e a Ré A. B, estabeleceu-se um contrato de transporte.
E pelas respostas aos quesitos 5-20-6 e 24 há que concluir que a Ré A. B encarregou a Ré Miratir do transporte.
Contudo os instrumentos foram descarregados em Famejusta e dado que houve encerramento de fronteira entre as duas partes da ilha, dada a situação política - resp. que. 24 - ficou a A. impedida de cumprir o contrato com o Cosmopolitan Restaurant de Nicósia, que o rescindiu - resp. que. 7, 1 e 2 e alínea a) resp..
Entendem as Rés recorrentes que o encerramento da fronteira foi a causa do incumprimento da obrigação de colocar as mercadorias em Nicósia - uma impossibilidade absoluta - "ou seja não foi possível, face ao encerramento da fronteira, efectuar o percurso de escassos quilómetros entre o porto de Famejusta e o destino final, Nicósia".
Ambas apelidam esta impossibilidade de caso de força maior, mas divergem quanto ao seu entroncamento jurídico: a Ré B sob a alçada do artigo 790 e a Ré Miratir sob a do artigo 799, ambos do Código Civil.
Mas as instâncias fizeram uma leitura diferente: o encerramento de fronteira entre as duas partes da ilha - resp. que. 24 - é facto que se não enquadra no conceito de força maior, por entenderem que dele não emerge que os instrumentos musicais não pudessem chegar ao seu destino, não obstante o encerramento da fronteira.
Tal tem demonstração fácil face a qualquer atlas de geografia: de Famejusta para Nicósia, pela parte turca, podiam ir por terra, embora dessem mais voltas.
Daí a conclusão de ser possível o cumprimento da obrigação, não obstante se tornar mais onerosa a prestação do transportador, uma vez que "só a impossibilidade absoluta é que integra o conceito de força maior - página 387/v do douto Acórdão recorrido.
9 - O artigo 705 do Código Civil 1967 encerrava, pela positiva, os casos em que o devedor ficava exonerado de responsabilidade: impedido de cumprir por falta do credor, por força maior ou por caso fortuito.
Para o Professor A. Costa, obra, I edição, página 773:
"Segundo alguns autores, o caso fortuito representa o desenvolvimento de forças naturais a que se mantém estranha a acção do homem (inundação,incêndio...) e o caso de força maior consiste num facto de terceiro, pelo qual o devedor não é responsável (guerra, prisão, roubo ...).
De acordo com critério mais difundido: o caso de força maior tem subjacente a ideia de inevitabilidade: será todo o conhecimento natural ou acção humana que, embora previsível ou até presumido, não se pode evitar, nem em si mesmo nem nas suas consequências. Ao passo que o conceito de caso fortuito assenta na ideia de imprevisibilidade: o facto não se pode prever, mas seria evitável se tivesse sido previsto".
Mas já o Professor Guilherme Moreira, Instituições II
Página 128 alertava" qualquer que seja o sentido em que a tomem as expressões caso fortuito e força maior, os seus efeitos jurídicos são os mesmos".
E tinha razão: é isso que se passa na nossa actual legislação.
Hoje o artigo 790 n. 1 - estipula que "a obrigação extingue-se quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao devedor."
Problema está em saber em que consiste a "impossibilidade que é a superveniente, desde que se fosse originário nem a obrigação se constituíra - artigo 401 n. 3 Código Civil e o 306 Código Civil
Alemão.
Entendendo-se como um conceito naturalístico, lógico e volitivo impossível identifica-se "quid non volit non potest - tese consagrada no código de 1804 e em Itália, Espanha, Portugal (maioritariamente) e Alemanha (minoritariamente).
Contrapondo-se-lhe um entendimento filosófico - jurídico mais amplo, nascido na Alemanha, repassado pelo elemento correctivo da boa fé (X 242 CC Al) será impossível o que não possa de modo équo ser exigido ao devedor.
"Uma prestação que só possa ser realizada sob um esforço externo e com aplicação de meios totalmente desproporcionados não deve mais ser tratada como possível pela ordem jurídica" - Misch.
A aderência ao conceito naturalistico da impossibilidade é minoritariamente defendida na Alemanha - Larenz - através das ideias de certeza e segurança jurídica.
E são estes os argumentos decisivos de uma doutrina largamente maioritária e fortíssima jurisprudência.
O Professor Vaz Serra fiel ao seu projecto é a voz discordante - Revista de Legislação e Jurisprudência 104, Página 214.
Interpretar o direito é um agere e não um facere: há criatividade na função judicial, na relação dialéctica, de algo entre o facto natural e a norma.
Assim para interpretar a norma do artigo 790, dentro do sistema não se iria elaborar uma série de deduções dela extraídas, mas sim combinar normas e princípios - agir de boa fé - para dar a solução mais justa e correcta ao caso concreto submetido indutivamente ao artigo.
É duplo o trabalho de jurisprudência: rotura de norma as suas determinantes e valoração e na análise indutiva de caso concreto que julga, vai compreendê-la completá-la, concretizá-la em conformidade com a consciência jurídica geral de momento.
Em qualquer das duas noções de impossibilidade estaríamos sempre dentro da descrição do seu tipo inserto no artigo 790: é a posição assumida pelo douto Acórdão recorrido e aceite na visão restritiva pela Ré
A. B.
Existiria, assim, uma causa de justificação: é a impossibilidade que, extinguindo a obrigação, vai impedir que se coloque a questão da inexecução.
Mas a impossibilidade pode deixar permanecer o vínculo, como viável, exequível, em abstracto, e permitir que se fale em incumprimento, tendo então que necessariamente de apreciar o comportamento do devedor, a nível de exigibilidade - artigo 798.
E entramos numa causa de excepção - é a posição defendida pelo Professor Galvão Telles, obrg. 2 edição,
1979, Página 333 e seguintes e 352 seguintes e indirectamente pela Ré Miratir.
10 - A missão do julgador consiste na descoberta de uma decisão justa e justificada pela lei, segundo o direito em vigor.
A certeza de direito e a segurança jurídica de valores superiores e traves mestras que pautam a realidade normativa geral e abstracta.
O que as partes querem é a justiça ao seu caso concreto, o que não é coincidente com aqueles valores, necessariamente.
Ali, no direito norma, apura-se o interesse tutelado a actio legis, aferidos os valores.
Aqui no direito judiciário, na aplicação do direito do caso concreto, há que alargar o campo de sensibilização axiológica do direito ao facto concreto, com características naturalistas, históricas e sociológicas próprias, numa aproximação dialéctica de facto à norma, indutivamente.
É, pois, diversa a nossa posição.
Daí podermos partir para análise deste caso de noção de impossibilidade dada por Baptista Machado, Revista
Legislativa de Jurisprudência, Página 206:
"É aquela que resulta de uma perturbação de programa contratual que atinge directamente, ou a capacidade de prestar do devedor, ou o objecto da prestação em si mesmo ou o processo de prestação, isto é, a actividade ou conduta do devedor que permitiria satisfazer o interesse de credor e cumprir a obrigação."
11 - "Só por coincidência a impossibilidade se verifica no preciso momento do cumprimento; tão pouco se pode dizer que no momento do cumprimento deve ser apreciada a aludida impossibilidade e no momento do cumprimento deve ser tomada nota da existência que qualquer facto extintivo da obrigação no qual naturalmente se incluirá a impossibilidade" - Professor M. Cordeiro - obrg., 1988, volume II, Página 170.
Como vimos na declaração de expedição internacional consta - resp. que. 20 - a indicação do destino da mercadoria "Nicósia - Chipre - em transit por Génova".
O carregamento foi enviado para Famejusta e aí descarregado - resp. que. 6 e 24.
Mas que, dada a situação política houve encerramento da fronteira entre as duas partes da ilha - resp. que. 24.
No quesito 24- reportando-se ao facto alegado no artigo
17 de certificação folha 50 - perguntava-se se o não encaminhamento dos instrumentos de Famejusta para
Nicósia resultara "apenas" da situação política que determinou o encerramento de fronteira.
E na resposta o tribunal afastou a palavra "apenas", o que retira força à configuração da impossibilidade e afasta o pretendido nexo de causalidade.
Além disso o processo responde com silêncio total sobre a situação temporal que rodeou o encerramento da fronteira.
Desta forma, o facto inserido na resposta ao quesito 24 não tem a mínima virtualidade para ser subsumido ao conceito de impossibilidade.
Por outro lado, é evidente que a palavra "erro" utilizada na p.i. tinha o significado de engano e lapso e nunca o sentido técnico-jurídico dos artigos 247 e 252 do Código Civil.
12 - Termos em que, negando-se provimento aos recursos, confirma-se o douto Acórdão recorrido.
Custas pelas Rés, tomando-se em consideração o apoio judiciário conferido à ré Miratir.
Lisboa, 27 de Setembro de 1994.
Torres Paulo;
Cura Mariano;
Martins da Fonseca.